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Aletheia
versão impressa ISSN 1413-0394
Aletheia vol.53 no.1 Canoas jan./jun. 2020
ARTIGOS EMPÍRICOS - PROMOÇÃO DA SAÚDE
Percepção de saúde de uma população quilombola localizada em região urbana
Health perception of a quilombola population located at an urban region
Luiz Gustavo Fernandes da Rosa1; Mitiyo Shoji Araujo2
Universidade Luterana do Brasil - Canoas/RS
RESUMO
Este estudo objetivou compreender a percepção de saúde por uma população remanescente de quilombolas do município de Canoas/RS. Teve abordagem qualitativa, com amostra de 12 pessoas adultas residentes na Comunidade Chácara das Rosas, submetidas à entrevista semiestruturada, seguida de análise de conteúdos na modalidade temática operacionalmente proposta por Minayo. Revelaram-se três categorias centrais: Processo saúde-doença e autocuidado sob a ótica da realidade quilombola; Fatores individuais e sócio ambientais determinantes do processo saúde doença; Sistema social e de assistência à saúde ineficientes associados ao reduzido empoderamento para o exercício do direito de saúde. Constatou-se a existência da percepção distorcida de saúde, doença e autocuidado, além de determinantes sociais de saúde relacionados ao ambiente urbano, desinteresse social e ineficiência do setor saúde para o atendimento do grupo étnico e desconhecimento dos quilombolas em relação à Política Nacional de Saúde Integral da População Negra com reduzida participação em espaços de controle social.
Palavras-chave: Percepção; Saúde; Grupo com ancestrais do continente africano
ABSTRACT
This study aimed to understand the health perception of remaining population of quilombolas in the city of Canoas / RS. A qualitative approach has been applied, with a sample of 12 adults living in the Chácara das Rosas Community, who were submitted to a semi-structured interview, followed by content analysis according to Minayo. Three central categories were revealed: Health-disease process and self-care from the perspective of quilombola´s reality; Individual and socioenvironmental factors determining health disease processes; Inefficient social and health care systems associated with reduced empowerment to exercise health rights. It was found that there was a distorted perception of health, disease and self-care, as well as social determinants of health related to the urban environment, social disinterest and inefficiency of the health sector for the ethnic group care. The ignorance of quilombolas in relation to the National Policy of Integral Health of the Black Population with reduced participation in spaces of social control has also been detected.
Keywords: Perception. Health. Group with ancestors of the African continent.
Introdução
Abordar a saúde da população quilombola implica em resgatar os mais diversos problemas que envolvem a sua formação histórica, ou seja, implica trabalhar com fatores conflitantes e complexos, como a resistência desse segmento frente às discriminações sociais pela afirmação étnica e de seus direitos. Acima de tudo, este movimento requer o reconhecimento do vínculo existente entre os quilombolas e o território que habitam enquanto fonte de subsistência e manutenção de relações sociais, culturais e simbólicas (Jorge, 2015).
De acordo com o Decreto nº 4.887 de 20 de novembro de 2003, caracterizam-se comunidades quilombolas aquelas constituídas por população que se reconheça com ancestralidade africana étnico-racial definida, história própria de lutas e resistência às opressões sofridas socialmente, com fortes ligações territoriais (Presidência da República, 2003). Existem hoje 2.744 comunidades quilombolas certificadas no Brasil pela Fundação Cultural Palmares (2019), estando estas distribuídas em 24 estados.
A comunidade quilombola Chácara das Rosas, situada no município de Canoas, estado do Rio Grande do Sul, foi um dos primeiros quilombos a alcançar a titulação de suas terras, recebendo a regularização territorial em 2009 (Lima, 2011). Entretanto, apesar desse evento que trouxe melhorias nas condições de vida e saúde da comunidade mediante o tensionamento social, a iniquidade de acesso aos direitos ainda é evidente, principalmente no tocante ao direito de saúde. Fator este que reforça a relevância do investimento na promoção do acesso efetivo às ações e serviços com vistas à redução das desigualdades e vulnerabilidades em saúde (Santos et al., 2016).
Em resposta à iniquidade em saúde existente no país entre as raças e etnias, foi instituída a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN) por meio da Portaria nº 992 de 13 de maio de 2009. Esta discorre sobre os direitos dessa população quanto ao acesso à saúde e melhoria de suas condições de vida, prevenindo a desigualdade social e proporcionando o acesso equânime e igualitário aos serviços de saúde, traçando metas de melhorias com atenção especial à população quilombola (Ministério da Saúde, 2009; Ministério da Saúde, 2017b).
Os quilombolas constituem segmento que foi socialmente e historicamente discriminado devido às imposições desumanas firmadas pelo obsoleto sistema mercantil e de produção brasileiro. Hoje, mesmo sendo detentores de uma história de lutas e resistências, na afirmação de suas crenças, cultura e proteção dos seus direitos, os quilombolas da Comunidade Chácara das Rosas se encontram imersos às influências dos determinantes sociais de saúde advindos do ambiente urbano em que vivem. Desta forma, é relevante a compreensão da percepção de saúde por esta população, a fim de obter subsídios para a formação e afirmação de políticas públicas direcionadas, visando a legitimação de direitos e o reconhecimento dos quilombolas como sujeitos na determinação dos seus níveis de saúde. O estudo teve como questão de pesquisa: Qual a percepção de saúde de uma população remanescente de quilombolas residente em ambiente urbano? Visando atender a este questionamento objetivou-se compreender a percepção de saúde de uma população remanescente de quilombolas do município de Canoas/RS.
A presente investigação teve sua idealização e desenvolvimento motivados pela constatação de baixos níveis de evidência científica acerca dos impactos relacionados às novas configurações das comunidades quilombolas - presentes no meio urbano -, sobre o processo saúde doença da população residente. Fato que, somado ao envolvimento e interesse do pesquisador por políticas públicas de saúde, principalmente no que concerne aos determinantes sociais de saúde, despertou a curiosidade essencial na tomada de decisão pelo desenvolvimento do aprofundamento científico da temática, de forma a contribuir com subsídios para a formulação de políticas e oferta de cuidados de saúde de qualidade à população quilombola e negra como um todo.
Metodologia
Trata-se de uma pesquisa de abordagem qualitativa que foi realizada no município de Canoas, no período entre abril e julho do ano de 2018, com uma amostra composta por 12 pessoas quilombolas adultas, residentes na Comunidade Chácara das Rosas, selecionadas aleatoriamente, respeitando os critérios de inclusão e exclusão, observando a saturação das informações durante a coleta dos dados como forma de definir o tamanho da amostra. Este modelo de constituição da amostra tem por base o alcance da compreensão sobre a lógica interna existente na realidade de um grupo ou coletividade, exigindo do pesquisador a organização de sua investigação a fim de possibilitar a determinação do momento em que se obtém a homogeneidade, diversidade e intensidade das informações importantes para o estudo proposto e os objetivos traçados (Minayo, 2014).
Os critérios de inclusão foram pessoas com idade maior ou igual a 18 anos, que residiam na Comunidade Chácara das Rosas há 10 anos ou mais e que aceitaram participar da pesquisa. Nos critérios de exclusão, foram consideradas aquelas pessoas que não se encontravam no domicílio no momento da investigação.
Para a coleta de dados, primeiramente foram realizadas visitas à comunidade quilombola para conhecimento das famílias e convite aos adultos para a participação no estudo, atentando-se para a explanação da justificativa da pesquisa, seu objetivo e metodologia, assim como a importância para o desenvolvimento científico em saúde da população negra. Para aqueles que aceitaram, após a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, realizou-se entrevista semiestruturada conforme roteiro elaborado pelo pesquisador, constituído por sete perguntas formuladas através das questões norteadoras da pesquisa – Como a população quilombola percebe a saúde? Conhece a PNSIPN? Quais são os determinantes sociais e ambientais que afetam a saúde deste segmento? A população quilombola reconhece e participa do controle social em saúde para a garantia e exercício deste direito? -, sustentando-se também, na revisão bibliográfica da literatura disponibilizada pelo Ministério da Saúde sobre a saúde da população negra e povos quilombolas, sendo as entrevistas conduzidas pelo pesquisador e as falas gravadas em áudio, perfazendo 14 minutos em média.
Após a obtenção dos dados por meio das gravações das entrevistas, estas foram transcritas para facilitar a análise do material, que foi procedida de acordo com o método de análise de conteúdos na modalidade temática operacionalmente proposto por Minayo (2014). Assim, primeiramente foi realizada a leitura do material levantado, com o intuito de conhecer todas as informações obtidas, promovendo a ordenação dos dados. Com isso, passou-se à classificação dos dados, por meio da leitura horizontal exaustiva, buscando o significado interno das informações presentes nos textos transcritos. Em seguida, foram traçadas categorias empíricas que receberam a leitura transversal, viabilizando o levantamento de temas semelhantes das entrevistas e, consequente, agrupamento destes em um número reduzido de unidades de sentido, possibilitando a elaboração de categoriais centrais por meio de reflexões sucessivas, a serem submetidas à interpretação e fundamentação na análise final. As informações utilizadas no estudo foram tratadas e apresentadas de acordo com o anonimato, preservando a integridade dos participantes da pesquisa, através do estabelecimento de códigos de identificação. Deste modo, as falasforam codificadas com as iniciais "PQ" do termo "população quilombola", seguidas de um ponto e um número em ordem crescente, por exemplo, "PQ.5".
O estudo foi inteiramente conduzido pelo pesquisador principal, já que constituiu em Trabalho de Conclusão de Residência, como parte das exigências da Residência Multiprofissional em Saúde Comunitária. O projeto desta pesquisa foi submetido à apreciação do Núcleo Municipal de Educação em Saúde Coletiva de Canoas, recebendo permissão para a condução do estudo, além de ter sido apreciado e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Luterana do Brasil, sob o parecer: 2.564.187, CAAE nº 80097917.3.0000.5349.
Resultados e discussão
Dentre os participantes deste estudo, 11 eram do sexo feminino e um do sexo masculino, com uma faixa etária entre 22 e 84 anos. A maioria não havia completado o ensino formal, possuindo como ocupação diária os cuidados com o lar e a família, três eram aposentados e um trabalhava como auxiliar de serviços gerais em uma empresa privada. Por meio do tratamento dos dados coletados nas entrevistas, foi possível levantar três categorias centrais para discussão com bibliografias pertinentes ao estudo, sendo elas: (1) Processo saúde-doença e autocuidado sob a ótica da realidade quilombola; (2) Fatores individuais e sócio ambientais determinantes do processo saúde doença; e, (3) Sistema social e de assistência à saúde ineficientes associados ao reduzido empoderamento para o exercício do direito de saúde.
Na busca por subsidiar a discussão sob uma reflexão crítica da realidade de vida e do processo saúde-doença da população estudada, foram extraídos trechos diretamente das falas dos entrevistados.
Categoria 1 - Processo saúde-doença e autocuidado sob a ótica da realidade quilombola
A população residente na Comunidade Chácara das Rosas entende a saúde enquanto bem-estar físico, social e mental, relacionando-a com a capacidade e disposição para o trabalho e, exercício das atividades sociais. Por outro lado, percebe a doença enquanto barreira, fraqueza e incapacidade que impossibilita o trabalho e a vida em sociedade.
Saúde pra mim é estar bem, (...), se sentir bem... é ter condições de executar as coisas, de ter condições físicas, psicológicas de poder viver, viver bem pra crescer né? (...) daí tu vai na busca de comida e, tu faz qualquer coisa, faz uma capina, faz uma faxina, tu tem comida, vai lá, tu vende um produto, o artesanato. (PQ.12)
"A doença é um algo que diminui. A pessoa não pode ter um crescimento, não pode ser feliz, trabalhar pra viver." (PQ.1)
A compreensão da saúde e da doença enquanto extremos opostos e determinantes da aptidão para a vida e o trabalho está fortemente liga a este contingente populacional, encontrando bases na necessidade de manter-se capaz para o provimento da subsistênciafamiliar. Sendo a fragilidade, imposta pelo adoecimento, vista como barreira para o cuidado de si e da coletividade (Santos, Tenório, Brêda, & Mishima, 2014).
A definição da saúde como bem-estar físico, mental e social, não se limitando apenas à ausência da doença, foi apresentada pela Organização Mundial da Saúde, trazendo em si a afirmação da complexidade do assunto em questão e a importância de que este seja trabalhado com as demais particularidades que o envolvem (Viegas & Varga, 2016). Tal conceito, demanda que a avaliação das condições de vida e saúde das comunidades e, em especial, das comunidades quilombolas, leve em conta os diversos determinantes e condicionantes sociais de saúde como trabalho, renda, habitação, educação e alimentação, responsáveis pela consolidação e dinamicidade do seu processo saúde-adoecimento (Durand, 2016).
Assim, a concepção de saúde, em seu conceito mais amplo e positivo, constitui no resultado do entendimento e abordagem de fatores determinantes da realidade populacional, que consequentemente permitem elucidar a complexidade de relações existentes no processo saúde-doença. Neste entendimento, os níveis de saúde não resultam de questões únicas e imutáveis, mas constituem o produto da organização social e das relações dos indivíduos com este meio (Budó et al., 2014). Ademais, a relação entre a saúde e a doença desenvolve-se mediante o acesso a recursos e meios que permitam às pessoas o alcance de suas aspirações e atendimento de suas necessidades, deste modo, não sendo possível definir a saúde como um objetivo, mas como um conjunto de recursos e meios que viabilizam a vida (Durand, 2016).
Não obstante, foi possível observar que na concepção dos entrevistados o autocuidado afeta diretamente o processo saúde-doença dos indivíduos e comunidade, porém alguns ainda o entendem por meio do olhar biomédico.
Saúde pra gente eu acho assim ó: tu tem que procurar se manter bem (...), uma comida bem saudável, um esporte, e a higiene (...) Mas eu acho que o melhor de tudo é o esporte e a alimentação, (...). Vai pra academia, aconselha um filho ali né? (PQ.8)
"Saúde é a gente se cuidar né? (...) se toma medicamento, procurar tomar nas horas certas (...). A gente se cuidar, se alimentar bem." (PQ.5)
"Pra ter saúde, a gente tem que se cuidar né? (...) ir ao médico com frequência." (PQ.4)
"A gente se cuidar e quando sentir qualquer problema ir ao médico pra ver o que está acontecendo com a vida da gente." (PQ.1)
Quando a saúde se encontra fragilizada, é frequente o desenvolvimento de uma tendência ao deslocamento da responsabilidade pelos cuidados com a própria saúde aos profissionais e serviços da área, em uma lógica biomédica. Esta visão restrita do cuidado, encontra bases nos moldes contemporâneos de atenção à saúde, que valorizam as práticas e ações desfragmentadas de acordo com a condição ou doença, comprometendo a promoção da saúde (Santos et al., 2014). O entendimento sobre saúde e doença sofre influências da interação entre os cuidados tradicionalmente assumidos no âmbito cultural, o acesso aos serviços de saúde e as concepções definidas socialmente sobre estar saudável ou não (Minayo, 2014).
Por meio destes achados constata-se que o processo de autocuidado parece almejar o alcance de bons níveis de saúde para a manutenção da autonomia nas atividades da vida em sociedade. Nesta perspectiva é premente a mobilização dos gestores para o trabalho direcionado ao conceito positivo de saúde, ultrapassando o olhar limitado a doença, de maneira a repercutir de forma significativa na vida das pessoas (Pallarés, Alves, Aerts, Câmara & Tovo, 2016). Sendo interessante que se considerem os diversos determinantes e condicionantes sociais de saúde que podem influenciar diretamente neste processo (Santos et al., 2014); sem esquecer de que cada cultura apresenta formas distintas de produzir e oferecer cuidado, de acordo com suas práticas e crenças, imersas em uma realidade e contexto social únicos (Farias, Crossetti, Góes & Portella, 2016).
Categoria 2 - Fatores individuais e sócio ambientais determinantes do processo saúde doença
Para a população quilombola entrevistada, as condições de vida e os níveis de saúde das pessoas residentes na Comunidade Chácara das Rosas sofrem a influência de diversos fatores advindos do ambiente no qual a comunidade está inserida.
"Ambiental aqui no quilombo sempre afeta muito a saúde. (...) tem bastante mato, bicho assim, esses bichos que vem pra cá, eu acho que podem trazer bastante doença. (...) Bastante rato." (PQ.7)
"Matéria de vícios, (...) a parte de drogas." (PQ.3)
A poluição vem pelo ar, (...) pessoal nem querem mais andar de a pé, só tudo a carro! (...) Agora tudo é videogame, é celular. Os jovens não sabem mais o que é brincar com uma bolinha, um nada! Nem pular corda, só querem arma. (...) O amor que tinha há muitos anos não tem mais. Eles matam por um tênis, por um chapéu né? Como é que nós vamos ter saúde? Só querem comer hambúrguer, (...) é tudo direto no comprado, (...) a população bem dizer, quer mais trabalhar e não dar tempo pra saúde né? É dificuldade de não ter dinheiro, não ter emprego, não ter dinheiro pra comer uma comida saudável, uma comida boa, (...) é depressão. (PQ.8)
Um estudo realizado por Santos et al. (2016) demonstrou que o ambiente foi considerado pela população quilombola como de grande impacto para a qualidade de vida, fato este que pode ser melhor explicado pelas precárias condições de moradia e saneamento básico que estão frequentemente relacionadas a estas comunidades. Soma-se a isso, o fato de que muitos quilombos que ocupavam ambientes rurais passaram a ser urbanos, fruto da expansão das cidades que anteriormente permaneciam distantes das comunidades, resultando em alterações no modo de vida e no uso dos recursos culturais pela população quilombola, impactando diretamente as suas condições de vida e saúde (Zank, Ávila & Hanazaki, 2016).
Para além da luta pela garantia do território e sua manutenção, os quilombos urbanos enfrentam ainda, as dificuldades advindas do meio citadino com sua heterogeneidade e complexa dinâmica social. Inserida neste contexto, a Comunidade Chácara das Rosa encontra barreiras para a manutenção da vida em sociedade, frente aos estigmas que lhesão impostos (Lima, 2011). Esta situação vai ao encontro dos achados da pesquisa, no momento em que um dos participantes afirma perceber a existência de discriminação na sociedade.
A maneira como a sociedade olha pra nós, o jeito que eles falam, denigrindo a nossa imagem aqui dentro, isso aí prejudica bastante. (...) Afeta o psicológico da gente direto né? Porque, dali tu fica com aquele receio, (...) aquele sentimento, aquela coisa martelando na tua cabeça sem parar. (PQ.11)
Tal percepção pode ser explicada pela localização da comunidade em uma região que passou por grandes transformações, já que a cidade cresceu rapidamente condicionando os moradores a viverem cada vez mais exclusos socialmente frente ao crescente desenvolvimento urbano. Este crescimento determinou o desenvolvimento de discriminação, recebendo até mesmo o apelido de "planeta dos macacos" por meio da ideologia de que o quilombo era sinônimo de pobreza e baixos níveis educacionais. Tal fato colaborou para que a comunidade deixasse aos poucos de interagir com o desenvolvimento socioambiental a sua volta, devido ao medo da perda das terras. Atualmente a Comunidade Chácara das Rosas possui território de grande valor imobiliário na região central da cidade de Canoas e, através de lutas de seu povo junto a órgãos públicos, galgou a titulação de suas terras, possui melhores condições de vida e até mesmo uma associação de artesanato local ( Lima, 2011).
Diante dessa conjuntura, cabe aqui destacar que os processos de territorialidade entre as pessoas estão ligados à organização social e formação de identidades, assim, o território é o produto de construções históricas, sociais e culturais, que apresentam significados e características que estabelecem e identificam o funcionamento das relações sociais. Entendido isso, o território pode ser visto como campo de produção social e espaço de poder, o qual, por vezes, apresenta-se desigual e excludente, formando barreiras para que certas parcelas da população possam se apropriar, criar e recriar o território livremente (Jaramillo, 2018).
Categoria 3 - Sistema social e de assistência à saúde ineficientes associados ao reduzido empoderamento para o exercício do direito de saúde
Na realidade estudada, os entrevistados ressaltam a existência de um desinteresse social pelos quilombolas, que contribui para a ineficiência do setor saúde no atendimento deste contingente populacional.
A gente dá uma reforçada que eu tenho esse direito, mas a maneira de aplicar ele, de pôr em prática ele né? A gente não tem! Acredito que tem um descaso muito grande, (...) problema assim que é sério, que isso atinge a nossa saúde. (PQ.12)
A gente não tem facilidade de acesso à saúde, como eles falaram que era pra ser né? (...) fazendo leis específicas pra negro, que têm que ser cumpridas, daí eles já não concordam. (...) Só pra ficar no papel mesmo, porque cumpridas elas não são. (PQ.11)
"É o interesse das pessoas que trabalham com saúde! Se interessar mais, dar mais atenção pras pessoas quando precisam, ter uma dedicação séria." (PQ.1)
Atualmente, as comunidades quilombolas ainda sofrem com o esquecimento e negligência social, ficando à margem das vantagens que lhes são de direito enquanto pessoas e cidadãs, fato que gera invisibilidade perante às organizações políticas e institucionais, com reduzido interesse do meio científico e acadêmico pela sua saúde. Como consequência deste cenário, ocorre afastamento e exclusão dos quilombolas, vulnerabilizando e determinando baixos níveis de qualidade de vida e saúde (Durand, 2016).
Acrescenta-se a este contexto, o despreparo dos profissionais e serviços para a assistência à população negra, que não atendem aos princípios do SUS na medida em que não reconhecem a necessidade de desconstrução do racismo e educação permanente na equipe multiprofissional para a oferta de cuidados integrais, equânimes e de qualidade à esta população (Bandurka, Medeiros & Bergamo, 2017). Deste modo, a população negra em geral, pode encontrar barreiras de acesso determinadas pelo racismo institucional dos serviços, com fundo histórico, definido pela discriminação enfrentada ao longo dos anos, responsável pela formação de disparidades de acesso a bens e serviços, assim como entraves ao exercício de direitos (Rosa, Christóvão, Furlin & Lasta, 2019).
A PNSIPN tem como objetivos o alcance da oferta de atenção em saúde à este contingente populacional de forma integral com ênfase na igualdade étnica, combatendo ao racismo institucional, visando a abordagem do quesito cor como forma de obter bases para maior qualidade de informações no Sistema Único de Saúde (SUS), sustentando-se na transversalidade como princípio organizativo, no sentido de promover a articulação constante e essencial com as demais políticas de saúde no desenvolvimento de estratégias abrangentes e integrais, capazes de combater a ação da discriminação na saúde da população em suas diversas formas, inclusive as de gênero e orientação sexual. Além disso, o dispositivo legal visa apoiar a realização de pesquisas que se desdobrem sobre a saúde deste segmento, fomentar a abordagem da saúde da população negra na formação e educação continuada dos profissionais de saúde e, o provimento de educação sobre este mesmo tema para as lideranças dos movimentos sociais (Ministério da Saúde, 2017b).
No entanto, é possível observar a existência de um reduzido conhecimento da PNSIPN e participação da população quilombola em meios de controle social da saúde, mesmo que ciente da existência destes meios, consequentemente, apresentando atuação pouco resolutiva para a consolidação de bons níveis de saúde individual e coletiva.
"Não conheço! (...) sei que eles falam muito das doenças dos negros, mas a política mesmo realmente." (PQ.11)
O conselho realmente, ele dá aquela pressão né? Ela é institucional e ela é do próprio movimento social. (...) contribuir com o conselho e a comunidade e levar à frente pra que realmente a gente consiga ter um direito, um direito permanente mesmo né? (PQ.12)
A gente não sabe nem como se dirigir. (...) pra gente ter mais saúde, com uma fiscalização mais correta, as pessoas tá mais presente naquele local pra poder ter aquele diálogo né? (...) Pra dizer o que é certo, mostrar o que tá errado! (PQ.5)
O desconhecimento da PNSIPN, aqui observado, vai ao encontro dos achados de um estudo realizado por Chehuen et al. (2015), no qual foi possível constatar que 90,5% dos negros entrevistados não conheciam a política, porém, na sua maioria, afirmavam a importância da mesma, concordando com a sua implantação e implementação, mas alegando que tais ações podem trazer reforço ao racismo brasileiro (Chehuen et al., 2015). A população residente na comunidade Chácara das Rosas ainda sofre pela condição a que historicamente foram submetidos os seus antepassados, o que colabora para o afastamento do meio social em que está inserida. Assim, o reduzido envolvimento com questões relacionadas à saúde pode estar ligado à frágil realidade social e econômica em que vivem os quilombolas (Botelho & Camargo, 2016).
No controle e participação social, a população negra deve estar representada por meio de suas lideranças ou mesmo através da inclusão dos movimentos negros na participação ativa da gestão e controle das políticas de saúde. Neste interim, a fim de atender à esta demanda, as estruturas locais e estaduais devem lançar mão de estratégias inovadoras de articulação e consolidação das percepções e contribuições destes usuários, com vistas ao monitoramento, avaliação e aperfeiçoamento das políticas públicas de saúde (Ministério da Saúde, 2009; Ministério da Saúde, 2017a).
Ademais, diante das múltiplas barreiras enfrentadas pela população negra no acesso e exercício de seus direitos de forma efetiva, com atenção ao direito de saúde, destaca-se a importância da compreensão ampliada do seu processo saúde-doença, entendendo os variados determinantes sociais que incidem sobre o mesmo, como as relações raciais, de gênero, programas políticos enfraquecidos e participação ineficiente no controle social do setor, que estabelecem e condicionam as relações e variações entre a saúde e o adoecimento nesta população. Com isso, é interessante enfatizar que as práticas e ações do setor saúde necessitam pautar-se nas demandas da população assistida, considerando a sua realidade, o contexto de sua inserção social e exercício dos direitos que lhes são devidos, legitimando a ação coletiva e o comprometimento com o social em um processo de resiliência frente à discriminação história sofrida ainda nos dias atuais (Prestes & Paiva, 2016).
Considerações finais
A análise promovida por esta pesquisa viabilizou o aprofundamento científico sobre a importante condição social de uma população quilombola presente no meio urbano, subsidiando a reflexão crítica sobre a dinâmica do processo saúde-adoecimento através do olhar daquele que vivencia tal realidade. Neste sentido, o estudo atingiu o seu objetivo ao permitir compreender que a população quilombola residente na Comunidade Chácara das Rosas percebe a saúde como o pleno bem-estar e disposição para o trabalho e atividades sociais ligadas à subsistência, sendo a doença vista como barreira para tal e o autocuidado como importante fator determinante do processo saúde-doença, por meio de uma lógica biomédica. Situação que pode estar relacionada à maior exposição destas pessoas às condições econômicas e sociais instáveis, além da influência do caráter positivista e hegemônico ainda presente na oferta de cuidados pelos serviços de saúde, desencadeando o entendimento distorcido da saúde, doença e do ato de auto cuidar-se, de maneira a engessar a autonomia para a proteção, promoção da saúde e prevenção do adoecimento.
A determinação do processo saúde-doença esteve ainda relacionada aos mais diversos fatores de origem social e urbana, como a violência e criminalidade, drogadição, estilo de vida não saudável, discriminação social e reduzido acesso às boas condições de moradia e saneamento básico, que em conjunto com o desinteresse social pelo grupo étnico e ineficiência do setor saúde para a oferta de atenção de qualidade a esta população, demonstram a significativa condição de exposição destas pessoas aos processos de desigualdade social. Disparidades que se fundamentam nas mudanças de sua cultura e qualidade de vida no ambiente urbano, firmadas por relações de poder que tangenciam o processo de territorialização, estabelecendo vulnerabilidades e desvantagens como o distanciamento dos direitos básicos de cidadania; apoiando-se no desconhecimento da PNSIPN e reduzida participação em recursos de controle social da saúde.
No estudo foi possível perceber a existência de uma lacuna de conhecimentos sobre a saúde da população quilombola, principalmente no tocando às comunidades urbanas, havendo reduzido escopo de informações, pesquisas e literaturas sobre o assunto, evidenciando o distanciamento da comunidade científica, que atualmente oferece fundamentação insuficiente para o desenvolvimento de estratégias de atenção em saúde de qualidade a este contingente populacional.
Nessa premissa, o presente estudo vem colaborar para a construção do conhecimento essencial à oferta de ações de saúde a este grupo étnico, permitindo compreender em sua investigação, que o meio urbano influencia no modo de viver e perceber a saúde pelos quilombolas, consolidando um processo saúde-doença pouco palpável à medida em que apresentam-se em desvantagem para o exercício do direito de saúde, expostos às imposições sociais desiguais. Destaca-se assim, a premente necessidade de repensar as estratégias direcionadas a este público por meio do desenvolvimento de uma olhar amplo sobre a complexidade existente no seu contexto de vida e relações sociais, alcançando subsídios suficientes à oferta de cuidados de saúde integrais e equânimes, capazes de atender às suas necessidades e promover autonomia, respeitando estes indivíduos enquanto pessoas detentoras de direitos, merecedoras de atenção à saúde de qualidade, livre de qualquer forma de discriminação.
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Endereço para correspondência
E-mail: enfermeiro.luizgustavofr@outlook.com
Recebido em: novembro de 2019
Aprovado em: abril de 2020
1 Luiz Gustavo Fernandes da Rosa: Enfermeiro. Especialista em Saúde Comunitária pela Residência Multiprofissional em Saúde. Mestrando em Promoção da Saúde, Desenvolvimento Humano e Sociedade. Universidade Luterana do Brasil - Canoas/RS. Endereço: Av. Darcy Feijó, 709 – Capão da Canoa/RS CEP: 95555-000. Contato: (51) 99654-8786.
2 Mitiyo Shoji Araujo: Enfermeira. Mestre em Enfermagem Psiquiátrica e Tutora da Residência Multiprofissional em Saúde Comunitária da Universidade Luterana do Brasil - Canoas/RS. Contato: (51) 98461-4706.