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Aletheia

versão impressa ISSN 1413-0394

Aletheia  n.23 Canoas jun. 2006

 

ARTIGOS DE PESQUISA

 

O psicólogo na saúde pública: trajetórias e percepções na conquista desse espaço

 

Psychologists in Public Health: trajectories and perceptions in the conq est of this space

 

 

Suélen do Nascimento Barbieri Rutsatz 1; Sheila Gonçalves Câmara 2

Universidade Luterana do Brasil. Curso de Psicologia

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Essa pesquisa visou descrever a trajetória, a experiência profissional e as percepções dos psicólogos que atuam em Saúde Pública na 16ª. Coordenadoria Regional de Saúde, na Região do Vale do Taquari – RS. Para tanto, realizou-se um inquérito epidemiológico junto a 23 psicólogos, o que representa 60,5% da população dos profissionais. Os resultados demonstraram que os psicólogos estão satisfeitos com sua contribuição no campo da Saúde Pública. Acreditam estar cumprindo seu papel, apesar das dificuldades que percebem em relação a usuários do serviço (comunidade) e equipe de trabalho. O contato com questões de saúde mental na Saúde Pública propicia desgaste pessoal nas intervenções diárias, gerando dificuldades em relação à comunidade (usuários) e, especialmente, à equipe. O psicólogo não demonstra uma postura crítica em relação à sua atuação e às políticas públicas que estão presentes nesse campo, o que acarreta desvalorização profissional e perda de espaço de atuação. Faz-se necessário que as práticas de Psicologia sejam reavaliadas quanto ao compromisso social–comunitário da Psicologia, dando origem a uma maior sistematização de ações alicerçadas nos pilares de promoção, prevenção e recuperação da saúde.

Palavras-chave: Saúde pública, Atuação do psicólogo.


ABSTRACT

This research aimed to describe the trajectory, the professional experience and the perceptions of the psychologists who act in Public Health in 16ª Regional Health Coordination in the Region of the Valley of Taquari – RS. For that purpose an epidemiologic inquiry was proposed to 23 psychologists, who represent 60.5% of the professional population. The results had demonstrated that the psychologists are satisfied with their contribution in the field of Public Health. They believe to be fulfilling their role, despite the difficulties perceived regarding the service users (community) and the work team. The contact with issues of mental health in Public Health propitiates personal consuming in the daily interventions, generating difficulties in relation to the community (users) and especially to the team. The psychologists do not show a critical position in relation to their performance and to the public policies concerning this field, which causes professional depreciation and loss of performance space. It is necessary to reevaluate the work-study programs of Psychology regarding the social communitarian commitment of Psychology giving rise to a larger systematization of actions founded upon the pillars of promotion, prevention and recovery of health.

Keywords: Public Health, Psychologists.


 

 

Introdução

Há aproximadamente três décadas os Psicólogos garantiram um espaço institucionalizado de trabalho no Brasil. Neste momento, passaram a atuar basicamente nas áreas clínica, escolar e industrial. Dentre as áreas emergentes, principalmente após a década de 70, o campo de assistência pública à saúde foi para onde convergiu uma considerável parcela dos profissionais de Psicologia (Dimenstein, 1998).

Desde então, a Psicologia começou a colaborar para algumas modificações no cenário nacional. Os movimentos sociais e populares transformaram-se em espaços de atuação para os psicólogos na comunidade. Entretanto, inicialmente, trabalhos em comunidade, e a preocupação em atender as necessidades da população fizeram com que a Psicologia na Saúde Pública apresentasse, neste momento, fortes características assistencialistas (Freitas, 2004; Nascimento, 2004).

Por tais características, Freitas (2004) ressalta que a Psicologia tradicionalmente constituída não estava dando conta de compreender, explicar e, muito menos, indicar alternativas para os problemas vividos pelas pessoas em seu cotidiano. O modelo assistencial predominante no país teve suas práticas centradas no atendimento terciário e o hospital constituiu-se como meio e fim do cuidado aos indivíduos que sofriam agravos à saúde. No entanto, a Psicologia tem um grande potencial para contribuir na consolidação de modelos e práticas sociais capacitando tanto a saúde coletiva, como a institucional e individual (Nascimento, 2004; Saforcada, 2001).

A Atenção Básica a Saúde direcionou a Psicologia para melhorias das ações delineadas a partir do conhecimento da realidade local, das necessidades de saúde e da melhor definição de competências e responsabilidades. Assim, a inserção do psicólogo no setor de Saúde Mental na rede pública ocorreu num determinado contexto histórico-político-econômico que propiciou uma maior valorização cultural da profissão. Os hospitais, ambulatórios, postos e centros de saúde foram configurando-se como lugares privilegiados para a construção de novas práticas pelo psicólogo (Campos, 1999; Oliveira, 2001).

O processo de construção do Sistema Único de Saúde (SUS), regulamentado pela Constituição Brasileira de 1988, surgiu como uma das políticas públicas mais férteis para a superação de desigualdades em nosso país. Seus pressupostos básicos alicerçam-se nos princípios da universalização, da integralidade, da descentralização e a participação popular através da realização ou acompanhamento tanto de ações educativas e preventivas quanto de cura e reabilitação (Buss, 2003; Nascimento, 2004; Oliveira, 2001).

Nesse sentido, os serviços de saúde deveriam ser capazes de prestar atenção integral aos usuários. Porém, o seu potencial para produzir mudança no modelo assistencial e reorganizar os serviços tem sido alvo de polêmico debate, não havendo consenso sobre a efetiva capacidade de promover rupturas no modo predominante de produzir ações de saúde no país (Senna, Mello & Bodstein, 2002).

Considerando tais preocupações, e com objetivo de construir um espaço de atuação do psicólogo na rede pública, a saúde é ressignificada, sendo compreendida não somente como ausência de doença, mas como reflexo das condições sociais, econômicas e ambientais sobre a vida das pessoas. Nesse sentido, torna-se possível a implementação de ações, programas, projetos, regulamentações, leis e normas governamentais onde os psicólogos podem e devem engajar-se na construção de políticas públicas (Mendes, 1996; Nascimento, 2004).

Apresentando-se como uma alternativa para a organização de sistemas de saúde e como estratégia do SUS, no sentido de cumprir seus pressupostos de atuação, cria-se o PSF – Programa de Saúde da Família. Este tem como desafio atender as necessidades sociais, e em particular da saúde, enfrentadas pela população brasileira. Passa, então, a assumir um papel de aplacador das tensões sociais que vêm se avolumando há décadas (Mendes, 1996; Neto, 1995; Souza & Sampaio, 2002.).

O PSF tem como princípio a equidade e é reconhecido como uma prática que requer alta complexidade tecnológica nos campos do conhecimento e do desenvolvimento de habilidades e de mudanças de atitudes. Com base nos princípios da promoção da saúde, entende-se que construir vidas saudáveis é trabalhar com necessidades, assim como com potencialidades (Neto, 1995; Reis, 2002).

O modelo de atenção proposto pelo PSF assenta-se sobre uma visão ampliada do processo saúde-doença que ultrapassa as concepções marcadas por um viés biologizante e curativo, passando a ter a família e o meio no qual ela vive como o centro da atenção à saúde. Assume-se, assim, uma visão ativa da intervenção em saúde, sendo esta compreendida como um direito de todos em um conceito abrangente que passa pela descentralização, pela universalidade, pela interdisciplinaridade e a eqüidade (Senna, Mello & Bodstein, 2002).

Considerando este contexto que se apresenta, o presente estudo visa contribuir para um melhor entendimento acerca dos campos de atuação da Psicologia em Saúde Pública, de maneira que possamos compreender as especificidades encontradas pelos profissionais de Psicologia com vistas a proporcionar acessibilidade e melhor qualidade do serviço de saúde mental à população.

Avaliando e mapeando a atuação dos psicólogos da 16ª Coordenadoria Regional de Saúde, na Região do Vale do Taquari (42 municípios), levando em consideração seus aspectos pessoais e profissionais, bem como a instituição onde se inserem, pode-se averiguar como tem sido o papel e a atuação da Psicologia, de maneira a explicitar os mecanismos que permitem a sistematização de ações alicerçadas nos pilares de promoção, prevenção e recuperação da saúde.

Para tanto, realizou-se um estudo transversal, através da descrição das respostas dos psicólogos da 16ª Coordenadoria Regional de Saúde, na Região do Vale do Taquari a um inquérito acerca da trajetória e experiência profissional dos psicólogos em Saúde Pública.

 

Método

Amostra

A população pesquisada constitui-se do total de psicólogos que estão trabalhando junto à 16ª. Coordenadoria Regional de Saúde da região de Vale do Taquari (42 municípios), totalizando 38 Psicólogos (alguns atuam em mais de um município). Os questionários foram entregues a todos os profissionais, no entanto, o retorno foi de 23 questionários, o que perfaz 60,5% da população.

Dos profissionais que responderam ao instrumento, 20 (83%) eram do sexo feminino, com média de idade de 32 anos (dp = 4,76). O tempo de graduação médio foi de 6 anos (dp= 6,69), o tempo médio de atuação em Saúde Pública foi de 4 anos (dp= 3,15) e o tempo médio de atuação na instituição (município da 16ª. Coordenadoria Regional de Saúde da região de Vale do Taquari) foi de 3 anos (dp= 1,25).

Quanto à especialização dos profissionais, 65,2% possuem especialização, nas áreas de Psicologia Clínica (13%) e Saúde Pública (8,7%). Destes, 8,7% têm, também, mestrado. Quanto à atuação profissional, 87% atuam em outra área além da Saúde Pública. Dentre as áreas mais comuns de atuação destacam-se a clínica (consultório) e a Psicologia Escolar.

Instrumento

O instrumento de pesquisa foi formulado especificamente para esta investigação, a partir dos aspectos de interesse sobre a atuação do psicólogo e da literatura sobre o tema.

O instrumento está composto de quatro blocos ou dimensões que avaliam: 1) Dados sócio-demográficos (sexo, idade, tempo de graduação em Psicologia, tempo de atuação em Saúde Pública, tempo de trabalho na instituição atual, especialização, titulação e atuação profissional); 2) Trajetória pessoal do psicólogo em Saúde Pública (interesse pela área, expectativas iniciais e alcançadas na atuação, formação, características pessoais do psicólogo, trajetória pessoal no campo, aceitação do psicólogo pela equipe de trabalho e pela comunidade-usuários, fatores percebidos como dificultadores na atuação profissional, fatores que influenciam a permanência do psicólogo na área); 3) Cotidiano do psicólogo na Saúde Pública (percepção do psicólogo acerca da inter-relação das especialidades no serviço de saúde no qual atua, atuação em intervenções psicossociais em termos de prevenção, reabilitação e promoção da saúde, práticas profissionais, percepção de recursos financeiros no campo da Saúde Pública, e percepção de recursos da comunidade em termos de saúde); e 4) Psicologia e Saúde Pública (atuação do psicólogo em políticas públicas, percepção do Sistema Único de Saúde (SUS), avaliação da Saúde Pública no Brasil).

Procedimentos

Para a coleta de dados foi feito contato com 16ª Coordenadoria Regional de Saúde para que fossem fornecidos os dados necessários, como os nomes dos psicólogos e o município correspondente (total de 38 psicólogos). A pesquisadora participou de uma das reuniões mensais com os profissionais de saúde mental na 16ª. Coordenadoria Regional de Saúde, a fim de propor a pesquisa, fornecer o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e o instrumento de pesquisa para os psicólogos. O instrumento foi recolhido logo após o preenchimento, nesta reunião. Devido à ausência de alguns profissionais, o instrumento foi encaminhado, posteriormente, a todos os ausentes, sendo que o retorno final foi de 23 instrumentos.

Para a análise dos dados obtidos, a fim de identificar a trajetória dos psicólogos que atuam no campo da Saúde Pública junto à 16ª. Coordenadoria Regional de Saúde foi realizada análise descritiva, utilizando-se o pacote estatístico SPSS 13.0.

 

Resultados

Ao investigar como surgiu o interesse dos psicólogos por Saúde Pública, verificamos que, em primeiro lugar, encontram-se as práticas e vivências acadêmicas em setores ligados à Saúde Pública, seguidas de atividades acadêmicas e palestras sobre o tema, com 91,3%, 69,3% e 65,2% de respostas afirmativas, respectivamente. Os fatores que menos constribuiram para o surgimento do interesse foi a estabilidade financeira e a ênfase dada na formação, com 21,7% e 30,4% de respostas afirmativas.

No conjunto de dados referentes à formação, avaliando o quanto cada atividade contribuiu para a inserção do psicólogo na Saúde Pública, verificamos (considerando respostas que variavam de 1-nenhuma importância a 5-muita importância) que os estágios curriculares são muito importantes (m=4,17, dp=1,07), bem como a participação em cursos, palestras e congressos que tratam deste tema (m=3,82, dp=0,77). Dado que confirma que as práticas acadêmicas, são propulsoras do interesse em atuar em Saúde Pública.

A tabela 1 apresenta as expectativas dos psicólogos em atuar na Saúde Pública ao iniciar, e o quanto elas foram alcançadas até o momento. Sendo que, ao iniciar os psicólogos esperavam satisfazer-se pessoalmente e também atuar em políticas públicas, com a média 4,34 (dp=1,11) e 4,34 (dp=0,64), respectivamente. No entanto, eles têm alcançado em primeiro lugar o reconhecimento pela comunidade (usuários), com média de 4,04 (dp=0,97) e a satisfação pessoal vem em segundo lugar, com média de 4,00 (dp=0,67). Já, a estabilidade financeira foi mencionada como a menor expectativa ao iniciar (m=3,21; dp=1,24) e a alcançada em último lugar (m=2,82; dp=1,19).

 

 

Entre os fatores que influenciam os psicólogos a continuarem atuando em Saúde Pública, a satisfação pessoal mais uma vez é mencionada em primeiro lugar, com média de 4,47 (dp=0,66). E a estabilidade financeira em último (m=2,78; dp=1,08).

Ao avaliarem a trajetória pessoal no campo de Saúde Pública (considerando 1-nada a 5-muito), os psicólogos a consideram como desafiadora, média de 4,60 (dp= 0,58), e em construção permanente com média de 4,52 (dp= 0,89).

Um dado importante diz respeito à avaliação dos psicólogos quanto à sua aceitação pela equipe de trabalho e pela comunidade em seu local de atuação. Segundo os dados obtidos, os psicólogos avaliam sua aceitação pelos usuários (m=2,17; dp=1,02) e por sua equipe de trabalho (m=1,73; dp=0,68) de forma diferente, sendo maior a aceitação por parte dos usuários, embora encontremos maior dispersão nas respostas a este item.

Isso se reflete nas dificuldades referidas em relação a atuação do profissional de Psicologia. Os usuários encontram-se com uma média bastante baixa como dificuldade percebida (2,30; dp= 1,01), já o trabalho multidisciplinar está em destaque com média de 3,30 (dp= 0,92), considerando (1 – nada a 5 – muito).

No que diz respeito aos recursos utilizados para atingir o bem-estar dos usuários, verificamos que os psicólogos têm enfatizado em sua atuação a promoção da saúde e a qualidade de vida, com média de 4,43 (dp=0,58) em ambas (De 1 – nada a 5 – muito).

Nesse sentido, a promoção de saúde tem sido o foco das atividades de atuação dos psicólogos, sendo promovida através de atividades de desenvolvimento comunitário (m=3,73, dp= 0,81), bem como disponibilidade de atendimentos (m=3,52, dp= 1,03) e aprimoramento dos atendimentos (m=3,52, dp= 0,59).

Através da tabela 2, caracterizando os serviços prestados pelos psicólogos, a fim de intervir no processo de saúde-doença, podemos identificar três pontos chaves que têm sido utilizados. O primeiro deles são os atendimentos grupais com média de 4,08 (dp=0,99), em segundo lugar as capacitações com média de 3,69 (dp=1,06) e em terceiro lugar os atendimentos individuais com enfoque psicossocial com média de 3,60 (dp=1,23).

 

 

Nesse sentido, é importante considerar a disponibilização dos recursos da comunidade para promover o bem estar e a qualidade de vida. Com abrangência de 100% nos municípios, encontramos os grupos de mães e atividades para a terceira idade. Por outro lado, os programas de incentivo governamental e voluntariado têm um total de 39% de abrangência. Ou seja, menos de 50% das comunidades entrevistadas apresentam estes recursos.

A partir dessas informações, nos interessou avaliar como os psicólogos de nossa amostra avaliam o Sistema Único de Saúde em termos de sua compatibilidade com a proposta e a atuação em saúde mental coletiva. Considerando médias que variavam de 1 (nem um pouco) a 5 (totalmente), verificamos que o SUS, enquanto instituição compatível com a proposta de atuação em saúde mental, segundo a avaliação dos psicólogos, apresentou-se com compatibilidade regular tendo média de 3,26 (dp=0,96). Importante ressaltar que nas avaliações predominaram índices mais positivos. Ou seja, apesar de todas as queixas referidas sobre o SUS, este, enquanto instituição, não é percebida de forma negativa pelos psicólogos que atuam em Saúde Pública.

Dessa forma, foram interessantes os resultados que encontramos acerca da atuação dos psicólogos em políticas públicas, considerando opções de resposta de 1 (nada) a 5 (muito). Verificou-se que os profissionais desta categoria não estão atuando da maneira como poderiam, item que apresentou média de 3,30 (dp=0,76). Eles apresentam consciência deste fato, pois os índices com maiores médias demonstram que ainda há possibilidade de propiciar mudanças (m=4,04; dp=1,02) e que este processo direciona-se a um maior aperfeiçoamento (m=3,86; dp=0,91).

Por fim, interessou-nos conhecer a avaliação da Saúde Pública no Brasil, a partir da experiência dos psicólogos. Nesse sentido, consideramos as opções de resposta de 1(nada) a 5 (muito), verificamos que a avaliação da Saúde Pública no Brasil é representa, para os psicólogos, um desafio, tendo obtido média de 4,17 (dp=0,88). Os demais dados obtidos demonstram que a Saúde Pública está sobre o domínio de um emaranhado de situações e assim, passa a ser dependente de decisões superiores e hierárquicas (m=3,86; dp=0,91), tornando-a burocrática (m=3,52; dp=1,44), porém, percebida como eficaz em sua proposta (m=3,30; dp=1,44).

 

Discussão

Estudos que exploram a temática da prática profissional do psicólogo no Brasil têm apontado, dentre diversos aspectos, para dois que merecem destaque: por um lado à supremacia daquelas atividades que usualmente são classificadas como pertencendo ao âmbito da clínica; por outro, a emergência de movimentos que buscam novas formas de inserção profissional (LoBianco, Bastos, Nunes & Silva, 1994).

As práticas clínicas tradicionais, desenvolvidas em consultórios privados para uma clientela abastada, têm sido um dos alvos preferidos de críticas ao status quo da Psicologia no Brasil. Como contraponto, a construção de novos espaços e a emergência de práticas inovadoras têm sido recebidas como aspectos promissores, pela possibilidade de caminhos alternativos a serem trilhados por uma Psicologia menos eliticista e mais significativa do ponto de vista social (Spink, 1992).

No entanto, o interesse dos psicólogos pelo trabalho no âmbito da Saúde Pública surge através de práticas e vivências acadêmicas em setores ligados à Saúde Pública. Este se revela como o maior desafio da Psicologia na Saúde Pública, que é a formação dos seus profissionais. Os currículos espelham e produzem um modelo hegemônico de atuação profissional da Psicologia e definições extremamente limitadas do que seja atuar na Saúde Pública, sendo a graduação, muitas vezes, insuficiente. Esta deveria gerar um profissional com uma formação mais generalista, dando os subsídios necessários para se começar a trabalhar sem maiores dificuldades (Dimenstein, 1998; 2000).

A formação, em nível de graduação, embora seja o aspecto central das dificuldades encontradas pelos psicólogos em sua atuação na Saúde Pública, não esgota todos os problemas. Logo após a inserção no mercado, os aspectos formativos são deixados em segundo plano, quando, na verdade, um processo de formação permanente se faz necessário. Ainda que o campo seja bastante vasto e as necessidades muito prementes, o psicólogo precisa reavaliar sua atuação e construir um espaço cada vez mais aprimorado de inserção na Saúde Pública. No entanto, os entraves referem-se, também, aos motivadores do psicólogo para inserir-se nesse campo.

Em termos do interesse pela área, verificamos que o aspecto menos importante refere-se à estabilidade financeira. Geralmente, os profissionais vêem-se identificados com o campo da saúde pela eventual possibilidade de uma atuação com um significado social e pessoal bem mais amplo do que o da clínica tradicional (Yamamoto & Campos, 1997). Isso nos remete ao compromisso social da Psicologia, que vem norteando a atuação, especialmente da Psicologia Comunitária. No entanto, no surgimento dessa área, o interesse pelos aspectos sociais revelava-se como uma postura política de resistência. Atualmente, o trabalho no âmbito comunitário, que também é o campo da atuação em Saúde Pública precisa ser conquistado juntamente com a remuneração correspondente.

Os resultados de nosso estudo indicam que o psicólogo que atua nesse campo ainda não tem clareza sobre a importância de seu papel, atuando como se o fato de trabalhar com situações de carência financeira representasse menor valorização salarial e, por conseguinte, menor valorização profissional. Talvez este seja um problema eminente na profissão, pois os psicólogos optam pelo campo da Saúde Pública para satisfazerem-se pessoalmente e também para atuar em políticas públicas. A satisfação profissional não parece vir acompanhada de remuneração adequada e a participação em políticas públicas não se efetiva. Entretanto, através da comunidade de atuação o psicólogo tem obtido reconhecimento e, assim, alcançado a satisfação pessoal inicialmente almejada.

O processo de inserção do psicólogo na Saúde Pública parece configurar-se em um acordo entre as partes interessadas no campo direto da interação psicólogo-usuário. Os usuários valorizam o psicólogo e este realiza suas intervenções como lhe é possível. A formação profissional impede uma maior abrangência em termos de saúde mental coletiva e os usuários sentem-se amparados pela presença do profissional de saúde mental.

No entanto, saber resolver problemas complexos em situações igualmente complexas é uma questão cotidiana na Saúde Pública, requerendo o protagonismo dos atores sociais. A garantia da participação efetiva destes – o que vem antes de qualquer outra intervenção em saúde mental – compete ao psicólogo, na medida em que este consegue envolver cada sujeito na interação recíproca e permanente com outros atores sociais. As pessoas aprendem a conhecer sua realidade, a refletir, a superar contradições reais ou aparentes, a antecipar conseqüências, entender novos significados, distinguir efeitos de causas. Ou seja, aprendem a manejar os conflitos, esclarecer sentimentos e comportamentos, a tolerar divergências e a respeitar opiniões (Saforcada, 2001).

Por isso, a vivência diária e cotidiana do trabalho, enquanto psicólogo no contexto de atuação em Saúde Pública, precisa despertar para a necessidade de um olhar e uma escuta ampliada e diferenciada.

Com a ampliação do conceito de saúde, ao incorporar a idéia de qualidade de vida, apresenta-se o modelo de atenção à saúde para toda a população. Assim, os profissionais, deveriam estar voltados não apenas para os aspectos referentes a doença, mas para a saúde como um fenômeno pluridimensional. É preciso ter consciência das limitações existentes, mas também da importância do papel da Psicologia (Bevilacqua & Sampaio, 2002; Rebelo, 1995; Saforcada, 2001).

A Psicologia insere-se, em um campo mais amplo, no qual a qualidade intrínseca dos procedimentos prestados pelos serviços de saúde diz implica na diferenciação e definição do papel de cada profissional da equipe no que tange ao do sistema de atendimento ao usuário. Porém, de maneira geral, a visão e as metas dos diferentes profissionais são desconhecidas e raramente explicitadas, discutidas, ou divulgadas para a equipe de saúde na sua totalidade (Rebelo, 1995).

No atendimento ao usuário surge a necessidade de integrar os profissionais de diferentes áreas, através da formação de equipes de múltiplas especialidades. Cada profissional mantém sua individualidade ao mesmo tempo em que, operacionalmente, integra uma equipe multiprofissional, que pode ser modificada com a inclusão, exclusão ou substituição de especialidades e profissionais (Rebelo, 1995). Assim, a organização de um serviço de saúde deve ser constituída por metas, valores, equipe técnica capacitada, entendimento psicossocial e estrutura administrativa adequada (Rebelo, 1995; Saforcada, 2001).

Esta interrelação entre as especialidades existentes no serviço de Saúde Pública, conforme os resultados encontrados, apresenta-se de forma positiva, ainda que os dados deixem margem para que possamos identificar o trabalho em equipe multidisciplinar como uma das dificuldades centrais existentes para a atuação do psicólogo (Senna, Mello & Bodstein, 2002).

Para atuar na Saúde Pública é necessário ter indivíduos que exerçam sua capacidade de reflexão sobre o meio, adotando uma postura crítica em relação ao seu trabalho e ao conhecimento apreendido em seu processo de educação permanente. Estes devem estar capacitados para integrar diferentes conhecimentos no planejamento de ações em saúde valorizando o trabalho em equipe. E, sobretudo, devem exercer seu ofício com humanidade, ética e respeito ao próximo, estendendo sua dedicação para a prevenção, reabilitação e promoção da saúde de toda a comunidade (Campos & Aguiar, 2002).

Na formação dos profissionais de saúde é ressaltado que o bem estar e o interesse do paciente são prioritários. Por isso, nas instituições públicas os funcionários deveriam estar empenhados em prestar atendimento ao paciente propiciando condições de bem-estar físico e psíquico (Rebelo, 1995; Saforcada, 2001).

Com base nos aspectos mais relevantes na atuação dos psicólogos a fim de atingir o bem-estar dos usuários, verificamos que os psicólogos têm enfatizado em sua atuação a promoção da saúde e a qualidade de vida.

Essas ações concretizam-se nos espaços sociais reais em que vivem as pessoas, de maneira a resgatar a perspectiva de relacionar saúde e condições de vida, ressaltando múltiplos elementos (físicos, psicológicos e sociais) que estão vinculados à conquista de uma vida saudável (Czeresnia, 2003; Ferreira & Buss, 2002). Dessa forma, o conceito de saúde mental congrega as condições desejadas em termos de bem-estar dos indivíduos com as ações necessárias que possam determinar essas condições. As estratégias de promoção da saúde colaboram, portanto, para que sejam fornecidas informações que assistam a indivíduos e organizações, a fim de que estes assumam maiores responsabilidades e sejam mais ativos em benefício da própria saúde (Buss, 2003; Oliveira, 2001).

A saúde é produto de um amplo espectro de fatores relacionados com a qualidade de vida. A carta de Ottawa define promoção de saúde como o processo de capacitação da comunidade para atuar na melhoria da qualidade de vida e saúde. As equipes de saúde devem concretizar a integralidade em suas ações, articulando o individual com o coletivo, a promoção e a prevenção com o tratamento e a recuperação da saúde de sua população, com grande potencial organizador sobre os outros níveis do sistema de saúde (Boarini, 1996; Souza e Sampaio, 2002).

Nesse sentido é preciso considerar o quanto saúde e enfermidade se entrelaçam na eficácia social se as consideramos enquanto construções sociais. Parece claro que os problemas de saúde que encontra uma comunidade só podem ser definidos em toda a sua dimensão por aqueles mesmos que padecem destes problemas e que têm sua responsabilidade, tanto no que se refere à existência quanto à solução dos mesmos. Quando a questão ultrapassa o âmbito individual, como é o caso do processo saúde-enfermidade, se faz necessário unir esforços para alcançar resultados. Resultados estes, que se caracterizam, intrinsecamente, por terem sua acessibilidade unicamente possível através da interdependência de esforços (Huici, 1985).

Assim, na caracterização dos serviços prestados pelos psicólogos, a fim de intervir no processo de saúde-doença, podemos identificar atendimentos grupais, capacitações e atendimentos individuais com enfoque psicossocial. Os psicólogos entrevistados têm em sua comunidade de atuação a disponibilização de alguns recursos que visam promover o bem estar e a qualidade de vida, porém, quanto aos programas de incentivo governamental e voluntariado encontramos uma baixa abrangência nas comunidades onde os profissionais atuam.

Os recursos existentes nas próprias comunidades de atuação dos profissionais de saúde revelam o fortalecimento das comunidades, mesmo que no nível mais precário. São recursos que acabam por constituir-se nos pontos de apoio para a atuação do profissional em saúde mental. No entanto, ainda caberia ao profissional facilitar estas possibilidades. Isso poderia ser incrementado com maior incentivo aos atendimentos grupais e menos atendimentos individuais, que diminuem a participação comunitária.

Dois fatores primordiais parecem estar implicados nas dificuldades vivenciadas pelos psicólogos. Primeiramente, poderíamos mencionar a pouca disponibilidade real de tempo, pois temos psicólogos que, sozinhos, atendem a uma demanda populacional de mais de um município, com poucas horas e baixa remuneração. Isto é, o psicólogo acaba, muitas vezes, lançando mão dos conhecimentos obtidos em sua formação acadêmica em Psicologia, ou mesmo, em Clínica que lhe permite unicamente resolver os problemas de ordem social que se apresentam da forma como se fossem questões individuais. Isso acarreta as filas em postos de saúde e baixos números de atendimentos que poderiam ser ampliados se os atendimentos tivessem enfoque psicossocial.

Nesse ponto é que entra em questão o segundo aspecto gerador de dificuldades, que é a formação em Psicologia. Ainda, em função de aspectos históricos da profissão aliados a uma representação social da Psicologia como profissão elitizada, voltada para a clínica tradicional, temos cursos de formação que não parecem contemplar ou dar a devida relevância para as questões de Saúde Pública. Além disso, a formação em Psicologia parece esgotar-se ao término da graduação. Alternativamente, alguns psicólogos buscam cursos de especialização em áreas mais específicas. No entanto, essa formação não é permanente, pois não prioriza o diálogo entre a prática e as alternativas teórico-metodológicas para um melhor desempenho do psicólogo na Saúde Pública.

Esses aspectos refletem tanto problemas da formação em Psicologia quanto das Políticas Públicas de Saúde. Em meados dos anos 80, quando se cria oficialmente o cargo de psicólogo nas unidades de Saúde Pública, no Brasil, houve certa explicitação do despreparo na formação para lidar com a realidade da população. Poucos eram os profissionais de Psicologia que desenvolviam práticas em comunidade, revelando as insuficiências da formação para lidar com contextos e dinâmicas comunitárias. (Campos, 1999; Dimenstein, 2000; Freitas, 2004).

Esse quadro parece ainda se manter. Ao avaliar a atuação dos psicólogos em políticas públicas, nosso estudo revelou uma atuação empobrecida, pois não contempla a identificação e organização de alternativas mais eficazes para intervir sobre os determinantes e condicionantes da questão da Saúde Pública em nossa realidade. Um dos marcos ideológicos que sustenta a atuação do psicólogo e também uma equipe de saúde é a participação efetiva no processo de planejamento de ações em saúde. Isso garante um controle sobre as autoridades vigentes, facilita a consciência crítica da comunidade, aumenta o poder de reivindicação das classes e promove um enriquecimento mútuo de culturas. (Ferreira & Buss, 2002; Saforcada, 2001)

É nesse sentido que os dados encontrados através da amostra deste estudo podem ser representativos da realidade mais ampla em termos de inserção da Psicologia em Saúde Pública. Os resultados não evidenciam uma postura crítica quanto ao sistema de saúde e as possibilidades de atuação, de maneira que a dedicação dos psicólogos também é parcial, sendo aliada a alguma outra atividade concomitante. A visão demasiadamente positiva dos psicólogos sobre a Saúde Pública no Brasil nos remete a pensar sobre o quanto os psicólogos têm refletido acerca de sua participação política no campo da Saúde Pública e o quanto consideram esta como mais uma atuação da categoria, sem considerar uma visão ampliada de sua importância.

Fica, ainda, em aberto o espaço que a Psicologia poderia estar ocupando na Saúde Pública. Sabemos das dificuldades que se apresentam nesse campo e o quanto se faz importante considerar os esforços que vêm sendo empreendidos para uma inserção efetiva, como é o caso da busca por atualização e práticas voltadas para a promoção e a prevenção em saúde.

Consideramos que novos estudos poderiam ser realizados com ampliação da amostra ou, se possível, com toda a população que atua em cada uma das diferentes coordenadorias de saúde no estado do Rio Grande do Sul, assim como em outros estados brasileiros. Esse intercâmbio de informações pode nos revelar, inclusive, outras formas possíveis de atuação que estejam contribuindo para um maior bem-estar da população atendida. No entanto, os resultados encontrados abrem novamente a discussão acerca da pouca participação da Psicologia na Saúde Pública. Tema que deve ser alvo de reflexões para ampliação da formação do psicólogo e possibilidades de atuação nesse campo.

 

Referências

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Endereço para correspondência
E-mail: suelenbarbieri@bol.com.br

Recebido em dezembro de 2005
Aceito em fevereiro de 2006

 

 

Autores: 1 Suélen do Nascimento Barbieri Rutsatz – Acadêmica do Curso de Psicologia – ULBRA/Canoas.
2 Sheila Gonçalves Câmara – Psicóloga. Doutora em Psicologia-PUCRS. Professora do Curso de Psicologia e do Pós Graduação em Saúde Coletiva/ULBRA. Orientadora do Trabalho de Conclusão de Curso em Psicologia.

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