Serviços Personalizados
Journal
artigo
Indicadores
Compartilhar
Revista Brasileira de Psicanálise
versão impressa ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.54 no.3 São Paulo jul./set. 2020
RESENHA
Paulo de Carvalho Ribeiro
Psicanalista. Professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Autor do livro Por que Laplanche?
Autores: Ignacio Gerber e Luís Claudio Figueiredo
Editora: Zagodoni, 2018, 144 p.
Resenhado por: Paulo de Carvalho Ribeiro
Como anunciado pelos autores desde a introdução do livro, Por que Bion?, da coleção Grandes Psicanalistas, não pretende ser uma exposição sistematizada de uma teoria nem a exaltação da obra de um grande mestre, e sim uma conversa entre amigos sobre os efeitos da convivência com o pensamento de Bion tanto na clínica psicanalítica quanto nas atividades cotidianas de cada um deles. Esta é, de fato, a sensação que prevalece ao longo da leitura do livro: o prazer de participar de uma boa conversa e assim renovar a percepção de quão vasta pode ser a experiência com o inconsciente.
No primeiro capítulo, paralelamente à proposta de uma conversa, os autores, à semelhança do que ocorre nas exibições de arte, se propõem também a desempenhar o papel de curadores de uma exposição de Bion. Um dos bons efeitos dessa curadoria, que se torna mais claro quando chegamos ao fim do livro, é o ritmo e a modulação da apresentação da obra. Uma apresentação de temas e ideias que não se deixa reduzir à cronologia das publicações proporciona uma progressão fluida e cativante pelos diferentes momentos e aspectos do pensamento do psicanalista britânico. Nesse primeiro capítulo, merece destaque uma referência à coletânea comemorativa dos 80 anos de Bion, organizada por James Grotstein, pelo próprio Bion e por sua segunda esposa, Francesca. Essa coletânea, que só foi publicada postumamente, traz como título um verso de um poema de T. S. Eliot, Do I dare disturb the universe?, que os autores de Por que Bion? oportunamente associaram com a vivência do analista diante de um novo analisando que lhe apresenta sua vida: "Ousaremos perturbá-la?".
Na apresentação do homem Bion, no segundo capítulo, encontramos mais do que uma biografia. Um ótimo comentário sobre The long weekend, relato autobiográfico dos anos de juventude, escrito por Bion quando já se aproximava dos 80 anos, proporciona ao leitor uma visão panorâmica de três períodos decisivos desses anos de formação: a vida feliz na Índia até os 8 anos; a ida para a Inglaterra, acompanhada das dificuldades enfrentadas numa escola tradicional britânica; e a dura experiência da guerra, como oficial-comandante de um tanque, quando tinha apenas 19 anos. A transcrição do prólogo de The long weekend, escrito por Francesca, dá ao capítulo um arremate comovente.
Na sequência, a importância dada pelos autores aos fatos e fenômenos característicos de uma sessão de análise torna-se mais clara. Intitulado "De Freud a Bion", o terceiro capítulo trata dos desdobramentos que as recomendações de Freud sobre a atenção flutuante e a associação livre tiveram na abordagem clínica de Bion. O que surpreende, no entanto, é a estratégia dos autores de incluir na conversa sobre a influência de Freud uma série de referências que permitem situar a história da psicanálise no contexto mais amplo das transformações epistemológicas ocorridas entre 1900, data da publicação de A interpretação dos sonhos, e a segunda metade da década de 1970, quando os últimos textos de Bion foram escritos. A teoria da relatividade de Einstein, o princípio da incerteza de Heisenberg, o teorema da incompletude de Gödel, a física quântica proposta por Bohr e a lógica expandida de Frege e Cantor são mencionados e relacionados à superação do determinismo psíquico, à aleatoriedade e ao interesse de Bion pelas novidades no campo da lógica matemática, como atestam diversas citações presentes em seu livro de 1962, Aprendendo da experiência. Na conclusão desse capítulo, encontramos algumas considerações sobre um importante artigo de 1967, "Notes on memory and desire", no qual memória, desejo e compreensão racional prévia por parte do analista são vistos como obstáculos ao bom andamento da análise. Esse artigo, que suscitou muitas críticas e dissidências, marca também o início da chamada fase mística de Bion, sobre a qual os autores voltarão a comentar nos últimos capítulos.
A apropriação por Bion da identificação projetiva não poderia deixar de receber uma atenção particular, dada sua centralidade na teoria da clínica. A forma clara e cuidadosa como os autores expõem as reconsiderações e a ampliação desse conceito no pensamento bioniano certamente contribuirá para que o capítulo 4 de Por que Bion? se torne uma referência a todos aqueles que queiram compreender as particularidades da herança kleiniana do autor britânico. O segundo ponto alto desse capítulo é a exposição, mais uma vez clara e aprofundada, de um dos textos bionianos mais instigantes, e que representa também um ponto de descolamento da herança freudo-kleiniana: "Uma teoria do pensar". Aqui, a inversão da relação entre pensamentos e capacidade de pensar é apresentada de maneira original, capaz de conduzir o leitor a apreender a complexidade e a pertinência de um raciocínio contraintuitivo, que afirma a antecedência de alguns pensamentos relativamente à capacidade de pensá-los.
Uma referência ao livro Flatland, de Edwin Abbott, introduz a incursão dos autores no pensamento mais tardio de Bion, quando os efeitos de seu descolamento da herança freudo-kleiniana já se faziam sentir mais nitidamente e o tornavam ainda mais bioniano. O mundo bidimensional de Flatland sofre uma enorme perturbação quando um objeto de uma terceira dimensão incide sobre a platitude que até então ali vigorava. Trata-se de uma bela metáfora sobre o esforço de Bion para promover uma psicanálise fundada no inconsciente multidimensional, na percepção não sensorial, na intuição e no desafio de buscar, na sessão de análise, um estado mental a ser situado além da memória, do desejo e da compreensão racional prévia. Algumas explicações sobre a famosa grade de Bion, uma apresentação irretocável da relação entre o trabalho do sonho e as ideias centrais do livro Transformações, além de uma preciosa abordagem do uso que ele faz do conceito de cesura complementam esse capítulo particularmente inspirado. A elegância e a precisão com que os autores apresentam essas ideias e conceitos dissipam a confusão que se poderia fazer do pensamento de Bion com a religião, e ao mesmo tempo esclarecem o caráter particular e peculiar que ele deu ao místico.
O sentido pleno da proposta de curadoria, feita no primeiro capítulo, pode ser constatado na exposição do livro Atenção e interpretação, de 1970, que os autores consideram o ponto culminante da obra de Bion. Depois de uma breve introdução, uma seleção de passagens decisivas desse livro ocupa mais de 10 páginas e permite que o leitor perceba toda a riqueza e originalidade da contribuição de Bion para a prática clínica da psicanálise. Dar a palavra a Bion se revela, nesse caso, uma excelente estratégia na medida em que preserva integralmente a força de suas ideias mais fundamentais, apresentadas num momento de maturidade e consolidação de uma longa trajetória.
A palavra é novamente devolvida a Bion no capítulo final, onde várias passagens de um texto gravado por ele em maio de 1977 e publicado por Francesca em 1997 são reproduzidas. O título escolhido por ela para essa transcrição, "Domando pensamentos selvagens", não poderia ser mais apropriado. A existência de pensamentos que antecedem a capacidade de pensá-los e a recomendação de que o analista se despoje de memória, desejo e compreensão prévia na sessão de análise são ali retomadas e aprofundadas por meio de numerosas referências a situações clínicas, intermeadas de comparações e metáforas extraídas da biologia e de outras áreas do conhecimento.
A frase de Maurice Blanchot tantas vezes citada por Bion, "A resposta é a desgraça (malheur) da pergunta", não pode deixar de ser lembrada quando concluímos a leitura de Por que Bion?. O propósito da coleção Grandes Psicanalistas de revelar o lugar de cada autor no campo psicanalítico e esclarecer a maneira pela qual suas ideias contribuem para o entendimento dos problemas de nossa época não deixou de ser plenamente atendido pelos autores. Mas esse propósito foi alcançado de uma forma que poderíamos dizer bioniana, multiplicando as perguntas muito mais do que propondo respostas, permitindo ao leitor uma expansão de sua percepção sobre a sessão de análise e sobre o inconsciente. Para os que já têm familiaridade com o pensamento de Bion, a leitura desse livro proporcionará um prazer semelhante ao que se tem ao rever obras de arte já vistas, porém dispostas em novos e instigantes nexos; para os que não conhecem esse pensamento, a leitura terá o efeito de uma intensa experiência estética e uma inescapável sensação de abertura para o multidimensional da psicanálise.
Correspondência:
Paulo de Carvalho Ribeiro
Avenida Antônio Carlos, 6627
31270-901 Belo Horizonte, MG
Caixa-postal: 253
Tel.: 31 3499-5022
pcarvalhoribeiro57@gmail.com