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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.54 no.2 São Paulo abr,/./jun. 2020

 

PANDEMIA

 

Do buraco do trauma, flores de umbigo

 

From the hole of trauma, navel flowers

 

Del hueco del trauma, flores de ombligo

 

Du trou du traumatisme, fleurs de nombril

 

 

Eduardo de São Thiago Martins

Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)

Correspondência

 

 


RESUMO

Num ensaio composto por relatos subjetivos e vinhetas clínicas do contexto da pandemia de 2020, articulados a exemplos da cultura e da história da psicanálise, proponho discutir o potencial poético do trauma em sua relação com a constituição triangular do psiquismo, representada aqui pela noção freudiana de umbigo do sonho.

Palavras-chave: trauma, poesia, história, umbigo do sonho, morte


ABSTRACT

In an essay composed by subjective reports and clinical vignettes from the context of the 2020 pandemic, linked to examples from the culture and from the history of Psychoanalysis, I propose to discuss the poetic potential of trauma in its relation to the triangular constitution of the psyche, represented here by the Freudian notion of dreams navel.

Keywords: trauma, poetry, history, dream's navel, death


RESUMEN

En un ensayo compuesto por informes subjetivos y viñetas clínicas del contexto de la pandemia de 2020, vinculado a ejemplos de la cultura y de la historia del Psicoanálisis, propongo discutir el potencial poético del trauma en su relación con la constitución triangular de la psique, representada aquí por la noción freudiana de ombligo del sueño.

Palabras clave: trauma, poesia, historia, ombligo del sueño, muerte


RÉSUMÉ

Dans un essai composé par des rapports subjectifs et des vignettes cliniques du contexte de la pandémie de 2020, articulés avec des exemples de la culture et de l'histoire de la Psychanalyse, je propose de discuter le potentiel poétique du traumatisme dans sa relation avec la constitution triangulaire du psychisme, représentée ici par la notion freudienne de nombril du rêve.

Mots-clés : traumatisme, poésie, histoire, nombril du rêve, mort


 

 

Silêncio, morreu um poeta no morro

Botões de umbigo devem ser enterrados sob roseiras. E quando não houver roseiras?

Eram as primeiras semanas de confinamento. Ainda não tínhamos ideia da magnitude do acontecimento; ainda éramos virgens, imaculados, sem-método, iniciantes na especificidade dos novos hábitos sanitários que prometiam alguma prevenção contra algo cujos registros mnêmicos só constavam nos livros de história, algo essencialmente estrangeiro às marcas de vivência de todo e qualquer corpo animado que habitasse o tempo que compartilhávamos - uma pandemia.

Buscávamos entender, compreender, sentir, dimensionar, proteger, nos proteger, prever, alimentar, nos alimentar, nos exercitar, adivinhar, nos alongar - respirar - lavar, nos lavar, organizar - ler, ler, ler - delimitar, acolher, orientar, nos orientar, negar, escapar, garantir, cuidar, nos cuidar, adaptar, nos adaptar, preservar, nos preservar, nos situar - escrevi solucionar?

Buscávamos não adoecer, nem de vírus, nem de pandemia.

Não escrevi escutar... Eram os primeiros dias de confinamento e era difícil escutar.

Rosa era médica, assim como seu marido, assim como toda a família. Todos estariam na linha de frente, e ela não sabia o que fazer com os filhos pequenos. Alguém iria acabar morrendo. Era inexorável, e cabia a ela decidir quais vidas priorizar, entre seus familiares e pacientes. Um dilema ético terrivelmente angustiante, inscrito num registro sintomático neurótico que era, evidentemente, o negativo das perversões necropolíticas que, desde o início, já davam as caras nas falas da crueldade do Planalto - as mesmas que, meses depois, nos sufocariam com joelhos em pescoços ou com o despencar mortal de uma criança de 5 anos que não toleraria estar separada da mãe, a quem seriam oferecidos cuidados substitutos impiedosos.1 Quantas ações psíquicas não são precisas para poder se separar?

O modo como a "escolha de Sofia" de Rosa se exacerbava pelas articulações sintomáticas com seus conflitos em torno da diferença dos sexos e do complexo de castração já estava revelado, mas eu só poderia escutá-lo depois. Eu era médico, assim como ela. Será que seria convocado a intubar pessoas? Naquela sessão, tomado por aflições como essa, por decisões radicais que eu mesmo teria de tomar para proteger aqueles que amo e também pelo medo de perdê-los, eu só conseguia quebrar a cabeça em busca de sugestões pragmáticas que solucionassem o dilema objetivo de Rosa. Findada a sessão, tive medo que ela morresse, que eu morresse, e me vi chorando pela primeira vez desde o início de tudo aquilo.

Um hospital de campanha estava sendo construído nos arredores de minha casa, onde tenho o consultório. Helicópteros rondavam os céus ininterruptamente - o céu da manhã, da tarde... do ocaso precoce de um século que acabava de viver seu 20.º Carnaval?2 Nunca vivi uma guerra, mas os filmes sempre mostraram que os ataques mais temíveis eram os aéreos. Era de lá, de onde pairavam os helicópteros, que poderiam cair as bombas. O ruído constante das hélices era ensurdecedor e invasivo. Não havia cômodo da casa onde eu pudesse encontrar alguma pausa, semifusa que fosse.

Eram excessos de verbos e escassos substantivos inadjetivados, exaustivamente repetidos pela mídia e pelos grupos de celular, com especial destaque para o nome do novo vírus, que estava chegando num tsunâmi sabidamente capaz de colapsar sistemas de saúde e de calar gestos, até mesmo de mãos italianas, transformando-as em catatônicos objetos de cera, desoladamente amontoados em caminhões de exército ou em chocantes valas comuns.

A mim, a catástrofe parecia iminente; o colapso seria inevitável, brutal e imediato.

Um amigo me avisava que tinha feito o teste. Um de seus pacientes estava confirmadamente doente. Havíamos nos encontrado no dia anterior. Era melhor que eu tomasse cuidado enquanto aguardássemos seu resultado.

Uma colega perguntava se eu poderia dar uma aula em seu lugar. Estava correndo para o hospital. Havia uma pneumonia a ser investigada.

Os pais de outro amigo haviam adoecido. Era realmente grave. uti, tubo, ventilação mecânica, remoção aérea.

De um domingo para uma segunda-feira, já não poderia mais receber meus pacientes presencialmente, pois eu poderia estar contaminado. Ninguém poderia vir. E eu não poderia ir. Assim como as sessões, também as aulas e os seminários clínicos que eu coordenava deveriam passar para o modo virtual. Os residentes em psiquiatria me avisavam das súbitas mudanças de seus programas - e de seus medos de frequentar o "covidário" em que o Hospital das Clínicas estava se transformando - e me convocavam implicitamente a mudar o rumo de nossos estudos em psicopatologia. Devíamos estudar Pânico e desamparo,3 pensei. Precisava acolhê-los, os da linha de frente; então, infelizmente, não poderia substituir minha colega naquela aula. Cancelada. Naquele momento, uma parte grande demais da vida parecia estar sendo cancelada.

Como ficariam os pais de meu amigo? E meus pais? E meus avós, nonagenários? E meus antigos analistas e mestres e mestras? Todos com seus anos de estrada nas costas. Valiosos anos, que muitas vezes haviam me salvado a pele, agora instalavam pessoas preciosas para mim no tão falado grupo de risco. Será que iriam se cuidar? Saberiam usar a Internet? Será que eu poderia ajudá-los de alguma forma? - pensava, ao acender o mais contraditório dos cigarros.

O homem não é senhor em sua própria morada. A casa, a rotina, o mundo. Num rajar de vento, o normal envelheceu e corria risco de vida.

 

O samba não pode parar

Escolho iniciar este artigo com um relato subjetivo, não como mero desabafo, mas como exemplo do objeto que pretendo discutir: o trauma como big bang, agente inaugural e fomentador de retrações, mas também de expansões poéticas do psiquismo; potencial dos buracos-negros, mas também dos buracos de umbigo. Portanto, a partir deste ponto, faço ao leitor uma proposta estética, convidando-o a mover-se da posição receptiva de um conteúdo a ser apresentado à posição de coautor do ensaio por vir; convido-o a compor.

Não demorei a notar que boa parte de meus primeiros dias de confina-mento estava sendo ocupada por devaneios espaçosos, nos quais me flagrava narrando, como experiência passada, para uma geração imaginária que ainda não havia nascido, uma história que eu mal começara a viver. Essa conhecida dinâmica melancólica, tendente à nostalgia do presente, curiosamente funcionava, naquele contexto, como forte insistência de vida.

Reza a lenda que Molière teria morrido em cena, ironicamente durante uma sessão de O doente imaginário. Seria esse um bom exemplo da invasão do real? Do furo na representação? Do incêndio no teatro sobre o qual Freud nos alerta ao observar o risco explosivo do fenômeno contratransferencial?4

Não, a lenda é ainda uma representação - nesse caso, romântica e bela. Parece que a história foi outra. Molière teria tido, em cena, um grave ataque de hemoptise, tossindo volumes impressionantes de sangue vivo, e viria a morrer em casa naquela mesma noite. Diz-se que o público presente à ocasião teria aplaudido efusivamente a incrível atuação do artista, de tão realista que havia sido. Onde irrompia o real, o público enxergava realismo; e só por isso, pôde aplaudir. Enquanto o sangue estiver vivo, aposta-se que ele buscará algum curso para seguir sendo apenas representação, efeito especial de si mesmo, por mais realista que possa parecer.

Lembremo-nos da ocupação dos canais de Veneza por cisnes e golfinhos na ausência das hordas de turistas. Mentiras sinceras? Ou do ar purificado das emissões dos gases tóxicos das máquinas dos homens, revelando paisagens naturais de cores estonteantes. Verdades? Ou das imagens de alvéolos pulmonares representados como flores. Composições.

Shakespeare, Newton, Boccaccio e Munch viralizaram pela Internet naqueles primeiros dias, como exemplos de grandes inventores da cultura que haviam sido criativamente impulsionados por quarentenas históricas. Fatos encorajadores. Junto àquela, parecia surgir uma outra pandemia, paralela e virtual.

As lives nas redes sociais se tornaram um fenômeno à parte, no qual profissionais das mais diversas áreas compartilhavam seus dons ou trocavam ideias, de maneiras mais ou menos interativas, com o vasto público online. As fronteiras do mundo se mostravam borradas, já que os olhares amedrontados da comunidade internacional pareciam prescindir de palavras ou idiomas para se entenderem. Se isso, por um lado, fomentava alguma solidariedade social e a noção de coletividade, por outro, ameaçava engolir as subjetividades num mortífero aglomerado totalizante. As lives e a tecnologia, apesar do risco de resvalar em efeito oposto devido a excessos, procuravam impedir que a pandemia se tornasse um pandemônio e que a multidão confinada se tornasse uma massa.5 A-live. "Um viajante estrangeiro, varrido do Terceiro Reich, ao ser perguntado sobre quem realmente lá governava, respondeu: o medo" (Brecht, 1937/1976, p. 296).

Solução Final foi o eufemismo utilizado pelo regime nazista para se referir ao Holocausto. Antes da morte real, antes da incineração dos corpos -talvez a mais radical das mortes -, o plano visava a morte do termo. Cabeças raspadas, objetos tesourizados6 confiscados, vestes uniformizadas, números tatuados na pele a apagar os nomes, e o medo a apagar as subjetividades.

Em território brasileiro, a pandemia viu seu espaço de elaboração restrito quando manchetes foram rapidamente atravessadas pelas atrocidades do grave momento político que vivemos. De modo impressionante, a pandemia parecia ter se tornado, precocemente, mero pano de fundo para outras ameaças.

Recentemente, conversava com colegas acerca das saudades de um Brasil de outrora, retratado num documentário sobre a vida de Vinicius de Moraes, em que a figura do poetinha camarada ainda tinha espaço para existir. Falávamos do requinte das composições musicais dos anos 1960 e 1970, e da falta que sentíamos de artistas contemporâneos que pudessem nos presentear com canções tão marcantes quanto aquelas. "Até mesmo muitos dos jovens de hoje sentem essa falta", comentou uma delas.

Apesar de não saber se eu estava incluído no rol daqueles jovens, percebi que eu realmente buscava, de algum modo, por novos Novos Baianos que pudessem representar os dias de hoje. Mas lembrei, ao mesmo tempo, que os saudosos anos antes mencionados haviam sido também Anos de Chumbo. Para fazer um samba com beleza, era mesmo preciso um bocado de tristeza.7

Achille Mbembe (2018, quarta-capa) define a necropolítica como formas contemporâneas de subjugar a vida ao poder da morte. Para ele, as armas de fogo representam modos de criar "mundos de morte", nos quais "as fronteiras entre resistência e suicídio, sacrifício e redenção, mártir e liberdade" ficam embaralhadas. No contexto atual, necropolítica é manipular uma catástrofe natural como se manipula o gatilho de uma arma de fogo, decidindo quem sobreviverá e quem morrerá.

Eis, então, que escuto de um PACIENTE: "Ao menos, temos a política para nos preocupar". Para ele, os revoltantes e odiosos noticiários funcionavam para conservar aspectos idiossincráticos vitais de sua experiência. Por pior que fosse, a pandemia brasileira não era mais como qualquer outra. Ganhava identidade, singularidade, mesmo que terrível. Indo ao encontro da afirmação freudiana de que os modelos da relação de ódio advêm "da luta do eu pela sua conservação e afirmação" (Freud, 1915/2017, p. 59), ele me mostrava que, enquanto o medo não fosse grande o bastante para esvaziar sua capacidade de odiar, estaria preservada alguma habilidade para amar.

Na clínica, era também a distinção intersubjetiva que deveria ser preservada. A morte da escuta analítica estava intimamente relacionada com o pandemônio das subjetividades, algo que Yolanda Gampel (2014) chamou de identificação radioativa. Eram bombardeios de restos traumáticos reforçados pela cibernética, que não vinham dos céus, mas do incômodo brilho da tela do computador ou do timbre metal-robotizado das vozes, que somado aos outros ruídos invasivos que relatei no início me fazia quase que absolutamente surdo - quase, pois ainda podia escutar a surdez que ameaçava se instalar.

A análise de Violeta costumava girar em torno dos seus medos de morrer, ou de enlouquecer, e dos ataques de pânico que sentia por não conseguir dimensionar o universo ou, ao contrário, quando percebia os limites em sua concretude, vivendo a claustrofobia de ser enterrada viva. Num primeiro momento, as paredes do confinamento a acalmaram, mas depois a angústia não mais se manifestaria em sua fisicalidade, como era de costume. Ela tranquilamente me trazia a certeza de que iria morrer caso fosse contaminada, e evacuava imagens e notícias numa tal crueza, que o aperto no peito e a falta de ar se instalavam em mim. "Já viu a imagem do pulmão corroído pela nova doença?" As descrições eram detalhadas e me embrulhavam o estômago. Ela, uma editora de filmes, me relegava ao arquivo morto das imagens chocantes e distorcidas, ao expurgo de seu imaginário.

A dinâmica evacuativa era evidente, e eu precisava aguentar. Era a primeira sessão daquele dia, em que eu havia acordado mais cedo para ter tempo de realizar uma série de pequenos rituais que me ajudassem a enfrentar a jornada. Um chá aromático, uma busca ativa por notícias mais otimistas, por descobertas científicas que fossem promissoras, inspirações, e assim por diante. A frágil armadura foi ficando em frangalhos ao longo daquela sessão, mas fui sobrevivendo. Eu não queria morrer. Ali, não sentia medo, mas definitivamente não queria que meus pulmões ficassem no estado estampado por ela diante de meus olhos. Ao final da sessão, depois do aguardado silêncio, ela imagina. Está andando de bicicleta numa cidade vazia e gelada do Norte; sente o vento acariciando seu rosto. Depois, está em uma casa de campo, com todos os seus afetos, num cenário bucólico e idílico, livre da morte, da doença e da fome. Generosamente, com a mesma riqueza de detalhes das descrições anteriores, Violeta não me privou de sentir o vento em meu rosto ou o sabor de um tomate vindo direto da terra, restaurando seu analista.

Num artigo chamado "Sobre a noção de excesso, sua pertinência na psicanálise e os excessos da noção de excesso", Rodolfo Moguillansky dialoga com Slavoj Zizek,8 para quem o "traumático é o que não podemos abarcar com nossas limitadas capacidades de pensar; o que não se adéqua para ser imaginado (representado) em um espaço euclidiano. Aí, vacila a crença de que com nosso psiquismo podemos abarcar o 'absoluto'" (2013, p. 74).

Para o autor, o trauma, paradoxalmente, acaba por dar contorno ao irrepresentável quando o situa como estranho à ordem imposta ao mundo pela razão. Nesse mesmo raciocínio psicopatológico, podemos pensar que um ataque de pânico, por exemplo, exerça funções de contorno para o corpo-próprio, através dos sintomas que deflagra; ou seja, hipersensibilidade e sensação de morte iminente atestando um corpo-vivo (Pereira, 1999).

Portanto, a condição traumática - reincidência do irrepresentável, do que não tem antecedentes, do eterno novo - carrega, para além do aspecto quantitativo (econômico), um aspecto qualitativo.9 Não se trata apenas do quanto, mas também do como. Para Janine Puget e Leonardo Wender (2007), "tal é o caso do analista que recebe no consultório dados ou elementos que o impactam em sua privacidade, promovendo uma inversão involuntária da direção libidinal do polo de sua atenção".

Nessa situação, que os autores denominam fenômeno dos mundos superpostos, haveria uma perda súbita da identidade analítica, ameaçando narcisicamente o analista e promovendo ansiedades catastróficas primitivas. O feitiço volta ao feiticeiro quando, para conservar o eu, o eu-analista acaba ferido. Frente à emergência da ameaça pulsional, os estados defensivos narcísicos, caracterizados por retrações libidinais, deformam significativamente as percepções temporais e espaciais do mundo externo. A experiência do confinamento que o diga.

 

Poeta que morre é semente

No breve ensaio "Da ociosidade", Montaigne se retira para suas terras resolvido a não se preocupar com mais nada exceto seu próprio repouso, mas percebe que "nas terras ociosas, embora ricas e férteis, pululam as ervas selvagens e daninhas, e para aproveitá-las cumpre trabalhá-las e semeá-las a fim de que nos sejam úteis" (2016, p. 69).

Em seu experimento, ele se depara com a dimensão abismal da mente e com os limites funcionais do psiquismo, devendo se empenhar ativamente para manter-se vivo. Diz que se pôs a escrever para perceber melhor o absurdo das tantas quimeras e ideias estranhas que lhe vieram à tona em sua ociosidade.

Sabemos que muitos dos seus ensaios foram fruto de um árduo trabalho de luto após a morte de Étienne de La Boétie, também filósofo e humanista francês, por quem nutria uma amizade pungente. "Porque era ele, porque era eu" - foram necessários anos de elaboração para que Montaigne compusesse a célebre frase elaborativa de tamanha atratividade (2016, p. 220).10

Lutos, devaneios, sintomas, sonhos. Moradas do desejo. Assim nascem e caminham as ciências, as artes, as religiões, a filosofia. Não teria sido diferente com o florescer do umbigo da psicanálise.

"Sou encarado como uma espécie de monomaniaco" - carta de Freud a Fliess, de 21 de maio de 1894 (Masson, 1986, p. 74). Às vésperas do sonho paradigmático da injeção em Irma - o big bang psicanalitico -, Freud também vivia um isolamento, o cientifico. Solitário, em meio a grandes ebulições intuitivas,11 jogava partidas simultâneas de xadrez com a Morte, com a Vida e com a Culpa. A figura amiga de Fliess parecia condensar, em seu inconsciente, todas as esperanças de um xeque-mate que aliviasse sua angústia.

Freud havia sofrido importantes eventos cardiacos e temia morrer precocemente. Martha sofria as dores e desconfortos de sua sexta gestação, que traria Anna à luz, de modo que a abstinência sexual parecia ser, para Freud, a única jogada restante para conter a pressão da força procriativa da vida. Contra a morte, outra abstinência precisava ser promovida: a do tabaco. Em meio a isso, enquanto gestava seu "Projeto" de 1895,12 via-se às voltas com dúvidas, equivocos, falhas e fatalidades médicas.

Se estivessem corretas, as teorias de Fliess prometiam solucionar muitos desses conflitos. A elucidação dos ciclos sexuais masculinos e femininos possibilitaria métodos contraceptivos mais assertivos, que transformariam a moral sexual e aliviariam a humanidade das privações sexuais que, segundo Freud, a faziam adoecer. Além disso, a descoberta de uma substância sexual orgânica - da qual a trimetilamina seria derivada - forneceria bases biológicas que poderiam confirmar a teoria freudiana da etiologia sexual das neuroses, incluindo Freud novamente no grupo científico do qual estava apartado. E para arrematar, num raciocínio reflexológico, Fliess ainda propunha que ablações e cauterizações de pontos certeiros dos cornetos nasais poderiam curar afecções como as do coração do amigo Freud ou suas próprias dores de cabeça.

Derrotas para a Morte, vitórias para a Vida.

Mas algo não cheirava bem. Fliess havia cometido um grave erro médico ao esquecer uma gaze infectada no nariz de Emma Eckstein, paciente e amiga da família de Freud. Além disso, as cirurgias nasais a que Freud e Fliess se submetiam geravam evidentes complicações, como supurações e sangramentos, e não sanavam as dores prometidas. Àquela altura, Freud já notava o furor curandi de seu amigo e médico, e o alertava sobre as iatrogenias; observava com certa clareza os limites da positividade médica, além de intuir certo teor de pensamentos mágicos nas propostas, um tanto quanto exageradas, de seu privilegiado interlocutor. Pareciam tampões com ares de feitiço - santas cloroquinas do pau oco -, desses que a humanidade insiste em mitificar. Entre as ciências do milagre e as do sonho, Freud saberia qual eleger.

Porém, o preço a pagar pela assunção dos equívocos de Fliess era alto. Além de interlocutor para as ideias germinais da psicanálise, sua presença garantia a estrutura necessária para o desenrolar do projeto de autoanálise de Freud, a estrutura triangular. Para lidar com essa separação, Freud precisaria sonhar o sonho que lhe indicaria a triangulação constitutiva do próprio aparelho psíquico.13

"Preocupação com a saúde, própria e alheia; responsabilidade médica" (Freud, 1900/2019, p. 153) - essa é a síntese interpretativa que Freud nos oferece para seu sonho paradigmático. Mas ele também nos apresenta, no mesmo trabalho, a ideia de um umbigo do sonho. "Cada sonho tem pelo menos um ponto em que ele é insondável, um umbigo, por assim dizer, com o qual ele se vincula ao desconhecido" (p. 143).

Foi graças à existência desse ponto de umbigo que o surgimento de documentos históricos e de fatos biográficos póstumos possibilitou que diversos autores realizassem uma profícua festa interpretativa com o sonho de Freud - sempre especulativa, uma vez que as associações do sonhador não mais poderiam ser escutadas -, da qual destaco as ideias de Anzieu e de Lacan.

Lacan foi o primeiro a ter a ideia de comparar as estruturas terciárias dos personagens do sonho com a fórmula da trimetilamina (Seminário de 4 nov. 1953). A ideia de desenvolver completamente esta fórmula e de formalizar inteiramente a autoanálise do sonho foi nossa. (Anzieu, 1959/1989, p. 58)

O sonho relatado por Freud nos apresenta uma série de triangulações, sobre as quais não poderei me deter.14 Mas ressalto que a fórmula em negrito da trimetilamina aparece diante dos olhos do sonhador como um pop-up. Ela irrompe da trama narrativa onírica, não advindo das falas das personagens do sonho. De onde viria?

Para Anzieu, "a trimetilamina é uma dupla chave: por sua dimensão metonímica, ela remete ao conteúdo sexual do inconsciente; por sua estrutura formal, metaforiza uma técnica epistemológica própria para a interpretação psicanalítica" (1959/1989, p. 59).

Portanto, esse metassonho freudiano sonha o sonho, estruturalmente e dinamicamente; sonha a função do sonho: "O sonho é uma realização de desejo; sua motivação é um desejo" (Freud, 1900/2019, p. 152).

No plano onírico, foi o amigo Otto quem aplicou a solução da trimetilamina em Irma, utilizando ainda uma seringa suja, causando sua infecção. Freud não era o culpado, e Fliess também não. Mas o que atribui o título de paradigmático a esse sonho vai além da demonstração dos desejos que ele realiza; trata-se principalmente do fato de que a psicanálise havia sido revelada a Freud através de um sonho-próprio, que lhe apresentava, nada menos, que as funções intermediadora e poética do psiquismo, frente ao trauma da falta, logo também do desamparo, constitutivos do sujeito psicanalítico. E mais ainda: um sonho que inaugurava a via régia insaturável do campo simbólico-interpretativo, ao revelar o buraco de seu próprio umbigo.

 

E dizer que o poeta adormeceu, acho que nem é morrer

Muitos julgaram o surgimento do vírus, causador da atual pandemia, como uma falha cruel da Mãe Natureza. Mas um umbigo só pode existir, de fato, a partir da falha que funda a subjetividade, a falha da Grande Mãe, aquela

de quem acreditamos ter capturado a atenção, o olhar, todo o amor, e que, subitamente, se ocupa com outra coisa, absorvida por não se sabe o quê e, mais intolerável, absorvida por ela não sabe o quê, como que desorientada, a ponto de excluirnos de "nosso" mundo para relegar-nos a um real inanimado. Em seu olhar que se retirava, não víamos mais um espelho em que podíamos nos reconhecer; víamos algo além, algo estranho, descobríamos uma ausência sem remédio. (Pontalis, 1990/1991, pp. 14-15)

No mesmo texto, Pontalis traz a ideia de que a atração do sonho se dá na medida em que este realiza um desejo ao evocar a infância "para mantê-la presente, e não para organizar o passado e conferir-lhe um sentido a partir de fragmentos e vestígios" (1990/1991, p. 9). Para o autor, essa infância deve ser entendida como estado infantil, esse mundo fechado como um jardim encantado, e infinito como o universo.

Margarida traz um pesadelo, no qual saía pelas ruas a abraçar seus entes mais amados. Desse modo, todos estariam contaminados, e já não era mais importante descobrir quem contaminara quem. A origem não precisava ser revelada, pois todos estavam juntos e morreriam juntos, na mesma casa de vidro à beira do mar. Atenta e curiosa aos seus processos psíquicos, ela me contava do que chamou de regressões de confinamento. Voltara a beber leite, como na infância, e a lactose já não era mais um problema. Além disso, notava que sua memória para fatos da infância estava aguçada. Lembrava-se dos nomes de antigas professoras, dos cheiros da escola, dos números de telefone de seis dígitos de uma amiga de sua mãe. "Seriam apenas efeitos de estar menos voltada para fora?" - refletia.

Vemos que o que anima essa admirável exaltação do sonho é uma aspiração ao indiviso, à unidade, à harmonia, uma vontade de tornar permeáveis as fronteiras do real e do imaginário, como se o sonhador libertasse de sua finitude o ser consciente, deliberadamente submetido apenas ao real, e lhe permitisse, numa espécie de ecstasy, atravessar os limites de sua individualidade separada, para ser de novo um com a Natureza. (Pontalis, 1990/1991, p. 18)

"Morrer, dormir; dormir, talvez sonhar" (Shakespeare, 1995, p. 568). Também brincando em torno do umbigo do sonho de Freud, outro autor, Emilio Rodrigué, o identifica a Irma e depois a Fausto, e interpreta as dores que Irma sentia na garganta como uma premonição, do sonhador, do câncer contra o qual lutaria por anos a fio. Assim que acordou de seu sonho, Freud teria se lançado a escrever para Fliess: "Daimon, onde está você que não me escreve?" Para o biógrafo, "talvez no fundo desse sonho histórico encontre-se o desejo de morte. Essa pulsão tomaria a forma de um pacto fáustico, em que a vida é dada em troca da fundação da ciência do século" (Rodrigué, 1995, p. 52).

Para sonhar é antes preciso brincar de morrer; se deixar morrer, sem morrer; dormir. Parafraseando um dos belos momentos da poética freudiana, para dormir é preciso desnudar a pele e a psique, baixar a aguarda, renunciar às próteses cotidianas de enfrentamento do mundo e se aproximar do ponto de partida, a posição fetal (Freud, 1917/2010b); retornar por algumas horas ao ventre da Mãe perdida, para que esta possa ser reencontrada na flor do umbigo do sonho. Depois, é preciso acordar.

Na clínica do trauma compartilhado, penso que compor seja antes recompor, pela separação via escuta, as bordas de um espaço e as demarcações de um tempo que propiciem a emergência da poética-própria do analisando.

Procurei transmitir exemplos de empreitadas psíquicas - mais ou menos precárias, mais ou menos poéticas - no empenho de estabilizar as paredes do umbigo do sonho, e assim evitar seu colapso, pois a manutenção da arquitetura triangular do psiquismo é o que permite, em última instância, o jogo da vida. O colapso dessa arquitetura, a linha dual, nos conduz ao sono sem sonhos, o sono da morte, a derradeira solução.

Compor é sonhar um sonho de motivar outros desejos. É realizar um desejo de não solucionar o desejo, driblando os olhos fascinantes da Morte e iludindo o final.

Silêncio
Morreu um poeta no morro
Num velho barraco sem forro
Tem cheiro de choro no ar
Mas choro que tem bandolim e viola
Pois ele falou lá na escola
Que o samba não pode parar
Por isso, meu povo, no seu desalento
Começa a cantar samba lento
Que é o jeito da gente rezar

E dizer que a dor doeu
Que o poeta adormeceu
Como um pássaro cantor
Quando vem o entardecer
Acho que nem é morrer
Silêncio

Mais um cavaquinho vadio
Ficou sem acordes, vazio
Deixado num canto de um bar
Mas dizem poeta que morre é semente
De samba que vem de repente
E nasce se a gente cantar
(Totonho & Rezende, 1976)

 

Post scriptum

Ao ler o texto concluído, me chamou a atenção a quantidade de citações e referências de que lancei mão nessa tessitura - aparente desejo de interação e de compartilhamento. Por fim, me peguei pensando em algumas amigas, grávidas ao longo da pandemia. A elas, dedico este ensaio, que permanece aberto.

 

Referências

Anzieu, D. (1989). A autoanálise de Freud e a descoberta da psicanálise (F. F. Settineri, Trad.). Artes Médicas. (Trabalho original publicado em 1959)        [ Links ]

Birman, J. (2014). O sujeito da diferença e a multidão. Ide, 36(57),25-40.         [ Links ]

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Correspondência:
Eduardo de São Thiago Martins
Rua Capitão Garcindo, 160
01250-010 São Paulo, SP
Tel.: 11 99600-0281
dr.eduardostmartins@gmail.com

Recebido em 17/7/2020
Aceito em 24/9/2020

 

 

1 Menção aos assassinatos de George Floyd (Minneapolis, 25 de maio de 2020) e de Miguel Otávio Santana da Silva (Recife, 2 de junho de 2020).
2 Menção ao poema "Ocaso do século", de Wislawa Szymborska.
3 Obra de Mario Eduardo Costa Pereira (1999).
4 "Há uma mudança completa de cenário, como quando uma brincadeira dá lugar a uma realidade que irrompe inesperadamente, como um grito de 'Incêndio!' lançado no meio de uma apresentação teatral" (Freud, 1915/2010c, p. 214).
5 O psicanalista Joel Birman (2014) distingue multidão de massa na medida em que, na primeira, não se perde a singularidade de cada um dos indivíduos que a compõem.
6 Yolanda Gampel (2014) chama de objeto tesourizado um objeto afetivamente investido, ao qual o sujeito recorre ao perceber-se ameaçado em sua integridade e que o ajuda a se reorganizar e a sobreviver.
7 Menção ao "Samba da benção" (1967), de Vinicius de Moraes.
8 Filósofo esloveno.
9 Em Além do princípio do prazer (1920/2010a), Freud destaca a surpresa como importante elemento da experiência do terror, associada às neuroses traumáticas. Antes de mergulhar em pensamentos sobre a intrigante compulsão à repetição de experiências não apenas desprazerosas, mas realmente capazes de ferir o sujeito em seu narcisismo, Freud - alinhado às ideias do filósofo alemão Gustav Fechner desde o "Projeto" (1895) - pondera sobre a qualidade de certos estímulos (aumento/diminuição x tempo x espaço) e o modo como estes se articulam a determinadas dinâmicas defensivas (princípio da constância, princípio da realidade, recalque), para que sejam vividos como desprazer. "A maior parte do desprazer que sentimos é desprazer de percepção, seja percepção da premência de instintos insatisfeitos ou percepção externa, que é penosa em si ou que provoca expectativas desprazerosas no aparelho psíquico, sendo por ele reconhecida como 'perigo'" (Freud, 1920/2010a, p. 167).
10 Agradeço ao colega Alberto Rocha Barros pelo estímulo que me fez querer conhecer mais sobre a história dessa amizade.
11 "O intelecto de Freud vai alçando imensas alturas; arrasto-me atrás dele com esforço, qual uma galinha a seguir um falcão" - carta de Breuer a Fliess (Masson, 1986, p. 135). Ao amigo-médico, Freud insiste em marcar que, apesar de sentir-se bem no que diz respeito à cabeça, o mesmo não se passa quanto ao nariz e ao coração, e que, portanto, Fliess não deveria confiar nas "comunicações ornitológicas de Breuer" (Masson, 1986, p. 134).
12 "Chegarei carregado de rudimentos e embriões em germinação", escreve Freud, referindo-se ao ansiado próximo encontro com Fliess, que também seria pai. "Sua notícia [sobre a gravidez de Ida] representa para nós o encanto maior do futuro imediato" (Masson, 1986, p. 134).
13 "A fórmula
φψω - três tipos de neurônios (do 'Projeto') - surge, de fato, pela primeira vez emuma carta a Fliess, três semanas após o sonho" (Anzieu, 1959/1989, p. 57).
14 Os personagens do sonho e das associações de Freud aparecem em três grupos de três: as viúvas (Irma, amiga de Irma, Martha), os mais velhos que Freud (Breuer, Fleischl, Emmanuel) e os iguais a Freud (Otto, Léopold, Fliess). Tendo Freud como vértice, a representação simbólica dessa estrutura ganha equivalência à fórmula da trimetilamina - N(CH3)3 (Anzieu, 1959/1989). Para maiores detalhes, remeto o leitor, também, ao capítulo 2 de A interpretação dos sonhos.

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