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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.54 no.2 São Paulo abr,/./jun. 2020

 

PANDEMIA

 

Da dor ao sonho: sobre a coleção Oniricopandemia

 

From pain to dreams: on the Oniricopandemia Collection

 

Del dolor al sueño: sobre la Colección Oniricopandemia

 

De la douleur au rêve : à propos de la Collection Onirique-pandémie

 

 

Adriana Barbosa Pereira

Psicanalista, mestre e doutora pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP). Professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Membro do Grupo Brasileiro de Pesquisas Sándor Ferenczi e do Troça Coletiva: Psicanálise, Arte e Política

Correspondência

 

 


RESUMO

O artigo apresenta a coleção Oniricopandemia: Sonhos da Crise de Saúde e da Democracia, iniciada em 2 de abril de 2020, e descreve o trabalho psíquico de apropriação dos acontecimentos vividos durante a pandemia da covid-19, mediado pela figurabilidade dos sonhos. Processo sensível às impressões não conscientes dos acontecimentos singulares e sociais, articulado ao contexto histórico e político, os sonhos são tentativas de reparação, transformação e criação psíquica diante da catástrofe. A figuração é pensada tanto como um caminho para acordar e ligar as representações recalcadas quanto como inauguração da condição de representação inibida pelo terror e pelo risco do traumático. A ruptura psíquica mais radical e dessubjetivante é sem imagens, e os sonhos, mesmo os de repetição e de ansiedade, são formas de resistência contra a dessubjetivação. Destacam-se a relevância dos sonhos para a subjetivação da dor e sua partilha como uma ação que favorece a construção da memória individual e coletiva.

Palavras-chave: sonho, pandemia, figurabilidade, catástrofe, subjetivação


ABSTRACT

The article presents the Oniricopandemia Collection: dreams of health and democracy crisis, created on April 2nd, 2020, and describes the psychic work of appropriation of events lived during the Covid-19 Pandemic, through the mediation of dream figurability. A process that is sensitive to non-conscious impressions of singular and social events, related to historical and political contexts, dreams are attempts of psychic reparation, transformation and creation in the face of catastrophe. Figuration is thought as both a way to wake up and link repressed representations, as well as a means to start the representation condition inhibited by trauma. The most radical and de-subjectivating psychic break does not include images. Dreams, even those of repetition and anxiety, are forms of resistance against de-subjectivation. One highlights the dreams' importance for pain subjectivation, and dream sharing as an action that enables the construction of individual and collective memory

Key words: dream, pandemic, figurability, catastrophe, subjectivation


RESUMEN

El artículo presenta la Colección Oniricopandemia: sueños de crisis de salud y de la democracia, creada el 2 de abril de 2020, y describe el trabajo psíquico de apropiación de los eventos experimentados durante la pandemia de la Covid-19, a través de la mediación de la figurabilidad del sueño. Un proceso sensible a las impresiones no conscientes de eventos singulares y sociales, vinculados a contextos históricos y políticos, los sueños son intentos de reparación psíquica, transformación y creación frente a la catástrofe. Se piensa que la figuración es tanto un medio para despertar y vincular representaciones reprimidas, como también un medio para inaugurar la condición de representación inhibida por el trauma. La ruptura psíquica más radical y más desubjetivizante es sin imágenes. Los sueños, incluso los sueños de repetición y ansiedad son formas de resistencia a la desubjetiviza-ción. Destacamos la importancia de los sueños para la subjetivización del dolor y el compartir de sueños como una acción que permite la construcción de la memoria individual y colectiva.

Palabras clave: sueño, pandemia, figurabilidad, catástrofe, subjetivización


RÉSUMÉ

L'article présente la Collection Onirique-pandémie : des rêves de la crise de santé et de la démocratie, qui débute le 2 avril 2020, et décrit le travail psychique d'appropriation des évènements vécus pendant la pandémie de la Covid 19, ayant la médiation de la figurabilité des rêves. Un processus sensible aux impressions non conscientes des évènements singuliers et sociaux, articulé au contexte historique et politique, les rêves sont des tentatives de réparation, transformation et création psychique en face de la catastrophe. La figuration est pensée autant comme un chemin pour mettre en accord et lier les représentations refoulées, que comme l'inauguration de la condition de représentation inhibée par la terreur et par le risque traumatique. La rupture psychique plus radicale et qui empêche les créations subjectives est sans image, et les rêves, même ceux à répétition et ceux dus à l'anxiété, sont des manières de résistance contre la désubjectivation. L'importance des rêves pour la subjectivation de la douleur et son partage, se détachent comme une action qui favorise la construction de la mémoire individuelle et collective.

Mots-clés : rêve, pandémie, figurabilité, catastrophe, subjectivation


 

 

Apesar das ruínas e da morte,
Onde sempre acabou cada ilusão,
A força dos meus sonhos é tão forte,
Que de tudo renasce a exaltação
E nunca as minhas mãos ficam vazias.
SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, "Poesia"

Os relatos de mudança no padrão dos sonhos a partir do isolamento social vivido em todo o mundo devido à pandemia da covid-19, evidente também na intensificação dos meus próprios sonhos e naqueles dos meus pacientes, me levaram a propor, em 2 de abril deste ano, a coleção Oniricopandemia: Sonhos da Crise de Saúde e da Democracia. Fui inspirada pelo livro de Charlotte Beradt, Sonhos no Terceiro Reich: com o que sonhavam os alemães depois da ascensão de Hitler (2007), e também por minhas próprias pesquisas (Pereira, 2006, 2014),1 nas quais investigo a relevância psíquica dos processos de figurabilidade.

O mais interessante na proposta de Beradt, e no que ela inspira, é o fato de o sonho poder ser, ao mesmo tempo, íntimo e coletivo, revelando as passagens entre as dimensões intrapsíquica, intersubjetiva e social. Em meio à catástrofe, sob o risco iminente da morte, estamos reinventando as práticas domésticas, de trabalho, de cuidado das crianças e dos mais velhos, assim como a solidariedade, em uma tentativa de sustentar a vida e cerzir o laço social. No Brasil, temos a mórbida coincidência de a crise sanitária acontecer em uma das piores crises políticas, em meio ao negacionismo e profundo desamparo social. Reatualizam-se as violências das nossas origens, com o massacre dos povos indígenas e a exploração e desvalia do corpo e da vida das pessoas negras e pobres.

Diante do terror que vivemos, o sonhar pode ser pensado como processo capaz de desfazer os afetos paralisantes, transformá-los em angústia e ligá-los a figuras - mesmo que provoquem medo - e também como testemunho, transformando um acontecimento de dor em experiência subjetiva. Os sonhos são potencialmente capazes de desfazer os efeitos do desmentido das posições negacionistas, na medida em que reconhecem na realidade onírica o risco ao qual estamos submetidos. No sonhar, a função de realização de desejo se soma à de tratamento do potencial traumático de um acontecimento. Historicamente, os tempos de crise são, além de muito dolorosos, altamente criativos, e o sonhar é uma dessas produções, mesmo quando se trata de sonhos de repetição e de ansiedade. "[A] experiência de ruptura psíquica mais radical é a experiência sem imagem, tal como a da psicose branca ... constituir os recursos de figurar e representar inclui criar fantasmas e pesadelos, pois em sua total recusa o que resta é a inibição psíquica e o vazio" (Pereira, 2014, p. 120).

Os sonhos merecem ser escutados como forma de dar valor social às impressões sensíveis do impacto da catástrofe. Por meio deste artigo, os sonhos da coleção Oniricopandemia, feitos de vestígios da realidade externa e misturados aos desejos, terrores, angústias e medos inconscientes destes tempos duros, podem ser subjetivados e devolvidos à realidade compartilhada. O projeto permite reconhecer as tentativas de elaboração onírica diante do inapreensível e não representacional da catástrofe de mais de 150 mil mortos por covid-19 no Brasil (até 10 de outubro 2020). A Katastrófak [catástrofe], título original, em húngaro, do texto Thalassa, de Ferenczi (1924/2011b), é pensada por sua contribuição como ruptura abrupta que coloca em cena uma tensão máxima entre a vida e a morte, com risco de aniquilação, perda de estabilidade do mundo e falta de garantia de alívio através da catarse (Grupo Brasileiro Sándor Ferenczi, 2020a). Na catástrofe, é imperativo lidar com a destruição e com a dor da perda. Porém, se há nela uma dimensão conservadora de luto pelo que foi perdido, há também uma dimensão criadora, de luta, pelo que vai ser construído (Grupo Brasileiro Sándor Ferenczi, 2020b). Podemos pensar os sonhos nessa dupla vertente, como trabalho psíquico de luto e de criação.

Colecionar sonhos permite analisar o trabalho onírico como modo de processamento dos excessos e vazios diante da morte e do risco da morte e reconhecer sua potência para transformar a objetividade não mediada do evento da dor em uma experiência subjetiva de sofrimento. Um movimento entre a dor e o sonho, para parafrasear, de modo invertido, o título do livro de Pontalis (2005). "O verdadeiro trabalho de luto é o trabalho do sonho, caso este designe o não esquecimento e dê testemunho à obra da figura" (Fédida, 1991, p. 81).

São muitos os projetos nacionais e internacionais colecionando e pesquisando os sonhos da pandemia, e bastante se tem falado sobre o trabalho psíquico da noite. Não poderia ser diferente, porque o sonho é uma das nossas psicopatologias da vida cotidiana, não apenas como manifestação do inconsciente comum a todos e, hoje, intensificado pelas angústias de uma crise mundial de saúde, mas também como modo de apropriação de um afeto ainda mais arcaico do que a angústia, o terror capaz de congelar as funções psíquicas de transformação.

Sabemos que não foi Freud o primeiro a dar atenção ou atribuir sentido aos sonhos. Todas as culturas da Antiguidade mencionam o fenômeno onírico em inscrições no barro, em papiros, nas paredes, referindo-se a suas funções de desvendar o futuro, comunicar-se com deuses, ler a sorte. Os sonhos tinham participação na política e na medicina na Grécia antiga. A história é longa e está bem contada por Ribeiro (2019). Mais próximas de nós, pelo menos no tempo e no espaço, ainda que não no pensamento, as comunidades indígenas sempre deram atenção aos processos oníricos como modo de conexão com os saberes de outras gerações. Tal como nos conta Ailton Krenak (2019), é preciso levar em consideração que a maneira como o caçador sonha é diferente de como o agricultor sonha. Em geral, o sonho tem pelo menos dois aspectos: imaginar o que se avizinha (a aproximação da caça ou da época de um ritual para garantir boa colheita) e estabelecer laços afetivos, na medida em que sua narração cria intimidade. Por isso, Krenak atribui ao sonho o potencial de adiar o fim do mundo.

Podemos dizer que a história e a importância social do sonho sofreram uma mudança significativa partir da pandemia da covid-19. Uma história familiar para nós psicanalistas foi inaugurada por Freud (1900/1980b), em uma das principais revoluções epistemológicas propostas pela psicanálise a partir da noção de inconsciente.

A teoria do sonho ocupa um lugar particular na história da psicanálise marcando uma reviravolta: é com ele que a análise dá seu passo decisivo, que a levou de um procedimento psicoterapêutico a uma psicologia das profundezas. Desde então a teoria do sonho continuou sendo o que há de mais característico e de mais singular ... algo que não possui contrapartida no resto de nosso saber ... de pensar outros fenômenos e de engendrar sua metapsicologia. (Freud, 1937/1980a, p. 17)

O sonho é pensado como manifestação de desejos deslocados, condensados e figurados. A questão se complexifica nos sonhos traumáticos, com suas funções catárticas e traumatolíticas, nas quais o trauma impossível de ser recalcado é, antes, repetido. Essa função passa a ser pensada por Ferenczi não apenas como exceção, mas como um dos modelos do sonho (Gondar, 2013). No caso da crise pandémica, os restos diurnos são coletivos e incluem as terríveis imagens da mídia da realidade comum, "impressões sensíveis traumáticas, não resolvidas, que aspiram à resolução (função traumatolítica do sonho)" (Ferenczi, 1934/2011a, p. 130).

Há no sonhar uma reversão dos acontecimentos vividos passivamente em um processo ativo de figuração. No curta-metragem República (2020), a atriz, diretora e dramaturga Grace Passô representa nosso desejo de acordar deste pesadelo distópico. Mas não é preciso confundir os pesadelos do dia e da noite para sentir os impactos do sonho, pois ele explicita, com a intensidade da percepção, a construção de uma realidade psíquica que tenta apropriar-se das impressões da realidade externa.

Parece-me essencial que o trabalho de darstellen dos sonhos, no sentido de que "captura o instante em que ocorre a mediação entre aquilo que ainda se encontra em estado inapreensível e sua constituição em uma forma" (Hanns, 1996, p. 383), seja compartilhado e apreciado, dando continuidade à elaboração pela figuração. Importante destacar que não se trata de um desenho figurativo, de uma figura fixada em um objeto representacional, se levarmos em conta a deformação, o caráter lacunar dos sonhos e a copresença de contrários em uma lógica paradoxal. A apresentação das imagens nos sonhos é pensada como "figura figurante" (Didi-Huberman, 1990/2013), a saber, o processo, o caminho, a função de figurar.

"Nos sonhos, as condições de figurabilidade (Darstellbarkeit) dizem respeito à capacidade de certo material ser 'imaginificado', ou seja, colocado em imagens sensoriais, diferentemente de ser colocado em uma imagem ideativa da Vorstellung" (Pereira, 2006, p. 50). A figuração pode ser pensada como processo original para inscrição psíquica: "não representação e figurabilidade se encontram no instante em que são recolhidos os elementos sensoriais não representados, bastante desorganizadores do psiquismo, e é dada a eles uma forma, uma figura tal como uma lembrança" (Pereira, 2006, p. 51).

Na realidade psíquica, o sonho é uma experiência real - apesar de estranha - e pode tornar visível o que estava na sombra, dar voz ao silenciado, ainda que nesse trabalho de transformação produza outras invisibilidades e silenciamentos. Mas uma de suas funções mais importantes diante do terror está em transformar os afetos que ainda não têm representação em uma figura propriamente subjetiva que exige uma narrativa por associatividade.

Seguindo a evolução do pensamento de Freud, a partir de 1932, pode-se afirmar hoje que o principal fundamento do sonho não é tanto a realização de desejo, mesmo que seja o objetivo do sonho e defina seu conteúdo, mas a própria atividade alucinatória, a necessidade de figura. E, além disso, a figurabilidade não é mais considerada, na teoria analítica, como sendo uma particularidade reservada apenas ao trabalho do sonho. (Botella & Botella, 2002, p. 234)

Já eram comuns distúrbios de sono antes da pandemia, ligados à aceleração da contemporaneidade, ao excesso de trabalho, à desvalorização do lazer e do ócio, à falta de tempo e espaço para os processos subjetivos mais regressivos e calmos que conduzem ao sono, especialmente nas grandes cidades. A quarentena, além de trazer intensidade e vivacidade atípicas aos sonhos, levou à insônia. Muitas pessoas relatam que não lembravam dos seus sonhos, mas a chamada para o projeto as ajudou a recordar. Assim, a coleção cumpre de saída um de seus objetivos: dar lugar à produção onírica deste tempo, podendo, inclusive, influenciar no sono. O sonho não é apenas guardião do sono, como diz Freud: é preciso poder sonhar para dormir, construir espaço e tempo para "sonhar sonhos não sonhados e gritos interrompidos" (Ogden, 2005).

A regressão, tanto narcísica quanto tópica, até o polo perceptivo é uma característica importante dos sonhos:

A regressão não somente possibilita o rearranjo do material bruto em novas articulações e a expressão dos conteúdos inconscientes, conforme o mecanismo do processo primário que operam na "outra cena", como também vai além, à fronteira do psíquico, ao encontro da insistência pulsional, fornecendo-lhes suportes de materialidade, recorte do acervo mnêmico, despojados de valor, para dar forma transitória à intensidade. (Leite, 2001, p. 114)

 

O que vemos, o que nos olha nos sonhos

O projeto Oniricopandemia parte da hipótese de que é possível conceber um campo de cocriação e de metaforização coletiva das imagens dos sonhos. A apresentação dessas imagens nos olha, nos faz ver as figuras de um tempo e nos inquieta rumo à continuidade do trabalho de figurações (Didi-Huberman, 1992/2010).

O projeto recolheu muitos sonhos em espaços abertos, escolas, viagens. Abraços em amigos e parentes. Mas também a crise política e de saúde, a radical experiência de morte em um dos lutos mais difíceis de serem realizados, pelo isolamento e impedimento dos rituais habituais. O terror do negacionismo, a omissão do Estado, o reconhecimento de que os grupos sociais são afetados de maneira desigual e de que vivemos uma radicalidade imoral em que as vidas não têm o mesmo valor. Sonhar também nos permite reviver os prazeres impedidos no encontro com pessoas que já morreram ou com aquelas de quem estamos isolados, pela atemporalidade do inconsciente, que reúne marcas psíquicas arcaicas e impressões recentes.

Vários discursos tentam compreender os sonhos, mas o que nos interessa na coleção Oniricopandemia não é o sonho como objeto a ser interpretado na singularidade do sonhador, e sim o lugar mesmo de interpretante2 da subjetividade e da cultura. Pontalis (2005) fala não apenas do sonho-objeto, mas do sonho-espaço a explicitar dimensões que estavam na sombra do dia e reasseguram a possibilidade de transformar a realidade pelo desejo e pela apropriação dos fragmentos da percepção, assim como pelos conflitos entre os mundos externo e interno. Não nos interessa manipular o sonho como máquina de decodificação, mas incluir, além das representações ocultas, os afetos não figurados e silenciados. O objetivo é dar lugar ao sonho-espaço, como um convite para o sonhar.

Assim, a coleção Oniricopandemia passou a ser tanto um lugar intersubjetivo coletivo para as manifestações sensíveis e figurativas do inconsciente como uma operação de recusa à obscuridade e ao silenciamento das subjetividades. O sonho sonhado e narrado convoca uma dimensão estética do sonhador na passagem do desejo, do terror e da angústia para as imagens, as lembranças, as palavras. E esse objeto evanescente sobre o qual o sonhador nunca tem certeza entre perder ou ganhar uma parte escondida de si, porque o sonho é estranho a ele próprio, segue aberto para a significação. É aí que o sonho pode convocar outros processos estéticos e artísticos para produzir novas interpretações, pois há uma convocação recíproca e frutífera entre o inconsciente freudiano e o "inconsciente estético" (Rancière, 2015).

Oniricopandemia é uma coleção-intervenção, porque é sonho-espaço para o trabalho da dor ao sonho, entre psicanálise e arte. Pessoas ligadas à arte, à psicanálise e a outros saberes estão sendo convidadas a reinterpretar os sonhos no sentido mais amplo, não apenas aquele que evoca Freud. Assim como ele, porém, não se trata de encontrar um significado unívoco dos sonhos. O objetivo é desencadear uma provocação dos sentidos, como na interpretação de uma peça, uma música, uma dança. Para isso, o projeto conta com a participação do coletivo Canto Torto, composto por Pio Figueiroa, Juliana Calheiros, Laura Andreato e João Rocha.

A coleção se propôs a receber sonhos sem nenhum tipo de recorte, diferentemente de outros projetos que focaram em profissionais da saúde e educadores, por exemplo. Também não era necessário que o conteúdo manifesto do sonho tivesse relação direta com a pandemia ou com a crise política. Em primeiro lugar, porque as figuras ligadas a essas experiências podem estar deslocadas, condensadas e reconfiguradas pelo trabalho onírico, apresentando-se de modo disfarçado ou como primeiros modos de figurar marcas psíquicas fragmentárias. Depois, para sustentar a dimensão de intervenção e oferecer lugar e destino para o inquietante trabalho da noite nestes tempos de pesadelos diurnos.

Os meios de recepção do material foram simples e diversificados: WhatsApp, e-mail e um formulário produzido em parceria com o Psicafé, da PUC-SP. Até o momento, foram recebidos cerca de 1.040 relatos. Percebemos que o modo como o sonho é comunicado produz diferenças importantes: as mensagens de voz favorecem os sonhos lembrados ainda na cama, mais próximos da experiência alucinatória do sonhador: a lembrança e a narrativa vão sendo construídas com a fala. O texto escrito tende a ser mais elaborado pelo processo secundário. O formulário recolheu tanto peças oníricas quanto relatos mais gerais sobre o que as pessoas têm sonhado, informando sobre afetos e figuras comuns nos processos oníricos daquele sonhador.

 

Sonhos em nomes

Os 79 primeiros sonhos recebidos foram "batizados", de acordo com a tradição freudiana, com palavras presentes em sua narração, sabendo que o ato de nominar, de eleger, entre tantas, uma palavra para representá-lo, já produz no sonho e em seu futuro leitor uma porta de entrada para o material. Como, porém, só alguns sonhos serão apresentados aqui - na íntegra, em fragmentos ou sintetizados -, os nomes servem para produzir uma espécie de condensação do material, uma ideia geral de algumas figuras dos sonhos do atual contexto social.

Sem calça, sem coro, ninguém na rua - Você tem que lembrar das coisas para a gente ficar forte - Não estavam matando os leões - O ataque das formigas não estava no coração - Caranguejo albino assustado - Sapato sem sola - Quando soltamos a árvore - Atrapalhando o trânsito - Atentado ao elemento - Congelado - Imersas no caminho - Nojo dessa gente toda - Pílulas e um delírio - Mayhem - Abraçar mesmo não podendo - Eu queria me afogar: mar, mar, mar, mar - Três famílias na mesma casa - Desoladas - Festa, mas não tinha pista de dança, centro, mas não tinha barulho - Sair ou não - Suplicy não pode pegar coronavírus -Olhamos nos olhos - Homem de massinha branca e jaleco - Corrimão e teclado de caixa eletrônico - Pensei em matá-lo - Álcool 161% - Enquanto os prédios caem, na fonte casais transando - Boneca, mulher, cachorro, mordida, traição - Morre o pai - Apenas aquela mulher pode estar no meio dos bichos - Um buraco um pouco maior que o meu punho - Meu irmão dançava - Expostas sem máscara - Não há mais eventos - A água está contaminada, os peixes estão contaminados - Dormir de bruços - Normal as limitações - Fechar a casa - A última praia - Filhotes de elefantes - O último dia de nossas vidas - Aparelhinho - Descanso - Transição abrupta - Estuprada pelo Bolsonaro, eu matava ele, eu sabia que ia morrer - Conversar com amigos - Fila de gatos algemados pedindo desculpas na Faculdade de Química, Brasília - Cavalo branco subindo a ladeira, eu descendo na maca coberta por um lençol branco - Panelaço, explosão, golpe de Estado -Quebrei em mil pedaços - Vida pela rede social - Sair da cena antes do desespero - O pai não tem mais utilidade - Não sei mais o que fazer - Suco de rato - Máscara que não deixa ver - Parir um bebê, dester um bebê - Figura e fundo - Caminho da água, fogo, cabelos brancos - Rua, pastel, depilação: não, não encoste os olhos no nariz! - Corpo em blocos - Pedaço de corpo morto - Alguém cortou meu inhame - Dormindo acordada - Um dia na guerra ou sobre recolher os estilhaços vivos - Janela - Corte, parto - Eu era eu, era peixe, era pássaro - Prestes a parir - Enterrada com a dor de todos - Nova ordem mundial ou fuzis desenhados no céu - Moscas gigantes - Onças pela janela - Rasgo vertical por onde eu via meus pulmões - A mão lisa, feito casca de cebola, de Bolsonaro - Morre Edson Arantes do Nascimento e não se despede de ninguém - No hospital - Amnésia - São Paulo: um lugar imaginário.

Estamos lidando com um material delicado, que saiu dos contextos habituais de partilha, como as sessões de análise ou trocas afetivas íntimas. Ainda que os sonhos tenham sido doados para uma coleção, é necessário um cuidado particular no contato com esse material. Não se trata de fechar o sentido de suas figuras e narrativas em simbologias arquetípicas. Trata-se mais de reconhecer como "figuras figurantes" (Didi-Huberman, 1990/2013, p. 187) carregadas de afeto podem seguir produzindo outras figuras e narrativas nos leitores. Assim, qualquer coisa escrita sobre os sonhos será, inevitavelmente, também sobre quem escreve e sobre quem lê. Só assim se pode produzir, como sugere Didi-Huberman, uma rasgadura no sentido habitual dessas figuras, pois a maior força dos sonhos está no seu poder de fazer com que o estranhamento provoque enigmas.

O repouso noturno pode ser pensado como uma forma de elaborar o traumático; sua dimensão regressiva e erótica é descrita por Ferenczi (1924/2011b). Quando os sonhos parecem partir de um além do princípio do prazer, típico da repetição do terror, é necessário reconhecer um trabalho da ligação pela figuração, mas também dar seguimento a essa transformação psíquica. As figuras intensas e distantes do desejo, movidas pela pulsão de dominação, correm o risco de se fixar em cenas que vão do terror ao trauma, podendo permanecer avessas ao trabalho de luto e à mobilidade da memória. A captura de uma figura dos sonhos deve ser pensada como evanescente, pois sua maior força está na eloquência polifónica e multideterminada do trabalho de figuração, em como a intensidade afetiva e perceptiva deste convoca ao trabalho secundário de narração.

Partilhar aqui alguns trechos dos sonhos tem a intenção de criar outras associatividades nos leitores, muito mais do que produzir um pretensioso desvelamento do inconsciente singular ou coletivo. A lógica interpretativa que nos parece pertinente é a de dar seguimento à construção dos processos de figuração e narração, tal como proposta por Freud (1937/1980a). Nas interpretações por desvelamento, lidamos com conteúdos que foram recalcados e se esforçam para se expressar de maneira disfarçada.

Nossa hipótese é que, diante do terror, há sonhos ou trechos de sonhos que parecem ser as primeiras tentativas de apropriação e figuração de experiências que lidam com as forças destrutivas, e não com as formas de negação típicas do recalque. São retornos de marcas cindidas, mais próximos dos mecanismos dos traumas precoces e da experiência com a catástrofe. Pesadelos curtos, relativamente diretos e que acordam o sonhador. Figuras de um terror do qual o sonhador não consegue escapar, que interrompem o próprio trabalho do sonho e, consequentemente, o sono. Sua função parece estar, justamente, em fazer uma primeira captura propriamente psíquica de uma vivência de terror que, por repetição, pode recolher e ligar os fragmentos do vivido. Um exemplo: "Sonhei com covas na terra, os velhos são convidados a entrar. Mas eles estão vivos! Acordei". Esse sonho se liga ao terror dos restos diurnos de falas dos membros do governo sobre o valor da vida dos idosos.

Apesar de isso não ter sido uma exigência, muitos sonhos recolhidos são compostos de restos diurnos coletivos ligados à pandemia. Vacinas, sugestões para o conforto físico dos doentes, aparelhos de diagnóstico. Os sonhos de aglomerações sem máscara, de tão comuns, parecem uma deformação do clássico sonho da nudez, porém sua origem não está no erótico desejo exibicionista, e sim na agonia do risco de morte; na exigência tensa de vigilância não do erotismo, mas da morte de si e do outro, entremeadas com preocupações sociais e agressão.

A análise do material coletado está em processo. Tive contato com as categorias propostas pelo projeto Lockdown Dreams, da University College London, quais sejam: frustração, perseguição, ansiedade, regressão (O'Mahony, 2020). Todavia, optei por categorias figurativas, pois me parecem carregar a potência do paradoxo da apropriação e do estranhamento do terror e do desejo destes tempos. É uma forma de dar destaque às figuras carregadas de afetos, sem as quais ficaríamos diante do maior risco psíquico, o de congelar as funções psíquicas de transformação, dando lugar às forças de desligamento da pulsão e aos vazios.

Apesar de já ter passado pela elaboração secundária da narrativa do sonho, a descrição das imagens visuais do processo primário mobiliza o trabalho de figuração dos leitores sobre o que estamos vivendo. Considerando que a figuração é uma função primordial da subjetivação, os sonhos aqui apresentados passaram por uma curadoria inicial que os organizou nas seguintes figurações subjetivantes: outro, tempo, corpo/eu, espaço. Nelas, os afetos de frustração, perseguição, ansiedade, regressão e desejo se apresentam em tensão. Não se trata de categorias disjuntivas; assim como no trabalho onírico, estão sobrepostas, e várias se apresentam em um mesmo sonho. Funcionam como se fossem salas nas quais os sonhos podem ser apreciados pelo leitor deste texto. A seguir, apresentarei alguns sonhos em uma organização preliminar, um breve exemplo de como a coleção pretende tratar o material em um futuro próximo.3

 

Figuras do outro

Um homem de massinha branca apareceu na janela ... e começou a me ameaçar, tocando em partes do meu corpo que detesto que toquem e também em partes íntimas. . Ao cair da tarde, apareceram dois homens de massinha, um com jaleco, quase Sherlock Holmes, e o outro com chapéu de caubói. ... Não sei como, mas eu e minha irmã escapamos. ... Chegando onde eu queria, descobri que lá ..., na verdade, era o fim do mundo.

Eu estava em um aeroporto e aguardava alguém. Havia outras pessoas ao redor. De repente vi o elemento que ocupa a Presidência da República entrando. Uma pessoa ao lado se manifestou, mostrando ser sua seguidora. Vi, sobre a cabeça do elemento, um inseto, como se fosse um pequeno drone, e imaginei que fosse algo que alguém estivesse usando para matá-lo. Avisei para a pessoa ao meu lado. Ela não se importou. E eu lhe disse: Estou avisando porque isso é um atentado, você não vai comunicar a alguém? Eu detesto esse elemento, mas não desejo a morte de ninguém.

Sonhei que eu matava ele, assim, de jeito bem de filme de ação americano, sabe? Com bombas, tiros etc. E me dava muito prazer, assim. Há uns dias atrás, eu sonhei de novo com o Bolsonaro, só que dessa vez um sonho tenso. Sonhei exatamente no dia que eu assisti às gravações do jornal. Assisti à gravação da reunião ministerial. Eu fiquei tão chocada. . Eu sonhei que tinha sido estuprada pelo Bolsonaro. No meu sonho não aparecia o estupro, mas eu tinha sido estuprada por ele e eu sabia que ia morrer. Eu estava com muito medo, porque eu sabia que eu ia morrer. . Em um certo momento do sonho . eu estava grávida.

Nesse sonho eu não sei se sou jornalista ou por que razão estou diante de Jair Bolsonaro. É como se estivesse lá trabalhando, como se tivesse que conversar com ele por alguma obrigação. Então, eu tenho aquela sensação de que não gostaria de estar perto dele, não aprecio o que ele está falando, mas eu não posso sair de lá. Subitamente ele se aproxima de mim e me dá a mão, estende a mão para mim. E eu não sei o que fazer, não tenho a menor vontade de apertar a mão dele, mas a contragosto eu estico a mão e dou a mão para ele. Nesse momento, ele me puxa para perto do rosto dele, quase como se fosse me dar um beijo, e pisca os olhos nos meus olhos para me contaminar pelos olhos.

Várias das figuras do outro comuns nos sonhos recolhidos são com políticos, especialmente o presidente da República, representando correntes negacionistas sobre a gravidade da crise sanitária no país, acompanhadas de afetos agressivos ou de apreensão com sua presença carregada de ameaça. As aglomerações também estão presentes como figuras de risco. Muitas vezes, o outro aparece como figura invasora e autoritária. Diferentes figuras de políticos ou profissionais da saúde se apresentam como outros auxiliares, capazes de cuidado. A despedida e a distância de outros da relação de afetos também são figuradas.

 

Figuras do tempo

No sonho "O último dia de nossas vidas", um jovem tenta encontrar sua família, que está espalhada por cidades da Europa, entre horários e linhas de trem, enquanto a comunicação pelos celulares oscila. Num primeiro momento, em "A última praia", a experiência de fim é sobre o espaço, a praia, mas o que parece estar em jogo é o tempo, pois aquele trecho de terra firme está submergindo. A sonhadora tem pressa e se põe a recolher pequenos objetos de valor afetivo. Ela está em um galpão de logística, se vê, se pinta e se borra, com a ajuda de uma caixinha de maquiagem tecnológica, até conseguir fugir.

Muitos sonhos trazem figuras do tempo, futuro ou passado: o fim do mundo, realidades fragmentadas e em ruínas, inclusive articuladas com distopias da literatura e da cinematografia. As angústias mobilizadas pela pandemia e pelo isolamento constroem um imaginário onírico de incerteza sobre o futuro e risco de condições de extrema opressão, desespero e privação. Experiências do passado são revividas em sonhos com pessoas falecidas e em cenas da infância, ressignificadas pelas angústias atuais. São formas de figurar o risco do fim.

 

Figuras do corpo/eu

Diante do terror do risco iminente de morte de si e de pessoas próximas, os sonhos com o corpo também foram frequentes e figuram o investimento libidinal consciente e inconsciente de órgãos e partes do corpo contaminados pela covid-19, tais como os pulmões, o nariz, as mãos, os olhos. Posições corporais tidas como terapêuticas, assim como restrições dos movimentos, da vida social e da sexualidade, estão igualmente presentes.

Eu me olhava no espelho e eu estava sem camisa. E tinha um rasgo. Vertical. Que vinha mais ou menos desde a minha clavícula, até o meu umbigo. E era um rasgo que abria a minha pele. ... Não tinha sangue, era só uma camada de pele rosada. E quando eu abria eu conseguia ver meus pulmões. . Então, enquanto eu respirava, eu conseguia sentir . e também via os meus pulmões inflando.

Eu queria me afogar.

Estava aflita no meio de muitas pessoas. Na cena seguinte, estava no alto de uma árvore, muito alta, com uma ramagem muito fechada. Estava escondida, mas queria que alguém soubesse que estava ali. Aí saiu uma mulher com roupa azul de médica ou paramédica do prédio que parecia um hospital. A distância era muito grande, ela olhou para cima e nos olhamos nos olhos. Me tranquilizou.

 

Figuras do espaço

"Torres e prédios começam a cair, tombar para o lado. ... Logo constato que isso está acontecendo por conta da pandemia, que seria uma espécie de fase final, em que tudo que existe acabaria em ruínas." A sonhadora vê que será impossível escapar dos desmoronamentos na cidade de São Paulo e constata que os pais já devem estar mortos. "Enquanto os prédios e torres caem, vejo que na fonte tem vários casais transando imersos na água. Fico com vontade de ser um dos casais. Eles parecem despreocupados com o caos." Nesse sonho, o alívio e o prazer erótico parecem deslocados e figurados no corpo do outro. A tensão entre o desejo e o impedimento parece dizer do próprio ato de separar-se dos aspectos mais regressivos e eróticos do sonhar. O terror do desmoronamento, uma figura eloquente do desmonte, tenta alívio na sexualidade, mas não é simples se entregar a esses prazeres.

Em outro sonho, há uma casinha e três amigas olham a natureza atrás de uma meia portinha, feita para os animais não entrarem nas casas. A sonhadora está ali para ver os bichos,

mas eles tinham armaduras no lugar de pelos. Cada um tinha uma armadura diferente, amarela, roxa, verde, com designs sofisticados, como se fossem personagens daquela série Transformers. ... Dou com os pés de uma mulher negra, toda coberta de panos, dos pés à cabeça. Panos africanos, bonitos. Aprecio de longe, ainda por trás da meia porta. Parecia claro que apenas aquela mulher podia estar no meio dos bichos. Nós não.

Um jovem tem um sonho nos primeiros dias da quarentena, depois de voltar muito triste de seu último dia de aula. Nele se instala uma nova ordem mundial, com jatos ruidosos como em Fahrenheit 451, que desenham fuzis no céu: "Quem comandava esse novo governo, essa nova ordem mundial, queria que a violência fosse instaurada na sociedade de vez. E aquilo era para que matássemos uns aos outros. E aí o sonho acaba". Outra sonhadora diz:

Estava andando por uma floresta com uma amiga. Era floresta até que bem aberta, não dava medo. Até que chegamos a uma árvore, e ela disse: entra aí. Procurei e não entendí ... onde era para entrar. Ela me apontou um buraco próximo à árvore, um maior que o meu punho. E fui me espremendo para conseguir entrar. Depois o buraco ficava mais amplo e já dava para ver umas luzes mais ao fundo e, depois, uns barulhos de vozes e música. Eventualmente se tornou bem amplo e fui recebida por um senhor que me ofereceu uma bebida. Minha amiga disse que eu deveria tomar, era sinal de respeito. Eu tomei e ela o cumprimentou em outra língua. ... As pessoas eram simpáticas, mas claramente muito diferentes de mim. Minha amiga ia me ensinando sobre a cultura daquele povo e algumas palavras como "por favor" e "obrigada".

A redução da circulação do corpo no espaço parece ter produzido figuras do desejo de espaços mais amplos e conectados com a natureza, assim como cenas de contraste entre vida urbana, produzida pela cultura e em risco de desmoronamento, e vida natural. Cenários urbanos em ruínas, esvaziados, de circulação proibida. Violação dos espaços íntimos, especialmente das casas, por estranhos, bem como casas com janelas e portas abertas e sem telhado, permitem construir uma correlação clássica entre o corpo e a casa. Animais representando a natureza ou, ainda, a luta para manter os espaços e as condições de vida. Ladeiras e estradas a serem vencidas podem ser pensadas como a distância imposta pelo isolamento. Em alguns sonhos, a natureza representa risco e ataque; em outros, é lugar de calma, contemplação e confiança.

 

Para finalizar (por ora)

Este trabalho é uma primeira apresentação escrita dos sonhos da coleção Oniricopandemia e não teve pretensões de análises fechadas ou aprofundadas sobre esse material tão rico quanto complexo. Outros textos e autores serão necessários para nos aproximarmos do trabalho psíquico de apropriação e subjetivação da dor, das perdas e violências atuais. A Oniricopandemia toma o sonhar como trabalho psíquico de vitalização, uma tentativa de luto e de construção da memória, participando de um processo amplo de construção subjetiva da história, menos paralisado e silencioso.

O funcionamento onírico - mais sensível do que nossa racionalidade às sutilezas dos desejos e dos afetos de terror do contexto social e político - tenta criar imagens e enredos como forma de se apropriar da invasão fragmentária do acontecimento. São apresentações da realidade, fundamentais para regenerar o efeito das restrições e dos excessos da realidade, mesmo que temporariamente. Sonhar é potencialmente reparador e transformador e, quando partilhado, ganha uma dimensão social. Tomar as figuras dos sonhos como uma produção de enigmas que pedem uma narrativa permite que o pensamento da noite influencie o pensamento do dia, coletivamente, conduzindo-nos às soluções de compromisso entre o desejo e a realidade.

Não há resistência subjetiva e social, tampouco transformação da realidade, sem o sonhar - nas várias acepções do termo. Seja como alucinação da noite, seja como apropriação do terror, como desejo ou utopia. O sonhar se opõe à destruição e guarda uma dimensão micropolítica fundamental. Articulados ao passado e à nossa memória, os sonhos também nos levam para o futuro. Poder abrir espaço, criar condições para caber algo do desejo na realidade, é o que Freud defendia como uma das marcas centrais da saúde psíquica, a fim de devolver os sonhos à realidade compartilhada. Estamos confinados, mas nossos sonhos não!

A coleção Oniricopandemia continua recolhendo sonhos. Os relatos podem ser enviados por WhatsApp, para o número (11) 98926-4522, ou por e-mail, oniricopandemia@gmail.com.

 

Referências

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Correspondência:
Adriana Barbosa Pereira
Rua General Vitorino Monteiro, 283
05053-060 São Paulo, SP
Tel.: 11 98926-4522
dribp@terra.com.br

Recebido em 20/7/2020
Aceito em 27/10/2020

 

 

1 Essas pesquisas contaram com a orientação de Nelson Coelho Jr., a quem agradeço as contribuições atualizadas a partir da coleção Oniricopandemia. Também foram fundamentais as trocas com os parceiros do Troça Coletiva: Psicanálise, Arte e Política, em especial Gustavo Henrique Dionisio e Silvia Nogueira.
2 Em conversa com a psicanalista Silvia Nogueira de Carvalho surgiu a ideia do sonho como intérprete, ao que ela propôs o sonho como interpretante, que usamos aqui.
3 Está em projeto uma publicação que convidará psicanalistas para escreverem sobre o sonhar neste tempo e sobre os sonhos da coleção Oniricopandemia.

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