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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.54 no.1 São Paulo jan./mar. 2020

 

ALÉM DO PRINCÍPIO DO PRAZER

 

O fort-da como limite da representatividade e da temporalização da experiência1

 

Fort-da as the limit of representativeness and temporalization of experience

 

Fort-da como límite de representatividad y temporalización de la experiencia

 

Le fort-da comme limite de représentativité et du transitoire de l'expérience

 

 

Marília Franco e Silva VelanoI; Leopoldo FulgencioII

IMestre em psicologia pela Universidade de Paris 7. Doutoranda pelo Departamento de Psicologia Escolar e Desenvolvimento Humano do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP), tendo feito estágio de doutorado (bolsa sanduíche) na Universidade de Paris 7. Docente do Departamento de Psicanálise com Crianças do Instituto Sedes Sapientiae
IIDocente no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP), no Departamento de Psicologia da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da Personalidade. Mestre, doutor e pós-doutor em psicologia clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), tendo feito estágio de doutorado (bolsa sanduíche, com orientação de Pierre Fédida) no Laboratório de Psicopatologia Fundamental e Psicanálise da Universidade de Paris 7

Correspondência

 

 


RESUMO

O artigo resgata as perspectivas do brincar na teoria freudiana identificando dois modelos principais. O primeiro em que o brincar é compreendido a partir da teoria dos sonhos como realização de desejo, e o segundo, que surge em 1920, com o ensaio Além do princípio do prazer, quando ele é reposicionado ao lado dos sonhos traumáticos, das neuroses de guerra e da compulsão à repetição, às voltas com as questões do limite da representatividade e do colapso da temporalização da experiência. O fort-da inaugura, nesse contexto, uma perspectiva do brincar onde ele passa a ter uma função em si mesmo, quando apoia o sentido da experiência na materialidade, como ação disparadora do processo de simbolização.

Palavras-chave: brincar, simbolização, temporalização, materialidade


ABSTRACT

The article rescues the prospects of playing in Freudian theory, identifying two main models. The first in which the game is based on the theory of the subjects as the realization of the desire, and the second, which appears in 1920, with the "Beyond the pleasure principle", when repositioned next to the traumatic dreams, neurosis of war and compulsion to repeat, dealing with the problems of the limit of representativeness and the collapse of the experience timing. Fort-da starts, in this context, a perspective of playing from which it begins to have a function in itself, at a time when it supports the sense of experience in materiality, as a triggering action to the symbolization process.

Keywords: game, symbolization, temporalization, materiality


RESUMEN

El artículo rescata las perspectivas del juego en la teoría freudiana, identificando dos modelos principales. El primero en el que se entiende el juego basado en la teoría de los sueños como realización de deseo, y el segundo, que aparece en 1920, con el ensayo "Más allá del principio del placer", cuando se repo-siciona junto a los sueños traumáticos, de las neurosis de guerra y la compulsión a repetir, lidiando con los problemas del límite de representatividad y el colapso de la temporalización de la experiencia. Fort-da inaugura, en este contexto, una perspectiva del juego donde este comienza a tener una función en sí mismo, en el momento en que apoya el sentido de la experiencia en la materialidad, como una acción desencadenante del proceso de simbolización.

Palabras clave: juego, simbolización, temporalización, materialidad


RÉSUMÉ

L'article récupère les perspectives du jeu dans la théorie freudienne, identifiant deux modèles principaux. Le premier dans lequel on comprend le jeu comme l'accomplissement du désir, ayant pour base la théorie du rêve ; et le second, qui apparaît en 1920, dans l'essai « Au-delà du principe du plaisir » , où il est repositionné à côté des rêves traumatisants, des névroses de la guerre et de la répétition, qui font face aux questions de la limite de représentativité et de l'effondrement du transitoire de l'expérience. Le fort-da inaugure, dans ce contexte, une perspective de jeu où il commence à avoir une fonction en soi, au moment où il soutient le sens de l'expérience dans la matérialité, comme une action qui déclenche le processus de symbolisation.

Mots-clés : jeu, symbolisation, temporalité, matérialité


 

 

Perspectivas do brincar em Freud

O brincar foi objeto de estudo da psicanálise antes mesmo que a criança fosse tomada em análise. Isso porque, partindo da investigação do infantil a partir do adulto, como é próprio da metodologia psicanalítica, a teorização sobre a brincadeira antecedeu em alguns anos a possibilidade de acolher uma criança em análise. Identifica-se uma referência direta à criança como paciente, e sua brincadeira, no Caso Hans (Freud, 1909/1996a) e na observação que Freud fez do próprio neto no ensaio Além do princípio do prazer (1920/2010), que não se referiam a uma psicanálise da brincadeira ou da criança propriamente dita, mas a uma aplicação das técnicas e teorias da psicanálise de adultos ao universo infantil.

Apesar de não formalizar uma teoria sobre o brincar, Freud não lhe foi indiferente, apresentando-o de maneira mais ou menos explícita ao longo de toda a sua obra. De forma periférica o brincar aparece também em outros textos, que tratam de questões distintas, como a criatividade, a compulsão à repetição e a angústia. Podemos afirmar que a passagem da sua posição periférica ao centro, como um método psicanalítico em si mesmo e, posteriormente, matriz da experiência psíquica, deu-se a partir de grandes saltos e rupturas que ficaram a cargo dos psicanalistas que o sucederam.

Ao longo da sua obra, Freud apresentou duas formulações sobre o brincar. A primeira delas aparece em dois artigos: "Escritores criativos e devaneio" (1908/1996b) e"Personagens psicopáticos no palco" (1942[1906]/1996d), publicado postumamente, e pode ser sintetizada pela passagem em que Freud contrapõe o brincar à realidade: "a antítese do brincar não é o que é sério, mas o que é real" (1908/1996b, p. 135).

A compreensão e o interesse de Freud pelo brincar, nesse primeiro momento, são desenvolvidos a partir da teoria do sonho como realização de desejo, ficando à disposição da criança os mesmos recursos dos quais dispõe o sonhador para tratar a realidade e ajustá-la em certa medida ao desejo. Trata-se, como sabemos, de uma teoria em que o desejo produz um sentido anunciado no sonho e através da sua interpretação seria possível explicitar os mecanismos e instâncias que envolvem o psiquismo humano. Freud, tomando o brincar tal qual um sonho acordado, apresenta uma criança que constrói um mundo próprio e reajusta os elementos do seu mundo da forma que lhe agrada. Esse sonho acordado e encenado da infância dará lugar às fantasias e devaneios do mundo dos adultos que continuam, por assim dizer, cumprindo a mesma função de um sonho desejante. Trata-se de uma racionalidade onírica, um conjunto das formulações teóricas e técnicas que tem o sonho como exemplar, o referente que molda tanto a sessão clínica como o modelo da experiência psíquica, que está organizada em referência às coordenadas do tempo - a ideia de um aparelho psíquico como aparelho de memória - e da representatividade, em que a interpretação é a técnica predominante.

A segunda perspectiva de Freud sobre o brincar surge a partir de uma reformulação teórica da psicanálise, de modo geral, e da teoria dos sonhos como realização de desejo, em particular. Freud passa a defender a ideia de que na brincadeira não se trata só de ajustar a realidade àquilo que a criança quer, mas também de transformar algumas experiências em brincadeira. Interessa a Freud, principalmente, saber por que a criança brinca com as experiências desprazerosas.

Ofort-da foi a brincadeira observada por Freud em seu próprio neto, de um ano e meio, diante da ausência, por um curto período, da mãe da criança. A partir de 1920, em Além do princípio do prazer, o brincar surge ao lado do irrepresentável, dos sonhos traumáticos e das neuroses de guerra. A conclusão de Freud é a de que a criança brinca com o desaparecimento das coisas, representando a ausência em um trabalho de simbolização. O ponto de partida do texto freudiano, é importante destacar, são os fenômenos da repetição dos sonhos traumáticos que trazem grande desprazer ao sonhador e que não poderiam ser compreendidos dentro do território do sonho como realização de desejo.

Com o advento desse modelo do sonho que não mais está articulado à realização de desejo, mas que repete experiências traumáticas e desprazerosas, a brincadeira vai assumir sua nova definição como uma tentativa da criança de buscar elaboração e integração psíquicas. O texto de 1920 implica uma reviravolta na teoria dos sonhos e no cerne da metapsicologia e sua relação com a teoria do recalcado. Trata-se de sonhos que não estão mais na lógica de uma anunciação do reprimido, mas sim de uma repetição do que ainda não pode ser elaborado, tampouco vivido, e que busca uma representação para sobreviver psiquicamente.

 

O brincar como um sonho expandido

Freud não explicitou uma teoria do brincar propriamente dita, mas não se furtou de mencioná-lo em diferentes momentos de sua obra. Esse percurso envolve os trabalhos da primeira e da segunda década, partindo de A interpretação dos sonhos (1900/2019), Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905/1996f) e o Caso Hans (1909/1996a) como uma síntese clínica das questões levantadas pelos textos que o precederam. Encontram-se também nesse período "Escritores criativos e devaneio" (1908/1996b) e "Personagens psicopáticos no palco" (1942[1906]/1996d), fazendo uma referência direta ao brincar.

A partir de 1920, com a reviravolta de Além do princípio do prazer, que irá incidir sobre toda a teoria dos sonhos, sobre as questões relacionadas à simbolização e, de um modo paralelo, sobre os objetivos do tratamento psicanalítico, o brincar faz uma importante aparição para compor junto aos sonhos traumáticos e à compulsão à repetição a demonstração das falhas na função da representatividade. Já em Inibição, sintoma e ansiedade (1926/1996c), Freud extrai as consequências de algumas importantes reformulações para pensar a questão da angústia quando surge novamente uma referência direta ao brincar com o jogo do esconde-achou.

O ponto de partida para a inscrição do brincar na racionalidade clínica foi a publicação do Caso Hans. No artigo, que é uma síntese comprobatoria das recentes descobertas dos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, em resposta às questões da sexualidade infantil que surgiram desde A interpretação dos sonhos, Freud apresenta o caso de uma criança - que brinca! - embora não elabore especificamente uma teoria sobre o brincar a partir dele.

A primeira menção direta ao brincar surge no ano anterior ao Caso Hans, no texto "Escritores criativos e devaneio", reaparecendo em "Personagens psicopáticos no palco", publicado postumamente. Em "Escritores criativos e devaneio", o brincar é um precursor das fantasias e da atividade criativa:

Acaso não poderiamos dizer que ao brincar toda criança se comporta como um escritor criativo, pois cria um mundo próprio, ou melhor, reajusta os elementos de seu mundo de uma forma que lhe agrade? Seria errado supor que a criança não leva esse mundo a sério; ao contrário, leva muito a sério a sua brincadeira e dispende na mesma muita emoção. (Freud, 1908/1996b, p. 135)

A ideia a ser formulada é a de que o brincar não é a antítese do que é sério, mas daquilo que é real. Freud vai chamar a atenção para a preservação na linguagem da associação entre a criação poética e o brincar através do uso do termo Spielen, que em alemão significa brincar e também representar, como atores no teatro. Ele coloca em relevo o que está compartilhado entre o brincar e a criação artística, que é a presença da fantasia.

No texto "Personagens psicopáticos no palco", escrito em 1906 e publicado postumamente, a relação entre o brincar, a criação artística e a fantasia também está presente. Freud afirma que a participação da plateia de um teatro em jogo dramático funciona como o equivalente de uma brincadeira infantil: tanto o artista no teatro como o público fazem da cena um substituto do brincar, onde se podem ver encenados alguns dos seus desejos dentro de um enquadre considerado normal pela cultura.

A compreensão e o interesse de Freud pelo brincar, nesse primeiro momento, são desenvolvidos a partir dos sonhos como realização de desejo, ficando à disposição da criança os mesmos recursos do sonhador para tratar a realidade e ajustá-la em certa medida ao desejo. Trata-se de uma teoria em que o desejo produz um sentido que se anuncia no sonho e, através da sua interpretação, seria possível explicitar os mecanismos e instâncias que envolvem o psiquismo humano. Freud, tomando o brincar tal qual um sonho acordado, apresenta uma criança que constrói um mundo próprio e reajusta os elementos do seu mundo da forma que lhe agrada. Esse sonho acordado e encenado da infância dará lugar às fantasias e devaneios do mundo dos adultos que continuam, por assim dizer, cumprindo a mesma função de um sonho desejante.

Um segundo modelo do brincar em Freud vai surgir no lastro de uma importante reformulação teórica da teoria dos sonhos como realização de desejo. Freud passou a defender a ideia de que, na brincadeira, não se trata só de ajustar a realidade àquilo que se quer, mas também de transformar algumas experiências em brincadeira. Mais que isso, interessa-lhe saber por que a criança brinca com as experiências desprazerosas.

O fort-da foi a brincadeira observada por Freud em seu próprio neto, de um ano e meio, diante da ausência, por um curto período, da mãe da criança. A conclusão de Freud foi a de que o menino brincava com o desaparecimento das coisas, representando a ausência em um trabalho de simbolização. A partir de 1920, em Além do princípio do prazer, o brincar passa a assumir uma função de simbolização.

O ponto de partida do texto freudiano, é importante destacar, são os fenômenos da repetição dos sonhos traumáticos, os quais trazem grande des-prazer ao sonhador e que não poderiam ser compreendidos dentro do território do sonho como realização de desejo. Disso colocamos o brincar como tentativa de temporalização da experiência, no sentido de que a repetição representa o colapso do tempo.

A brincadeira aqui, diferentemente daquela de "Escritores criativos e devaneio", é o modelo de um trabalho psíquico que advém da ausência ou da perda do objeto. A ação realizada através do brinquedo transforma a experiência passiva de ser deixada na atividade de abandonar como um primeiro caminho que abre as portas do processo de simbolização.

Já em Inibição, sintoma e ansiedade, Freud aborda, ainda que de forma breve, a brincadeira de esconde-achou. A ansiedade para Freud vai despontar com o nascimento através da ruptura com a condição intrauterina e sua repetição ao longo das sucessivas separações. Nos seus termos,

a situação de sentir falta da mãe não é uma situação de perigo, mas uma situação traumática, ... se acontecer que a criança na época esteja sentindo uma necessidade que sua mãe seja a pessoa a satisfazer. Assim o primeiro determinante de ansiedade que o próprio ego introduz é a perda de percepção do objeto (que é equacionada com a perda do próprio objeto). (Freud, 1926/1996c, p. 165)

Novamente a brincadeira surge não como a preocupação específica de Freud, mas como aquilo que aponta para as questões da angústia das quais ele tratará ao longo do texto. A brincadeira do esconde-achou é uma tentativa da mãe de que a criança reconheça que ela vai e, de um modo geral, volta. Freud vai nos dizer que "a mãe encoraja este conhecimento que é tão vital... Nessas circunstâncias a criança pode, por assim dizer, sentir anseio desacompanhado de desespero" (Freud, 1926/1996c, p. 165).

 

O brincar sob o signo da morte: o fort-da, a representatividade e a temporalização da experiência

Em 1920, com a publicação de Além do princípio do prazer, o brincar vai reaparecer como centro das especulações e observações empíricas de Freud, ao lado das neuroses de guerra e dos sonhos traumáticos. O texto, de caráter genético,2 posiciona o leitor como testemunha do nascimento do conceito a ser desvendado, a partir dessas múltiplas e diferentes entradas. Confere, pela própria forma aberta, inconclusiva e especulativa, um lugar incerto para o tema do ódio, da agressividade, que ficou condensado sob o signo da pulsão de morte. Esse gesto criativo, especulativo e teórico marcou uma reviravolta da psicanálise dos anos vinte, em função da ampla reorganização que introduz e que será definida posteriormente em Psicologia de grupo e a análise do ego (Freud, 1921/1996e) e O eu e o id (Freud, 1923/2011).

O texto é introduzido pela revisão da formulação sobre o princípio do prazer que havia sido elaborado desde A interpretação dos sonhos. Tomando emprestado o princípio fechneriano da tendência à estabilidade, em que o aparelho psíquico se empenharia em conservar reduzidas as quantidades de excitação, o prazer será reconhecido como esse esforço de redução da excitação e o desprazer reconhecido como seu contrário, o aumento da excitação. Freud vai relativizar a dominação do princípio de prazer nos processos psíquicos, tomando como ponto de partida tanto a introdução do princípio de realidade como possibilidade de adiamento do prazer, como também a ação do recalque como a segunda fonte de desprazer. O desprazer do recalque estaria presente como resultado de um conflito psíquico cuja ideia intolerável não pode integrar-se ao eu, passando a ser, como é o caso da neurose, um prazer que não pode ser sentido como tal.

Freud, no entanto, atribui como sendo a maior fonte de desprazer aquela proveniente da percepção interna e externa, que passa a ser reconhecida como perigo. Parte, a título de exemplificação, para a neurose traumática como aquela determinada pelo fator da surpresa, do terror e do medo. Em seguida, analisa a produção onírica das neuroses traumáticas, que possuem como elemento estrutural comum o retorno em sonho à situação traumática - condição que coloca um problema à teoria dos sonhos como realização de desejo e que fora parcialmente resolvido em A interpretação dos sonhos como o desejo de punição, e agora parece tomar a frente das preocupações do autor, sob o signo do que ele denominou tendências masoquistas do eu.

O texto salta da sombria e obscura neurose traumática para a brincadeira das crianças. A famosa cena-brincadeira do fort-da surge aqui ao lado do que viria a ser a mais disruptiva das experiências da vida: a guerra, o ódio, a agressividade. Dos egressos traumatizados da guerra para a sala da casa de sua filha Sophie, Freud observa Ernst, seu neto de um ano e meio, brincar repetidamente com um carretel, o que ele denominou ser seu primeiro jogo de invenção própria, e que inaugura na história da psicanálise a observação de bebês:

O garoto não era precoce no desenvolvimento intelectual; com dezoito meses falava apenas algumas palavras incompreensíveis e dispunha também de vários sons significativos, entendidos pelas pessoas ao seu redor. Mas tinha um bom relacionamento com os pais e a única empregada, e recebia elogios por ser "comportado". ... Esse bom menino tinha o hábito, ocasionalmente importuno, de jogar todos os pequenos objetos que alcançava para longe de si, a um canto do aposento, debaixo da cama etc., de modo que reunir os seus brinquedos não era coisa fácil. Ao fazer isso ele proferia, com expressão de interesse e satisfação, um forte e prolongado o-o-o-o, que, no julgamento da mãe e no deste observador, não era uma interjeição e significava "fort" [foi embora]. Afinal percebi que era um jogo e que o menino apenas usava todos os seus brinquedos para jogar, "ir embora". Um dia pude fazer a observação que confirmou minha opinião. Ele tinha um carretel de madeira, em que estava enrolado um cordão. Nunca lhe ocorria, por exemplo, puxá-lo atrás de si pelo chão, brincar de carro com ele; em vez disso, com habilidade lançava o carretel, seguro pelo cordão, para dentro do berço, através de seu cortinado, de modo que ele desaparecia, nisso falando o significativo o-o-o-o, e depois o puxava novamente para fora do berço, saudando o aparecimento dele com um alegre "da" [está aqui]. Então era essa a brincadeira completa, desparecimento e reaparição, de que geralmente via-se apenas o primeiro ato, que era repetido incansavelmente como um jogo em si, embora sem dúvida o prazer maior estivesse no segundo ato. (Freud, 1920/2010, p. 176)

Freud atribui a transformação da cena vivida passivamente em atividade como uma das primeiras funções desse jogo. Em consequência, explora a ideia de que a elaboração das vivências impressionantes se manifesta como um modo primário que independe do princípio do prazer. Nessa direção, "Vê-se que as crianças repetem, brincando, o que lhes produziu uma forte impressão na vida, que nisso reagem e diminuem a intensidade da impressão e tornam-se, por assim dizer, donas da situação" (Freud, 1920/2010, p. 175).

Ele observa que o caráter desprazeroso da experiência não a incapacita para tornar-se brincadeira e atribui ainda uma função secundária ao brincar que está influenciada pelo desejo de ser um adulto e agir como ele. Retoma, embora sem referenciar, a tese defendida em "Personagens psicopáticos no palco" de que ao espectador no teatro são dirigidas as mais dolorosas impressões, como na tragédia, e, no entanto, são por ele percebidas com satisfação.

Embora Freud ressalte aqui o prazer obtido em outra fonte, como objetivo final da recordação e da representação das experiências desprazerosas, permanece em aberto a hipótese mencionada de que a elaboração da experiência traumática, através da brincadeira, pode corresponder a uma razão que não está articulada ao princípio do prazer, ou seja, uma razão "primária e independente", que tem a ver com o estatuto próprio da experiência, seus limites e condições de representatividade.

Não é por acaso que a sequência da argumentação parte de uma consideração acerca dos limites da técnica psicanalítica tal qual ela vinha sendo formulada. A psicanálise era uma "arte da interpretação" cuja função terapêutica teve de ser complementada com a construção, por meio da própria lembrança do paciente. O analista centrava a ênfase nas resistências do paciente e "depois a arte consistiu em desvendá-las o mais rapidamente possível, mostrá-las ao paciente e, através da influência pessoal (eis o lugar da sugestão atuando como transferência), induzi-lo a abandonar as resistências" (Freud, 1920/2010, p. 176). Freud retoma a história da técnica psicanalítica como a história dos limites impostos por ela, demonstrando como o campo empírico do caso clínico tem soberania sobre ela.

O paradigma do sonho que lançava como objetivo do tratamento psicanalítico "tornar consciente o que era inconsciente" foi colocado em xeque frente à incapacidade do paciente de lembrar-se de tudo o que nele está recalcado. A repetição aparece no lugar daquilo que não pode ser lembrado. O desconhecido e a liberdade de pensamento que eram alvos do tratamento psicanalítico das neuroses passaram a ser complementados com a repetição, em ato, na cena transferencial. Nesse caminho Freud consegue formular algo do fenômeno que se passa Além do princípio do prazer, a compulsão à repetição, que contraria o princípio do prazer, uma vez que não está associada a nenhuma possibilidade de prazer.

O fort-da apresenta-nos um modelo em que a saída para a qualidade traumática da experiência - que se apresenta como impossibilidade de temporalização e, portanto, integração ao psiquismo - está apoiada na capacidade de investir, em um primeiro momento, a materialidade do objeto como disparador para o processo de simbolização. Disso decorre, em um segundo momento, o investimento na representação do objeto como uma forma de satisfação alucinatória do desejo.

Nessa perspectiva, a verdadeira solução frente ao desaparecimento do objeto se organiza em torno da capacidade do psiquismo de dar materialidade, representação e, sobretudo, figurabilidade ao objeto. Em referência ao processo de representação do objeto, Botella e Botella (2007) vão chamar atenção para as operações que estão em jogo durante o processo de representação do objeto. Trata-se, segundo os autores, de um movimento ao mesmo tempo de procura do objeto real e de retorno sobre si mesmo, portanto autoerótico. A representação do objeto ausente é formada pelas reflexões e projeções entre a percepção endopsíquica do eu-corpo erógeno e aquela do objeto externo proveniente dos órgãos do sentido. Através dessa brincadeira a criança consegue controlar a ausência do objeto investido como também as consequências dessa ausência: o risco de esgotar suas capacidades psíquicas para manter tanto a representação do objeto como de si mesmo. Nesse sentido, na ausência da mãe a representação tanto da mãe quanto da criança se revela em uma dupla negatividade.

Os autores concluem, dessa forma, que no processo formador da representação de objeto contabiliza-se também a ausência especular do próprio sujeito, estando a ligação entre sujeito e objeto sustentada pela negatividade da presença do objeto investido. A leitura freudiana do fort-da estabelece a relação entre o sujeito e o objeto e as condições em que o risco de perda do objeto infere no risco de perder a si mesmo, apontando a concomitância entre o reconhecimento do objeto e a experiência do eu. Freud vai lançar as bases do processo de simbolização a partir da experiência traumática da ausência do objeto tendo em vista o equilíbrio da economia psíquica. Ele vai articular a repetição dos sonhos de guerra como uma tentativa de inscrever, ligar, a soma de excitação da experiência traumática que não preparar o aparelho psíquico com um sinal de angústia, tendo em vista que se tratou de uma experiência de susto e surpresa. Consideram-se traumáticas as excitações que são fortes o suficiente para romper a proteção. A tarefa do aparelho psíquico que surge frente a essas inundações passa a ser a de "controlar o estímulo, de ligar psicologicamente as quantidades de estímulo que irromperam, para conduzi-las à eliminação" (Freud, 1920/2010, p. 192). A neurose traumática passa a ser concebida como uma ruptura da proteção contra estímulos, ao que ele afirma:

Os sonhos dos neuróticos que sofreram acidentes fazem os doentes voltarem regularmente à situação do acidente, então eles não se acham a serviço da realização de desejos, cuja satisfação alucinatória tornou-se, sob o domínio do princípio do prazer, função dos sonhos... A função do sonho traumático seria lidar retrospectivamente com o estímulo, mediante o desenvolvimento da angústia, cuja omissão seria a causa da neurose. (Freud, 1920/2010, p. 196)

A reviravolta é anunciada no parágrafo que segue:

Os sonhos dos neuróticos traumatizados já não se incluem na perspectiva da realização de desejo, nem os sonhos, ocorrentes nas psicanálises, que nos trazem à memória os traumas psíquicos da infância. Eles obedecem antes à compulsão a repetição, que na análise, de fato, é favorecida pelo desejo (encorajado pela sugestão) de evocar o que foi esquecido e reprimido. (Freud, 1920/2010, p. 196)

Freud passa a se ocupar do "interesse do ligamento psíquico de impressões traumáticas" cuja impossibilidade provocaria um mal-estar análogo ao das neuroses traumáticas. Descreve as manifestações da compulsão à repetição nas primeiras atividades da vida psíquica infantil, nas análises, e retoma novamente o brincar.

No caso do jogo infantil, acreditamos perceber que a criança também repete a vivência desprazerosa porque sua atividade lhe permite lidar com a forte impressão de maneira mais completa do que se apenas a sofresse passivamente. Cada nova repetição parece melhorar o controle que ela busca ter sobre a impressão, e nas vivências prazerosas a criança não é saciada pelas repetições, insistindo implacavelmente para que a impressão seja igual. (Freud, 1920/2010, p. 200)

Convém observar como não há referência aos significantes da brincadeira ou às fantasias que podem estar subjacentes a ela. O brincar surge no texto com uma acepção estruturante, como uma modalidade de digestão das experiências de grande intensidade. Resta interrogar, no entanto, a qual tipo de brincar Freud se refere aqui e se, de fato, o autor se distancia da brincadeira de "Escritores criativos e devaneio", em que atribui ao brincar a função de contrapor-se ao que é real. Ou, caso contrário, estaria se referindo, especificamente, ao brincar que surge de uma experiência que comporta, por excesso de intensidade, a impossibilidade de ser representada. De todo modo, trata-se de um novo campo de investigações que surge a partir de 1920, em que o trabalho que incide em torno do recalcado e as formações do inconsciente já não são mais suficientes para responder aos novos problemas clínicos da época.

O fort-da, a nosso ver, é uma ação que institui e abre as vias para o processo de simbolização, não estando necessariamente referido ao efeito do desaparecimento da mãe, à negatividade então do objeto, mas justamente às condições que a presença sensível da mãe instaurou para que sua ausência pudesse vir a ser suportada com o apoio do sentido dessa ausência na materialidade do objeto.

A bem dizer, podemos reconhecer desde A interpretação dos sonhos a dificuldade que as questões do ódio e da agressividade colocavam para o pensamento freudiano, e que ficavam sob a sombra da sexualidade, tema que ocupa toda a preocupação da primeira década. Os problemas do sadismo, do masoquismo, da auto e da heteroagressividade ficarão sintetizados em torno da postulação do conceito de pulsão de morte tal como ele apresenta na sexta parte de Além do princípio do prazer:

Observações clínicas nos levaram, naquela época, à concepção de que o instinto parcial complementar ao sadismo, o masoquismo, deve ser entendido como uma reversão do sadismo para o próprio eu. ... o masoquismo, a volta do instinto ao próprio eu, seria então na realidade, um retorno a uma fase anterior dele mesmo, uma regressão. Em um ponto a descrição que ali se fez do masoquismo necessitaria de correção, por ser demasiado exclusiva; o masoquismo também pode ser primário, algo que ali pretendi contestar. (Freud, 1920/2010, p. 226)

A pulsão de morte frequentemente referida ao irrepresentável articula-se de uma maneira especial ao problema do limite da simbolização e da representatividade em que a ação de brincar, através do uso da mediação dos brinquedos, assume uma grande importância, estando aquém da mediação da situação analítica pela fala. Para além do conteúdo veiculado, dos significantes que norteiam essa ação, o brincar começa a ser compreendido também como a possibilidade de apropriação de determinadas experiências, realçando uma preocupação com a forma do brincar e sua finalidade em si mesmo.

A relação entre a pulsão de morte e o brincar produziu desdobramentos decisivos na história da psicanálise. Em Klein, é possível observar sua importância no reconhecimento do sadismo na gênese do psiquismo e na estrutura do brincar. Em Winnicott, de uma maneira distinta, com sua rejeição da pulsão de morte como conceito útil para a psicanálise, o irrepresentável foi transferido para as condições de ilusão da mãe suficientemente boa em uma relação em que as falhas ambientais nessa condição de dependência produzem a compulsão à repetição.

 

Referências

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Botella, C. & Botella, S. (2007). La figurabilité psychique. Editions in Press.         [ Links ]

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Correspondência:
Marília Franco e Silva Velano
Avenida Angélica, 361, ap. 1401
01227-000 São Paulo, SP
Tel.: 11 98638-2222
mariliavelano@gmail.com

Leopoldo Fulgencio
Avenida Professor Mello Moraes, 1721
05508-030 São Paulo, SP
leopoldo.fulgencio@gmail.com

Recebido em 18/3/2020
Aceito em 24/4/2020

 

 

1 Este trabalho é parte da pesquisa de doutorado de Marília Franco e Silva Velano, Razão onírica, razão lúdica: perspectivas do brincar em Freud, Klein e Winnicott, realizada no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP), sob orientação do Prof. Leopoldo Fulgencio, com bolsa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).
2 As considerações formais do texto foram extraídas de Ab'Sáber (2016).

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