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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.55 no.4 São Paulo out./dez. 2021

 

RESENHAS

 

Psicanálise: de Bion ao prazer autêntico

 

 

João Carlos Braga

Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) e do Grupo Psicanalítico de Curitiba (GPC). Curitiba / bragajc43@gmail.com

 

 

Autor: Cecil José Rezze
Editora: Blucher, 2021, 375 p.
Resenhado por: João Carlos Braga

 

 

O desenvolvimento de um psicanalista ocorre, principalmente, pela convergência de duas dimensões de sua experiência pessoal: como indivíduo e como participante de um grupo especializado. Percebo essas dimensões se entrelaçando, inextrincavelmente, ao resenhar este livro que reúne algumas das contribuições psicanalíticas de Cecil José Rezze. São o cerne do que vou destacar em Psicanálise: de Bion ao prazer autêntico. Vejo um analista sendo a pessoa-que-é, se desenvolvendo a partir da apreensão de uma visão nova da psicanálise e oferecendo de volta, ao seu meio, o caminho das pedras que custosamente alcançou.

O livro nos oferece a possibilidade de nos aproximarmos de múltiplos conceitos, diferentes perspectivas sobre a vida mental, mostrando a riqueza e a complexidade do crescimento do pensamento psicanalítico, ao mesmo tempo que nos oferece vislumbres da personalidade do autor e de seu amadurecimento enquanto psicanalista. Através do contato com os sinais de modificações no pensamento psicanalítico de Cecil, podemos aprender a identificar momentos do desenvolvimento psicanalítico em cada um de nós. Também através dos textos aqui presentes, podemos perceber a fertilização do pensamento psicanalítico contemporâneo pelas ideias de Bion, principalmente ao acentuar a singularidade de cada analista e sua responsabilidade no pensar, personalizadamente, as experiências que vive. Como fica registrado pelo subtítulo do livro, De Bion ao prazer autêntico, destaca-se o movimento de transformações gerado pela influência de um autor germinal, favorecendo desenvolvimentos pessoais e científicos em movimento oscilatório: do autor para o grupo especializado em que está inserido e do grupo de volta para o autor.

Com as observações acima, introduzo o reconhecimento do impacto que as contribuições de Cecil tiveram nos membros do grupo psicanalítico em que ele se desenvolveu e que, por outro lado, ajudou a desenvolver. Certamente os analistas brasileiros, principalmente os de São Paulo, não teriam tido as mesmas linhas de desenvolvimento se Cecil não tivesse com eles compartilhado suas elaborações pessoais sobre a prática psicanalítica. A forma de pensar e de praticar a psicanálise revelada por Cecil teve a função de um farol norteador em direção aos novos horizontes que se abriam com as propostas de expansão dos limites do campo psicanalítico trazidas pelas ideias de Wilfred R. Bion.

Mantendo esta perspectiva: os trabalhos de Cecil aqui reunidos testemunham um momento histórico de mudança no pensamento psicanalítico entre nós. Fiz minha formação analítica nesse momento de transição, a década de 1980, em que ganharam força as ideias de Bion e começavam a ocupar um espaço cada vez maior em um grupo fortemente influenciado pelo pensamento de Melanie Klein. Mesmo O aprender com a experiência era ainda sentido como estranho frente às até então dominantes clássicas ideias freudianas e kleinianas. Não convivíamos com a diversidade de pensamentos que hoje conhecemos e nem com a tolerância a ela. As ideias de Bion eram vistas como de difícil assimilação, mesmo como herméticas. A aproximação com elas era tantalizante, e o recurso era contarmos com a ajuda de elaborações de um pequeno grupo de analistas experientes que as tornavam mais acessíveis para os iniciantes. Desse ambiente psicanalítico guardo vívidas lembranças de um ávido interesse pelos trabalhos de Cecil, vários deles incluídos neste livro.

 

O pensamento psicanalítico de Cecil

A leitura dos artigos que compõem Psicanálise: de Bion ao prazer autêntico pode ser fecundamente aproveitada pela atenção ao pensamento pessoal do autor. Haveria riqueza maior em um livro sobre psicanálise do que aquela encerrada na experiência de quem a viveu?

Nessa perspectiva, há várias características que afloram facilmente ao nos expormos aos textos aqui contidos. Destacaria, inicialmente, a facilidade de comunicação e a elegância das descrições de experiências clínicas. Cecil não descreve a clínica para ilustrar, para comprovar ou mesmo para defender teorias. Praticamente todos os capítulos partem da clínica e remetem o leitor a pensar em sua própria experiência. As teorias que as apoiam não são desprezadas, mas perdem o lugar de conhecimento a ser replicado. São identificadas e recebem o reconhecimento de sua importância, mas não mais reinam sobre o que se desvela.

Já me perguntei sobre o que nos desperta interesse pelas ideias expostas por Cecil. Pensei que ele consegue pôr em prática o que estamos tentando fazer por nós mesmos e encontrando muita dificuldade. Quem sabe, a estória do ovo de Colombo aproxime esse problema. Sua maneira de expor sua experiência - e de expor-se pessoalmente de forma franca - parece ser a pedra de toque do êxito que ele tem na transmissão de suas ideias. Uma formulação de Rudi Vermote, que me fez muito sentido, me acode aqui para ilustrar esse pensamento: "Segundo Bion, o analista deveria, durante as sessões, tentar estar nesse ponto em que o indiferenciado toma forma finita, em outras palavras: um ponto no infinito em que é possível ver os pensamentos à medida que surgem" (2013, p. 39).

Creio que isso dá forma plena ao que estou querendo dizer sobre o pensamento psicanalítico de Cecil. O que é indiferenciado para muitos leitores adquire sentido. Seus escritos favorecem, assim como os escritos de Bion, a ocorrência de encontros emocionais - e não apenas o acúmulo de informações. Descrevendo de outra forma: Cecil consegue nos mostrar que ele alcançou o ponto em que é possível o contato direto com fragmentos da realidade psíquica e, assim, fazer-nos acreditar que cada um de nós pode fazer o mesmo. O que não deixa de ser uma verdade, mas que o é apenas parcial: alcançar o que Cecil alcança é o ponto final de um processo (longo) de trabalho pessoal que apenas está se iniciando com a tomada de contato com o por ele apresentado.

No sentido em que agora estou desenvolvendo minhas ideias sobre o livro, o subtítulo (De Bion ao prazer autêntico) adquire um significado ainda mais marcante. Cada trabalho aqui é como uma parada temporária para viver uma descoberta, com suas aventuras, desventuras, perigos e lutas, para, finalmente, alcançar o retorno a seu próprio reino, a criação pessoal, na redescoberta dos prazeres de estar vivendo a própria vida, a própria mente. Nesse sentido, o subtítulo poderia ser De Bion a Cecil ou, mesmo, Do ser psicanalista ao ser quem se é. Teríamos, dessa forma, não um manual ou carta náutica utilizável por cada analista que se interesse em viver a aventura de ser analista, mas sim um modelo, as memórias de alguém que encarnou o sentido etimológico de tornar-se experiente: ter vivido o perigo (perire) e sobrevivido a ele (ex).

 

De Bion ao prazer autêntico: o périplo de Cecil

Estamos acostumados com a visão de que autores que têm a possibilidade de elaborar suas concepções a partir da experiência clínica que vivem vão modificando sua forma de pensar, como uma espiral com círculos que vão se ampliando progressivamente. O que encontramos neste livro de Cecil não é diferente. Através de uma visão de conjunto de como foi evoluindo sua forma de pensar sua clínica, vamos acompanhando uma crescente presença de ideias, elaborações e posições próprias, até chegarmos à formulação do prazer autêntico, em um périplo com registros de um espaço de tempo de 30 anos. O próprio subtítulo nos leva a pensar na presença de um espectro de pensamentos, em que os polos extremos são Bion e Cecil. Assim, como no modelo de Freud das séries complementares, temos nesta obra diversos graus de composição entre o ponto inicial (a influência das ideias de Bion) e, em seu ápice, as transformações criativas e originais do próprio pensador.

Podemos acompanhar um primeiro período (De Bion...) em que os trabalhos de Cecil estão tentando dar conta de sua apreensão pessoal do impacto mutativo das ideias de Bion. São os artigos escritos entre 1990 e 2009, especificamente os capítulos 1, 2, 3, 6, 8 e 9. São trabalhos reveladores de uma busca em esclarecer (para si mesmo e para os leitores) pontos básicos das mudanças no pensamento psicanalítico trazidas por Bion.

No segundo período (... ao prazer autêntico), temos trabalhos datados de 2010 a 2018, que mostram uma autonomia de pensamento bastante aumentada em relação aos artigos do período anterior. As ideias antes desenvolvidas não são abandonadas frente ao novo desenvolvimento, mas sim continuam presentes, porém de forma amadurecida. Fariam parte desse segundo período os capítulos 10, 11, 12, 13, 14 e 15 sobre prazer autêntico, a parte iii do livro. Não com surpresa, essa autonomia de pensamento psicanalítico que aqui se manifesta já era bem visível no artigo de 1981, "Preservação e alteração do setting na análise", capítulo 7 do livro. Aliás, esta é uma característica sempre presente nos textos e manifestações públicas de Cecil: fala a partir de suas vivências pessoais; mesmo quando se refere às teorias, estas surgem com o selo de sua elaboração pessoal. É nesse sentido que me utilizei no cabeçalho deste item da ideia de "périplo": Cecil faz um longo percurso e retoma, enriquecido, seu ponto de partida: ser ele mesmo enquanto analista.

Há dois capítulos que não se encaixam suavemente nesta organização, os capítulos 4 e 5. O capítulo 4, "O dia a dia de um psicanalista: teorias fracas, teorias fortes" (2009), pode ser visto como marcando a cesura entre os dois períodos. Considerado pelo autor, em seu pós-escrito, uma "pesquisa realizada na clínica, metodologia e teorias psicanalíticas" (p. 155), esse texto tanto mostra um autor transitando em um referencial bastante ampliado ("se dá no referencial da metapsicologia, porém não apenas no sentido freudiano do termo"), como também carrega evidências do pensamento de Bion suficientemente encarnado para dispensar referência a sua origem. Seria, epistemologicamente, como que um ponto de equilíbrio entre a criatividade individual e a herança recebida de Bion. Também o capítulo 5, "Domando emoções selvagens" (2017), parece carregar esse mesmo espírito. A inevitável associação com o título da obra de Bion (Domesticando pensamentos selvagens) tanto mostra a filiação das ideias ali abordadas quanto as transformações da herança recebida: em vez de pensamentos, emoções. Isso introduz outra observação sobre este livro e seu autor.

 

Uma psicanálise centrada nas emoções

D. Meltzer explicita que com Bion tivemos a primeira teoria psicanalítica da personalidade centrada nas emoções. Esse descentrar do conhecer como fulcro do trabalho mental revoluciona o trabalho psicanalítico e a forma de pensarmos a vida mental, com a possibilidade de um contato potencialmente mais fértil ocorrer em níveis indiferenciados da mente, acessíveis através da intuição do analista. Essa compreensão ajuda a pensar as dificuldades que todos temos na aproximação com as ideias de Bion através do Conhecer, presos que estávamos a ele por décadas de entronização do pensamento de Freud e de M. Klein, em que este era o instrumento por excelência à disposição do analista.

Se me valho de uma observação pessoal que penso estar visível nas muitas descrições clínicas nos trabalhos de Cecil aqui reunidos, destacaria seu privilegiar a dimensão do emocional como bússola para o trabalho analítico, atendendo a ávida busca por indicações que auxiliassem os recém-chegados ao novo modelo de funcionamento da mente. Quem sabe, possamos considerar essa doma das emoções na sessão analítica como a mais importante das contribuições de Cecil para todos nós, colegas que se interessaram e se interessam pelas ideias de Bion. Há um hiato muito grande entre as formulações de Bion sobre o viver as emoções e a possibilidade de assim trabalhar clinicamente. Assim, estes trabalhos de Cecil, com tantas descrições clínicas de suas experiências psicanalíticas e abstrações teóricas, ajudam fortemente no périplo que cada analista necessita fazer para desenvolver sua condição de ser analista sendo quem ele de fato é.

Não é difícil perceber o impacto causado pelas formulações nas descrições clínicas de Cecil. Algo indefinível salta de suas comunicações e exige atenção. Ao mesmo tempo, estão capturadas, pelas mesmas palavras, nomeações de estados emocionais do analisando e do analista. Ficam duas dimensões perceptíveis, a capaz de simbolização (que comunica o pensamento do analista) e a indizível experiência transmitida pelo encontro analítico que vai se manifestar nas reações emocionais do analisando e nas entrelinhas da elaboração de intuições do analista. Conjecturo que esta seja uma condição da personalidade e da forma de Cecil trabalhar em psicanálise que torna muito atraente o dele nos aproximarmos. Sem teorizações maiores, mas sem também delas descurar, Cecil nos tem oferecido vislumbres deste caminho.

 

Desvelando o prazer autêntico em ser psicanalista

Em "Prazer autêntico - o belo - estesia" (2014), Cecil nos conta, sumariamente, de seu percurso na clínica, desde as batalhas com a teoria instintivista até alcançar a segurança de propor a inclusão de outro viés, o do prazer, do encanto, como caminho legítimo para o desenvolvimento de uma personalidade. Retira, assim, o monopólio da dor como "via mestra pela qual podemos realizar o trabalho analítico". Deixa claro que essa percepção ocorreu dentro de uma crescente maturidade nos encontros analíticos, permitindo graus maiores de intimidade mental entre analista e analisando, assim como do analisando consigo mesmo. Paradoxalmente, o que foi se configurando pode ser dito como as dificuldades em alcançar e sustentar estados de prazer e encantamento com a vida. Distingue prazer obtido sensorialmente do prazer alcançado por "dimensões da alma, do espírito, ou da mente" e faz aproximações dessa forma de prazer com qualidades próprias à estética e à ética. Mantendo a perspectiva clínica, nos introduz a possibilidade de o prazer e o encantamento serem incluídos, e mesmo priorizados, em um trabalho psicanalítico, gerando possibilidades de esperança e incrementando a capacidade dos analisandos ao lidarem com as dores psíquicas. Ilustra, magnificamente, a essência da condição analítica alcançada por Cecil e encerrada na formulação que fez sobre nossa ciência/arte/hermenêutica:

E o que é a psicanálise senão a oportunidade para que nasça o que nunca nasceu, que se crie o que nunca foi criado ou que surja algo do cliente que possa lhe permitir ter prazer ou satisfação na existência? (p. 343)

Creio ser esta frase de Cecil uma boa síntese do que ele nos comunica em seu livro e, assim, um bom mote para encerrar esta resenha.

 

Referências

Vermote, R. (2013). Sobre o valor das últimas contribuições de Bion para a teoria e prática analíticas. Livro Anual de Psicanálise, 23(1),37-46.         [ Links ]

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