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Aletheia

versão impressa ISSN 1413-0394

Aletheia  no.35-36 Canoas dez. 2011

 

ARTIGOS DE PESQUISA

 

Millon Clinical Multiaxial Inventory-III: tradução e adaptação semântica dos itens para o Brasil

 

Translation and adaptation of the Millon Clinical Multiaxial Inventory-III to Brazil

 

 

Heloísa Karmelina Carvalho de Sousa; Hannia Roberta Rodrigues Paiva da Rocha; João Carlos Alchieri

Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFRN

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RESUMO

O presente estudo buscou traduzir e adaptar semanticamente as escalas de padrões clínicos de personalidade e síndromes clínicas do MCMI-III para o Brasil. Utilizaram-se os processos de tradução e tradução reversa, realizados por tradutores bilíngues. Em seguida, o inventário foi administrado a 15 homens e mulheres de 18 a 85 anos, com diferentes níveis de leitura para aferir o grau de compreensão semântica das sentenças. Os itens traduzidos foram enviados para experts acerca da teoria de Millon para avaliarem cada um dos itens com relação à adequação de sua tradução antes da sua administração com vistas a verificar entendimento por parte dos respondentes. São apresentados os itens e os indicadores apontados pelos juízes que demonstram os preceitos referentes à tradução e à adaptação semântica para o uso do instrumento no Brasil. Pode-se obter uma versão do instrumento com condições de atender as características culturais de forma a garantir sequência de estudos sistemáticos para verificação de evidências de validade e de sensibilidade com vistas a possível uso clínico Discutem-se ainda os resultados preliminares quanto à tradução e adaptação do instrumento não somente ao idioma português, mas também ao contexto cultural.

Palavras-chave: Adaptação transcultural, Personalidade, Síndromes clínicas, Millon Clinical Multiaxial Inventory-III.


ABSTRACT

The present study aimed to translate and to adapt the personality clinical patterns scales and clinical syndromes scales of the MCMI-III to Brazil. It was used the translation and backtranslation processes, handled by bilingual translators. Then, the inventory was administered to 15 men and women aging 18 to 85 years old, with different levels of reading skills to verify the level of sentences semantic comprehension. The translated items were sent to experts on Millon's theory whom evaluated each one of the items concerning its translation adequacy prior to administration in order to verify understanding by respondents. The items are presented and indicators pointed by the judges show the conventions on translation and semantic adaptation carried through this adaptation and the use of the instrument in Brazil. We can get a version of the instrument with conditions to meet the cultural characteristics to ensure sequence of systematic studies to check for validity and sensitivity with a view to possible clinical use. We still discuss the preliminaries results on translation and adaptation if the instrument not just to the Portuguese language, but also to the cultural context.

Keywords: Cross-cultural adaptation, Personality, Clinical syndromes, Millon Clinical Multiaxial Inventory-III.


 

 

Introdução

Considerando um movimento atual de internacionalização da ciência, observa-se uma tendência cada vez mais forte na adaptação de instrumentos estrangeiros na realidade da testagem psicológica no Brasil, sendo imperativo, nesse contexto, assumir que instrumentos psicológicos não são produtos científicos de imediato intercambiáveis. Assim, deve-se ter cuidado especial com equivalências transculturais, para se evitar que instrumentos proporcionem imagens distorcidas da realidade psicossociocultural avaliada, no contexto de instrumentos de uso clínico (Spielberger, Moscqso & Brunner, 2005).

No que tange às expressões da personalidade, mais especificamente, a possibilidade de caracterizar e analisar diferenças sócio-culturais tem importância fundamental em um país como o Brasil, que possui dimensões continentais, assim como culturas bastante diversificadas. Embora esses estudos venham representando significativa melhoria na qualidade dos testes utilizados, uma séria adversidade é fundamentada na ausência de instrumentos desenvolvidos a partir de teorias recentes para avaliação da personalidade (Alchieri & Nunes, 2006).

Um dos mais atuais preceitos teóricos, que discorre sobre os aspectos saudáveis e patológicos da personalidade, é a proposta de Theodore Millon. Para este autor, a personalidade pode ser compreendida como um padrão complexo de características psicológicas profundamente arraigadas, expressas automaticamente em quase todas as áreas do funcionamento psicológico, perpassando toda a matriz do indivíduo (Millon & Davis, 2001; Millon, Millon, Meagher, Grossman & Ramanath, 2004).

A proposta de personalidade trazida por Millon considera três aspectos que tem por base princípios evolutivos, chamadas de fases evolutivas (Millon et al., 2004; Strack & Millon, 2007).

A primeira fase evolutiva, conhecida como Orientações para a Existência, diz respeito à tendência de um determinado organismo adaptado em externar mecanismos que contribuam para a preservação vital. As polaridades dessa fase são referentes ao polo de prazer em detrimento do polo dor. A partir dessa dinâmica, Millon propôs cinco possibilidades diferentes para que as pessoas procurem prazer e evitem a dor, ou seja, cinco maneiras de se orientarem em direção a existência: a dependente, a independente, a ambivalente, a desapego e a discordante (Carvalho, 2008). Em seguida há a fase de Modos de Adaptação que é caracterizada pelas maneiras de se adaptar que um organismo possui que tornam as trocas entre ele mesmo e o ambiente possíveis. Em consequência dessa fase, Millon propôs distintos modos para o organismo se adaptar ao ambiente, quais sejam: ativo, passivo e passivo-ativo (Millon & Grossman, 2005). Embora o organismo esteja adaptado, a sua existência é limitada, e a fase de Estratégias de Replicação que um organismo é capaz de perpassar por essa limitação, desenvolvendo estratégias para a perpetuação de seus genes. Tais estratégias correspondem aos polos eu e o polo outro (Millon, Davis, Millon, & Grossman, 2006).

Diante desse panorama, podemos definir o transtorno de personalidade como a conjunção de vários traços de personalidade típicos que ocorrem em conjunto constituindo um protótipo, ou estilo de personalidade desadaptado (Millon et al., 2004).

Cardenal, Sánchez e Ortiz-Tallo (2007) indicam três pontos capitais na teoria de Millon: a utilização de uma perspectiva teórica integradora (que considera como relacionados os aspectos que constituem a personalidade segundo as diferentes correntes teóricas), a concepção de um continuum normalidade-patologia (por não haver uma linha divisória clara entre esses dois pontos) e a incorporação de princípios da teoria da Evolução (que aborda os transtornos de personalidade como constructos evolutivos que se derivam de tarefas fundamentais que todos os organismos enfrentam).

Os aspectos psicopatológicos da personalidade, então, são compreendidos como derivações de uma complexa e sequencial interação entre os fatores constitutivos do sujeito e suas experiências. Tais padrões se expressam em todas as facetas da vida de um indivíduo (Millon et al., 2006) e, portanto, é vivenciada e manifesta no organismo. Millon e Davis, (2001), Jankowski, (2002) acreditam que os transtornos de personalidade podem ser caracterizados por três pontos: instabilidade emocional diante de condições estressantes, falta de flexibilidade ao se adaptar aos percalços da vida e repetição dos comportamentos patológicos.

Sendo assim, Millon et.al (2004) consideram como manifestação patológica da personalidade os transtornos de personalidade, que são caracterizados por déficits na autonomia, na tendência ao ajustamento eficiente ao meio sociocultural, na habilidade desenvolver seus potenciais e no senso subjetivo de satisfação. Os transtornos de personalidade implicam estilos de funcionamento mal adaptados vistos como desequilíbrios, conflitos ou deficiências na capacidade de uma pessoa em se relacionar com ambientes em que está inserido.

Para operacionalizar seu modelo teórico, transpondo para a prática suas discussões conceituais, Millon e colaboradores (2004) desenvolveram instrumentos que internacionalmente são amplamente utilizados em pesquisas e no contexto clínico: o Millon Behavior Medicine Diagnostic (MBMD), o Millon Adolescent Clinical Inventory (MACI), o Personality Adjective Check List (PACL), o Millon Adolescent Personality Inventory (MAPI), o Millon Index of Personality Styles (MIPS) e o Millon Clinical Multiaxial Inventory (MCMI) (Millon, Davis, Millon, & Grossman, 2009), que em sua terceira versão é o objeto de estudo da presente pesquisa.

O Millon Clinical Multiaxial Inventory, desde sua primeira edição, em 1977, vem sendo um dos instrumentos de avaliação da personalidade mais utilizados no contexto internacional, ficando atrás apenas do Rorschach e do Minnesota Multiphasic Personality Inventory II, em termos de produção científica (Millon et al., 2006). A primeira publicação do MCMI teve o objetivo de avaliar transtornos de personalidade descritas na teoria de Millon. Sua segunda edição foi desenvolvida para mantê-lo em consonância com a terceira edição revisada do DSM. A terceira versão do instrumento, por sua vez, está em sintonia com o DSM-IV, com modificação de 45 itens e inclusão de mais dois novos transtornos (depressão e transtorno do estresse pós-traumático), além da construção de uma escala de Índice de Validade e índices de variação (Craig, 2008; Baker, Van Hasselt & Sellers, 2008). Criado em 1997, o instrumento é composto por 175 itens, de respostas do tipo falso ou verdadeiro, com possibilidade de aplicação individual ou em grupo, que avaliam 14 tipos de personalidade e 10 síndromes clínicas e pode ser aplicado a pessoas, a partir dos 18 anos, que estejam recebendo tratamento psicológico ou realizando avaliação psicológica. A consistência do teste demonstra valores de Alfa de Cronbach entre 0,57 e 0,90. O instrumento pode ser respondido no formato de lápis e papel ou, ainda, por meio de um programa específico de computador, e o tempo de aplicação pode variar entre 20 e 40 minutos, de acordo com o nível de leitura dos indivíduos (Craig, 2008; Millon, Davis, Millon & Grossman, 2009).

As escalas do instrumento referem-se a cada tipo de transtorno de personalidade identificada na teoria de Millon, e dividem-se em: escalas de padrões clínicos de personalidade (Esquizoide, Evitativa, Depressiva, Dependente, Histriônica, Narcisista, Antisocial, Agressiva/Sádica, Compulsiva, Negativista e Masoquista), escalas de transtornos de personalidade severa (Esquizotípica, Paranoide e Borderline), escalas de síndromes clínicas moderadas (Transtorno de Ansiedade, Transtorno de Somatização, Transtorno Bipolar, Transtorno Distímico, Dependência Alcóolica, Dependência de Drogas e Síndrome do Estresse Pós-Traumático) e escalas de síndromes clínicas graves (Desordem de Pensamento, Depressão Maior e Transtorno Delirante) (Craig, 2008). Além das escalas supracitadas, o MCMI-III conta com quatro escalas de verificação, quais sejam: índice de Validade (V), a escala de Divulgação (X), escala de Desejabilidade Social (Y) e escala de Valorização Negativa (Z) (Craig, 2008; Craissati, Webb & Keen, 2008).

Millon, Davis e Millon (2007), utilizaram-se do método de Loevinger (1957), que se pauta no desenvolvimento e validação como um processo contínuo presente durante todas as fases de construção de um teste. O primeiro estágio de validação é chamado de teórico-substantivo e investiga até que ponto os itens que compõem um instrumento derivam seu conteúdo de uma matriz teórica explícita. O segundo estágio, o interno-estrutural, está relacionado ao modelo a que se espera que se adaptem os elementos contidos no instrumento. É nessa fase que os itens já terão sido validados substantivamente e se aplicam a populações apropriadas, e onde cada item foi desenvolvido e adaptado de acordo com critérios específicos da teoria. Já o terceiro estágio, critério externo, inclui apenas os itens que cumpriram os requisitos das fases anteriores. É nesse estágio que se correlaciona os resultados obtidos do inventário com os comportamentos clínicos relevantes.

Internacionalmente, o MCMI-III vem sendo utilizado em pesquisas associadas à psicologia forense, principalmente para a avaliação de população carcerária (Duque & Neves, 2004), de abusadores sexuais (Pechovo, Poiares & Vieira, 2008) e de usuários de álcool e outras drogas (Herrero, 2004; González, Riveros, Uribe & Luna, 2006; Hérran, Ardila & Barba, 2007; Pérez & Lara, 2008). No Brasil, nenhuma das versões anteriores do instrumento foi adaptada. Em recente trabalho, Carvalho (2008) utilizou a tradução preliminar do MCMI-III, realizada para este estudo, como parâmetro para a validação de um instrumento de avaliação de aspectos psicopatológicos da personalidade baseado no modelo teórico de Millon.

Diante de tal contexto, é imperativo lembrar a importância do processo de adaptação do MCMI-III como instrumento de avaliação de transtornos de personalidade e síndromes clínicas. Assim, o processo de adaptação de um instrumento para uma determinada população exige uma série de etapas que precisam ser seguidas à risca para evitar comprometimento da fidedignidade do que o teste psicológico propõe avaliar. O ITC Guidelines for Test Adaptation apresenta orientações consideradas importantes para condução e avaliação do processo de adaptação de testes, organizadas em quatro sessões: contexto, desenvolvimento e adaptação do teste, administração e documentação e, por fim, interpretação de escores, algumas das quais destacas por Hambleton (2005).

Hambleton (2005), Van de Vijver e Poortinga (2005) e Cassepp-Borges, Balbinotti e Teodoro (2010) diferenciam tradução e adaptação de instrumentos, enfatizando que o primeiro processo é apenas uma das etapas do processo de adaptação e, desde essa primeira fase, deve haver uma preocupação com as equivalências cultural, psicológica e linguística de conceitos, palavras e expressões. Tal processo deve ser preferencialmente realizado por um grupo de tradutores, familiares não apenas com os dois idiomas, mas também com as duas culturas envolvidas no processo de adaptação (Hambleton, 2005).

As fases que compõem o procedimento de adaptação são descritas de maneira bastante semelhante na maior parte dos estudos acerca da temática referente à adaptação de instrumentais de avaliação psicológica, isso é possível de ser observado em recentes estudos brasileiros. Porém, vale salientar que os procedimentos de tradução e adaptação de um instrumento para uma determinada realidade são duas etapas iniciais de um processo de validação, e não a validação propriamente dita. Nesse cenário, parece urgente realizar estudos de atualização e adaptação de instrumentos psicológicos, mais especificamente de testes que contribuam para a avaliação dos aspectos psicopatológicos da personalidade no Brasil. Assim, o presente artigo tem como objetivo traduzir e adaptar semanticamente o MCMI-III para o Brasil como instrumento de avaliação de transtornos de personalidade e síndromes clínicas.

 

Método

Para fundamentar os estudos de tradução e adaptação semântica do MCMI-III para o Brasil, o referido instrumento foi administrado com seus itens traduzidos ao português em diversos participantes com níveis distintos de escolaridade e experiência em leitura, para aferir o grau de compreensão semântica das sentenças, conforme procedimentos recomendados (Pasquali, 1999, 2003). Os participantes foram convidados a responder entre "Verdadeiro" e "Falso" aos 175 do MCMI-III, além de um questionário sociodemográfico onde o entrevistado respondia informações acerca de seu sexo, idade e escolaridade.

A etapa de tradução contou com dois tradutores, fluentes nas línguas portuguesa e inglesa, e com experiência cultural brasileira e norte-americana, sendo que ambos tinham como língua materna o português. Para verificação da versão brasileira utilizou-se um grupo de 15 pessoas (5 com nível de escolaridade fundamental incompleto, 5 com o nível médio de escolaridade e 5 com ensino superior ou pós-graduação) além de três profissionais em letras, que realizaram a revisão quanto à adequação semântica, e um grupo de três juízes com amplo conhecimento sobre a teoria da personalidade em questão, que realizaram avaliação quanto à pertinência da tradução.

O projeto para a realização do presente estudo foi enviado para o Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital Universitário Onofre Lopes – CEP-HUOL, sendo aprovado com o número 294-09. A partir daí, todos os procedimentos éticos exigidos pelo CEP-HUOL foram seguidos a fim de garantir o sigilo das informações cedidas pelos participantes da pesquisa. Entre as exigências do CEP-HUOL, estava a obrigatoriedade de cada sujeito autorizar a sua participação através do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido – TCLE, onde havia um texto com esclarecimentos acerca da pesquisa, bem como dos riscos de fazer parte dela.

Dois profissionais foram convidados a realizar, livre e independentemente, a tradução dos itens, apresentados através do instrumento original, em inglês. As tradução e adequação semântica dos itens foram realizadas por profissionais de tradução e sem experiência em Psicologia. Posteriormente à tradução, um grupo de psicólogos bilíngues realizou revisão dos itens em português, levando em consideração alguns dos critérios estabelecidos por Pasquali (1999), quais sejam: critério comportamental (item expressando um comportamento), simplicidade (cada item expressando uma única ideia), clareza (item adequadamente inteligível para a população-alvo) e credibilidade (os itens devem ser apropriadamente formulados para que não sejam ridicularizados por pessoas com mais experiência de leitura). Embora o instrumento tenha sido totalmente traduzido, o grupo sentiu a necessidade de deliberar sobre alguns itens em que se considerou a tradução como inadequada devido à impossibilidade de correspondência do inglês para o português sem modificação da estrutura gramatical, o que acabava por comprometer a fidelidade da tradução. Uma vez obtida, a primeira versão em português foi submetida a outro profissional de língua portuguesa para avaliação e checagem da adaptação semântica, revisando possíveis imperfeições na apresentação, bem como a clareza dos itens.

Cada um dos 15 sujeitos participantes dessa etapa foi convidado a responder ao inventário e ao questionário sociodemográfico na presença do pesquisador, sem, no entanto, interferência direta deste. A leitura deveria ser feita pelo próprio sujeito, de forma individual, sendo permitido o contato com o pesquisador apenas para o esclarecimento de dúvidas concernentes à redação ou formulação dos itens. As dúvidas e/ou outras observações eram, então, anotadas em um conjunto de itens que permanecia em poder do pesquisador para serem comparadas com as dúvidas dos demais participantes. Os entrevistados foram abordados no período de maio a junho de 2009, na sala de espera da clínica-escola da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, onde tiveram acesso a salas onde poderiam responder ao inventário com o mínimo de interferência externa.

Consideradas adequadamente redigidas, as sentenças referentes ao MCMI-III traduzido para o português, foi realizado procedimento de tradução reversa para a língua inglesa, por meio de docentes universitários que não tiveram contato com o instrumento original e sem conhecer a teoria, de forma a caracterizar uma versão livre de influências, a fim de assegurar a fidedignidade das duas versões e a impossibilidade de reconhecimento do material. Em etapa posterior, a avaliação por juízes, verificou a adequação da tradução quanto ao constructo. Três juízes, com conhecimento sobre a teoria de Theodore Millon, foram convidados a analisar a versão em português do instrumento considerando a versão original, devendo julgar a tradução de cada item como adequada, parcialmente adequada ou inadequada, considerando-se uma similaridade psicológica.

 

Resultados

A versão em português brasileiro do MCMI-III contou, assim como na versão original, com 175 itens onde o respondente optava por responder entre "verdadeiro" e "falso". A avaliação da tradução por juízes expertos na teoria de Millon apontou 106 itens, dos 175 que compõem o instrumento, com concordância total quanto à adequação da tradução (os três juízes consideraram o item adequadamente traduzido). Cabe salientar que neste sentido observações como coloquialismo, regionalismos e expressões linguísticas não eruditas foram objeto de atenção e cuidado por parte dos autores, tradutores e juízes. Quarenta e três itens foram avaliados como adequadamente traduzidos por dois dos juízes, destes, 41 foram considerados parcialmente adequados pelo terceiro juiz, com pequenas observações quanto às modifi cações na versão que haviam sido realizadas em benefício do idioma e um item não foi avaliado pelo terceiro juiz, porém, como foi avaliado como adequadamente traduzido pelos dois outros juízes, o mesmo foi mantido. Um único item foi apontado pelo terceiro juiz como inadequadamente traduzido. No entanto, não foi apresentada sugestão de modificação para esse item e nem foi explicado o motivo de inadequação do mesmo no campo reservado para tal. Além disso, a avaliação dos demais juízes foi concordante quanto à total adequação do mesmo.

Quatro itens tiveram as avaliações de traduções consideradas como parcialmente adequadas. Para o item 13 (My drugs habits have often gotten me into a good deal of trouble in the past. – Várias vezes tive problemas por causa do uso de drogas.) foi sugerida, por dois dos juízes, a inclusão do marcador temporal "no passado". No entanto, tal inclusão pareceu expletiva que diante da extensão do instrumento, buscou prezar pela máxima brevidade das sentenças, uma vez que o tempo verbal já é, em si, um marcador temporal. Da mesma forma, o item 39 (Taking so-called illegal drugs may be unwise, but in the past I found I needed them. – Usar drogas pode não ser o melhor, embora já senti que precisava.) optou pela omissão do termo "ilegais" para qualificar "drogas", visto que, no Brasil, o termo droga já é usualmente aplicado para designar as substâncias de abuso a que a sentença se refere. O termo "privada", existente no item original 63 (Many people have been spying into my private life for years. – Muita gente espiona a minha vida há anos.) foi omitido na tradução por não ser um termo coloquialmente utilizado. Ao item 17, por sua vez, só foram sugeridas modificações quanto à ordem dos termos na sentença, não implicando em nenhuma modificação no sentido (As a teenager, I got into lots of trouble because of bad school behavior. – Quando adolescente, por mau comportamento no colégio, me meti em problemas.).

Dezessete itens foram considerados parcialmente adequados quanto à tradução por dois juízes, sendo considerado totalmente adequado pelo terceiro juiz. As sugestões de modificação não foram concordantes quanto ao objeto, e disseram respeito, sobretudo, à recomendação por uma tradução mais literal de diferentes termos numa mesma sentença. Dois itens (65 e 105) obtiveram duas avaliações totalmente positivas e uma totalmente negativa, que indicaram a inadequação pela impossibilidade de literalização da sentença original (I flew across the Antlatic thirty times last year. – Ano passado fui à Europa de avião umas trinta vezes.; e I have a little desire for close friendships. – Tenho pouco desejo por amizades íntimas.).

Apenas os item 61 (Ideas keep turning over and over in my mind and they won´t go away. – Há ideias que não me saem da cabeça.) e 159 (Someone would have to be pretty exceptional to understand my special abilities. – Para entender todas as minhas habilidades, a pessoa tem que ser especial), foram totalmente discordantes quanto à avaliação dos juízes. Os dois juízes que não avaliaram esse item como adequadamente traduzido apresentaram sugestões que recomendavam maior rigor na literalização da tradução, mas não modificavam o sentido da versão encontrada pelos tradutores e primeiros juízes, motivos pelos quais a versão proposta do grupo foi mantida.

Apenas o item 99 (In social groups I am almost always very self-conscious and tense. – Em reuniões sociais, quase sempre estou tenso e preocupado com o que vão pensar de mim.) foi considerado inadequadamente traduzido por dois juízes (sendo considerado parcialmente adequado pelo terceiro juiz). O problema apontado por dois juízes refere-se ao uso da expressão "com o que vão pensar de mim", solução sugerida pelo primeiro grupo de avaliadores diante da inexistência de um termo mais aproximadamente equivalente a self-conscious. O termo "self-conscious" foi exaustivamente discutido em todas as etapas de tradução e verificação, e a sentença foi mantida.

 

Discussões

Em relação à etapa de tradução e adaptação semântica, a principal dificuldade encontrada diz respeito ao uso de termos específicos da língua inglesa, traduzidos literalmente pelos profissionais bilíngues, profissionais estes, considerados qualificados para exercer tal função e conhecedores das particularidades de cada um dos idiomas trabalhados, como orientado por Cha, Kim e Erlen (2007). Além disso, para Cassepp-Borges et al. (2010), as traduções de inventários devem ocorrer de modo sistemático, levando em consideração que o instrumento será utilizado em uma distinta cultura e em distintas classes sociais, as quais podem guardar consideráveis diferenças de valores e de variações linguísticas. Assim sendo, o instrumento deveria ser aplicável inclusive a sujeitos com escolaridades e níveis socioeconômicos baixos, dessa forma, compreendemos que a literalização de algumas expressões poderia comprometer o entendimento ou até mesmo privar de sentido as sentenças. Como exemplo, pode-se citar o item 34, que corresponde à sentença "Lately, I have gone all to pieces." e foi traduzido literalmente para "Ultimamente eu tenho estado em pedaços" e teve posterior adaptação para "Ultimamente estou desestruturado (a)". Nos casos em que tal fato ocorreu, um grupo de três juízes bilíngues e com formação em psicologia e conhecimento na teoria de Millon, avaliou as traduções. Em alguns casos, o grupo de juízes decidiu pela omissão de termos, em outros, a decisão foi pela adaptação das sentenças, de forma que mantivessem o sentido original com concordância dos autores.

Algumas modificações, ainda, foram realizadas para que as sentenças se tornassem mais próxima da linguagem cotidiana, considerando expressões consagradas e de amplo conhecimento popular. Como exemplo, os termos "so called illegal drugs" e "drinking alcohol", traduzidos apenas por "drogas" e "beber", pois tais palavras são automaticamente interpretadas como "drogas ilícitas" (ou de abuso) e "fazer uso abusivo de álcool". Portanto, nem sempre as modificações realizadas na redação dos itens se restringiram a questões linguísticas de tradução, mas procuraram, também, atender ao critério de similaridade semântica.

A análise e as considerações dos quinze leitores indicou que não havia necessidade de modificação nos itens apresentados. Considerados adequadamente redigidos, seguiu-se com o procedimento de versão para a língua inglesa (back-translation). Esse procedimento ratificou a eficiência da tradução, gerando sentenças semelhantes às originais, ou equivalentes. Tal procedimento de tradução reversa foi realizado de forma semelhante em diversos estudos como os apontados por Manzi-Oliveira, Balarini, Marques e Pasian (2011) em revisão de literatura feita com estudos de adaptação transcultural de instrumentos de avaliação psicológica na última década.

Assim, os resultados obtidos foram considerados favoráveis pelos pesquisadores, pois, apesar de apontarem algumas discordâncias entre os juízes, tal situação era prevista e documentada na literatura acerca da temática de tradução e adaptação de instrumentos nos trabalhos já relatados da introdução do presente artigo. Rocha, Sousa, Alchieri, Sales e Alencar (2011) apontam que de forma preliminar, é possível verificar que a versão brasileira do MCMI-III apresenta características de concordância quanto ao preceito teórico da personalidade segundo Millon. No mesmo estudo, os autores defendem ainda que o instrumento traduzido para o português brasileiro foi capaz de elencar aspectos com propriedades diferenciadoras entre grupos distintos e, em consequência, pode ser considerado como promissor na evolução dos estudos de validade.

A adaptação de um teste psicológico é um processo longo e laborioso, em especial quando se trata de um instrumento de avaliação de aspectos psicopatológicos e pretende investigar a pertinência das expressões não apenas de um ponto de vista linguístico, mas também quanto à sua adequação cultural e psicológica. Considerar a diversidade de um país com dimensões continentais, com mais de 190 milhões de habitantes, pressiona à verificação de características sociodemográficas e geopolíticas, como parte de uma análise complementar, porém imprescindíveis às concomitantes verificações psicométricas. Tais adequações devem ser objeto de avaliações contínuas, não se restringindo à verificações preliminares da adequação de um instrumento. Enquanto proposta básica de traduzir e adaptar semanticamente o instrumento, os resultados demonstram serem promissores quanto a condições de adequabilidade, contudo, o estudo tem limitações como a não representatividade, neste momento, de respondentes de outros grupos com distintas características culturais, econômicas e de escolaridade, cuja ênfase será objeto em ulteriores estudos. Assim, iniciam-se as atividades de adaptação de um novo instrumento, especificamente, o único até o momento que busca avaliar transtornos de personalidade e síndromes clínicas tendo como base teoria personológica de Millon em português e com base numa teoria de personalidade atual e reconhecida internacionalmente.

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Endereço para contato
E-mail: helosousa@hotmail.com

Recebido em novembro de 2011
Aceito em setembro de 2012

 

 

Heloísa Karmelina Carvalho de Sousa: Mestre em Avaliação Psicológica pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, aluna do doutorado do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFRN.
Hannia Roberta Rodrigues Paiva da Rocha: Mestre em Avaliação Psicológica pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, aluna do doutorado do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFRN.
João Carlos Alchieri: Pós-Doutor pela Universidade de Brasília e Prof. Adjunto do Departamento de Psicologia Programa de Pós-Graduação em Psicologia.