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Aletheia
versão impressa ISSN 1413-0394
Aletheia n.23 Canoas jun. 2006
RELATO DE EXPERIÊNCIA
O trabalhador voluntário e seus sentimentos ante a doença e o sofrimento*
The voluntary worker and its feelings in face to illness and suffering
Denise Zanatta1, I; María Piedad Rangel Meneses2, I, II
I Universidade Regional Integrada, Campus de Frederico Westphalen
II Universidade Luterana do Brasil - ULBRA Canoas
RESUMO
O presente estudo é resultado da experiência de uma das ações de estágio profissionalizante em Psicologia Social Comunitária, realizada através de uma pesquisa-intervenção que teve como objetivo o fortalecimento de um grupo de voluntários da região noroeste do estado do Rio Grande do Sul para facilitar o trabalho dos voluntários em seus diversos afazeres. Ao contribuir acolhendo o voluntário sensibilizado, podemos oportunizar momentos de alívio de um sofrimento, até então, não compartilhado. Durante o processo, compreendemos a vontade dos participantes para se fortalecer e aliviar sua dor e, ao mesmo tempo, a resistência às mudanças propostas. Percebemos ainda que os voluntários passam também por fases emocionais que são isomórficas às fases do luto e perda, as quais foram trabalhadas ao longo da intervenção.
Palavras-chave: Voluntários, Grupos, Fortalecimento.
ABSTRACT
The present study results from the experience of one action for professionalizing training period in Communitarian Social Psychology, carried through a research-intervention, that had as objective the strengthening of a group of volunteers in the northwestern region of the state of Rio Grande do Sul in order to facilitate their work. While hosting the caring volunteer we could offer moments of relief from a suffering until then unshared. During the process we perceived the will of the participants to strengthen themselves and to relieve their pain and, at the same time, the resistance to the proposed changes. We also perceived that the volunteers went through emotional phases that are isomorphic to the phases of mourning and loss, which had been worked during the intervention.
Keywords: Volunteers, Group, Strengthening.
Introdução
Este estudo aborda temas que envolvem os sentimentos do voluntário ante a doença, especificamente do câncer, à necessidade de expressar seus sentimentos e ao fortalecimento individual e grupal. Para tanto, apresentamos reflexões da experiência desenvolvida a partir de uma pesquisa-intervenção intitulada “Compreensão do Papel do Voluntário na Liga Feminina de Combate ao Câncer”, durante estágio em Psicologia Social Comunitária, com duração de um ano.
A Liga Feminina de Combate ao Câncer (LFCC) é uma instituição que tem como finalidade realizar visitas aos portadores de câncer, objetivando também atender à demanda por recursos físicos e emocionais do visitado. Para suprir essas necessidades, a LFCC arrecada lucros através de eventos promocionais, de colaborações espontâneas e de contribuições pelos voluntários, que pagam uma mensalidade à mesma. A instituição também tem despesas fixas, como, por exemplo, água, luz e telefone. O local onde funciona é emprestado pela Igreja. O suporte emocional prestado aos pacientes é alicerçado, primordialmente, em promessas de orações e entrega de panfletos contendo a oração ao santo protetor dos portadores de câncer.
Nas visitas ao grupo, percebemos, através das falas sobre as pessoas que apresentam o diagnóstico positivo de câncer, a tristeza dos voluntários de vê-las em situações desumanas, lutando contra a morte e, em muitas ocasiões, perdendo a vida. Esse sofrimento e conseqüentes perdas repercutem nos sentimentos do voluntário, pois ao aproximar-se dessas pessoas durante a visita acaba criando vínculos que são fragmentados com a morte dessas pessoas. Esses sentimentos são constantes na vida do voluntário trazendo para si um sofrimento que muitas vezes não pode ser compartilhado com familiares. Nesse sentido, precisamos entender que a pessoa que visita àquela que está doente necessita de amparo emocional e técnico, uma vez que sem ter um suporte para lidar com seus próprios medos terá dificuldade para dar o seu apoio emocional.
Representações sociais
De acordo com Spink e Medravo (1999), os significados e ou Representações Sociais (RS) são construções sociais, um processo interativo por meio do qual as pessoas constroem os sentidos a partir dos quais compreendem e lidam com as situações e fenômenos a sua volta.
Podemos entender que a construção coletiva de conceitos é resultante da forma como as pessoas lidam e entendem as situações ao seu redor. Esse trabalho procurou conhecer como se desenvolviam os sentimentos e os conceitos que os voluntários estavam criando no próprio grupo, ou melhor, como o grupo estava pensando e, portanto, agindo.
Dessa forma, estudar as Representações Sociais (RS) é buscar entender como um grupo constrói um conjunto de saberes que expressam a identidade deste grupo social, as representações formadas sobre uma diversidade de objetos e o conjunto de códigos culturais que definem, em cada momento histórico, as regras de uma comunidade. Desta forma, para compreender o comportamento das pessoas, é preciso conhecer as representações sociais de seu grupo (Oliveira & Werba, 1998).
Segundo Sarriera, Appel da Silva, Pizzinato, Zago e Meira (2000), a busca de uma nova significação para as vivências pode acontecer na medida em que ocorrem novos atos e quando as relações se desestruturam e se reestruturam de uma outra maneira. Nesse sentido, a intervenção psicossocial dirige-se à realidade do outro interferindo nela e transformando-a.
Um dos pressupostos básicos da intervenção psicossocial é que as pessoas são membros ativos e fundamentais no processo de construção, tanto social, quanto pessoal. Desta forma, origina-se uma relação horizontal entre investigador e investigados (Montero, 1996, citada por Sarriera e cols., 2000). Embora a relação entre pesquisador e pesquisado seja horizontal, existe uma diferença que situa o pesquisador no mundo do conhecimento científico. E o que torna legítimo este poder de domínio de informação é exatamente a crença e valor que justifica o porquê e como de suas ações.
Toda intervenção psicossocial acontece em contextos sócio-culturais e micro-culturais específicos. Conforme Bonin (1998), o termo cultura pode ser definido como um conjunto de hábitos, instrumentos, tipos de relações interpessoais, regras sociais e instituições em um determinado grupo. Este autor aponta quatro perspectivas sobre a noção de Psicologia Cultural. Na primeira, a cultura e a mente são consideradas como entidades separadas, sendo a cultura estudada como variável independente. Na segunda, a mente está inserida nas práticas e atividades culturais. Na terceira perspectiva, cultura é uma descrição ou narração das atividades e práticas de um grupo. Por fim, na quarta, a pessoa é o agente intencional em um mundo que é constituído de interpretações e objetos culturais. As pessoas são sujeitos ativos num sistema cultural dado previamente, tomando posições, fazendo novas interpretações, constrói criativamente e coletivamente um processo cultural em épocas históricas particulares.
Os sujeitos sociais intervêm no grupo e são transformados por ele. Dessa forma, um novo conhecimento pode ser adquirido quando inserido nas práticas de um grupo. Portanto, a partir do conhecimento da realidade podemos intervir nela como atores sociais e visando uma transformação do meio. Sendo essas intervenções propostas desde e com relações horizontais podemos, todos, progressivamente modificar hábitos, rotinas e regras estabelecidas, ou seja, a cultura de um grupo particular e, neste caso, no grupo dos voluntários. Entendamos, então, o que significa o papel deste ator social segundo vários autores.
Voluntariar é uma expressão que anuncia o envolvimento do indivíduo com sua comunidade. Participação, confiança e reciprocidade são valores mutuamente reforçados da boa cidadania. Ser voluntário é criar novas redes e padrões ao incluir o outro em seu projeto de vida, estendendo as reservas de capital existente nas sociedades para a construção de novos relacionamentos e ampliação da rede de interação social. É querer ser feliz mediante a felicidade do outro (Parceiros Voluntários, 2004). Segundo Johannpeter (2003), voluntariar significa um grande exercício de valores em nosso semelhante, para que ele se descubra como ser transformador de conceitos: sobreviver, produzir e dar sentido à vida.
Conforme o relatório anual da Parceiros Voluntários (2004), para tornar-se um voluntário não basta apenas ter vontade é necessário ter muita responsabilidade. É comum ler na literatura que o voluntário tem um compromisso com o trabalho a ser desempenhado, por tanto não é um trabalho assistencialista que é desenvolvido quando o voluntário sente necessidade de realizá-lo, mas sim com uma responsabilidade e compromisso social.
Relato da experiência
Esta experiência corresponde ao estágio profissionalizante em Psicologia Social Comunitária, que tem duração de um ano, durante os semestres acadêmicos VII e VIII. O estágio acontece no Núcleo de Psicologia Social Comunitária (NPSC) da URI – Universidade Regional Integrada, campus Frederico Westphalen, e se desenvolve mediante projetos psicossociais. Para efeitos deste estágio foi proposta uma pesquisa intervenção, com metodologia qualitativa participativa, guardando os passos propostos por Sarriera (2005) 1. Definição e análise do tema ou problema a ser enfocado, bem como o grupo-alvo. 2. Avaliação inicial, análise de necessidades e recursos. 3. Delineamento, planejamento e organização do Programa de Intervenção. 4. Aplicação do Programa. 5. Avaliação da Intervenção, faltando ainda o último item: Disseminação do programa. Participaram todos os voluntários da LFCC que entraram e saíram da mesma durante o ano de estágio, duas estagiárias de psicologia e a coordenadora do NPSC. Realizaram-se visitas periódicas quinzenais, de sessenta a noventa minutos cada uma, dependendo da temática desenvolvida.
Análise teórico-prática
A partir da hierarquização das necessidades levantadas na primeira fase da intervenção e pesquisa destacamos as temáticas priorizadas: comprometimento do voluntário, valorização dos sentimentos dos voluntários diante da doença e da morte, resistência dos membros do grupo e formação do vínculo.
Comprometimento do voluntário
Nos primeiros encontros, sentimos a necessidade de organização do grupo, pois vários membros não sabiam em que consistia o estatuto da ‘Liga Feminina no Combate ao Câncer’(LFCC). Dessa forma, as ações propostas nesse documento não eram conhecidas por todos e, aqueles que as sabiam não as lembravam. Podemos entender que a falta de organização talvez esteja associada à falta de participação e comprometimento dos membros no grupo. Como refletido nessa fala de uma das participantes: mas as voluntárias não participam, acham que voluntário não tem compromisso.
Diante dessa necessidade do grupo, realizamos uma atividade em que foi lido e discutido, passo a passo, o estatuto da LFCC juntamente com os voluntários. Nesse mesmo encontro foram debatidas as funções das quais os voluntários poderiam responsabilizar-se, já que o estatuto oferecia diversas formas de ser um voluntário. Propusemos um momento de escolha e identificação com uma ação que cada um considerava aquela que tinha maior habilidade de realizar.
Conforme Marchioni (1999), a participação tem dois lados, por um lado precisa ser estimulada e, por outro lado esta não se desenvolve sem um conhecimento dos conteúdos nos que está se participando, ou seja, o participante necessita saber como está se desenvolvendo o grupo para continuar participando nele. O trabalho em equipe pode ser entendido como várias pessoas participando e ao mesmo tempo, como um grupo aberto onde ocorrem alguns desencontros, permanecendo sempre em movimento. Conhecer as possíveis funções do voluntariado favoreceu que alguns dos participantes se sentissem mais tranqüilos já que tinham reservas sobre a sua capacidade para atender diretamente o doente, enquanto que outros mantiveram como prioridade para seu labor as visitas domiciliares.
Neste sentido, Marchioni, (1999) escreve que pensar que todas as pessoas irão participar no grupo não é só uma utopia, mas uma estupidez. O processo comunitário deve ser aberto e incluir as pessoas que vão chegando. Não é, e não deve ser, um processo que provoque a exclusão. Isto quer dizer que o processo é flexível e aberto para poder adaptar-se às condições reais das pessoas e para que estas possam participar desde suas particularidades. Esta idéia permite a compreensão da necessidade de haver níveis diferenciados de participação.
Após uma discussão com o grupo ficou definido o momento de encontro com as estagiárias de psicologia como um grupo aberto, permitindo que muitos pudessem participar. Para propiciar o engajamento e a circulação das informações geradas dentro do grupo foi proposta uma ação denominada por nós como apadrinhamento. Assim, foi uma técnica que desenvolvia o estabelecimento de padrinhos entre os participantes. Cada membro deveria ser padrinho de alguém e assim consecutivamente de tal forma que se criou uma rede de apadrinhados e padrinhos. Essa técnica objetivou a circulação de informações entre os membros.
Quando discutimos a respeito de suas responsabilidades e compromissos enquanto voluntários, esclarecemos uma diferença sobre o que é ser voluntário e o que é ser assistencialista, explicando da responsabilidade que cada um assumiu como voluntário e não assistencialista. Abrimos espaço para eles pensarem se estavam dispostos a abrir mão de algo na sua vida particular para estar no grupo de voluntários. Desta forma, como Carlos (1998) discute, o profissional que trabalha em grupos deve auxiliar para que as pessoas envolvidas na experiência pensem o processo que estão vivenciando. A questão é ‘se pensar’ não individualmente, mas cada um participando de um mesmo barco que busca estabelecer uma rota. Deste modo, os membros da experiência terão condições para tomar decisões de forma mais lúcida e, portanto, podem avaliar os benefícios e os riscos das futuras ações que pretendem desenvolver. Apesar de observar que, no início, todo o grupo exercia pressão sobre cada membro, no sentido de se comprometer diretamente com o doente, lentamente foram aparecendo evidências de aceitação pela diferença.
Valorização dos sentimentos dos voluntários diante da doença e da morte
Dentro de um contexto no qual estão constantemente presentes a doença e a morte, podemos entender que o voluntário despende emocionalmente quando não tem um apoio psicológico necessário no grupo. E, por sua vez, em algumas ocasiões não consegue ajudar o enfermo por colidir com sentimentos próprios. Na medida em que os membros do grupo de voluntários esclarecem seus sentimentos diante da doença, eles podem ter melhores condições de modificar alguns pensamentos e, conseqüentemente, influenciar na concretização de mudanças nas pessoas com as quais entram em contato.
Entende-se que, destarte, se consegue fazer algumas modificações no voluntário, esse por sua vez, sem perceber, modificará um outro grupo de pessoas. De acordo com Bleger (1998) a instituição pode ser encarada como uma rede interligada e em constante movimento. Desta forma, as modificações sofridas por um grupo de pessoas podem provocar modificações em outros grupos da instituição.
Acreditamos que o voluntário precisa saber e ter clareza sobre a vontade e autonomia do paciente de decidir a sua presença no seu entorno. Porém muitas vezes o voluntário procura por um lugar para visitar, ou por um espaço no qual possa desempenhar sua ação, podendo ficar perplexo quando não tiver situações para estabelecer um contato com pessoas em sofrimento, como foi observado na fala de uma das participantes do grupo: Hoje eu fui ao hospital e não tinha ninguém para eu visitar, perdi a viagem.
Diante do objetivo de criar ferramentas no voluntário para que esse possa experimentar-se e vivenciar seus sentimentos sem sofrer com isso e poder agir sem invadir o outro, entendemos que é fundamental a compreensão de sim mesmo e de seus processos emocionais e cognitivos, oportunizando um espaço de expor seus sentimentos e, com isso, desenvolvendo um crescimento pessoal e grupal.
Compreendemos o grupo de voluntários como um grupo de trabalhadores, e assim, faz-se mister definir o quê quer dizer trabalho. Entende-se o trabalho como uma transformação intencional de um dado objeto, respondendo a necessidades (Mendes Gonçalves, 1992) que não são individuais, mas coletivas. Dessa forma, o trabalho tem como finalidade responder às necessidades de um determinado grupo, o que lhe confere uma dimensão social, e se transforma durante os diferentes momentos do desenvolvimento do conhecimento e da vida em sociedade.
Quando se pensa que o voluntário é um trabalhador, na medida em que estabelece um compromisso com o grupo e com a sua participação, podemos acreditar que cria um vínculo com o grupo. O voluntário pode ser entendido como um agente de saúde, ou seja, um trabalhador da saúde.
Segundo Pitta (1999), lidar cotidianamente com a doença e a morte transforma a própria existência humana, devido a que modifica impulsos primitivos em atuação concreta por meio de processos tecnológicos de saúde. Muitas vezes, o impacto da doença e o estresse de familiares ou de colegas de trabalho podem produzir uma rede inconsciente de associações que fazem com que o papel do profissional da saúde perpetue situações arcaicas que incrementam sua própria ansiedade e dificuldade em lidar com ela.
Nesse sentido, por entendermos que o voluntário está em constante contato com o sofrimento e com a doença podendo surgir ansiedades e sofrimentos decorrentes desses contatos freqüentes, foram propostas atividades que abordassem os sentimentos do trabalhador, com o intuito de proporcionar espaços para que pudesse expressar seu sofrimento decorrente da visibilidade, muitas vezes, de estados vegetativos de portadores de câncer, assim como mortes freqüentes, o que reflete no seu estado emocional e, portanto, no trabalho que desempenha como voluntário. Aos poucos visamos para a possibilidade de auto-sustentação e auto-organização grupal dos voluntários, conseguindo lentamente apontar para o estabelecimento de um espaço de conhecimento de seus próprios sentimentos.
Percebemos, num primeiro momento, a alienação ao nosso pensamento, nossas idéias, nossa presença, mas num segundo momento, a partir de um suporte para a auto-organização grupal, lentamente, começaram caminhar sozinhos. Podemos observar isso através da espera por nós quando realizavam visitas, e aos poucos foram se organizando sem a nossa presença. Também percebemos a espera de respostas prontas sobre os próprios sentimentos e como lidar com eles. Por meio de intervenções visando à auto-organização grupal, progressivamente ocorreu uma mudança sugerindo soluções originadas do grupo acolhendo e intervindo nesses momentos. Neste sentido como estagiárias podemos perceber que se estabeleceram pautas de relação isomórficas entre as voluntárias e as acadêmicas, na medida em que se criaram dependências. Estas foram trabalhadas constantemente na supervisão com o intuito de romper esses padrões comportamentais e permitir aos voluntários distanciar-se para conseguir avaliar seu trabalho.
De acordo com Ziegelmann (2005), compreender o grupo como dispositivo de potências autopoiéticas sugere uma prática, na qual a dinâmica e a organização do grupo e as intervenções que vão se processando, preservam a capacidade de autonomia e de criação, assim como projetam novas origens subjetivas que vão produzindo nos sujeitos o aumento evolutivo das potências criativas e de autonomia, na busca de novas composições de si diante dos desafios da vida.
Nesse sentido, entendemos que o grupo utilizado como um instrumento para a auto-organização dos sujeitos proporcionou aos voluntários, uma maior capacidade de criação e autonomia, na medida em que ele mesmo se constituiu como espaço para a troca, a compreensão de seu próprio ser como voluntário e como contexto de construção e redefinição de crenças e de vivências.
Resistência dos membros do grupo e formação do vínculo
Compreendemos que um grupo está em constantes modificações. Neste sentido, percebemos a falta e a desistência dos participantes no grupo como um sintoma da difícil escolha em ser um voluntário e o comprometimento que dele se exige. Relacionamos isto ao que vínhamos trabalhando: a escolha de abrir mão de outras atividades para ser voluntário. Entretanto, parece que abriram mão do grupo por um tempo. Após um espaço de tempo ter sido estabelecido, a presidência realizou um convite pessoalmente ou via telefone a cada voluntário.
A tentativa de alguns membros no grupo de fazer mudanças para que não ficassem somente em arrecadar recursos financeiros para o grupo, pareceu-nos em primeira mão como um momento em que o grupo estava disposto a mudanças. Por outro lado, nos remetia a pressão exercida por alguns dos membros deste grupo sobre a prioridade do atendimento direto ao doente. Entretanto, essas tentativas provinham de um ou dois voluntários e não teve suporte da presidência para proceder.
Conforme Zimermam (1999), a resistência pode ser definida como a resultante de forças, dentro do analisando, que se opõe ao processo de análise, obstaculizando as funções de recordar, elaborar, assim como o desejo de mudança. Segundo esse autor a presença da resistência obstrui totalmente o curso exitoso de uma análise. Entretanto, na maioria das vezes, o aparecimento das resistências no processo analítico é bem-vindo, já que representam uma forma como o individuo defende-se e resiste no cotidiano de sua vida.
A fim de suprir essa demanda surgida no grupo propusemos uma atividade que tinha como objetivo salientar a importância de cada membro no grupo. Nessa técnica utilizamos como dispositivo um texto titulado “Minha máquina de escrever”, que se encontra em anexo nesse artigo. Também foram propostos espaços de fala sobre os sentimentos de cada membro frente o grupo. Espaços que se desenvolveram com o intuito de esclarecer os próprios sentimentos do voluntário no grupo.
Percebemos a fala da diretoria, em muitas ocasiões, como um desabafo, expondo sentimentos e desconfortos que se originaram de alguns desencontros com algumas participantes do grupo, as quais insistentemente realizaram atividades sem explicar para a presidência como as desempenhavam. Isto acarretou ressentimento diante de tais ações, já que era entendido que uma das funções da presidência era de organizar o grupo e suas ações.
A presidência queixou-se da falta de comprometimento dos voluntários, sendo que isso a sobrecarregava. Uma técnica utilizada para vir ao encontro dessa necessidade teve como objetivo o esclarecimento do compromisso do voluntário. Essa consistia em um diálogo em dupla, na qual cada um deveria falar o que não abre mão pela LFCC e o outro deveria insistir sobre essa concepção e vice-versa.
Segundo Zimerman (1999), o vínculo pode ser entendido como um arcabouço relacional-emocional entre duas ou mais pessoas, ou entre duas ou mais partes separadas de uma mesma pessoa, Bion ampliou o conceito de vínculo a qualquer função ou órgão que, desde a condição de bebê, esteja encarregado de vincular objetos, sentimentos e idéias, uns aos outros.
Considerações finais
Percebemos neste grupo de voluntários a necessidade de seus membros de falar sobre os seus sentimentos e do seu sofrimento frente à doença e a morte, assim como suas experiências em relação à doença. Também sentimos que o grupo necessitava estar aprendendo a intervir nas casas em que visita instrumentalizando-se teoricamente, além de fortalecendo-se individual e grupalmente.
Entendemos que necessitavam amparo sentimental e uma sustentação teórica de conhecimentos que pudessem ser aproveitados na prática. Entretanto, notamos que o grupo está em um processo de resistência a estas intervenções, o que dificulta a nossa inserção e o suprimento destas necessidades. Esta resistência pode ser em decorrência de um continuo movimento migratório, o que dificulta a formação estrutural do grupo e com isto a possibilidade de estabelecer claramente os papéis, assim como desempenhá-los. Podemos pensar que o alto custo emocional que os voluntários da Liga pagam por sua ação, assim como o fato que o acolhimento começou neste ano a ser dado pelas estagiárias, contribui para que o processo de adaptação estrutural seja mais lento.
Acreditamos que algumas intervenções que foram feitas tiveram o resultado esperado e algumas mudanças aconteceram, porém pensamos que a resistência ainda tem que dar passo à integração grupal. Pensamos que na medida em que o grupo se fortalecer e as estagiárias sejam vistas não meramente como aprendizes, mas como potencializadoras do processo em busca de ferramentas que permitam qualificar seu trabalho, compreender suas ações, emoções, e dar conta das relações que estabelecem com os doentes, voluntariar será mais efetivo. Na medida em que as relações do endogrupo (voluntários) passem da exigência ao respeito pela diversidade e diferença, este se constituirá em fonte de apoio emocional e suporte afetivo, assim de fortalecimento e acolhimento pessoal. Pensamos que a dificuldade nas relações entre os voluntários pode ser compreendida quando entendemos que os membros do grupo conseguem descontar emocional e afetivamente, nos seus companheiros, a dor pelo outro, a angústia e desgosto que trazem das visitas aos doentes.
Alguns membros do grupo de voluntários estão realizando grupos com os familiares dos portadores de câncer fato que consideramos de elevada importância para o bem-estar dos e seus familiares, pois estão passando por momentos difíceis, o que contribuirá para fortalecê-los e trocar experiências. Consideramos que as ações realizadas durante os nossos encontros de estágio, estão sendo úteis como modelo de aprendizagem para os voluntários e eles conseguem, desta forma, levar as experiências vivenciadas no endogrupo, para os grupos de familiares. Podemos supor que é assim como o sexto passo da intervenção pode estar sendo disseminado, porem este aspecto ainda deverá ser avaliado proximamente.
Compreender o grupo como dispositivo de potências autopoiéticas sugere uma prática na qual a dinâmica e organização do grupo, as interações que vão se processando preservam a capacidade de autonomia e de criação, assim como projetam nas novas origens subjetivas que vão produzindo nos sujeitos o aumento evolutivo das potencias criativas e de autonomia na busca de novas composições de si diante dos desafios da vida (Ziegelmann, 2005).
Conforme o autor, a auto-organização dos indivíduos no grupo favorece a troca de experiências e com isso a criação de uma autonomia e, portanto, de novas formas de pensar a vida. Esse foi o nosso objetivo com os trabalhadores voluntários, para que os participantes pudessem trocar experiências, ver que não está vulnerável emocionalmente e poder expressar seus sentimentos e, além disso, ter o grupo como acolhedor nesses momentos de sofrimento.
Por fim, nossa experiência como estagiárias acompanhando este grupo ao longo de um ano, nos permitiu aprender a importância da paciência, da escuta ativa, do olhar constante, da auto-avaliação permanente e do autocuidado para conseguir atingir as metas propostas. Houve muitos momentos nos quais sentimos a impotência e a vontade de desistir do trabalho, principalmente quando, aparentemente, não encontrávamos caminhos novos para propor. Porém, a persistência, a vontade de aprender e a necessidade de compreender os processos grupais, foram motivações importantes para superar as dificuldades. Como dupla de estagiárias, passamos por momentos muito parecidos aos vivenciados pelo grupo de voluntários e lentamente fomos aprendendo a respeitar as diferenças de cada uma assim como os distintos modelos de intervenção que cada uma foi desenvolvendo.
Referências
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Endereço para correspondência
E-mail: denisezanatta@bol.com.br
Recebido em agosto de 2005
Aceito em novembro de 2005
Autoras: 1 Denise Zanatta – Acadêmica de VIII semestre do Curso de Psicologia da URI, Campus de Frederico Westphalen.
2 María Piedad Rangel Meneses – Psicóloga supervisora do estágio. Coordenadora do Núcleo de Psicologia Social Comunitária da URI – Frederico Westphalen. Professora da ULBRA – Canoas e doutoranda de Psicologia, PUCRS.
* Este artigo é resultado das reflexões da experiência de estágio profissionalizante realizado pelas acadêmicas Denise Zanatta, como responsável direto pelo desenvolvimento do projeto, e Ana Rita Bonfanti.
ANEXO A
Minha máquina de escrever
Alexandre O. Zink
Apxsar dx minha máquina dx xscrxvxr sxr um modxlo antigo, funciona bxm com xcxção dx uma txcla. Há 42 txclas qux funcionam bxm, mxnos uma x isso faz uma grandx difxrxnça.
Às vxzxs mx parxcx qux mxu grupo x´ como a minha máquina dx xscrxvxr. Qux nxm todos os mxmbros xstão dxsxmpxnhando suas funções como dxvxriam.
Vocx dirá: “Afinal sou apxnas uma pxça sxm xxprxssão x sxm dúvida não farxi difxrxnça ao grupo”. Xntrxtanto, uma organização para podxr progrxdir xficixntxmxntx prxcisa da participação ativa x consxcutiva dx todos os sxus componxntxs. Na próxima vxz qux vocx pxnsar qux não prxcisam dx vocx, lxmbrx-sx da minha vxlha máquina dx xscrxvxr x diga a si próprio:
- Xu sou a pxça mais importante do grupo x os mxus sxrviços são muito nxcxssários.
O defeito foi sanado. O texto da mensagem, agora é claro e positivo. Sinta a diferença de uma “simples peça”. Identifique-se, integre-se, trabalhe em prol da sua comunidade através do seu grupo.