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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.54 no.4 São Paulo out./dez. 2020

 

IDEAIS

 

A força de atração a ser-na-massa: comentários ao artigo "O assintótico", de Pierre Fédida

 

The force of attraction to populism: comments on the article "The Asymptote" by Pierre Fédida

 

La fuerza de atracción a ser de la masa: comentarios sobre el artículo "Lo assintótico" de Pierre Fédida

 

La force d'attraction de l'être dans les masses: commentaires à l'article « L'asymptotique » de Pierre Fédida

 

 

Luís Carlos Menezes

Membro efetivo com função didática da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae

Correspondência

 

 


RESUMO

Este texto é um breve comentário ao artigo "O assintótico", de Fédida, destacando aspectos da escuta psicanalítica e várias facetas que decorrem das peculiaridades de seu objeto, um inconsciente, fragmentário, apreendido apenas nas brechas de uma formação como o eu que tende à unificação totalizante, sintética. A análise, voltada para particularidades cruciais de cada um, se faz, pois, à contracorrente de aspirações conformistas e massificadoras inerentes ao narcisismo.

Palavras-chave: escuta, escrita, teoria, instituições de psicanalistas, narcisismo, formações de ideal


ABSTRACT

This work is a brief comment to the article written by Fédida, The Asymptote, highlighting aspects of the psychoanalytic listening and the several facets derived from peculiarities of its object, the unconscious, fragmentary, captured as the I is formed, tending to total and synthetic unification. The analysis directed to essential particularities of each individual, is done contrary to conformists and populist desires associated to narcissism.

Keywords: listening, writing, theory, psychoanalyst's institutions, narcissism, ideal education


RESUMEN

Ese texto es un breve comentario sobre el artículo de Fédida, "O assintótico", resaltando aspectos de la escucha psicoanalítica y varias facetas derivadas de las peculiaridades de su objeto, un inconsciente, fragmentario, capturado solamente en las brechas de una formación como el Yo que tiende a la unificación totalizadora, sintética. Por lo tanto, el análisis, orientado a las particularidades cruciales de cada uno, se vuelve en contra de las aspiraciones conformistas y masificadoras inherentes al narcisismo.

Palabras clave: escucha, escritura, teoría, instituciones de psicoanalistas, narcisismo, formaciones de ideal


RÉSUMÉ

Ce texte est un bref commentaire à l'article de Fédida, « L'asymptotique », soulignant des aspects d'écoute psychanalytique et plusieurs facettes qui découlent des particularités de son objet, un inconscient fragmentaire, qui n'est appréhendé que dans les brèches d'une formation comme le Moi, qui tend à l'unification totalisante, synthétique. L'analyse, tournée vers les particularités cruciales de chacun, se fait donc à contrecourant d'aspirations conformistes et capables de massifier, inhérentes au narcissisme.

Mots-clés: écoute, écriture, théorie, institutions de psychanalystes, narcissisme, formations de l'idéalformations de l'idéal


 

 

O interesse do texto de Fédida, publicado originalmente em um periódico também dedicado ao tema dos ideais, reside em considerações que concernem à intimidade, à essência da escuta clínica numa análise, caracterizada pela necessária "insistência do fragmentário" em oposição a perspectivas totalizantes, para as quais, no entanto, em diferentes contextos, ela tende resistencialmente.

Antes de mais nada porque a função analítica é ela mesma sustentada por um ideal, sendo indispensável que este não se torne positivado pela economia narcísica do analista, que tende ao ordenamento de uma racionalidade sintetizadora ao ignorar a negatividade inerente à linguagem na análise.

Entendo que categorias positivas, sintéticas, como a de mudanças visadas pelo processo, as próprias noções de processo e de progresso da "doença" para a "saúde", do sofrimento para o bem-estar, de alguma forma presentes na necessária possibilidade de falar e de escrever - juntando pedacinhos esparsos - no relato de um caso ou de uma sequência de análise, então passíveis de discussão nas comunidades de analistas, são todas categorias com as quais o autor vai se deparando para marcar a sua função, pois beiram o limite que lhes é inerente. O autor reconhece que falar ou escrever sobre uma análise é quase impossível e que, rigorosamente falando, não há instituição analítica. Ao mesmo tempo, porém, afirma que essas formações e práticas têm uma função indispensável.

Como em tudo na psicanálise - como na própria prática clínica - vemos que o analista precisa se movimentar sobre uma corda bamba para se haver com o paradoxo de visar um inconsciente ou de pensá-lo, desestabilizando as versões unificadoras do eu, quando, por outro lado, o inconsciente só tem sentido, só é perceptível, em seus efeitos sobre o eu, instância movida pela tendência à coerência e a sínteses totalizantes - portanto, resistenciais.

É o terreno em que se constituem essas formações organizadas sintomaticamente (como sonhos, sintomas e lapsos) e no qual, em suas brechas, ocorrem os insights em que verdades até então inacessíveis tomam corpo e se inserem na vida psíquica, renovando-a, desfazendo impasses.

Não são problemas que nos sejam desconhecidos, nos são até familiares, mas acompanhar o autor a percorrer, com acuidade, diferentes facetas com as quais nos confronta pode ser estimulante e mobilizador de nosso pensamento clínico e de seus pressupostos.

Estes, assim como os seus ideais na referência a um corpus teórico e a ideais técnicos partilhados em um grupo de analistas, em que opera o amor de transferência, podem tornar-se sintoma resistencial nas análises e constituem um desafio para cada um de nós na busca do analisável desses ideais. São todos impasses com os quais cada analista se confronta e nos quais se move dentro do possível. Importa tê-los em vista, ao longo da própria vida, em si mesmos e na própria clínica.

Fédida reconhece que mesmo a obra de Freud não escapou a um ideal sistematizador da teoria, assim como à "tentação da síntese", atravessada que é, no entanto, por tensões, contradições e fissuras, marcas "dos fatos e das elaborações técnicas" que vão se impondo a ele em seus escritos. O assintótico, como resistência à síntese, inclusive na escrita, é como o autor formula o que chama de função analítica do ideal, entendida como formação sintomática contratransferencial, analisável, sem jamais ser anulada.

Retomo, a propósito dessas dificuldades, a citação que faz Fédida, no artigo, de uma carta de 1911 de Freud a Binswanger: "Na verdade, não há nada para o que o homem, dada sua organização, seria menos apto do que para a psicanálise".1

Essa citação é seguida pela afirmação de que o idealismo, já apontando para o terreno do passional, não cabe em relação à psicanálise, mesmo quando tem que se haver com seus detratores, que podem ter uma visão clara de que "o ser humano é uma multidão, cuja demanda de alienação é bem mais poderosa que seu desejo de liberdade".

Entendo, nesse contexto, liberdade como reconhecimento, enlutado, das fundamentais singularidades próprias aos conflitos e à história de cada um, história que Fédida distingue do sentido "intencionalizado" com que é tomada pela psiquiatria clínica - referindo-se a Kraepelin, Binswanger e Jaspers -, diferente, pois, de sua acepção na psicanálise, em que é entendida como algo "construído ... nomeado pela palavra que revela a pré-historicidade do presente", na "insistência do fragmentário", onde o fragmento é tomado "como signo arqueológico de uma negatividade (a ausência, a morte)", em que uma perda é incontornável.

A psicanálise vai, portanto, na contracorrente da necessidade urgente e vital do ser humano pela aceitação, pela aprovação como integrante do grupo, buscando fazer parte, pensando e sendo conforme às expectativas deste, de maneira a se sentir acolhido e identificado ao todo. Demanda narcísica essencial, propiciadora de segurança, própria ao eu, que é ele mesmo "uma multidão" como soma de identificações - para Lacan, "pluralidade imaginária do sujeito" (1978, p. 200)

Entendemos a afirmação de Freud de que, de certa forma, o ser humano não é feito para a psicanálise. Para ele, ao contrário, "a psicologia das massas é a mais velha psicologia humana; aquilo que, negligenciando todos os vestígios da massa, isolamos como psicologia individual, emergiu somente depois, aos poucos, e como que parcialmente ainda, a partir da velha psicologia da massa" (Freud, 1921/2014, pp. 85-86).

É contra essa forte tendência alienante que Fédida encontra no assintótico a figura da resistência do analista à síntese, o assintótico sendo pois função ideal da análise, ao manter-se na contracorrente da sugestão, verdadeiro convite à "formação de massa a dois", na expressão usada por Freud para designar a relação hipnótica (1921/2014, p. 74).

Mas há algo "na estrutura humana", muito primordial também, que parece ir em sentido contrário ao da busca de massificação, a julgar pelo conhecido modelo do "Projeto" de uma manifestação do ser necessitado que é passível de ser tomada pelo outro - por ser semelhante (também humano) - como apelo de uma "ação específica" (portanto uma ação não genérica), ação precisa capaz de produzir a supressão do mal-estar, levando a uma experiência de satisfação, nos primórdios do desejo.

Ela depende, diz Freud, de algo "extremamente importante: fazer-se compreender" na particularidade da situação (2006, p. 626). E a afirmação que se segue de que "o desamparo inicial do ser humano é a fonte originária de todos os motivos morais" toma todo o sentido se a fizermos coincidir com a disposição requerida ao analista de não só tolerar o não tolerável do diferente, enigmaticamente singular em sua emergência, como também de encontrar condições para reconhecer o que nele pode ser apelo.

A propósito, algo nessa direção é reafirmado na terceira parte dos Três ensaios, na intimidade constitutiva da relação do bebê com a mãe, que está na origem das pulsões sexuais, essenciais porque são condição da vida psíquica e "de todas as realizações éticas" do novo ser (Freud, 1905/2016, p. 144).

A realização ética ou moral mais fundamental é o reconhecimento, a abertura para os outros na sua diversidade, nas suas maneiras de ser, ideal que, quando operante, é condição do convívio humano na cultura, o que sempre é uma conquista. Esta não está a priori garantida, muito pelo contrário, quando levamos em conta o fundo primordialmente paranoico do eu, radicalmente avesso ao outro, na medida em que este não atende as suas expectativas, necessidades ou crenças.

Soa brutal a afirmação, principalmente vinda de Freud e feita com tanta naturalidade, como sendo uma descoberta da psicanálise: "A tentação de matar os outros é, também em nós, mais forte ou mais frequente do que imaginamos" (1913/2012, p. 115). Claro, os assassinatos possíveis não são só a aniquilação física; há ainda todas as outras formas de destruir e aniquilar, inclusive pelas ações massificadoras, alienantes.

Lacan fala da "função pacificadora do ideal do eu" e descreve com elegância o passo que representa a sua constituição como destino do complexo de Édipo, afirmando que com isso é ultrapassada a primeira individuação subjetiva, com "a instauração dessa distância, pela qual, com os sentimentos da ordem do respeito, é realizada toda uma aceitação [assomption] afetiva do próximo" (1966, p. 117).

No questionamento que Fédida faz do idealismo, ao qual poderíamos acrescentar os moralismos de toda ordem na psicanálise, podemos dizer que o que fica em risco é a mobilidade para ir encontrando a justa distância, o espaço do suficientemente bom, tão importantes não apenas na vida, mas também na clínica, onde o analista procura acolher assintoticamente o que surge, tal como surge de cada analisando ou supervisionando, em cada encontro.

Como bem sabemos, tanto as ideias quanto os ideais podem ser objeto de investimentos narcísicos, passionais, que lhes dão vida e perseverança, mas que também podem levar à perda da capacidade de discernimento e de clareza na apreciação dos fatos e das situações, assim como às mais extremas formas de intolerância, tanto na análise quanto nas relações sociais, sobre as quais tive ocasião de me deter em outros trabalhos (Menezes, 2006, no prelo).

Resta apenas assinalar, na linha desse estudo, que pela sua natureza a prática e o pensamento psicanalítico são incompatíveis com os fanatismos e os totalitarismos, não sendo viáveis, como a experiência tem mostrado, senão em lugares onde haja um mínimo de liberdade política e de tolerância social.

 

Referências

Freud, S. (2006). Lettres à Wilhelm Fliess(1887-1904) (F. Kahn & F. Robert, Trads.). PUF.         [ Links ]

Freud, S. (2012). Totem e tabu. In S. Freud, Obras completas (P. C. Souza, Trad., Vol. 11, pp. 13-244). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1913)        [ Links ]

Freud, S. (2014). Psicologia das massas e análise do eu. In S. Freud, Obras completas (P. C. Souza, Trad., Vol. 15, pp. 13-113). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1921)        [ Links ]

Freud, S. (2016). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In S. Freud, Obras completas (P. C. Souza, Trad., Vol. 6, pp. 13-172). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1905)        [ Links ]

Freud, S. & Binswanger, L. (1995). Correspondance (1908-1938) (R. Menahem & M. Strauss, Trads.). Calmann-Lévy.         [ Links ]

Lacan, J. (1966). L'agressivité en psychanalyse. In J. Lacan, Écrits (pp. 101-124). Seuil.         [ Links ]

Lacan, J. (1978). Le seminaire, livre 2: le moi dans la théorie de Freud et dans la technique de la psychanalyse (1954-1955). Seuil.         [ Links ]

Menezes, L. C. (2006). Preservem as flores selvagens: aderência, adesão e lucidez: variações metapsicológicas sobre o tema do poder. Revista Brasileira de Psicanálise, 40(2),73-81.         [ Links ]

Menezes, L. C. (no prelo). A construção do ideal do eu: caminhos e descaminhos. In Psicanálise e filosofia.         [ Links ]

Menezes, L. C. (no prelo). A morte da política no poder totalitário. In Psicanálise e filosofia.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Luís Carlos Menezes
Rua Deputado Lacerda Franco, 300, conj. 133/134
05407-000 São Paulo, SP
Tel.: 11 98858-8037 | 11 4883-2991
luismzes@hotmail.com

Recebido em 8/2/2021
Aceito em 12/2/2021

 

 

1 Encontrei uma versão ligeiramente diferente dessa carta, que é de 28 de maio de 1911, a qual traduzo livremente do francês: "Na realidade, não há nada na estrutura do homem que o predisponha a se ocupar de psicanálise" (Freud & Binswanger, 1995, pp. 134-135).

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