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Aletheia

versão impressa ISSN 1413-0394

Aletheia  no.34 Canoas abr. 2011

 

RELATO DE EXPERIÊNCIA

 

Uma compreensão daseinsanalítica do mundo de Christopher: protagonista do romance “O Estranho Caso do Cachorro Morto", e diagnosticado com Transtorno de Asperger

 

A daseinsanalytical understanding of Christopher's being-in-the-world, protagonist of the novel “The Curious Incident of the Dog in the Night-Time" and diagnosed to Asperger Syndrome

 

 

Marcos Malta Campos

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RESUMO

Este artigo tem como objetivo realizar uma compreensão daseinsanalítica do ser-no-mundo do adolescente Christopher, protagonista do romance O Estranho Caso do Cachorro Morto, explicitando as relações do personagem com as pessoas de seu mundo. Partindo do diagnóstico de Transtorno de Asperger, demonstrando que o mesmo é pertinente ao personagem pelo enfoque do DSM-IV-TR, procura-se uma compreensão do personagem-pessoa, tendo como referência contribuições do filósofo Martin Heidegger em seus Seminários de Zollikon. Percebe-se que Christopher relaciona-se com os outros predominantemente numa disposição de estranhamento. A aproximação do mundo do personagem aponta para uma abordagem que parece enriquecer a perspectiva psiquiátrica do manual diagnóstico, no sentido de desvelar o mundo da pessoa que existe para além do diagnóstico.

Palavras-chave: Transtorno de Asperger, Daseinsanalyse, Ser-no-mundo.


ABSTRACT

This article aims to achieve a daseinsanalytic comprehension of the teenager Christopher's being in the world (character of the novel The Curious Incident of the Dog in the Night-Time), explaining the character's relationships with others who are presented in his world. Is demonstrated that Christopher's manifestations can also be diagnosed as Asperger's Syndrome, according to DSM-IV-TR, directing to a understanding of the character's world. Contributions of the philosopher Martin Heidegger in his Zollikon Seminars are references. This paper found out that Christopher gets on with others predominantly in strangeness. The approach of the world's character seems to enrich the perspective of the psychiatric diagnostic handbook.

Keywords: Asperger's Syndrome, Daseinsanalyse, Being-in-the-world.


 

 

Introdução

O presente texto busca realizar uma compreensão daseinsanalítica do ser-no-mundo do adolescente Christopher, protagonista do romance inglês O Estranho Caso do Cachorro Morto (Haddon, 2006), identificado com o diagnóstico de Transtorno de Asperger. Pretende-se levantar mais especificamente as relações do personagem com as pessoas de seu mundo, como o personagem as descobre, e em que disposição.

O personagem, que tem 15 anos, é apresentado, tanto na edição inglesa quanto na versão brasileira, como alguém com o referido diagnóstico: “Christopher Boone tem 15 anos e sofre da síndrome de Asperger, uma forma de autismo" (Haddon, 2006, orelha do livro).

Fruto da dissertação de mestrado do autor, o presente artigo, ao buscar a compreensão de um personagem literário, procura sustentação em exemplos de personagens da literatura alçados à condição de ser alguém que poderia ser diagnosticado com um transtorno mental, como o Simão Bacamarte de O Alienista, de Machado de Assis e o Axenty Ivanovitch de O Diário de um Louco, de Nikolai Gogol; e também em exemplos como os de Freud, que teceu considerações sobre personagens dramáticos para ilustrar compreensões psicanalíticas, como nas Cinco Lições de Psicanálise com o Hamlet de Shakespeare e com o Édipo de Sófocles.

O desenvolvimento do texto tomará a seguinte ordenação: apresentação do romance e do personagem; em seguida, apresentação dos critérios diagnósticos para Transtorno de Asperger segundo o DSM-IV-TR, demonstrando, inclusive, a pertinência do diagnóstico ao personagem quando é enfatizada esta ótica; e, finalmente, a busca de uma compreensão daseinsanalítica do mundo de Christopher. Sempre que houver transcrições do relato de Christopher, as mesmas aparecerão em negrito e em itálico, já que o romance constitui-se numa história contada por ele.

Romance e personagem

Escrito pelo romancista e professor de redação da Universidade de Oxford Mark Haddon, e publicado pela primeira vez em 2003, com o título original “The Curious Incident of the Dog in the Night-Time", a história é narrada da perspectiva do próprio Christopher, morador de Swindon, cidadezinha do interior da Inglaterra. A trama se desenvolve a partir do momento em que ele descobre o cachorro de sua vizinha, o poodle Wellington, morto no jardim da casa dela, transpassado por um forcado de jardim. Sendo admirador das histórias de Sherlock Holmes, imortalizadas por Arthur Conan Doyle, Christopher é estimulado pela professora Siobhan, de sua escola, a escrever a história sobre sua investigação do assassinato do cachorro, resultando então em “O Estranho Caso do Cachorro Morto".

Christopher vai se dando a conhecer conforme seu relato vai jorrando, contando sobre a investigação do assassinato, se mostrando como é, como enxerga as pessoas e o mundo.

Oliver Sacks, neurologista inglês, autor de “Um Antropólogo em Marte" (2001), livro que, entre outras histórias verídicas, apresenta a de uma moça que tem o diagnóstico de Transtorno de Asperger, escreve tanto na apresentação inglesa quanto na brasileira de “O Estranho Caso do Cachorro Morto", que se trata de “Um livro delicioso e brilhante. Mark Haddon mostra grande conhecimento da mente de um autista... Contagiante, plausível, engraçado (Haddon, 2006, contracapa)".

Transtorno de Asperger e Christopher

O Transtorno de Asperger é considerado uma desordem do espectro do autismo, entendido o termo autismo em sentido amplo nesse contexto, e não excluindo o diagnóstico específico de Transtorno Autista, vizinho, por assim dizer, do Transtorno de Asperger, no grupo maior dos chamados Transtornos Globais do Desenvolvimento (adotando-se o DSM-IV-TR como referência).

Lorna Wing, médica inglesa que, ao publicar um estudo com 34 sujeitos em 1981, nomeou o quadro como síndrome de Asperger, percebeu uma tríade de déficits simultâneos, nas áreas social, comunicacional e simbólica, ao estudar características comuns à síndrome de Asperger e ao autismo (Zukauskas, 2003). Essa tríade de déficits se revela “[...] em quadros clínicos dos mais graves aos mais tênues, e assim constituem um continuum autístico [...] (Zukauskas, 2003, p.19)".

Hans Asperger, em Viena, em 1944, estudara e nomeara a Psicopatia Autística da Infância – psicopatia no sentido de uma anormalidade da personalidade –, que mais tarde viria a ser rebatizada, em sua homenagem, por Wing. Leo Kanner, também austríaco, emigrado para os Estados Unidos, e que em 1943 publicou “Autistic Disturbances of Affective Contact". Hans Asperger afirmaria mais tarde que os casos descritos por ele diferiam muito dos descritos por Kanner, pois o primeiro enfatizaria a inteligência preservada, a excelente memória e o bom prognóstico (Klin, 2006).

O DSM-IV-TR (2003, p.111) enfoca os seguintes critérios ao descrever o Transtorno de Asperger (e para cada critério apresentado será descrita, entre parêntesis, uma manifestação de Christopher condizente com o referido critério. As páginas da edição brasileira do romance em que aparecem as manifestações serão referenciadas, quando for o caso. A transcrição é literal da edição brasileira do manual diagnóstico):

A. Comprometimento qualitativo da interação social, manifestado por pelo menos dois dos seguintes quesitos:

1. Comprometimento acentuado no uso de múltiplos comportamentos não verbais, tais como contato visual direto, expressão facial, posturas corporais e gestos para regular a interação social.

(Páginas 10-1 do romance: Christopher comenta sobre suas dificuldades em compreender expressões faciais, tendo chegado a lançar mão de diagramas – figura abaixo, desenhada pela professora de Christopher, constante da página 10 da edição brasileira do romance – com expressões para que pudesse usar como uma espécie de tradutor. Ele escreve: “Mas era muito difícil saber qual dos diagramas representava as caras que eles [as pessoas] faziam porque elas [as expressões faciais] mudavam muito depressa").

 

 

2. Fracasso para desenvolver relacionamentos apropriados ao nível de desenvolvimento com seus pares.

(Ao longo do romance, percebe-se que Christopher não faz amigos e não conhece intimidade com outra pessoa).

3. Ausência de tentativa espontânea de compartilhar prazer, interesses ou realizações com outras pessoas (por exemplo, não mostrar, trazer ou apontar objetos de interesse a outras pessoas).

(Não há presença, no personagem, de busca espontânea, prazerosa, ávida no sentido de busca de aconchego, pelo contato com um outro).

4. Ausência de reciprocidade social ou emocional.

(Página 63 do romance: quando a vizinha senhora Alexander simpaticamente o convida para entrar em sua casa para tomar um chá, após Christopher interrogá-la secamente no portão sobre o assassinato do cachorro da outra vizinha, tentando obter informações, responde: “Eu não entro na casa de outras pessoas").

B. Padrões restritos, repetitivos e estereotipados de comportamento, interesses e atividades manifestados por pelo menos um dos seguintes quesitos:

1. Insistente preocupação com um ou mais padrões estereotipados e restritos de interesses, anormal em intensidade ou foco.

(O personagem apresenta marcante interesse em números primos, tanto que os capítulos do livro, que são o relato, em primeira pessoa, de sua investigação, são numerados apenas com os daquela natureza. Há também interesse marcante na resolução de equações de segundo grau).

2. Adesão aparentemente inflexível a rotinas e rituais específicos e não funcionais.

(Christopher enumera nas páginas 70-1 o que chama de seus “problemas comportamentais": “Recusar a usar minha escova de dente se alguém mais tocar nela. Ficar perturbado quando alguém muda a mobília de lugar").

3. Maneirismos motores estereotipados e repetitivos (por exemplo, dar pancadinhas ou torcer as mãos ou os dedos, ou movimentos complexos de todo o corpo).

(Página 270-1 do romance: a mãe de Christopher diz que ele terá de adiar o exame avançado de matemática, o qual sonha fazer. Nesse momento, “Meu peito começou a doer novamente, eu dobrei os braços e fiquei balançando para trás e para frente e gemendo").

4. Insistente preocupação com partes de objetos.

(Página 63 do romance: A vizinha senhora Alexander explica a ele como é o bolo Battenberg, dizendo que “Tem quatro quadrados rosas e amarelos no meio e tem glacê de marzipã ao redor, na beirada". Christopher então pergunta: “É um bolo grande com uma seção no meio que é dividida em quadrados coloridos alternadamente de igual tamanho?").

C. A perturbação causa comprometimento clinicamente importante nas áreas social, ocupacional ou outras importantes de funcionamento.

(Em várias passagens do romance, Christopher manifesta seu profundo desagrado em estar com muita gente, como, por exemplo, lembra a mãe em uma carta a ele: “Você ficou amedrontado por causa da quantidade de gente na loja" – página 146).

D. Não existe um atraso geral clinicamente importante na linguagem (por exemplo, utiliza palavras isoladas aos dois anos, frases comunicativas aos três).

(Não é feita menção a algum atraso no desenvolvimento da linguagem no personagem).

E. Não existe um atraso clinicamente importante no desenvolvimento cognitivo ou no desenvolvimento de habilidades de autocuidado próprios da idade, no comportamento adaptativo (outro que não na interação social) e na curiosidade acerca do ambiente na infância.

(Ele sabe ler e escrever. Vai ao banheiro sozinho, sem ajuda. Alimenta seu hamster de estimação. Caminha só até a loja que fica em sua rua).

F. Não são satisfeitos os critérios para outro Transtorno Global do Desenvolvimento ou Esquizofrenia.

(Analisando brevemente os outros Transtornos Globais e o porquê de a sintomatologia de Christopher não ser condizente com os mesmos: O Transtorno de Rett foi diagnosticado apenas no sexo feminino. O Transtorno Autista revela atraso significativo no desenvolvimento da linguagem. No Transtorno Desintegrativo da Infância fala-se em graus acentuados de retardo mental e significativo comprometimento da linguagem e da comunicação. Há ainda o Transtorno Global do Desenvolvimento Sem Outra Especificação, quando se fala, por exemplo, em Autismo Atípico, em vista da idade tardia do início do quadro e da sintomatologia atípica, entre outros critérios. Já na Esquizofrenia, observam-se alucinações, delírios e discurso desagregado).

Em direção a uma compreensão daseinsanalítica

O DSM-IV-TR atualmente constitui o padrão ouro para o diagnóstico clínico dos transtornos globais do Desenvolvimento; uma abordagem que lista critérios com fins de confirmar ou descartar um diagnóstico.

Numa crítica a esse tipo de abordagem, Cardinalli (2004), citando Pereira (2000), observa que a psiquiatria contemporânea baseada nos manuais DSM e CID se atém a “[...] meras descrições de critérios diagnósticos [...]", sem que realize “[...] uma discussão da natureza do sofrimento psíquico (p.54)", não buscando “[...] os esclarecimentos dos fatos clínicos realizados pela fenomenologia, a psicanálise, e a análise existencial no campo da psicopatologia (p.54)".

Em uma compreensão daseinsanalítica, trata-se de descobrir como as doenças afetam o homem em sua humanidade, em seu viver a vida, em seu descortinar de mundo. A respeito da esquizofrenia (o que pode ser aplicado ao falar-se em Transtorno de Asperger), Boss (1977, p.6) comenta que

[...] mesmo que se tenha encontrado um fator físico que possa sem dúvida parecer uma somatogenia do modo-ser-esquizofrênico na sua concepção mais comum até hoje, não se terá chegado mais próximo da concepção desse sofrimento, pois para isso é necessário saber o que ele significa como modo existencial doentio humano.

Numa perspectiva daseinsanalítica, estar-se-ia muito próximo daquilo que Foucault (1991, p.56) descreve como uma abordagem diferente da “naturalista" (“[...] encara o doente com o distanciamento de um objeto natural") e da “reflexão histórica" (“[...] permite explicar, mas raramente compreender"). E ele prossegue sobre essa diferente abordagem das patologias mentais:

A intuição, penetrando na consciência mórbida, procura ver o mundo patológico com os olhos do próprio doente [...] Na medida em que compreender quer dizer, ao mesmo tempo, reunir, apreender de pronto, e penetrar, esta nova reflexão sobre a doença é antes de tudo "compreensão: foi este o método usado pela psicologia fenomenológica. (Foucault, 1991, p.56)

Heidegger, discípulo de Edmund Husserl, considerado este o fundador do método fenomenológico, utiliza a fenomenologia para a busca do sentido do ser em geral, para tanto, interrogando previamente numa ontologia fundamental, as estruturas essenciais – Temporalidade, Espacialidade, Ser-Com os Outros, Disposição, Compreensão, Cuidado, Queda e Ser Mortal – daquele que pergunta pelo ser: o ser humano; o resultado é a obra Ser e tempo, publicado em 1927. Porém, nos Seminários de Zollikon (2001), ele admite que o método fenomenológico pode ser usado não apenas no sentido ontológico, mas também no sentido ôntico, para compreender “[...] "o ente que se mostra, respectivamente, assim e assim', isto é, que na medicina é examinado e tratado (Heidegger, 2001, p.235)".

Nos Seminários de Zollikon, a daseinsanalyse heideggeriana, desenvolvendo o método fenomenológico em seu desdobramento ôntico, como dito acima, é exercitada pelo filósofo para auxiliar médicos psiquiatras no desenvolvimento de uma prática clínica daseinsanalítica, no sentido de “[...] comprovação e descrição de fenômenos que se mostram factualmente, em cada caso, em um determinado dasein existente (Heidegger, 2001, p.151)".

Dasein é o termo pelo qual Heidegger quer explicitar o que para ele constitui-se no caráter mais fundamental do homem: ser-aí, lançado no mundo, já desde sempre com os outros e as coisas. O da do dasein é entendido como abertura essencial do existir (do latim ek-sistere, que significa movimento para fora, estar além de si) humano, e dasein é o estar aberto que possibilita compreender os significados do que é encontrado no mundo.

Compreendendo o homem como dasein, como ser-no-mundo (caráter existencial do dasein), trata-se de procurar compreender o mundo (mundo entendido como uma totalidade de relações significativas em que uma pessoa se encontra) aberto na situação de patologia, pois não é que a abertura desaparece, mas sim é modificada, como exemplifica Heidegger em relação à esquizofrenia:

O estado de abertura para o presente é o traço fundamental do ser humano. Mas o estado de abertura para o ente traz em si diversas possibilidades. O que rege toda abertura é o estar aberto junto às coisas que nos dizem respeito corporalmente sem intermediações. A falta de contato que se verifica na esquizofrenia é uma privação do estar aberto. Mas esta privação não significa que a abertura desaparece, apenas ela é modificada para a "pobreza de contato'. (Heidegger, 2001, p.100-1)

O presente artigo busca descrever a abertura do personagem no que tange à descoberta dos outros a sua volta. Heidegger aponta que, se “[...] de início, um mero sujeito não é e nunca é dado sem mundo", também “[...] não é dado um eu isolado sem os outros […] os outros já estão copresentes no ser-no-mundo (Heidegger, 1993, Parte I, p.167)". Dasein é originariamente ser-com os outros.

Aproximando o Ser-Com os Outros em Christopher

Logo no início do romance, Christopher se apresenta como alguém que se sente feliz quando imagina que é única pessoa no mundo. Também mostra como para ele é difícil compreender a amplitude de significados que podem se dar no contato humano, do que dá testemunho sua dificuldade em decifrar expressões faciais. Ele percebe, sim, expressões, enquanto algo presente no contato, mas como uma coisa enigmática, a desafiar sua compreensão:

Há oito anos, quando conheci Siobhan [professora de Christopher] ela me mostrou este desenho [ver figuras abaixo, copiadas do livro, p.10] e eu sabia que significava "triste', que é como eu me senti quando encontrei o cachorro morto. [...] feliz, que é como eu fico quando estou lendo sobre as missões espaciais Apollo, ou quando eu ainda estou acordado às três ou às quatro da manhã e posso caminhar para cima ou para baixo da rua e imaginar que sou a única pessoa no mundo inteiro. (Haddon, 2006, p.10)

 

 

Uma levantada de sobrancelhas, uma fala com metáforas, por exemplo, são para ele enigmas:

Acho as pessoas complicadas. Por duas razões principais. A primeira razão principal é que as pessoas conversam um bocado sem usar qualquer palavra. Siobhan diz que quando alguém levanta uma sobrancelha, pode significar muitas coisas diferentes. Pode significar "Quero fazer sexo com você' e também "Acho muito estúpido o que você acabou de dizer'. [...] A segunda razão principal é que as pessoas sempre conversam usando metáforas. (Haddon, 2006, p.27)

Para Heidegger o ser-com os outros acontece sempre de modo compreensivo, sempre se compreende o outro desta ou daquela maneira, e numa determinada disposição. No seminário de Zollikon de 11 de Maio de 1965 ele coloca que: “"Vemos' no rosto do próximo se ele está constrangido ou aquecido por algum motivo, de acordo com as respectivas situações (Heidegger, 2001, p.109)".

Christopher compreende que há ali no rosto do outro uma expressão, mas nem sempre como sendo esta ou aquela específica. Não se deve considerar o autismo e o Transtorno de Asperger como doenças em que ocorre o total isolamento da vida com os outros, mas sim como formas de redução mais ou menos radical da possibilidade de encontrar os outros com uma riqueza maior de significados. Ainda assim, o outro está presente, mesmo que, nos casos de autismo mais grave, dificilmente se possa ter acesso à perspectiva da pessoa adoecida.

Christopher não se sente familiarizado, no mais das vezes, ao contato com aqueles à sua volta, imperando uma disposição de estranheza no encontro com os outros.

Considerando as pessoas “complicadas", Christopher tem nos cachorros um ponto de apoio, e é possuidor de um hamster, do qual cuida muito bem:

A gente sempre sabe o que um cachorro está pensando. O cachorro pode estar de quatro jeitos: Feliz, triste, zangado e concentrado. Além disso, os cachorros são leais e não dizem mentiras porque não podem conversar. (Haddon, 2006, p.12)

Christopher não gosta que se aproximem dele. Mesmo com pai, que mora com ele, que é a pessoa em que mais confia, para cumprimentá-lo, é necessário que ambos ergam as mãos, um a esquerda, o outro a direita, separando os dedos “como num leque", e então se tocam:

“A gente faz isso porque tem vezes que o pai quer me dar um abraço, mas não gosto de abraçar pessoas, então nos fazemos isso, e isso significa que ele me ama (Haddon, 2006, p.29)".

Traçando um possível paralelo – não se está afirmando trata-se de mesmos quadros quando se fala em Esquizofrenia e em T. de Asperger, apenas busca-se aproximar o possivelmente vivido pelo personagem – Boss comenta que há esquizofrênicos que “[...] deliberadamente não querem mais deixar que nada se aproxime, por medo de não poderem mais resistir ao que está perto, de serem sugados por tudo e de sucumbirem a isso (1977, p.20)".

Christopher tende a se fechar aos outros, em contatos que são vividos por ele como excesso de solicitação, maneira pela qual Heidegger compreende o fenômeno do stress em um sentido que acredita ser mais apropriado ao ser humano; no seminário de 3 de Março de 1966 o filósofo comenta que “Se, ao invés de stress falarmos de solicitação então isto não é apenas um título diferente, mas a palavra solicitação leva a coisa imediatamente para o âmbito do ser homem ek-stático [...] (Heidegger, 2001, p.167)", ou seja, para o âmbito essencial humano em que este é sempre, desde sempre, interpelável e interpelado pelo que quer que seja que lhe venha ao encontro.

Se para Christopher é quase impossível mentir, “Eu não conto mentiras [...] Mas não é porque eu sou uma boa pessoa. É porque eu não consigo dizer mentiras (Haddon, 2006, p.33)", consegue dizer o que chama “mentiras brancas". Quando é pressionado pelo pai a revelar se estava investigando o assassinato de Wellington, contrariando um pedido expresso paterno, à pergunta do pai “Por onde você andou?", ele responde “Aí pela rua"; então ele explica ao leitor de seu livro: “Uma mentira branca não é totalmente uma mentira. É quando você diz a verdade, mas não diz toda a verdade. [...] eu sabia que o pai não queria que eu bancasse o detetive (Haddon, 2006, p.72)".

Por essa dificuldade em ocultar-se perante os outros, apresenta-se como alguém que tem de se ocultar concretamente, fisicamente, como, por exemplo, quando quer ficar sozinho dentro de um armário de sua casa.

Relaciona-se com os outros muitas vezes sem perceber o que está ocultado, o que somente seria visível se tivesse possibilidade mais ampla de alcançar o horizonte mais ao fundo da cena de mundo:

[...] as pessoas vivem dizendo: "Fique quieto', mas elas não dizem por quanto tempo é para ficar quieto. Ou você vê uma placa que diz "Não pise na grama', mas deveria dizer "Não pise na grama ao redor da placa', porque sempre tem um bocado de grama no qual se pode andar […] Quando ela [Siobhan] me diz para não fazer uma coisa, ela me diz exatamente o que eu não devo fazer. E eu gosto disso. (Haddon 2006, p.48)

Há quase a impossibilidade de perceber matizes, de relativizar chamadas normas de conduta social:

As pessoas dizem que você sempre tem de dizer a verdade. Mas elas não levam isso a sério porque você não pode dizer às pessoas velhas que estão velhas e você não pode dizer às pessoas que elas estão com um cheiro estranho ou quando um adulto solta um peido. (Haddon, 2006, p.70)

A perda de uma certa familiaridade com o mundo torna-se aflitiva em algumas situações, do que dão mostras as seguintes duas passagens:

Não gosto de estranhos porque não gosto de pessoas que eu nunca tenha encontrado antes. Elas são difíceis de entender. É como estar na França, que é para onde fomos nas férias, algumas vezes, quando a mãe estava viva, para o acampamento. E odiei porque quando entrava numa loja ou num restaurante ou mesmo se fosse a praia, não podia entender o que as pessoas diziam. (Haddon, 2006, p.55-6)

Levei muito tempo para me acostumar com as pessoas que não conhecia. Por exemplo, quando há um novo membro na equipe da escola, fico sem conversar com ele por semanas. Fico apenas observando até saber que eles são seguros. (Haddon, 2006, p.56)

O distanciamento físico de certas situações, a presença de alguém jamais visto anteriormente, parece potencializar em Christopher o estranhamento enquanto perda de mundo familiar, e logo, perda de si.

Tomar distância dos outros, recolher-se só, é experimentado numa disposição prazerosa. Gostaria de estar

[...] sozinho dentro de uma minúscula nave espacial a milhares e milhares de quilômetros da Terra […] eu gosto de verdade de espaços pequenos, contanto que não tenha mais ninguém ali comigo. Tem vezes, quando eu quero ficar sozinho, que eu entro no armário suspenso do banheiro, escorrego para o lado do bóiler, fecho a porta, sento lá e fico pensando por horas, e isto me faz sentir mais calmo […] Eu ia poder olhar por uma janela pequena da aeronave e ia saber que não teria ninguém por perto em milhares e milhares de quilômetros […]. (Haddon, 2006, p.75-6)

Mesmo o mais familiar para ele causa estranhamento; por exemplo, não compreende as metáforas que a autor de seu “livro favorito", O Cão dos Baskervilles, emprega:

Tem horas que sir Arthur Conan Doyle descreve assim as pessoas: "Há alguma coisa sutilmente errada com o rosto, alguma aspereza de expressão, alguma dureza, talvez do olhar, algum relaxamento dos lábios que prejudica sua perfeita beleza'. Eu não sei o que "alguma dureza, talvez do olhar', significa, e não me interesso por rostos. (Haddon, 2006, p.100-1)

Quando Christopher decide ir a Londres de trem, numa jornada prenhe de temores, seu desabrigo e sua solidão vão se descortinando em cada momento da viagem, revelando a comunicação com os outros bastante difícil. O seguinte diálogo se dá com um policial sobre o preço da passagem de trem para Londres:

Christopher: Quanto custa uma passagem de trem para Londres?
Policial: Vinte pratas.
Christopher: Isso são libras?
Policial: Deus do céu!
(Haddon, 2006, p.200)

Ele vai comprar o bilhete de trem, e quando o vendedor do guichê pergunta “simples ou ida e volta?", Christopher devolve: “O que significa simples ou ida e volta? (Haddon, 2006, p .202)".

Heidegger comenta que “O dividir do mesmo mundo com outro nessa relação de ser absorvido por... é o que possibilita uma comunicação (Heidegger, 2001, p.183)". Como apontam as situações acima transcritas, as dificuldades na comunicação escancaram a enorme dificuldade em “dividir do mesmo" com os outros.

Em Londres, sonha “um dos meus sonhos favoritos", em que

[...] quase todo mundo da Terra está morto, porque eles tinham pegado um vírus […] E eu posso então ir a qualquer lugar do mundo e sei que ninguém vai conversar comigo nem vai me tocar nem me perguntar nada. (Haddon, 2006, p.257-8)

Sonho a revelar sua disposição no estar com os outros – Heidegger coloca que “O mundo do sonho de algum modo pertence à continuidade do ser-no-mundo, é igualmente um ser-no-mundo (Heidegger, 2001, p.241)" – não quer muita proximidade, não quer ser tocado, prefere ficar só, assim se sente mais seguro. Enfim, apresenta-se como alguém para quem os outros são encontrados predominantemente numa disposição de estranhamento.

 

Considerações finais

Foi demonstrada a pertinência do diagnóstico de Transtorno de Asperger para Christopher quando enfatizados os critérios do DSM-IV-TR ( apesar de não haver menção no romance sobre atraso no desenvolvimento da linguagem; se houvesse um atraso clinicamente importante, ele poderia ser diagnosticado com o T. Autista). Tratou-se então de compreender o mundo do personagem-pessoa focando em suas relações com os outros, descobrindo como é o descortinar de mundo particular de alguém que tem o referido diagnóstico, para além do diagnóstico.

Rigorosamente falando, apenas do ser humano é possível, com toda certeza, dizer que tem a possibilidade de estar doente; pois é, até onde se pode saber, o único ser que abriga em si, na condição de doença, o sentimento de que está privado de algo, diferentemente de qualquer outro animal. O adoecer humano não é simplesmente o adoecer de um corpo, sobre o qual se constatam tais e tais sinais e se chega a um diagnóstico; mas sim o descortinar, por parte do doente, de um mundo que revela sua situação de maior ou menor desconforto.

Este artigo modestamente fez dialogar uma perspectiva psiquiátrica geral com uma abordagem compreensiva de um “caso" particular através de uma ótica daseinsanalítica. Ganha força a compreensão, e logo todo cuidado médico, psicológico, todo tratamento oferecido a outrem, quando se esforça para enxergar a pessoa doente de maneira mais abrangente, em como ela particularmente, de modo único, se encontra doente.

 

Referências

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Endereço para contato
E-mail: mmaltacampos@gmail.com

Recebido em 08/08/2010
Aceito em 25/09/2011

 

 

Marcos Malta Campos: Psicólogo formado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1993), com Pós-Graduação em Psicologia Clínica – Teoria Psicanalítica pela mesma universidade (2001). Mestre em Distúrbios do Desenvolvimento pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2009). Estudos e Supervisão Clínica na Associação Brasileira de Daseinsanalyse de 1995 a 1997, de 2000 a 2008 e em 2011. Psicoterapeuta e Acompanhante Terapêutico.