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Revista Brasileira de Psicanálise
versão impressa ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.54 no.4 São Paulo out./dez. 2020
IDEAIS
As tramas do trabalho vincular: contribuições psicanalíticas para pensar os impasses e ideais contemporâneos1
The plots of binding work: psychoanalytic contributions to thinking the contemporary impasses and ideals
Las tramas del trabajo vincular: contribuciones psicoanalíticas para pensar los impases de los ideales contemporáneos
Les trames du travail du lien : contributions psychanalytiques pour penser les impasses des idéaux contemporains
Manoel Antônio dos SantosI; Mary Yoko OkamotoII; Thassia Souza EmidioIII; Bruna Bortolozzi MaiaIV
IProfessor titular do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP). Bolsista de produtividade em pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ), PQ 1A
IIProfessora assistente doutora do Departamento de Psicologia Clínica da Faculdade de Ciências e Letras de Assis, Universidade Estadual Paulista (FCLAS-UNESP), campus de Assis. Cocoordenadora do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Psicanálise e Vincularidade (LAPSIVI)
IIIProfessora assistente doutora do Departamento de Psicologia Clínica da Faculdade de Ciências e Letras de Assis, Universidade Estadual Paulista (FCLAS-UNESP), campus de Assis. Cocoordenadora do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Psicanálise e Vincularidade (LAPSIVI)
IVDiscente de psicologia na Faculdade de Ciências e Letras de Assis, Universidade Estadual Paulista (FCLAS-UNESP), campus de Assis. Membro do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Psicanálise e Vincularidade (LAPSIVI)
RESUMO
Desde a obra freudiana podemos notar a importância que a psicanálise atribui aos ideais, tanto os parentais quanto os culturais, para a formação da subjetividade. Este estudo teórico-reflexivo tem por objetivo analisar as tramas do trabalho vincular, a partir dos conceitos de vínculo, ajenidad e incertidumbre, à luz da psicanálise vincular. Inspirados pelo referencial teórico, destacamos algumas das contribuições originais de J. Puget para o tema e refletimos sobre suas implicações e ressonâncias no âmbito vincular, político e social. Argumentamos que os vínculos engendram uma diferença radical sobre a qual o trabalho vincular é construído, envolvendo sempre um elemento de incerteza. Depreende-se disso que a incerteza social, como sintoma que se mostra exacerbado no contemporâneo, associada à fragilização dos vínculos, pode levar à criação defensiva de figuras de exclusão no campo social, típicas de regimes totalitários. Cabe à intervenção analítica a tarefa de desnudar a trama subterrânea do trabalho vincular.
Palavras-chave: vínculo, narcisismo, coesão de grupo, psicanálise de grupo, eu ideal
ABSTRACT
From the Freudian work we can notice the importance that psychoanalysis attributes to ideals, both parental and cultural, for the formation of subjectivity. This theoretical-reflective study aims to analyze the plots of the binding work, from the concepts of bond, ajenindad and incertidumbre from the bond psychoanalysis point of view. Inspired by the theoretical reference, we highlight some of J. Puget's original contributions to the theme and reflect on its implications and resonances in the political, social, and binding context. We state that bonds engender a radical difference on which the binding work is built, always involving an element of uncertainty. It follows that social uncertainty, as a symptom exacerbated in the contemporary times, associated with the weakening of bonds, can lead to the defensive creation of figures of exclusion in the social field, typical of totalitarian regimes. It is up to the analytic intervention to uncover the underground plot of binding work.
Keywords: bond, narcissism, group cohesion, group psychoanalysis, ideal ego
RESUMEN
De la obra freudiana podemos notar la importancia que el psicoanálisis concede a los ideales, tanto parentales como culturales, para la formación de la subjetividad. Este estudio teórico-reflexivo tiene por objeto analizar las tramas del trabajo vincular, a partir de los conceptos de vínculo, ajenidad e incertidumbre, a la luz del psicoanálisis vincular. Inspirados por la referencia teórica, destacamos algunas de las contribuciones originales de J. Puget al tema y reflexionamos sobre sus implicaciones y resonancias en el ámbito vincular, político y social. Sostenemos que los vínculos generan una diferencia radical sobre la cual el trabajo vincular es construido, que siempre involucra un elemento de incertidumbre. De ello se desprende que la incertidumbre social, como síntoma exacerbado en el contemporáneo, asociado al debilitamiento de los vínculos, puede llevar a la creación defensiva de figuras de exclusión en el campo social, típicas de los regímenes totalitarios. La tarea de la intervención analítica es descubrir la trama subterránea del trabajo vincular.
Palabras clave: vínculo, narcisismo, cohesión de grupo, psicoanálisis de grupo, ego ideal
RÉSUMÉ
Depuis l'œuvre freudienne, nous pouvons noter l'importance que la psychanalyse accorde aux idéaux, tant parentaux que culturels, pour la formation de la subjectivité. Cette étude théorique et de réflexion a pour but d'analyser les trames du travail du lien, à partir des concepts de lien, ajenindad and incertidumbre, à la lumière de la psychanalyse du lien. Inspirés par cette référence théorique, nous mettons en évidence quelques-unes des contributions originales de J. Puget sur le sujet et nous réfléchissons sur ses implications et résonances dans le domaine du lien, politique et social. Nous soutenons que les liens engendrent une différence radicale sur laquelle le travail de liaison est construit, apportant toujours un élément d'incertitude. Il s'ensuit que l'incertitude sociale, en tant que symptôme exacerbé dans le contemporain, associée à la fragilité des liens, peut conduire à la création défensive de figures d'exclusion dans le domaine social, qui sont typiques des régimes totalitaires. La tâche de l'intervention analytique est de découvrir la trame souterraine du travail du lien.
Mots-clés: lien, narcissisme, cohésion de groupe, psychanalyse de groupe, ego idéal
Introdução
Em seu célebre texto "À guisa de introdução ao narcisismo" (1914/2004), Freud discorre a respeito do narcisismo enquanto condição necessária para a formação do eu, como um estágio situado entre o autoerotismo e o amor objetal. Essa travessia se dá desde o narcisismo primário, no qual o bebê é idealizado, em uma reprodução do momento de simbiose que já fora vivenciado pelos próprios pais da criança, até o narcisismo secundário, no qual já há diferenciação eu/outro. É nesse percurso que começam a se inscrever os ideais que herdamos e que se tornam legados psíquicos que levamos para a vida toda.
Esses ideais, denominados por Freud de eu ideal e ideal de eu, ganharam maior relevo e diferenciação teórica entre os pós-freudianos. Enquanto o eu ideal é efeito, no plano do imaginário, do discurso e do investimento dos cuidadores principais da criança, e modelo de perfeição narcísica sobre o qual o eu irá moldar-se, o ideal de eu é relacionado às exigências no âmbito das leis sociais, condição para o recalque e a renúncia à onipotência narcísica, sendo assim localizado no plano do simbólico (Roudinesco & Plon, 1998). É a partir da constituição do complexo de Édipo que o eu ideal pode ser transformado em ideal de eu, pela via de uma passagem na qual o eu deixa de ser o ideal próprio e se deixa regular pelo ideal de um outro, diferente, marcado por valores sociais (Birman, 2019). Tal passagem enseja a renúncia à onipotência narcísica, que de acordo com Freud (1913/1992) é sustentada pelas leis fundamentais do totemismo e do tabu. Essa renúncia é o elemento estrutural que possibilita a civilização.
Dessas premissas, destaca-se a importância da renúncia pulsional para a inscrição da lei civilizatória, ou seja, para a possibilidade de organização do pacto que funda a civilização. Freud (1930/2010b) argumenta que o advento da cultura foi possível a partir do momento em que a comunidade pôde impor a cada sujeito, por meio do recalcamento, a limitação ou a renúncia da gratificação de suas pulsões sexuais e agressivas para que se pudesse preservar a coesão do grupo, abrindo a possibilidade de estruturar os laços sociais. Um dos mecanismos necessários para viabilizar essa renúncia seria o sentimento de culpa, proveniente, por um lado, das angústias em relação à possibilidade de preservar o apreço das autoridades externas e, por outro, da constituição do supereu, a partir da interiorização do amor e do temor às figuras de autoridade.
Podemos perceber, dessa forma, que os ideais aos quais o sujeito está submetido são provenientes tanto de suas primeiras experiências de satisfação e investimento narcísico quanto dos imperativos e expectativas da cultura na qual está inserido. Do ponto de vista de estudiosos da sociedade - pelo vértice das ciências sociais e da antropologia, por exemplo - o âmbito da cultura e a questão do narcisismo ganham uma tonalidade distinta daquela que têm na psicanálise.
Birman (2019) aponta que a pós-modernidade se caracteriza pela impossibilidade de sustentar a alteridade nos laços sociais e nos registros individuais e coletivos, o que acarretou efeitos nefastos para as instituições sociais, que se tornaram inconsistentes na promoção dos processos de mediação. O autor observa que, desde os anos 1970, em decorrência dessa transformação, a psicanálise passou a discutir de forma diferente o campo do narcisismo, considerando-o uma condição estratégica do psiquismo no lugar anteriormente atribuído ao Édipo. Nesse contexto de reformulação teórica, no âmbito das ciências sociais e da filosofia política começou a ser debatida a questão da decadência do espaço público, a expansão do privado e a cristalização de uma cultura do narcisismo, em uma sociedade na qual "o império da imagem se institui em toda parte, recortando todas as regiões da existência humana, nos registros individual e coletivo" (Birman, 2019, p. 91).
Ao cunhar o termo cultura do narcisismo, Lasch (1983) popularizou a ideia de que vivemos em uma cultura baseada em um individualismo competitivo, que deságua em uma preocupação narcisista do eu que se empenha na busca obstinada da felicidade individual. Para o autor, o sentimento de impotência em relação ao mundo, associado a uma descrença crescente nas instituições sociais e ao desinteresse pelo futuro, favoreceria a instalação dessa cultura narcisista.
Lasch relaciona esse mundo, que parece não confiável ou controlável, à superabundância da oferta de itens de consumo, azeitada por uma máquina de publicidade e propaganda que fabrica promessas de felicidade instantânea acessível a todos, com a constante ilusão de prazer imediato. Dessa forma, se antes os imperativos sociais estavam relacionados à renúncia, agora estão condicionados a uma demanda de felicidade perene, que elide o tempo necessário para a reflexão e o amadurecimento do pensar.
Han (2017) acrescenta que a demanda de desempenho individualizado, na qual se espera que o sujeito possa funcionar livre de perturbações e maximizar seu desempenho, produz um cansaço solitário, individualizante, isolado. Da mesma forma, é individualizante a ideia de que os afetos e as relações afetivas podem ser "organizados" e "educados" por meio dos discursos de autoajuda, que os instrumentalizam para que os relacionamentos sejam mais eficientes e maleáveis aos interesses do capital. Essa é a tese de Illouz (2011), segundo a qual o manejo dos afetos na contemporaneidade torna-se capital afetivo. Na sociedade de consumo, os indivíduos são convidados a consumir uma "utopia romântica" (Illouz, 1997), oferecendo seus corpos docilizados e estocando ativos afetivos.
Nesse cenário fantasmagórico de impulsos domesticados e desejos controlados por algoritmos, os vínculos são mantidos na medida em que possam ser instrumentalizados, de modo a servirem às demandas individuais e aos interesses do mercado financeiro, evidenciando a crescente fragilidade dos laços. Bauman (2004) corrobora essa ideia afirmando que o consumismo exacerbado, caracterizado pela compra e descarte de produtos, influencia no aumento da liquefação dos laços estabelecidos entre as pessoas. Desse modo, as relações humanas tornam-se mais rarefeitas e flexíveis e, consequentemente, mais frágeis e insubstanciais.
Essa dinâmica vincular, característica da sociedade contemporânea, pode culminar na dificuldade em lidar com as diferenças, que se escancaram, por exemplo, no estrangeiro ou naquele que pensa diferente dos padrões normativos (Bauman, 2017). A diferença, quando vista como ameaça, é capaz de levar o sujeito ao isolamento e a um fechamento em si mesmo, como estratégia de defesa e sobrevivência do eu, conforme argumenta Lasch (1983), ou a uma necessidade de atacar os grupos minoritários que representam a estrangeiridade. O narcisismo, nessa acepção, seria a manifestação de um sintoma individual de uma crise própria da cultura (Coelho, 2016), uma aresta na qual o amor de si se impõe efetivamente em detrimento ao amor do outro, contribuindo para que os laços sociais se dissolvam (Birman, 2019) ou se liquefaçam (Bauman, 2004).
Inspirados por tais considerações, podemos delinear a questão central de que se ocupa este manuscrito. Para Freud (1930/2010b), os ideais da cultura estão relacionados à possibilidade da renúncia, à inscrição da lei e, consequentemente, à possibilidade de erguer uma civilização. Entretanto, esses ideais sofreram transformações substanciais desde as primeiras teorizações da psicanálise. Perguntamo-nos, nessa conjuntura, de que maneira esses ideais culturais podem influenciar os vínculos fragilizados, nos quais se tende a cercear as diferenças, e quais seriam as possíveis consequências dessa situação na organização do mundo social.
Para responder a essas questões, buscamos respaldo teórico na psicanálise vincular argentina, que se preocupa com a influência da ordem social nas formas de subjetivação e vinculação, com atenção especial aos escritos seminais de Janine Puget, falecida em novembro de 2020. O propósito deste estudo é oferecer uma reflexão sobre o tema investigado, a partir das contribuições de uma autora que edificou uma obra original na psicanálise latino-americana. Mais especificamente, este estudo se detém na etapa final de sua sólida produção científica, quando a autora se mostrou preocupada com os atravessamentos das violências sociais e dos regimes autoritários na constituição subjetiva e vincular da sociedade contemporânea, deixando um legado de valiosas elaborações no campo da psicanálise.
Trata-se de uma temática contemporânea e cada vez mais urgente, dada a persistente desigualdade que tem se acentuado no cenário da globalização das últimas décadas, especialmente nos países latino-americanos, onde as incertezas e tensões sociais se mostram cada vez mais exacerbadas, juntamente com o incremento da intolerância ao diverso e o repúdio à convivência com o adverso.
Este estudo teórico-reflexivo tem por objetivo analisar as tramas do trabalho vincular, com base nos conceitos de vínculo, ajenidad e incertidumbre,2 à luz da psicanálise vincular.
Ajenidad e incertidumbre no trabalho vincular: contribuições de Janine Puget
É interessante notar, a partir do referencial teórico da psicanálise vincular, que as formas de subjetivação no âmbito transubjetivo, ou seja, relacionadas às representações da esfera do social na sociedade contemporânea, estão intimamente ligadas às formas vinculares intersubjetivas. Para Berenstein e Puget (2008), o vínculo é uma estrutura de três termos: dois sujeitos em presença e um intermediário, um conector, relativamente estável, entre eles. Segundo Berenstein (2011), o que se entende por ligação estável engloba uma série de ações mutáveis e variadas, que se tornam memórias coletivas, isto é, memórias de ações realizadas em conjunto e que, uma vez transformadas, passam a integrar um patrimônio coletivo.
Com base na noção de vínculo, Puget (2000a) dá ênfase ao fato de que há uma constante alteração do sujeito, conforme se deixa afetar pela presença do outro. Em outras palavras, a intersubjetividade é proveniente do efeito de uma presença, da percepção consciente e inconsciente de uma alteração que provém da diferença e da ajenidad, conceitos que a autora distingue (Puget, 2000b).
Essa diferença pode ser compreendida por complementaridade ou semelhança, segundo o modelo da diferença sexual, como apontam Roudinesco e Plon (1998), promovendo as condições que viabilizam o reconhecimento do outro. A diferença, para Puget (2000b), pode ser pensada e elaborada. Por outro lado, a ajenidad refere-se à dimensão da diferença que escapa à linguagem (Puget, 2003). O ajeno, dessa forma, seria aquilo do outro que é impossível de ser assimilado e representado, já que a presença da ajenidad impõe um excedente relacionado com a novidade e também com a diferença radical, da ordem da estranheza, de um resíduo inassimilável.
A ajenidad remete ao conceito de Unheimliche, com o qual Freud (1919/2010a) designa um sentimento de estranhamento, de sinistro, que paradoxalmente parece familiar. Segundo Freud, o que desencadeia esse sentimento difuso não é algo novo; é antes algo familiar, que deveria permanecer oculto, mas que por algum motivo se manifestou, evocando um impulso de repetição anterior. Do mesmo modo, o vínculo escancara e positiva a diferença e a ajenidad próprias do outro e de nós mesmos, muitas vezes evocando o estranho familiar, ou exigindo que encontremos uma maneira de "fazer com" essa diferença radical.
A partir dessas construções teóricas, reconhece-se que os sujeitos se recriam em cada contexto humano. A subjetividade está sempre em reelaboração, em permanente construção, diante das possibilidades de realizar o trabalho psíquico face à diferença e à ajenidad. Mas esse encontro só se transforma em vinculante a depender da possibilidade do trabalho psíquico que se realiza sobre as diferenças que sustentam o vínculo. Portanto, a presença do outro pode ser utilizada com poder vinculante ou, ao contrário, desvinculante, de acordo com as soluções encontradas pelos sujeitos do vínculo para desenvolver respostas criativas diante do desafio, que sejam da ordem de um "fazer com" essa zona enigmática resultante do encontro (Puget, 2003).
A força potencial de um vínculo provém do fato de que o que é dito por um sujeito nunca está em coincidência com o que é entendido pelo outro, produzindo assim uma área ininteligível e misteriosa, própria da multiplicidade radical da vida. Esse hiato possibilita a criação do sentimento de curiosidade, conhecimento e criatividade. Além disso, os gestos e maneiras de falar e conduzir as situações demarcam posições sociais e denunciam o que é impossível modificar: a ajenidad, as marcas inconscientes, entre outras inscrições (Puget, 2002b).
Portanto, o encontro com o outro pode levar a um enriquecimento do vínculo, quando é possível sustentar o intervalo que se abre à criatividade e à curiosidade, ou a uma dispersão do potencial de ligação, quando equivale à perda insuportável e à impossibilidade de convivência com o outro. O trabalho vincular, nesse sentido, tem o custo que implica a hospitalidade, isto é, dar lugar ao estrangeiro do outro, acolher sem garantia ou necessidade de receber igual tratamento em retorno, o que abre para os riscos e a incerteza que essa construção conjunta impõe.
Assim, uma das derivações da inevitável diferença que o vínculo implica é aquilo que Puget (2015) conceituou como princípio de incertidumbre, que deriva da imprevisibilidade, marca constitutiva de qualquer vínculo, seja ele familiar ou social. A incertidumbre diz respeito à falta de segurança, de certeza absoluta sobre algo, opondo-se aos ideais de estabilidade e aos princípios organizadores do funcionamento psíquico. Os sujeitos sustentam ilusoriamente, em seus vínculos, uma ideia de certeza e de verdade, assentada em bases constituídas e já conhecidas por eles. Munidos dessa ilusão e da confiança cega no já conhecido e instituído, os indivíduos enfrentam o novo nas margens que cada vínculo instaura e suporta, sem atentar para a precariedade desses pontos de ilusória certeza. A ilusão de previsibilidade e controle se dá pelo pertencimento ao conjunto e é sustentada por tradições e costumes que mitigam o desamparo original e sedimentam o entorno social.
A ancoragem, porém, é ilusória, já que os vínculos dão origem a ações absolutamente imprevisíveis e há sempre alguma margem para o imponderável. Daí a necessidade de desenvolvimento teórico de um princípio que contemple a regularidade com que se produzem fatos imprevisíveis (Puget, 2015). Nessa perspectiva, tudo é indeterminado, como aponta Gomel (2014), uma vez que vivemos em estado de permanente transformação e que todo e qualquer tipo de mudança é acompanhado de incertidumbre, segundo a lógica da complexidade.
Em que pese a dificuldade em admitir as diferenças e reconhecer e outorgar o direito de existência ao diferente, já que nos apoiamos na ilusão de que é possível evitá-lo e assim nos desviarmos do inesperado e de seus possíveis danos, temos de levar em conta que essa percepção é condição sine qua non para a vida, em especial para nutrir os vínculos, pois nos capacita a respeitar e produzir conjuntamente a partir da integração dessas diferenças (Puget, 2017).
Tal concepção também é partilhada por Berenstein (2011), que agrega a ideia de que os vínculos resultam de um "fazer entre" sujeitos, em um devir que provém da incerteza radical quanto à positividade do agora e da presença do outro, uma vez que os sujeitos se transformam a todo momento e se tornam outros. Em outras palavras, somos seres mutantes e mutáveis. Puget (2015) nos convida a pensar em duas estratégias de defesa às quais os indivíduos recorrem diante dos imprevistos associados ao trabalho vincular: reduzir as áreas de pertencimento social e refugiar-se em estratégias individualistas. Essas defesas, por sua vez, estão intimamente associadas às configurações vinculares características da subjetivação contemporânea.
É importante mencionar que, de acordo com nossa leitura das contribuições de Puget (2015), a sociedade capitalista neoliberal produz intensas transformações nas garantias sociais mínimas requeridas para assegurar a saúde dos vínculos, as quais permitiriam o desenvolvimento da necessária crença na estabilidade que os laços sociais promovem. Em uma sociedade marcada pela lógica de mercado, baseada no prazer fugaz decorrente do ganho econômico e do consumismo conspícuo, bem como na valorização intensa da felicidade como um bem individual, cada sujeito é considerado responsável ou certamente será responsabilizado pelo sucesso ou fracasso de seu desempenho. Isso afeta a tecedura da trama vincular, já que os vínculos também passam a funcionar de acordo com essa lógica de busca da otimização do prazer e reificação da satisfação individual, sendo a diferença cada vez menos considerada e suportada no cenário contemporâneo.
Puget (2015) parte do princípio de que todo vínculo pressupõe um quantum de imprevisibilidade. Nesse diapasão, podemos apontar que, atualmente, a incerteza, como elemento constitutivo do vínculo, tem alcançado outro patamar, revelando a fragilidade dos pertencimentos comunitários, o que exacerba a experiência da imprevisibilidade. Essa é uma questão fundamental, como esboçamos anteriormente. As formas de subjetivação contemporâneas, mergulhadas nessas incertezas, não favorecem o trabalho com a diferença, uma vez que os ideais sociais aos quais os sujeitos respondem no contemporâneo são muito mais relacionados a um imperativo de realização de felicidade ostentatória do que à renúncia pulsional, conforme indicava Freud.
Assim, o contexto contemporâneo acentua as ressonâncias da incertidumbre, resultando em importantes consequências para a manutenção dos vínculos na atualidade. Além disso, vale sublinhar que alguns contextos favorecem a exacerbação da incerteza e da insegurança generalizada, como os traumatismos e violências sociais, bem como os cenários marcados por sistemas políticos totalitários, liderados por mandatários com arroubos autoritários. As incertezas também crescem exponencialmente em situações específicas de guerras, pandemias, genocídios, desastres naturais e migrações forçadas, assim como nas graves crises econômicas geradas pela concentração de renda e instabilidade do mercado neoliberal. Nessas circunstâncias, as garantias sociais de pertencimento e de continuidade da existência ficam ameaçadas e debilitadas diante do colapso iminente, o que dificulta o trabalho vincular.
Fragilização da experiência vincular, dificuldade em lidar com as diferenças e recrudescimento do totalitarismo
Com base nas teorizações de Puget (2019), podemos compreender que o encontro do sujeito com o outro envolve uma diferença enigmática, que pode ser inclusive irrepresentável, como a ajenidad, o que traz como consequência a incerteza. Para a autora, uma das possíveis saídas criativas diante dos impasses atuais é buscar "fazer junto", de modo a construir algo novo que possa fortalecer o vínculo, a despeito da imprevisibilidade inerente a essa operação.
Outra via possível, porém sintomática, para lidar com a ameaça da imprevisibilidade dos vínculos é o cerceamento das diferenças, gerando figuras de exclusão no campo transubjetivo. Conforme aponta Puget (2019), quando o conflito é visto como inimigo a combater, e não como condição de possibilidade de "criarmos juntos" novas formas vinculares, os vínculos se fragilizam, em prejuízo do pertencimento social. Isso estaria associado a questões típicas da cultura do narcisismo (Lasch, 1983) e das figurações contemporâneas do capitalismo, que impõem padrões de consumo embalados na ideologia de que eles estariam relacionados à conquista de uma vida ideal e estável. Assim, Puget (2019) propõe alguns elementos analíticos para pensarmos o cerceamento das diferenças e a tentativa de erradicação da imprevisibilidade, relacionando-os aos regimes totalitários e obscurantistas que se consolidaram no século XX em diferentes latitudes e longitudes, cujos ecos ressoam em movimentos políticos do século XXI.
Em vários países, assistimos nos últimos anos a ataques sistemáticos à democracia perpetrados por governos de extrema direita que, curiosamente, conquistaram o poder pela via democrática. Governos inspirados pela ideologia neofascista preconizam a exclusão de determinados grupos minoritários, por meio de discursos inflamados que incitam abertamente o ódio e a violação de direitos individuais. Promove-se um ambiente de intimidação, violência permanente e confronto generalizado como estratégia para acentuar a divisão e o fracionamento social, instigando-se atos repulsivos de estigmatização, exclusão e segregação sistemática de determinados corpos e grupos sociais identificados como dissidentes da normatividade em relação a etnia, religião, geração, orientação sexual e de gênero (Alexandre & Santos, 2019).
Uma forma de cerceamento das diferenças e de tentativa de erradicação ilusória da incerteza é o poder que se manifesta como coerção/violência, ou seja, associado à privação de liberdade das trocas e à redução das possibilidades de "fazer com" o outro. Esse fenômeno institucionalizado até há pouco tempo era encontrado apenas nos regimes ditatoriais, tanto de direita como de esquerda. No entanto, nos últimos anos, observa-se a emergência de sistemas totalitários em governos legitimamente eleitos pelo voto popular. Os detentores do poder usam o exercício do monopólio legítimo da violência para implantar um programa de extermínio de grupos minoritários, fundamentando genocídios por meio de políticas de morte, buscando impingir valores fundamentalistas e práticas antidemocráticas ao conjunto da sociedade (Santos, Oliveira & Oliveira-Cardoso, 2020). Impor esse ideário a ferro e fogo supostamente permitiria transformar a incertidumbre em certeza e a fragilidade em solidez. Essa situação ilustra como a rigidez dos dogmas e das crenças supostamente garantidoras de certezas pode nos privar das liberdades dos intercâmbios, anulando as potencialidades criativas do vínculo e resultando na impossibilidade de "fazer com" (Puget, 2011).
De acordo com Puget (2011), uma das consequências, no nível social, do exercício abusivo do poder como instrumento de coerção/violência e controle sobre o outro é a criação de figuras que corporificam essa situação de exclusão, ou seja, figuras emblemáticas que são sistematicamente excluídas do corpo social. Isso se dá por meio de um trabalho persistente de esquadrinhamento dos indivíduos que manifestam pensamentos, desejos, práticas e comportamentos divergentes em relação às normatizações socioculturais. São aqueles corpos que subvertem e contrariam os valores que norteiam a política discriminatória vigente, os sem-pertencimento, os sem-lugar, os sem-domicílio ou habitat fixo, os sem-emprego, os sem-saúde, os sem-segurança alimentar, os sem-religião, os des-existentes, entre outros vastos contingentes de indivíduos lançados à liminaridade e à abjeção.
Nesses casos, o ajeno se coloca rapidamente nos extremos, e criam-se mecanismos para impedir que ele reingresse na dinâmica de funcionamento social. Desse modo, as violências sociais e políticas perpetradas contra os mais vulnerabilizados são sustentadas por forças que procuram debilitar, devastar, arrasar, desmoralizar e expulsar do corpo social uma parte dele mesmo (Puget, 2017). Essa operação, em sua dupla face higienista e eugenista, anima a produção incessante de corpos abjetos, que são catalogados e estigmatizados como deformidades morais, aberrações contrárias à lei da natureza, anomalias ameaçadoras à integridade do tecido social.
Podemos associar esse ajeno expulso do campo social com aquele que denuncia a diferença irrepresentável de nós mesmos - em outras palavras, que escancara a ajenidad que indica o Unheimliche de cada um. O que é considerado estranho pela ordem social-ideológica é o que desestabiliza a segurança ilusória da vida diária, quebrando o status quo, ameaçando pôr a nu o establishment, já que "o estranho questiona o que é inquestionável para os membros da sociedade" (Weissmann, 2019, p. 113). Assim, tais figuras cerceadas produzem uma questão sobre qual trabalho do vínculo pode ou não ocorrer, dependendo das possibilidades de mediatização de determinado grupo ou sociedade e do grau de permeabilidade ou rechaço à experiência radicalmente pluripotente da diversidade.
Ainda por esse vértice, Puget (2002a) relaciona as segregações, as anulações de intercâmbio e as dificuldades de lidar com a alteridade e a incertidumbre com a questão da crueldade, enquanto ato que se produz a partir da absoluta falta de mediatização diante da diferença. O efeito mais evidente dessa combinação de ataques violentos e desumanizantes é a retirada da qualidade humana de determinados grupos sociais. O humano requer uma prática reiteradamente compartilhada com outros para constituir-se, no cerne de uma relação humanizante. Assim, a prática que possibilita a aquisição de humanidade é a construção da linguagem e seus códigos, com sua capacidade de produzir memória, pensamento, ligação. Essas operações permitem organizar certas atividades que dão sentido ao conjunto das ações humanas, reafirmando de forma contínua o pertencimento social.
A perda da condição humana, nos grupos cerceados pela falta de mediatização, deve-se também a efeitos de linguagem de outro humano ou do coletivo, em narrativas reiteradas que (re)produzem determinada "verdade" que se deseja impor no lugar da experiência, na vã tentativa de dar conta do imprevisível, do aleatório e das incertezas inerentes à condição vincular. A ênfase das narrativas desumanizadoras recai na produção de unidade em detrimento da diferença, pois a ordem ideológica se nega a admitir a radical multiplicidade e heterogeneidade com que a vida se expressa. Nesse sentido, "ser humano" seria uma qualidade que um indivíduo poderia perder ou adquirir, estando sempre ameaçada, a depender da possibilidade de pertencimento social e das narrativas de verdade em disputa, em especial aquelas que perpetuam a exclusão (Puget, 2002a).
Nesse ínterim, o ato cruel se dá no encontro com o outro desprovido de recursos para pensar, assimilar e se proteger da violência sofrida, sendo atacado em seus aspectos essenciais, como seu corpo, seu psiquismo, seus vínculos ou seus pertencimentos e referências identitárias. Assim, sob a égide de um regime de desumanização programática, os grupos minoritários são perseguidos, estigmatizados e atacados. O convite à barbárie instala-se com um sujeito que é objetalizado, de quem é retirada a condição de humanidade.
Puget (2002b) propõe pensar que haveria duas modalidades de conjunto social: uma baseada no "não trabalho" sobre a diferença entre o sujeito e o outro, não permitindo que se estabeleça um vínculo entre eles, favorecendo assim a dissolução cada vez maior dos intercâmbios entre as diferenças; e outra alicerçada no trabalho sobre o diferente, apoiando-se na força vinculante das regras criadas conjuntamente. Para formar o comum, a área compartilhada, é preciso que se sustente o espaço frágil da criação e da incertidumbre, ligadas ao grão de imprevisibilidade de cada encontro e ao próprio pertencimento orgânico à comunidade (Puget, 2011).
Enquanto no primeiro caso se anula a diferença, no segundo há uma produção vincular específica: algo que se faz em conjunto com outro/outros, alimentando um desejo de fazer em relação a um problema, que aparece como força convocante, o que dá solidez e consistência ao vínculo, favorecendo um modelo de solidariedade. As ações que geram solidariedade pertencem ao espaço público e têm uma dimensão política, capaz de buscar soluções criativas para os sofrimentos do nosso tempo. Portanto, as ações solidárias não são compatíveis com Estados totalitários (Puget, 2002b). Ao contrário, tais regimes políticos se caracterizam por sua capacidade de disciplinar, silenciar, segregar e apagar as diferenças, pelo uso de mecanismos cruéis e violentos, a fim de manter uma suposta solidez por meio da homogeneização do tecido social.
Assim, a autora advoga a construção de uma sociedade baseada na solidariedade, sob a égide do Estado Democrático de Direito, na qual as pessoas se sintam equipadas e capazes de lidar com o incerto e o diferente com menos persecutoriedade, mediante a constituição de enlaces criativos.
Considerações finais
Este estudo analisou as tramas do trabalho vincular, à luz dos conceitos da psicanálise vincular. A partir desse arcabouço teórico, destacamos algumas das contribuições originais de J. Puget para o tema e refletimos sobre suas implicações e ressonâncias no âmbito vincular, político e social.
Podemos depreender das construções teóricas de Puget que a condição ontológica do vínculo é a diferença e a ajenidad, ou seja, uma área enigmática que aparece na presença do outro e no reconhecimento do diferente, em resposta aos desafios da convivência com o adverso e com aquilo que escapa ao controle onipotente. O vínculo, por conseguinte, é uma construção que se materializa a partir da curiosidade face ao misterioso e que se nutre da possibilidade de suportar a incerteza, inerente aos laços e enlaces libidinais que nos vinculam ao mundo social. Uma relação viva e vivificante com o mundo humano exige tolerância aos incontornáveis conflitos que esse encontro engendra.
Na sociedade contemporânea, entretanto, há uma tolerância cada vez menor às diferenças e às incertezas resultantes tanto dos vínculos quanto do mundo transubjetivo, bem como se buscam ganhos individuais com os vínculos, e não o benefício coletivo da partilha. Além disso, os ideais sociais contemporâneos estão cada vez mais relacionados a um imperativo de gozo e de felicidade individual constantes, associado ao consumismo febril. Podemos apontar ainda que a ordem cultural na qual estamos inseridos acentua os medos e incertezas sociais, justamente porque tal ideal de consumo não é tão estável e inesgotável como sugerido; pelo contrário, lança os indivíduos em uma busca frenética e incessante pelo ter, na valorização do efêmero prazer individual que se usufrui da gratificação imediata proporcionada por experiências muitas vezes esvaziadas de sentido.
Essas questões são decisivas porque, apesar de J. Puget sustentar que as incertezas são condição irrevogável da vida, a autora também argumenta que o excesso de insegurança e ambiguidade gera intensa perplexidade. Assim, a exacerbação das incertezas provocadas pelo mercado neoliberal, por sistemas políticos autoritários, situações de guerra e calamidade pública, desastres naturais, crises econômicas, sanitárias e de valores éticos pode fragilizar o sentimento de pertencimento social e esgarçar o tecido vincular. Diante desse cenário adverso, é importante demarcar que os sujeitos toleram o convívio prolongado ou duradouro com o incerto até determinado limiar. Para que o aparelho psíquico permaneça íntegro, hígido, e não entre em colapso, há que se ter o respaldo de garantias sociais mínimas, que permitam a reorganização psíquica em um horizonte esperançoso.
Por conseguinte, nossa argumentação defende que a intensificação das incertezas sociais associadas à fragilização dos vínculos, em um espaço transubjetivo no qual os ideais sociais estão relacionados ao individualismo, ao narcisismo e ao consumismo, pode levar à falta de mediatização, que debilita a capacidade de convivência e construção a partir das diferenças, do encontro com o ajeno. No plano da ordem social, verificamos que esse cenário é fértil para o surgimento de sistemas políticos que se utilizam de mecanismos intimidadores típicos de regimes totalitários, como o monopólio do uso da violência e da coerção, a objetificação dos sujeitos com o esvaziamento crescente da subjetividade, a privação da condição de humanidade e a violação sistemática dos direitos de grupos vulnerabilizados, que assim ficam excluídos do campo social e destituídos de seu pertencimento e de sua cidadania.
Embora tenhamos contemplado o objetivo proposto, o que possibilitou tecer considerações originais sobre como os ideais da cultura contemporânea podem estar relacionados ao recrudescimento de construções sociais e políticas totalitárias e autoritárias, é evidente que este estudo tem algumas limitações, o que torna necessário considerar outras dimensões, que possam desvelar novas facetas sobre o tema investigado.
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Recebido em 8/12/2020
Aceito em 16/12/2020
1 Este estudo deriva dos resultados de uma pesquisa de iniciação científica financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), processo n.º 2018/13081-2.
2 Optou-se por manter a grafia original dos conceitos de ajenidad e incertidumbre, uma vez que, entre os poucos textos da autora vertidos para o português, não há consenso na tradução desses termos.