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Aletheia

versão impressa ISSN 1413-0394

Aletheia  no.47-48 Canoas dez. 2015

 

ARTIGOS EMPÍRICOS

 

Da conjugalidade à parentalidade: vivências em contexto de gestação planejada

 

From conjugality to parenting: life experiences facing planned pregnancy

 

 

Queli Simone da Cruz; Clarisse Pereira MosmannI

I Programa de Pós-Graduação de Psicologia da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS)

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RESUMO

O presente artigo teve como objetivo investigar as percepções de casais sobre sua relação conjugal diante da transição para a parentalidade em contextos de gestação planejada. Assumindo que o casal que opta por planejar a gestação também escolheu realizar outros desejos antes da maternidade/paternidade e apresentam uma condição tanto de vida profissional quanto conjugal distinta. Diante disso, realizou-se uma pesquisa qualitativa exploratória, através de entrevista semiestruturada com quatro casais que optaram por ter seu primeiro filho de forma planejada. As entrevistas foram gravadas, transcritas, e os dados coletados foram analisados a partir da análise de conteúdo. Os resultados apontam que existem particularidades na transição da conjugalidade para a parentalidade na gestação planejada, que se expressa nas estratégias usadas na resolução dos conflitos. Conclui-se que o tempo de relação conjugal pode ser um fator determinante para o amadurecimento do casal, refletindo na mudança das relações por eles vivenciadas.

Palavras-chave: Conjugalidade, Parentalidade, Gestação planejada.


ABSTRACT

This article aimed to investigate the perceptions of couples about their conjugal relationship facing the transition from conjugality to parenting when living planned pregnancy. Knowing that the couple that decides having a child later in life chose to fulfill other wishes before parenthood and show a distinct living and professional situation. An exploratory qualitative research was conduced, through a semi-structured interview with four couple that decided on having their first child late in life. The interviews were recorded, transcript and the data collected was analyzed trough content analysis. The results indicate that there are some singularities in the transition from conjugality to parenting facing planned pregnancies, which presentation is evident in the strategies used for solving problems. It is concluded that the time of a conjugal relationship may be a determinant factor for the couple maturation, what reflects on changes in the relationship.

Keywords: Conjugality, Parenting, Delayed pregnancy.


 

 

Introdução

O nascimento de um filho é um acontecimento capaz de transformar definitivamente a vida do casal. Os novos pais se deparam com uma realidade jamais vivida antes, sendo um período de intensa adaptação parental aos novos papéis. É necessário então que o casal confirme seu projeto de vida, integrando o bebê às famílias de origem e também à sociedade (Jager & Botolli, 2011; Lima, 2012).

Inúmeras são as mudanças demandadas para o casal nesta transição. A necessidade de reestruturação se inicia a partir da notícia da gestação, pois é necessário abrir espaço para entrada de um novo membro na relação até então conjugal. Com o nascimento do bebê, o casal se percebe diante da necessidade concreta de divisão de tarefas, aumento do cansaço físico devido às poucas horas de sono e cuidados com o bebê, assim como o desgaste na relação, já que passam menos tempo enquanto casal (Prati & Koller, 2011). Em torno disso, também surgem incertezas quanto à capacidade e competência para cuidar de um bebê (Soares, 2012). Sabendo que mudanças e adaptações, tanto das mulheres quanto dos homens, fazem parte desse processo, questiona-se como esse processo se dá em contexto de gestação planejada.

A opção pelo planejamento da gestação

A decisão pelo planejamento da gestação é um fenômeno recente e que vem se intensificando nos últimos anos. Ao analisarmos a história da mulher, em relação à maternidade, veremos que antigamente esta ao chegar aos trinta anos de idade já tinha vários filhos. Isso porque existiam poucos recursos de prevenção, além de não existir uma priorização do planejamento familiar e, muitas vezes, a opção pela família numerosa se dava pela ajuda com a mão de obra no campo. Porém com a inserção da mulher no campo de estudo, trabalho e produção, a gestação passa a ser opção ao invés de destino. Sendo assim, podemos dizer que tal fenômeno vem sendo desencadeado pelas mudanças da vida moderna (Lima, 2012). Sabe-se que dentre alguns dos motivos para o planejamento da gestação pelo casal, além da realização profissional e independência financeira, está a vontade de atingir amadurecimento conjugal a fim de desenvolver ideias e projetos em comum (Neves, Dias & Paravidini, 2013; Barbosa & Rocha-Coutinho, 2012).

Sabendo que a gestação é um período marcado por mudanças tanto na identidade quanto nos papéis de homem e mulher, pai e mãe, questiona-se também como esse processo se expressa na gestação planejada. Haveria distinções quanto às gestações não planejadas?

Da conjugalidade à parentalidade

Em uma relação conjugal, repetimos padrões relacionais reconhecidos e valorizados socialmente, porém os fatores vistos como desejáveis podem ser os mesmos que dificultam a relação (Silva Neto, Strey e Magalhães, 2011). Acredita-se que a transição da conjugalidade para a parentalidade seja uma das maiores mudanças que o casal pode passar, apresentando desafios, responsabilidades e conflitos, compartilhados pelo casal que agora são pai e mãe (Grizólio, Scorsolini-Comin & Santos, 2015). Assim, a gestação pode proporcionar ao casal vivências agradáveis ao remeter tal experiência ao passado, recordando o núcleo familiar de origem, como também pode ser um período conflituoso, uma vez que tal vivência pode trazer à tona antigos conflitos familiares e da relação conjugal (Canavarro, 2008; Maldonado, 1997).

O nascimento do primeiro filho é visto como um grande desafio por alguns casais, e pode-se dizer que a transição para a parentalidade é vivenciada como uma crise, que não tem uma causa definida, pois são muitos fatores associados (Jager & Botolli, 2011). Na vivência de tal experiência, destaca-se a relação do casal entre si e com a família de origem, como fatores fundamentais que envolvem tal fenômeno, uma vez que é necessária uma reorganização do casal em todos os sentidos (Soares 2012).

Geralmente casais que vivenciam mais momentos estressantes tornam-se mais vulneráveis a problemas conjugais, caso não possuam recursos necessários para superação e readaptação. Sendo assim, a estabilidade conjugal seria resultante da capacidade do casal de superar crises e readaptar-se a elas, fortalecendo suas questões positivas (Grizólio, Scorsolini-Comin & Santos, 2015). Neste sentido a comunicação torna-se facilitadora deste processo, essa nova relação ganha um sentido diferente, na qual as alterações na dinâmica conjugal podem iniciar ainda antes do nascimento do bebê, fazendo com que se sintam envolvidos nesse processo de transição, e assim adquirindo sua própria identidade conjugal, diferenciando-se das famílias de origem, e criando um novo tipo de relação com as mesmas (Mosmann, 2007, Soares, 2012).

Soares (2012) ainda afirma que é necessário que o casal consiga desconstruir a idealização romântica da maternidade e da paternidade para que possam se adaptar a esse evento crítico que é o nascimento do primeiro filho e, assim, poder usufruir dos efeitos positivos do nascimento. É quando o casal foca suas preocupações enquanto casal no crescimento do filho, desenvolvendo em si mesmos o reconhecimento de pessoas maduras e responsáveis. Destaca-se dentre as dificuldades apresentadas pelo casal o desgaste físico e emocional que envolve o cuidado do bebê, o aumento da preocupação com as finanças, assim como a sexualidade e interação social que ficam prejudicadas. Nesse momento, surge a necessidade de adaptação às novas restrições que o casal passa a vivenciar nesse período. Em relação à sexualidade é possível verificar que o papel de pai e mãe interfere na relação sexual, já que o casal está focado nos cuidados com o bebê e passam menos tempo enquanto casal, além disso, também influencia na sexualidade o novo processo que a mulher vivencia, seja com seu próprio corpo e feminilidade ou com o contato e comunicação com o parceiro (Salin, 2010; Soares, 2012). Essas mudanças necessitam de um período de adaptações do casal que agora partilha da responsabilidade de criar um filho.

Diante disso, pode-se considerar que casais que optam por planejar a gestação já passaram algum tempo de sua vida conjugal somente como casais e podem estar mais habituados a certos compromissos e responsabilidades. Reflete-se também que a idade e experiência de vida dos cônjuges podem ser tanto facilitadores quanto dificultadores do processo. Assim, considera-se que esses processos podem se apresentar com características específicas nas gestações planejadas, considerando que são casais que optaram por realizar outros desejos antes da maternidade/paternidade e apresentam uma condição tanto de vida profissional quanto conjugal distinta quando optaram pela gestação planejada.

Portanto, partindo da premissa de que o casal necessita realizar adaptações durante o processo de transição da conjugalidade para a parentalidade, questiona-se sobre a dinâmica desta relação conjugal em contexto de gestação planejada, considerando que, apesar de se tratar de um tema cada vez mais frequente, ainda são escassos estudos atuais nacionais que abordem tais mudanças e adaptações. Realizou-se uma busca nas bases de dados Scielo e Lilacs, mas não foram encontramos estudos sobre o tema no Brasil. Sendo assim, problematizar a dinâmica das relações conjugais, a partir da percepção de cônjuges, acerca de possíveis mudanças na transição da conjugalidade para a parentalidade, em situações de gestação planejada, configura-se de relevância científica e social, e foi o objetivo do presente estudo.

 

Método

O presente estudo teve cunho qualitativo, exploratório e descritivo. Sendo o objetivo da pesquisa exploratória e descritiva, além de uma a maior aproximação com o problema de pesquisa, uma descrição detalhada de características de uma população ou fenômeno (Gil, 2010). A metodologia qualitativa permite que seja analisado o significado que o participante atribui ao problema (Creswel, 2010), além de fazer do pesquisador parte integrante do processo de entrevista e participante ativo como principal instrumento de coleta de dados (Richardson, 2008).

Participaram do estudo quatro casais, que tiveram seu primeiro filho de forma planejada. Os critérios de inclusão foram casais em relacionamento conjugal estável de no mínimo cinco anos, com idades entre 30 e 50 anos que optaram por planejar a gestação, e cuja idade do filho não ultrapassasse 24 meses de vida, no momento da entrevista. Os critérios de exclusão foram o adiamento da gestação devido a quaisquer complicações biológicas. Os entrevistados foram selecionados por conveniência, através de indicação. A tabela a seguir apresenta dados dos casais participantes.

 

 

Foi realizada uma entrevista semiestruturada com cada casal, visando conhecer suas percepções sobre a relação conjugal diante da transição da conjugalidade para a parentalidade, no contexto da gestação planejada. As entrevistas duraram cerca de uma hora, e seguiram as seguintes questões norteadoras:

a) Dados de identificação do participante (nome, idade, ocupação, tempo de relacionamento, idade do bebê);

b) Como avaliariam a relação conjugal antes da gestação;

c) Como se deu a decisão por uma gestação planejada;

d) Agora, após o nascimento no bebê como avaliam a relação conjugal (como eles avaliam a relação, como se sentem nesse relacionamento no momento atual);

e) Relação com as famílias de origem (antes e depois do nascimento).

Todos os procedimentos éticos para realização da pesquisa foram respeitados, conforme a Resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde, que regulamenta a pesquisa com seres humanos no Brasil. Os participantes aceitaram participar da pesquisa, espontaneamente, mediante assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), previamente aprovado pelo comitê de ética da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), sob protocolo número 14/035.

Os casais participantes foram indicados por acessibilidade e convidados a participar da pesquisa. Em seguida foram contatados por telefone, para se explicar os objetivos da pesquisa e agendar um primeiro encontro. Neste momento, o TCLE foi apresentado e assinado, assim como foram realizados esclarecimentos sobre a pesquisa. As entrevistas foram realizadas em um segundo momento, nas residências dos casais conforme opção dos mesmos.

As entrevistas realizadas foram gravadas, transcritas e posteriormente analisadas. Os dados foram analisados através da análise de conteúdo proposta por Bardin (2008). Este modelo de análise é especialmente indicado para sistematizar o conteúdo das entrevistas, sendo possível a partir deste o surgimento de categorias para o estudo (Bardin, 2008).

 

Resultados e discussão

As seguir, são apresentados os resultados da pesquisa, a partir de quatro categorias definidas a priori, com base nas perguntas elaboradas a partir da literatura de abordagem sistêmica. Na sequência, cada categoria será apresentada e discutida teoricamente, utilizando trechos das falas dos participantes para exemplificar o tema.

 

 

Percepção da relação conjugal antes da gestação

Essa categoria abrange as percepções dos casais quanto à relação conjugal antes da decisão pela gestação. Tornou-se relevante o fato de todos os casais relatarem que a relação conjugal se encontrava em um período de estabilidade antes da decisão, conforme falas a seguir:

Olha estávamos bem, depois de idas e vindas, quando decidimos realmente ficar juntos, começamos a trabalhar pra isso, acho que a idade ajudou muito, por que conforme fomos ficando mais velhos nossas prioridades foram mudando e conseguimos lidar melhor com as briguinhas e discussões do dia a dia. (Homem, Casal 1)

A gente sempre se deu bem, nunca dormimos brigados, e com certeza o que ajudou foi o tempo que estamos juntos, não brigamos por qualquer coisa. (Mulher, Casal 2)

Nosso namoro teve altos e baixos, mas hoje vejo que tudo o que passamos juntos nos deixou mais fortes, saímos de casa e fomos morar juntos, passamos dificuldades e hoje estamos aqui, muito bem, e se nós não fossemos um casal antes da gestação, não teríamos aguentado os primeiros meses. (Homem, Casal 3)

Sempre nos demos bem, somos parceiros, gostamos das mesmas coisas, no inicio foi complicado, mas depois quando decidimos ficar juntos de vez, e começamos a comprar nossas coisas ai não nos separamos mais, e estamos juntos até hoje.(Homem, Casal 4)

Através dos relatos, entende-se que os casais apontaram o tempo de relação como um fator importante para a boa relação conjugal. Sabe-se que a estabilidade do conjugal está atrelada à capacidade do casal em lidar com as situações estressoras, não somente o tempo, mas também a coesão, adaptabilidade, e comunicação são necessárias para a funcionalidade do sistema conjugal (Mosmann, 2007, Grizólio, Scorsolini-Comin & Santos, 2015). Portanto, as falas acima corroboram a concepção de que os casais precisam passar por um período de adaptações para consolidar sua relação, e para os casais participantes da pesquisa este tempo repercutiu positivamente para confirmar a escolha um pelo outro, e repercutiu na percepção de qualidade conjugal.

Decisão pelo planejamento da gestação

Nessa categoria, são apontados conteúdos presentes nas entrevistas que relatam brevemente o processo da decisão pelo planejamento da gestação. Todos os entrevistados destacaram a importância do planejamento familiar para tal decisão.

É que foi uma decisão nossa, planejamos muito, financeiramente principalmente, e pra isso precisávamos estar estabilizados nos nossos empregos e tal, e foi ótimo, porque gastamos muito com a chegada do nenê, isso que ele é super saudável.(Homem, Casal 1)

Foi meio que um acordo nosso, ai no momento em que eu me senti à vontade pra ser mãe, começamos a tentar, ai quando percebemos eu estava grávida, e mesmo com o planejamento eu chorei muito, achei que não ia dar conta. (Mulher, Casal 1).

Planejar a gestação vai ao encontro da vontade de atingir um amadurecimento da relação conjugal, tornando-se necessário para o casal quesitos como independência financeira e realização profissional (Neves, Dias & Paravidini, 2013). A importância de planejamento fica evidente nos relatos a seguir:

Nós planejamos muito, queríamos curtir nossa vida de casal antes de ter filhos, depois decidimos ter ele. E sabíamos que tudo iria mudar com ele. (Mulher, Casal 2)

Eu me formei tarde, aí queria trabalhar e ter meu negócio, aí fomos adiando, até que um dia pensamos que estava na hora, e nos planejamos para engravidar.(Mulher, Casal 3)

Nós poderíamos ter tido ele antes, mas sempre queríamos mais tranquilidade, planejamos muito para ser no momento certo, e não poderia ter sido em melhor hora. (Mulher, Casal 4)

Através dos relatos acima, entende-se que os casais optaram por realizar outros desejos antes da gestação, porém mesmo que exista um cuidado em relação ao planejamento, sabe-se que existem contrariedades neste processo, uma vez que na prática os sentimentos vivenciados são outros. A gestação proporciona ao casal novas vivências, as quais muitas vezes podem gerar ambivalências, uma vez que essas vivências podem trazer à tona antigos conflitos familiares e da relação conjugal, (Maldonado, 1997). Tal sentimento pode gerar angústias no casal em relação à maternidade/paternidade, conforme relatado a seguir:

Eu tive um pouco de resistência porque meus pais tiveram a minha irmã quando eu já era adulto então eu vi tudo o que eles passaram, mas agora não me arrependo. (Homem, Casal 3)

Em relação aos relatos dos participantes nesta categoria, destacou-se que, além da importância do planejamento da gestação, o tempo de relacionamento, assim como a capacidade de aprender com as dificuldades conjugais, tornam-se relevantes no amadurecimento da relação conjugal e consequentemente no processo da decisão pela gestação. Conforme fala a seguir:

Com certeza, se tivéssemos tido ele lá quando começamos a namorar, certamente teríamos terminado. Tivemos que ter muita paciência um com o outro e com o nenê também. (Mulher, Casal 1)

Os participantes destacaram o amadurecimento da relação conjugal como fator importante para a tomada da decisão e nas características do processo, uma vez que decidir ter um filho implica reorganizar a vida do casal em vários âmbitos, e para isso o casal deve estar disponível a tais mudanças (Jager & Botolli, 2011). Além disso, os casais relatam que o planejamento auxiliou na certeza pela opção da parentalidade, repercutindo na capacidade de adaptar-se à nova realidade familiar.

Percepção da relação conjugal na transição

Essa categoria apresenta as percepções que emergiram das falas dos casais sobre a relação conjugal após o nascimento do bebê. Os conteúdos demonstram que os casais passaram por dificuldades e necessitaram de adaptação nessa fase (Prati & Koller ,2011). Porém, as estratégias usadas para o enfrentamento estão sustentadas no vínculo da relação conjugal como mostra a seguinte fala:

Momentos difíceis sempre têm, mas como a gente sempre se deu bem, conseguimos resolver tudo sempre. E também como planejamos muito, fomos mudando aos poucos aí foi tranquilo, já sabíamos que ia ser assim. (Homem, Casal 2)

O desgaste físico e emocional que envolve os cuidados com o bebê causa mudanças importantes na transição, pois essa nova relação ganha um sentido diferente. Tais alterações na dinâmica conjugal podem iniciar ainda antes do nascimento do bebê, fazendo com que se sintam envolvidos nesse processo de transição (Soares, 2012), como mostram as falas a seguir:

Acho que muito além do planejamento financeiro foi o planejamento emocional, sabíamos que ia ser difícil mudar nossa rotina, mas escolhemos isso, então foi mais fácil aceitar... Precisamos aprender a entender um ao outro e respeitar certos momentos. (Homem, Casal 4)

Nossa, a rotina muda muito, hoje tudo gira em torno dele. Eu trabalho só se ele tá bem, se ele não acorda legal eu não trabalho. Desde alimentação, pequenos hábitos. Se ele tá dormindo a gente nem sabe o que fazer, parece que falta alguma coisa. Pra ti ter uma ideia, antes eu trabalhava até as 10, hoje meu limite é 7:30, por que depois a rotina é só ele. (Mulher, Casal 2)

Sabendo que adaptações e transformações na vida conjugal são indispensáveis para a transição para a parentalidade (Jager & Botolli, 2011), a fala acima destaca uma mudança importante na relação conjugal após o nascimento do filho. Quando o casal refere "não saber o que fazer quando o bebê dorme" parece haver um afastamento da conjugalidade, sugerindo neste caso, que talvez a adaptabilidade se apresente de modo disfuncional, já que os espaços do casal ficaram esquecidos em meio às rotinas de cuidado a ponto de serem difíceis de ser reconhecidos. Entretanto, sabe-se que esta dinâmica pode ser decorrente do processo de adaptação à parentalidade, algo que tende a diminuir na medida em que o bebê vai crescendo e, teoricamente, havendo mais possibilidades de espaços para a conjugalidade.

Além disso, a ocupação constante com o filho gera cansaço físico significativo aos casais, gerando demandas que se sobrepõem aos espaços conjugais, conforme as falas abaixo:

A única coisa de que me arrependo de termos tido ele mais tarde, foi que não temos mais o mesmo pique dele, de tipo ir dormir tarde, super cansados e acordar tri bem no outro dia e brincar com ele e aproveitar com ele. Só isso, no mais foi ótimo e faríamos tudo novamente. (Mulher, Casal 1).

Depois que ele nasceu nunca mais dormimos uma noite toda, agora ele acorda uma vez só e por pouco tempo, mas mesmo assim, não dormimos tranquilos, sempre alertas. (Homem, Casal 4)

Mas, ao mesmo tempo em que existe um esgotamento físico, também tem uma coisa boa, um sentimento bom. Ainda estamos nos adaptando. (Homem, Casal 3)

A sexualidade é outra dimensão que está integrada a todo esse novo processo (Salin, 2010). Quando o casal refere mudanças na vida sexual aponta que este fato torna-se relevante na transição, referindo o diálogo e compreensão entre o casal, como estratégia de adaptação no período puerperal. A fala também sugere que com a idade avançada e amadurecimento do casal, tal dificuldade seja absorvida de forma mais tranquila.

O E. foi muito legal, está sendo ainda, porque nossa vida sexual, com um bebê pequeno não é fácil, pra mulher muda tudo, e faz pouco tempo que estamos mudando e conseguindo conciliar as coisas. Nesta parte a nossa idade e talvez maturidade nos ajudou muito, pois não aguentaríamos se fôssemos mais novos. (Mulher, Casal 1)

Outro ponto importante destacado por Soares (2012) e confirmado nas falas a seguir é de que neste momento inicial o casal vivencia um distanciamento da vida social, aumento da preocupação com as finanças:

Nossa vida social muda muito, não planejamos mais nada. Se ele tá bem a gente vai. Ele encheu a casa. Meus trabalhos de aula eu faço quando ele ta dormindo. A gente perde o egoísmo, primeiro ele e depois a gente. (Homem, Casal 2)

Talvez isso foi o que mais sentimos depois que o nenê nasceu, antes quando éramos só os dois, a gente decidia na hora se íamos jantar fora, ou ir para uma festa. Hoje tudo precisa de muito planejamento, antes de um ano do G., acho que não saímos sozinhos nenhuma vez, não por ele nem nada, mas é que não queríamos deixar ele com as outras pessoas. (Homem, Casal 1)

Hoje tudo gira em torno dele, antes tínhamos mais liberdade de horários, podíamos sair pra jantar a hora que quiséssemos ou passear, hoje pensamos se conseguiremos conciliar os nossos horários com os horários dele. (Mulher, Casal 3)

É necessário também que o casal consiga desconstruir a visão romântica da maternidade e da paternidade, para que assim possam se adaptar ao nascimento do primeiro filho e usufruir dos efeitos positivos do nascimento (Soares, 2012). Os casais foram se apropriando da nova situação conforme fala a seguir:

Os três primeiros meses foram bem complicados. Era tudo novo pra nós, e ainda ele teve muitas cólicas, então foram horas de choro e muitas horas sem dormir. Muito cansaço físico. Tivemos que enfrentar juntos, eu preciso dele e ele de mim. Muita conversa e muita paciência. (Mulher, Casal 3)

Relação com a família de origem

Percebeu-se na fala a seguir que os casais também sofrem com influências externas, tais como comentários e palpites que fazem parte do processo de transição como um desafio conforme fala abaixo:

Acho que os primeiros dias foram muito difíceis, em função das visitas e palpites que todos davam, não aguentávamos mais. As visitas nesse primeiro momento atrapalharam muito, já era tudo novo pra nós, aí as pessoas não davam tempo da gente se experimentar e ficarmos sozinhos com o nenê, esse momento certamente foi muito complicado, por que depois que as visitas saiam já estávamos muito cansados e estressados, mas conseguimos passar por isso, com paciência e muita conversa. (Homem, Casal 4)

Tais adaptações fazem com que o casal vá adquirindo sua própria identidade, diferenciando-se das famílias de origem, iniciando assim um novo tipo de relação com as mesmas (Soares, 2012), conforme falas a seguir:

Sempre tivemos uma boa relação com nossos pais, e depois do S, melhorou mais ainda, minha mãe me deixava muito calma, principalmente depois do parto, ela me ajudou muito... Hoje ainda ela cuida dele, por que ele não se adaptou na creche. (Mulher, Casal 2)

Eu percebo que mudei muito com minha mãe, hoje sinto ela tão próxima de mim, como há tempos não sentia, está sendo tão bom ter ela mais próxima de mim e me auxiliando. (Mulher, Casal 3)

Eu não posso dizer o mesmo, minha mãe tem sido um problema nesses dias com o B, ela não deixa a gente ter os cuidados com ele do nosso jeito, tudo está errado aos olhos dela. Mas com meu pai também me sinto mais próximo, parece que ele me entende. (Homem, Casal 3)

Minha mãe me ajudou muito nas primeiras semanas, só que também foi quando mais brigamos, por que ela queria fazer tudo do jeito dela, e da mesma maneira que criou a gente. Tipo sem colo, deixar chorar, essas coisas, aí brigamos muito, por que eu pensava diferente. (Mulher, Casal 4)

Com a vivência a partir das adaptações, forma-se uma nova configuração familiar, consolidando o laço conjugal, evidente nas falas abaixo:

Acho que nossa relação fortaleceu, estamos mais próximos, precisamos um do outro. Já éramos um casal que se dava bem, temos alguns desentendimentos como qualquer casal, mas vejo que estamos muito bem agora. (Homem, Casal 3).

Estamos muito bem, aprendemos a nos gostar de um jeito diferente, não tem muita explicação. (Mulher, Casal 4)

Nossa eu me sinto muito bem, melhor impossível, aconteceu tudo na hora certa. Somos bem mais cúmplices um do outro do que antes. (Homem, Casal 4)

Diante destes resultados, fica evidenciado que existem peculiaridades na transição da conjugalidade para a parentalidade na gestação planejada. Embora esse processo ainda aconteça de maneira muito semelhante às gestações não planejadas. Como semelhanças destacam-se os relatos a respeito das mudanças na rotina conjugal e suas percepções e sentimentos em relação a isto. O relacionamento com as famílias de origem que surge como um desafio, embora para alguns casais essa relação parece estar melhor consolidada, enquanto em outros ainda ficam evidentes alguns conflitos referentes a renúncia do papel de filho. Assim como as diferenças se apresentam nas estratégias usadas pelos casais para lidar com a crise, como valorização do diálogo, e maior compreensão nas situações estressoras, sugerindo que o tempo de relacionamento, a idade dos cônjuges e suas experiências de vida prévias à gestação, resultaram no amadurecimento da relação conjugal, facilitando o processo de adaptação e, consequentemente, a transição da conjugalidade para a parentalidade.

Todas as vivências se articulam com as relações entre os sujeitos. A rede social está fortemente presente nas experiências e na construção de significados que os casais irão trazer para a vida conjugal e parental. Assim, na vivência da transição, a maneira que os casais lidam com as mudanças, sentimentos e comportamentos durante esse período de transformações ganham forma e sentido diante das experiências que os casais possuem.

 

Considerações finais

Os achados deste estudo demonstraram que os casais entrevistados avaliaram sua relação conjugal antes da gestação como estável, assim como evidenciaram o tempo de relação como um fator importante no amadurecimento do casal, contribuindo para facilitar o processo de transição, uma vez que já haviam passado algum tempo juntos somente como casais, e estavam mais habituados a certos compromissos e responsabilidades. Conforme os relatos dos entrevistados, isso se confirma quando apontam a importância do planejamento da gestação, tornando a transição mais tranquila e esperada.

Sabendo que a parentalidade é construída dia após dia, conforme as adaptações do casal, e observando os relatos das entrevistas, fica o questionamento se a gestação planejada não seria característica de uma determinada geração, que faz suas opções com maior programação e controle e uma tendência que irá se repetir nas próximas gerações. Desta forma fica evidenciada a importância e relevância do tema a fim de ampliar os estudos neste sentido.

Como limitações desta pesquisa, aponta-se a dificuldade de encontrar casais que aceitassem participar da pesquisa, embora índices apontem o crescimento desta população, outro fato relevante a ser mencionado são as semelhanças culturais dos entrevistados, ficando comprometida a comparação com casais de outra realidade cultural. A presença do filho (a) durante a entrevista certamente refletiu nas respostas de alguns participantes do estudo. Assim como o fato dos casais não terem se disposto a fazer mais de uma entrevista, incluindo assim um momento individual com cada cônjuge, no qual poderiam ter surgido mais conteúdos referentes às dificuldades individuais enfrentadas pelos mesmos.

Importante que não se esgotem os estudos sobre essa temática, pensando que os casais entrevistados apontaram majoritariamente situações boas e manejáveis vivenciadas na transição. Isso sugere que em futuros estudos entrevistas possam ser realizadas com cada cônjuge separadamente, a fim de conhecer tanto as percepções das mães quanto dos pais na transição. Apesar dos conteúdos dos relatos não se diferenciarem por completo da literatura já existente referente a gestações não planejadas, mais pesquisas a respeito das percepções de casais na transição devem ser realizadas para que seja possível elucidar com mais clareza este fenômeno cada vez mais atual.

 

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Endereço para contato
E-mail: clarissepm@unisinos.br

Recebido em agosto de 2015
Aceito em maio de 2017

 

 

Queli Simone da Cruz: Psicóloga pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS).
Clarisse Pereira Mosmann: Doutora em Psicologia. Professora do Programa de Pós-Graduação de Psicologia da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS).

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