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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.54 no.4 São Paulo out./dez. 2020

 

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A ética psicanalítica, o eu e o mundo1

 

Psychoanalytical ethics, the I and the world

 

La ética psicoanalítica, el yo y el mundo

 

L'éthique psychanalytique, le soi et le monde

 

 

Bernard Miodownik

Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro (SBPRJ). Diretor do Conselho Científico da Federação Brasileira de Psicanálise (Febrapsi)

Correspondência

 

 


RESUMO

A proposta de reflexão sobre uma ética psicanalítica para o século XXI surge em um mundo convulsionado por excessiva agressividade entre humanos a partir das suas diferenças, assim como contra o meio ambiente, situações que ficaram agravadas na pandemia. Como é possível estabelecer similaridades com cenários distópicos de obras de ficção científica, comparam-se enredos e personagens ali encontrados com o momento atual. Obras sobre distopias costumam representar as angústias humanas mais primitivas deslocadas para o futuro. Destaca-se outro tipo de enredo, em que os aspectos colaborativos e integradores são utilizados para superar adversidades catastróficas grupais. Para argumentar sobre as diferenças de cenário, mostra-se que há uma característica genotípica humana apontada por Freud como da horda primitiva que se contrapõe ao fenotípico que foi se incorporando através do processo civilizatório em contínuo aperfeiçoamento. Ressalta-se o aspecto dinâmico apontado na relação genótipo-fenótipo conforme se apresenta no enquadre psicanalítico e de que forma se constitui como a nossa ética para lidar com as diferenças.

Palavras-chave: ética, processo civilizatório, distopia, utopia, enquadre psicanalítico


ABSTRACT

The proposal to reflect on a psychoanalytical ethics for the 21st century arises in a world convulsed by excessive aggressiveness among humans due to their differences, as well as against the environment, situations that were aggravated during the pandemic. As it is possible to establish similarities with dystopian scenarios found in science fiction works, comparisons are made between plots and characters found there with the current moment. Works on dystopia usually represent the most primitive human anxieties happening in the future. Another type of plot stands out, in which the collaborative and integrating aspects are used to overcome catastrophic group adversities. A comparison is made between a human genotypic characteristic pointed out by Freud as that of the primitive horde in opposition to the phenotypic which was incorporated through the civilization process and the need for its continuous improvement. An emphasis is made on the role of the psychoanalytical framework to work with these oscillating human characteristics and how they can constitute our ethics to deal with differences.

Keywords: ethics, civilization process, dystopia, utopia, psychoanalytical framework


RESUMEN

La propuesta acerca de reflexionar sobre una ética psicoanalítica para el siglo XXI surge en un mundo convulsionado por la excesiva agresividad de los humanos ante sus diferencias, así como ante el medio ambiente, situaciones que se agravaron en la pandemia. Como es posible establecer similitudes con los escenarios distópicos encontrados en las obras de ciencia ficción, se hacen comparaciones entre las tramas y los personajes encontrados allí con el momento actual. Los trabajos sobre distopías suelen representar las ansiedades humanas más primitivas trasladadas a un futuro. Destaca otro tipo de trama en la que se utilizan los aspectos colaborativos e integradores para superar las adversidades catastróficas del grupo. Se hace una comparación entre una característica genotípica humana señalada por Freud como la de la horda primitiva en oposición a la fenotípica que se incorporó a través del proceso civilizatorio y la necesidad de su mejora continua. Se hace hincapié en el papel del marco psicoanalítico para trabajar con estas características humanas oscilantes y en cómo pueden constituir nuestra ética para tratar las diferencias.

Palabras clave: ética, proceso de civilización, distopía, utopía, encuadre psicoanalítico


RÉSUMÉ

La proposition de réfléchir sur une éthique psychanalytique pour le XXIe siècle apparaît dans un monde convulsionné par une agressivité excessive entre les humains à partir de leurs différences, aussi bien que contre l'environnement, des situations qui se sont aggravées pendant la pandémie. Comme il est possible d'établir des similitudes avec les sénaires dystopiques que l'on trouve dans les œuvres de science-fiction : on fait des comparaisons entre les intrigues et les personnages que l'on y retrouve et le moment présent. Les œuvres à propos des dystopies représentent généralement les angoisses humaines les plus primitives déplacées vers un avenir. On distingue un autre type d'intrigue où les aspects collaboratifs et d'intégration sont utilisés pour surmonter les adversités catastrophiques des groupes. On fait une comparaison entre une caractéristique génotypique humaine signalée par Freud comme celle de la horde primitive en opposition au phénotypique qui s'est incorporée par le moyen du processus civilisateur et la nécessité de son amélioration continue. On souligne le rôle du cadre psychanalytique pour travailler avec ces caractéristiques humaines oscillantes et comment elles peuvent devenir notre éthique pour traiter les différences.

Mots-clés: éthique, processus civilisateur, dystopie, utopie, cadre psychanalytique


 

 

O texto-estímulo que Silvana Rea apresentou como preâmbulo ao webinar O eu e o mundo: por uma ética para o século XXI (SBPSP, 2020) mencionou utopias perdidas, projetos de utopias impossibilitados de serem imaginados. A autora trouxe também, entre outros elementos importantes, uma questão central para esse encontro preparatório ao XXVIII Congresso Brasileiro de Psicanálise, cujo tema é Laços: o Eu e o mundo. Ela pergunta: a partir de que ponto podemos pensar nas possibilidades de construção de uma convivência ética entre os diferentes? Não como resposta, mas como matéria para reflexão, pergunto eu: será esse um projeto de utopia possível de ser imaginado e, quem sabe, realizado? Muitos de nós gostaríamos de vislumbrar aí o princípio de um "novo normal", do qual tanto se fala atualmente como uma perspectiva para o pós-pandemia.

Anos recentes têm testemunhado movimentos destrutivos contra o meio ambiente e contra a humanidade, com uma carga abissal de ódio e indiferença, característicos de episódios cíclicos que surgem na história (potencializados em nosso país pela desigualdade e pela violência endêmica). O que já era excessivo foi exacerbado pela desestruturação que a pandemia causou. Será que chegamos ao limiar de uma situação catastrófica irreversível, um cenário de fim de mundo? Precisaremos de um novo eu para dar conta do que se nos apresentará daqui em diante? Podemos esperar por uma grande transformação, que, dizem, costuma surgir após grandes e amplas calamidades?

Diante de um mundo com terríveis similaridades a uma distopia, acho interessante recorrer às ficções científicas - da literatura, do cinema e das artes gráficas -, nas quais uma matéria-prima bastante comum são os cenários apocalípticos. Em algumas, há uma ameaça real que pode acabar com o mundo. Em outras, o fim do mundo já aconteceu e há poucos sobreviventes. O mundo pode ter acabado por uma hecatombe nuclear, uma alteração drástica na natureza (congelamento, aquecimento e seca, invasão das águas, dilúvios bíblicos), uma pandemia alastrante e mortal, uma invasão de criaturas alienígenas ou legiões de mortos-vivos. Entre os que lutam contra as ameaças ou os que a elas sobrevivem, encontramos personagens tradicionais, quase estereótipos, não os soubéssemos representantes de aspectos inconscientes individuais e grupais que surgem em enredos como:

• O indivíduo que não deu certo em nada, mas encontra a redenção ao "salvar o mundo" ou liderar um grupo de sobreviventes, exemplo de realização de fantasias messiânicas por meio de um homem comum. A jornada do herói e os mitos que o rodeiam foram tema desenvolvido por Otto Rank em O mito do nascimento do herói (1922/1981). Para confirmar a díade "homem comum/salvador", os justamente reconhecidos como heróis durante a pandemia (profissionais da saúde e trabalhadores essenciais) costumam ser vistos em tempos não convulsionados com muita ambivalência, quando não desmerecidos e até tornados invisíveis.

• Os falsos profetas que arregimentam seguidores com promessas de um mundo narcísico indestrutível, às vezes através dos atos de um bando genocida ou através do suicídio coletivo.

• A reedição de disputas e lutas pelo poder com tendências destrutivas semelhantes ao que já existia no mundo anterior à catástrofe. O Senhor das moscas (1954/2014), de William Golding, refaz esse percurso mediante a história de um grupo de meninos perdidos em uma ilha durante uma guerra nuclear (o livro foi publicado na época da Guerra Fria, em que a destruição pela bomba atômica era uma ameaça aterrorizante).

• Os admiráveis mundos novos, como o de Huxley (1932/2014), que tornam os sujeitos indiferenciados e sem subjetividade própria. Estão nessa linha O conto da aia (Atwood & Nault, 2019), a seleção e manipulação genética em Gattaca (Nicoll, 1997), ou o paradoxo de Matrix (Wachowski & Wachowski, 1999), onde o domínio das máquinas inocula nos indivíduos a crença de que existem como sujeitos com autonomia que controlam as máquinas. Em todas as histórias, os "heróis" são os personagens que se recusam a ter a subjetividade aniquilada e a se conformar com o lugar que lhes é imposto tiranicamente. Lutam pela preservação da capacidade de sonhar e de desejar. Nos cenários distópicos, em geral pessimistas, o que predomina é somente um mal-estar sem as gratificações simbólicas substitutivas que o processo civilizatório conquistou. Em tempos conturbados como os atuais, não sem razão 1984 (1949/1984), de Orwell, e A peste (1947/2020), de Camus, estiveram entre os livros mais lidos.

Futuros distópicos falam menos das angústias sobre o futuro. São alegorias que encarnam as angústias presentes, que por sua vez costumam reeditar as que foram vivenciadas no passado. Falam de desamparos primitivos, de trau- mas precoces, de angústias de aniquilamento, de angústias fusionais, de feridas narcísicas, momentos que fazem parte, em maior ou menor grau, da história de cada sujeito e dos grupos humanos. São vivências dolorosas que podem levar os indivíduos a se aglutinarem em uma massa identificada com um líder que oferece pretensas compensações narcísicas para aliviar o sofrimento psíquico. Como Freud mostrou em Psicologia das massas e análise do eu (1921/2016), o líder torna-se assim um objeto que toma o lugar do eu, o qual, indiferenciado, assume atitudes que fogem a uma ética civilizatória, o que pode estar na origem, por exemplo, da banalidade do mal (Arendt, 1963/1999).

Quero chamar a atenção para outro enredo mais otimista. O grupo de sobreviventes que, apesar de conviver com emoções conflitantes entre tendências emocionais individuais e coletivas, consegue estabelecer uma situação grupal de cooperação mútua entre os integrantes. O que tenta ser mais "esperto" que os outros e quer se safar sozinho geralmente é o primeiro a sumir do mapa. Assim como se consome energia para fugir de zumbis ou caçá-los depois do apocalipse, também é preciso muito esforço para manter os padrões de convivência, colaboração, solidariedade e preservação coletiva para evitar a catástrofe do fim do mundo. Todos esses quesitos fazem parte de um ambiente suficientemente bom (Winnicott, 1983) em que a subjetividade individual seja respeitada - o convívio entre os diferentes mencionado por Silvana - e o desenvolvimento pessoal evolua de uma situação de dependência absoluta para a dependência madura (Fairbairn, 2001), em que o precisar do outro se sobreponha às demandas narcísicas. Podemos entender esse modelo como a nossa utopia e um dos itens de uma ética para o século XXI, talvez uma ética para todas as épocas. Ocorre que os períodos destrutivos que assolam a humanidade, os imensos fossos cavados pelo narcisismo das pequenas diferenças, colocam esse projeto em impasses persistentes.

Em Psicologia das massas e análise do eu Freud é taxativo: o ser humano é "antes um animal de horda, um indivíduo de uma horda dirigida por um chefe" (1921/2016, p. 128) - ou seja, um totalitarismo regressivo e dessubjetivante primordial.

Para usar outra linguagem, a horda está no genótipo humano, e o processo civilizatório é o fenótipo que foi se incorporando ao patrimônio genético e subjetivo através de imemoriais gerações após o assassinato do pai da horda primitiva. Freud gostava de especular sobre o efeito no psiquismo das situações-limite enfrentadas pela espécie humana, tal como elaborou no manuscrito perdido sobre as neuroses de transferência (Freud, 1987). Nesse trabalho achado postumamente, ele aponta a Idade do Gelo como o fator que teria levado à repressão da sexualidade para evitar a procriação em tempos de severas restrições, o que resultou em novas características intrapsíquicas e intersubjetivas, novos fenótipos mentais.

A relação genótipo-fenótipo evidentemente é instável e requer um aperfeiçoamento contínuo do processo civilizatório e dos ideais éticos de cada época e de cada cultura. Assim como vimos o movimento de grande solidariedade humana e científica durante a pandemia, frequentemente vemos ressurgir o animal da horda e seu mundo de gratificações imediatistas e pouco empáticas às necessidades dos outros. E, quando tudo parece perdido e a desesperança impera, as aquisições fenotípicas entram em ação e o edifício civilizatório se reconstrói. Um "novo normal", com novas subjetividades e novos ou renovados laços. Pode-se dar a essa oscilação o nome de Eros e Tânatos.

Faço uma analogia ao enquadre do trabalho psicanalítico (aqui, uso enquadre de forma ampla, o enquadre clássico, o enquadre adaptado às circunstâncias ou a determinada situação clínica, o enquadre interno). No enquadre psicanalítico temos o fenótipo "civilizatório" que abre espaço e dá continente para o primitivo de cada um. Por vezes, o genótipo-pulsional transborda os limites do enquadre através de um ato, ou de um surto psicótico que necessita de ajuda externa, ou de uma contratransferência excessivamente perturbadora. Quando isso ocorre, é importante restabelecer assim que possível o enquadre, preferencialmente acrescido de uma experiência transformadora que tenha surgido a partir da ruptura, ou será o fim do mundo para aquela relação analítica. Registro aqui o desafio que permanece para a análise de psicóticos, sujeitos que vivenciaram de forma dramática o mundo interno e os seus limites com o mundo externo desmoronarem. Esse aspecto faz com que o enquadre seja constantemente afetado pela psicose, não como um ataque, mas como uma impossibilidade de diferenciação entre os limites interno-externo.

A perspectiva do enquadre faz parte da nossa ética. O animal da horda de cada analisando encontrará um outro que estará trabalhando continuamente para não sugestionar, não induzir, não controlar, não ser o chefe, o líder, o mestre, não formar alianças narcísicas ou perversas, e que procurará, ao se abster desses papéis, respeitar as peculiaridades de cada sujeito. O difícil e muitas vezes impossível trabalho analítico.

Talvez essa ética seja capaz de oferecer uma pequena ajuda ao mundo no século XXI: reafirmar que é possível sobreviver fora do regime da horda e que as diferenças (de nacionalidade, de religião, de cor da pele, de finanças, de cultura, de subjetividade) podem não se tornar excessos que sirvam às tendências narcísicas de usar as próprias diferenças para o domínio de outras. Uma tarefa quase impossível, mas, como em toda utopia, o primeiro passo é desejar e sonhar.

 

Referências

Arendt, H. (1999). Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal (J. R. Siqueira, Trad.). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1963)        [ Links ]

Atwood, M. & Nault, R. (2019). O conto da aia: graphic novel (A. Deiró, Trad.). Rocco.         [ Links ]

Camus, A. (2020). A peste (V. Rumjanek, Trad.). Record. (Trabalho original publicado em 1947)        [ Links ]

Fairbairn, W. R. D. (2001). Estudio psicoanalítico de la personalidad (H. Friedenthal, Trad.). Lumen.         [ Links ]

Freud, S. (1987). Neuroses de transferência: uma síntese (A. Eksterman, Trad.). Imago.         [ Links ]

Freud, S. (2016). Psicologia das massas e análise do eu (R. Zwick, Trad.). L&PM. (Trabalho original publicado em 1921)        [ Links ]

Golding, W. (2014). Senhor das moscas (S. Flaksman, Trad.). Objetiva. (Trabalho original publicado em 1954)        [ Links ]

Huxley, A. (2014). Admirável mundo novo (L. Valandro, Trad.). Globo. (Trabalho original publicado em 1932)        [ Links ]

Nicoll, A. (Diretor). (1997). Gattaca: a experiência genética [Filme]. Columbia Pictures.         [ Links ]

Orwell, G. (1984). 1984 (W. Velloso, Trad.). Companhia Editora Nacional. (Trabalho original publicado em 1949)        [ Links ]

Rank, O. (1981). El mito del nacimiento del heroe (E. A. Loedel, Trad.). Paidós. (Trabalho original publicado em 1922)        [ Links ]

SBPSP. (2020, 6 de novembro). O eu e o mundo: por uma ética para o século XXI [Vídeo]. YouTube. https://bit.ly/3qsZdbp        [ Links ]

Wachowski, L. & Wachowski, L. (Diretoras). (1999). Matrix [Filme]. Village Roadshow Silver Pictures.         [ Links ]

Winnicott, D. W. (1983). O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional (I. C. S. Ortiz, Trad.). Artes Médicas.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Bernard Miodownik
Rua Figueiredo de Magalhães, 219/408
22031-011 Rio de Janeiro, RJ
Tel.: 21 2549-8734
betchkov@uol.com.br

Recebido em 11/1/2021
Aceito em 25/1/2021

 

 

1 Comunicação apresentada no evento preparatório para o XXVIII Congresso Brasileiro de Psicanálise, organizado por Silvana Rea, diretora científica da SBPSP, em novembro de 2020, com o tema "Por uma ética para o século XXI".

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