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Revista Brasileira de Psicanálise
versão impressa ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.53 no.4 São Paulo oct./dez. 2019
HISTÓRIA DA PSICANÁLISE
Sobre o suicídio: as reuniões da Sociedade Psicanalítica de Viena
Marta Raquel ColaboneI; Luiz Eduardo PradoII
IHistoriadora. Psicanalista. Membro do Centro de Estudos Psicanalíticos (CEP), São Paulo
IIPsicanalista. Historiador. Coeditor internacional da Revista Brasileira de Psicanálise
Entre 1906 e 1915, Otto Rank redigiu as atas das reuniões da Sociedade das Quartas-Feiras de maneira rigorosa, sempre elogiada por todos. Em 10 de outubro de 1906, além de redigir a ata, Rank foi o conferencista da noite, apresentando o trabalho "O drama do incesto e suas complicações". Em 31 de março de 1915, quase nove anos depois, Rank redige sua última ata: fora convocado para o serviço militar de guerra. A partir daí, as atas deixam de ser regulares: não são mais redigidas em sua integralidade, apenas resumidas e registradas com o título da conferência. Lendo-as com atenção, porém, a partir de maio de 1913, torna-se frequente a nota "Faltam as atas desta sessão". No dia 21 de maio desse ano aparece a lista dos presentes (membros e convidados), o título, "Contos de fadas", e a indicação do orador (na ocasião, Rank novamente). Notável exceção é a última dessas atas, de 19 de novembro de 1918, com uma conferência de Siegfried Bernfeld chamada "A criação poética dos jovens". Rank participa dessa reunião. Só levando esses elementos em conta podemos avaliar o quanto as atas da Sociedade Psicanalítica de Viena são uma obra de Rank, com o apoio de Freud, talvez como trabalho pelo qual este o remunerava pagando seus estudos. A correspondência integral de Freud e Rank (2015) mostra como, nesses anos decisivos, a psicanálise é uma criação conjunta. Rank era o "filho adotivo" de Freud, seu "secretário particular", que o conhecera interpretando seus sonhos (algo que o sonhador adorava) e de quem se separará devido à interpretação de alguns últimos sonhos (Prado de Oliveira, 2014). Em 1914, o nome de Rank aparece ao lado do de Freud na capa de A interpretação dos sonhos, como seu coautor, dispositivo que persiste até a sétima edição da obra, em 1922 (Marinelli & Mayer, 2009).
É provável que Freud tenha pessoalmente guardado as atas até 1938. Quando sai de Viena para Londres, confia-as a Paul Federn, que por sua vez parte para os Estados Unidos. Federn substituira Rank junto a Freud, mas apenas como secretário particular e representante, nunca como intérprete de sonhos, analista em suma. Publicadas pela primeira vez, em parte, na revista da Sociedade de Psicanálise da Índia, Samiksa, em 1947, as atas recomeçam a ser publicadas em inglês em 1962, nos Estados Unidos, com tradução de Margareth Nunberg, sob a responsabilidade de Herman Nunberg e Ernst Federn, a quem seu pai, Paul, as havia legado pouco antes de morrer, em 1950.1 Aparecem então como Minutes of the Vienna Psychoanalytic Society.2 A publicação de seus quatro volumes estende-se até 1975, quando começam a ser simultaneamente publicadas em alemão, em Frankfurt, com o titulo Die Protokolle der Wiener Psychoanalytischen Vereinigung,3 e em francês, em Paris, com o titulo Les premiers psychanalystes: minutes de la Société Psychanalytique de Vienne,4 entre 1976 e 1981. Note-se que em momento algum se cogitou publicá-las na Áustria, e também que Nunberg e Federn exigiram que, na edição alemã, figurasse a menção de a publicação original ter se dado nos Estados Unidos e em inglês. Por trás de todas essas decisões, há escolhas políticas de inúmeros tipos. De maneira geral, se a psicanálise nasceu em alemão, ela cresceu, amadureceu e espraiou-se pelo mundo em inglês. Os primeiros psicanalistas sabiam disso e insistiam nisso, Freud inclusive.
Na primavera de 1902, Freud foi nomeado ausserordentlicher Professor (professor extraordinarius) na Universidade de Viena, título honorífico, sem implicação universitária, permitindo-lhe cobrar mais do que um Privatdozent dos alunos particulares que porventura tivesse e esperar um dia ser realmente nomeado Professor, o que não ocorreria. No outono do mesmo ano, seguindo a sugestão de um paciente, depois discípulo, Wilhelm Stekel, têm inicio, em sua casa, as reuniões da Sociedade das Quartas-Feiras. Além de Freud e Stekel, participam delas Max Kahane, Rudolf Reitler e Alfred Adler, todos médicos, embora de orientações diferentes. "Uma centelha se acendia, passava de um espirito a outro, cada reunião era como uma revelação", conta Stekel. "Sentiamo-nos, nessa sala, participando da fundação de uma religião, cujo profeta era Freud", lembra Max Graf um pouco mais tarde, em 1906 (citados por Gay, 1988/1995, p. 185).
Em 22 de setembro de 1907, Freud escreve um bilhete a Rank pedindo-lhe que mimeografe uma carta anexa e a envie a todos os membros do grupo. A carta diz:
Participo-lhe a decisão que tomei de dissolver, no começo deste ano de trabalho, a pequena sociedade que tinha o costume de se encontrar em minha casa todas as quartas-feiras de noite e da qual o senhor participava, refundando-a imediatamente depois; uma curta declaração escrita que o senhor enviará a nosso secretário, Sr. Otto Rank, bastará para que sua qualidade de membro seja restabelecida, mas, se essa declaração não nos chegar antes da data estabelecida, deveremos considerar que o senhor não pertence mais a nossa associação. Sem dúvida, não preciso sublinhar o quanto me agradará a renovação de sua adesão. (Freud & Rank, 2015, p. 41)
Em seguida, Freud explica suas razões. A partir de 1906, o grupo contratara um de seus participantes, Otto Rank, como secretário remunerado. Desde então foram estabelecidas as atas das reuniões. Freud pensava que nem todos estavam de acordo com esse procedimento. Além disso, Isidor Sadger e Franz Wittels se opuseram com firmeza à admissão de mulheres na Sociedade das Quartas-Feiras. Havia também a prática de sorteio dos oradores: todos os participantes deviam, imperativamente, falar sobre o tema de cada noite, variando apenas a ordem. Muitos se opunham a essa prática e queriam que fosse mudada. A dissolução exigida por Freud visava à resolução desses conflitos.
As duas atas que apresentamos fazem parte das que Rank cuidadosamente anotou durante pouco mais de 10 anos, quatro vezes por mês. Elas tratam do suicídio, e sua importância se mostra no fato de que foram imediatamente publicadas em Viena, em 1910, com um fascículo à parte e uma introdução de Freud,5 e nos Estados Unidos em 1967, mesmo ano em que foi lançado o segundo tomo das Minutes of the Vienna Psychoanalytic Society.
Alguns dos principais participantes dos debates
Alfred Adler (1870-1937): médico e militante do Partido Social-Democrata. Foi membro do primeiro grupo que se reunia às quartas-feiras desde 1902 e presidente da Sociedade Psicanalítica de Viena entre 1910 e 1911, quando se afastou e criou sua Sociedade de Psicologia Individual.
David Ernst Oppenheim (1881-1943): professor de grego e latim no Liceu Acadêmico de Viena. Foi coautor com Freud de "Sonhos no folclore" (1911), artigo inédito até 1958. Saiu com Adler da Sociedade de Viena em outubro de 1911.
Eduard Hitschmann (1871-1957): médico. Começou a participar das reuniões das quartas-feiras em 1905. Foi diretor da Clínica Psicanalítica de Viena de 1922 a 1938. Emigrou para Londres e, em seguida, para Boston. Seu livro A teoria freudiana da neurose (1911) foi a primeira introdução sistemática à psicanálise.
Fritz Wittels (1880-1950): médico. Começou a participar das reuniões em 1906 e deixou a Sociedade em 1910, tendo sido readmitido em 1925, após escrever a primeira biografia de Freud, publicada em 1924. Emigrou para os Estados Unidos em 1932.
Isidor Sadger (1867-1942): médico. Companheiro de estudos de Freud entre 1895 e 1904, foi o primeiro psicanalista a utilizar o termo narcisismo, em "Questões neuropsiquiátricas à luz da psicanálise" (1908). Em 1930, publicou suas memórias das primeiras sociedades psicana-líticas de Viena.
Max Graf (1875-1958): musicólogo. Casou-se com Olga Hoenig, paciente de Freud, tornando-se amigo deste. Pai do pequeno Hans. Em 1942, publicou um artigo que marcou a história da psicanálise, "Reminiscências do professor Sigmund Freud".
Otto Rank (1884-1939): filósofo. Apresentado a Freud por Adler, foi seu íntimo entre 1905 e 1924, chegando a interpretar seus sonhos. Autor de algumas obras clássicas da psicanálise. Entre 1912 e 1924, foi editor do periódico Internationale Zeitschrift für Psychoanalyse; entre 1907 e 1922, coautor de A interpretação dos sonhos, alguns de seus escritos aparecendo como capítulos da obra princeps da psicanálise.
Paul Federn (1871-1950): médico e militante do Partido Social--Democrata. Diretor de seu setor médico, foi apresentado a Freud em 1902. Após o afastamento de Rank, Federn o substituiu em parte. De 1924 a 1938, foi vice-presidente da Sociedade Psicanalítica de Viena. Emigrou para os Estados Unidos em 1938, levando consigo as atas.6
Viktor Tausk (1879-1919): advogado e psiquiatra. "Ovelha negra" da psicanálise, foi precursor do conceito de identificação projetiva no artigo "Da gênese do 'aparelho de influenciar' no curso da esquizofrenia" (1919). Os exemplos clínicos mencionados por Freud em "O inconsciente" (1915) são de Tausk.
Wilhelm Stekel (1868-1940): médico. Analisado por Freud, tinha apreço pela compreensão de símbolos e de sonhos, evidente em seu A linguagem dos sonhos (1911). De 1910 a 1913, foi coeditor, com Freud e Adler, do periódico Zeitschrift für Psychoanalyse. Em 1924, já tendo se afastado da Sociedade Psicanalítica de Viena, tornou-se editor do Fortschritte der Sexualwissenschaft und Psychoanalyse.
Entre esses, três se suicidaram: Tausk, Stekel e Federn. O primeiro, em 1919, aos 40 anos, por enforcamento e tiro, em Viena. O segundo, em 1940, aos 72 anos, sozinho num quarto de hotel, em Londres. O terceiro, em 1950, aos 79 anos, por tiro, sentado em sua poltrona de analista, em Nova York. Rank teve morte prematura em 1939, aos 55 anos, nessa mesma cidade.
Referências
Freud, S. & Rank, O. (2015). Correspondance 1907-1926 (S. Achache-Wiznitzer, B. Aubenas, J. Dupont & F. Samson, Trads.). Paris: Campagne Première. [ Links ]
Gay, P. (1995). Freud: uma vida para o nosso tempo (D. Bottmann, Trad.). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1988) [ Links ]
Marinelli, L. & Mayer, A. (2009). Rêver avec Freud: l'histoire collective de L'Interprétation du rêve. Paris: Aubier. [ Links ]
Prado, L. E. (2019). Sigmund Freud e a política: Paul Federn, família, amigos. Modernos & Contemporâneos: International Journal of Philosophy, 6. [ Links ]
Prado de Oliveira, L. E. (2014). L'invention de la psychanalyse: Freud, Rank, Ferenczi. Paris: Campagne Première. [ Links ]
Correspondência:
Marta Raquel Colabone
Rua Haddock Lobo, 578, térreo
01414-000 São Paulo, sp
martacolabone@uol.com.br
Luiz Eduardo Prado
107, Rue Mouffetard
75005 Paris, France
ledprado@gmail.com
Recebido em 13/11/2019
Aceito em 3/12/2019
1 Os fundos de Paul Federn impunham publicação barata.
2 International University Press.
3 Psychosozial-Verlag.
4 Gallimard.
5 Presente aqui depois das atas.
6 Federn vinha de uma formidável família de militantes políticos. Suas irmãs participaram dos combates de rua do período da Viena Vermelha - uma delas seguiu para a luta na Guerra Civil Espanhola e, depois, na Resistência Francesa. Todos eram próximos da família Freud. Para um dossiê sobre o militantisme dos Federn, ver Prado (2019).