Serviços Personalizados
Journal
artigo
Indicadores
Compartilhar
Aletheia
versão impressa ISSN 1413-0394
Aletheia vol.54 no.2 Canoas jul./dez. 2021
https://doi.org/DOI10.29327/226091.54.2-15
DOI 10.29327/226091.54.2-15
RELATOS DE EXPERIÊNCIA
A prática da observação sistemática para a formação do(a) psicólogo(a): relato de experiência
The practice of systematic observation for the training of the psychologist: experience report
Gabriela de Paula Feriani1; Camila Vassallo de Melo2; Wanderlei Abadio de Oliveira3; Letícia Lovato Dellazzana-Zanon4
Pontifícia Universidade Católica de Campinas
RESUMO
Este estudo tem como objetivo relatar a experiência de duas alunas matriculadas em uma disciplina de estágio básico com foco no desenvolvimento da observação sistemática. A experiência ocorreu em 2016, no contexto do quinto semestre do curso de Psicologia de uma universidade particular do estado de São Paulo. Os alunos matriculados na disciplina deveriam realizar 4 horas de observação e 2 horas de supervisão acadêmica por semana. Nove observações orientadas foram realizadas, partindo-se da observação aleatória até a realização de uma observação sistemática. Os resultados mostraram que a disciplina promoveu a aproximação entre teoria e prática e possibilitou uma integração com outras disciplinas cursadas anteriormente. Verificou-se que o conhecimento adquirido ao longo do semestre, o desenvolvimento pessoal no campo e os avanços percebidos na disciplina foram centrais para a formação profissional das alunas e para a preparação das etapas subsequentes do curso de psicologia – foco da disciplina.
Palavras-chave: observação; estágio curricular; formação em psicologia.
ABSTRACT
This study aims to report the experience of two students enrolled in a basic internship discipline focusing on the development of systematic observation. The experience took place in 2016, in the context of the fifth semester of the Psychology course at a private university in the state of São Paulo. Students enrolled in the discipline should perform 4 hours of observation and 2 hours of academic supervision per week. Nine guided observations were made, starting from random observation until a systematic observation. The results showed that the discipline promoted the approximation between theory and practice and enabled an integration with other subjects previously studied. It was found that the knowledge acquired throughout the semester, personal development in the field and the advances perceived in the discipline were central to the students' professional training and to the preparation of the subsequent stages of the psychology course - the focus of the discipline.
Keywords: observation; curricular internship; psychology teaching.
Introdução
O ano de 2018 foi o Ano da Formação em Psicologia, período em que o Conselho Federal de Psicologia (CFP), a Associação Brasileira de Ensino de Psicologia (ABEP) e a Federação Nacional dos Psicólogos (FENAPSI) coordenaram o processo nacional de revisão das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) para os cursos de graduação em Psicologia (Conselho Federal de Psicologia [CFP], 2018). O resultado desse trabalho de revisão foi a Minuta das Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de graduação em Psicologia.
No artigo 18º da Minuta, salienta-se que o "planejamento acadêmico deve assegurar, em termos de carga horária e de planos de estudos, o envolvimento do estudante em atividades, individuais e grupais, que incluam, entre outros... [...] III - observação e descrição de condutas em diferentes contextos..." (CFP, 2018). Nesse mesmo documento, constam orientações sobre os estágios básicos, os quais devem: (a) envolver prática em situação real de trabalho, com crescente grau de complexidade e (b) ser orientados adequadamente por um(a) professor(a) com experiência específica (CFP, 2018). Para que isso ocorra, devem ser garantidas as condições da orientação como tempo de orientação adequado e proporção entre número de estudantes e orientador (CFP, 2018).
O primeiro estágio realizado no Curso de Graduação em Psicologia da [OCULTADO] é o Estágio Básico I, cujo foco são atividades de observação dos fenômenos e processos psicológicos em contextos naturais, portanto, o favorecimento e o desenvolvimento de capacidades básicas que serão úteis em outros momentos da formação dos alunos/as. A disciplina se orienta pela concepção de que a observação é uma atividade que ajuda a garantir a segurança e sobrevivência da espécie humana e a escolher parceiros íntimos e amigos (Dallos, 2010). Assim, saber observar é uma habilidade fundamental para qualquer pessoa, não apenas para psicólogos (Dallos, 2010). Contudo, no que diz respeito à psicologia, o ato de observar possui expressiva relevância e está presente em todas as atividades desenvolvidas pelos/as psicólogo/as, nos mais diferentes contextos de atuação (Boeckel, Rolim & Faraco, 2016).
Mas o que é a observação, principalmente pensando no/a psicólogo/a que observa? A observação é um recurso que permite examinar eventos, comportamentos ou fenômenos nas condições em que eles ocorrem. De acordo com Danna e Matos (2015), a observação é um instrumento utilizado para a coleta de dados, que se utiliza de informações obtidas para interpretar suposições que, possivelmente, possam ocorrer na realidade. As autoras consideram o método observacional como meio que possibilita uma melhor interpretação da natureza e do indivíduo, que permite descobrir quais comportamentos podem ser influenciados pelas consequências que o ambiente propicia. Desta forma, uma observação não pode ser considerada apenas como atividade trivial ou como uma simples anotação de fatos, pois, para sua realização, há um envolvimento de sensações e percepções em que são usadas memórias de experiências passadas, além de uma interpretação individual da realidade (Gray, 2012; Yin, 2016).
É importante deixar claro que o que será observado depende do objetivo da observação (Pasquali, 2010; Yin, 2016). Nesse sentido, uma observação é considerada científica quando suas condições estão prévia e precisamente definidas, construindo em procedimento metodológico para a análise do comportamento ou dos fenômenos (Pasquali, 2010; Yin, 2016). Especificamente, a observação do comportamento humano é importante para psicólogos e pesquisadores, pois serve como um instrumento para a obtenção de dados que melhoram a compreensão sobre o comportamento sob investigação (Fagundes, 1999).
No que diz respeito à psicologia clínica, a observação pode servir para ajudar o(a) aluno(a) em formação por meio da modelação (Barletta, Fonseca & Oliveira, 2011) e gerar informações durante o momento em que a intervenção está ocorrendo, possibilitando o resgate de elementos que poderiam não ocorrer em outro setting (Ferreira & Mousquer, 2004). Além disso, a observação favorece a compreensão do processo terapêutico, uma vez que proporciona informações fundamentais sobre comportamentos colaborativos entre terapeuta e cliente, permitindo que sejam identificados indicadores de aliança terapêutica, em conjunto com um possível estudo das relações interpessoais em psicoterapia (Relvas et al., 2010). Nesse sentido, Arpini, Zanatta, Paraboni, Rodrigues e Marchesan (2018) chamam atenção para a importância de recuperar o potencial da observação na prática do psicólogo, a qual não raro, é preterida em relação a outras ferramentas mais estruturadas de pesquisa.
A observação pode ser naturalística ou sistemática. A observação naturalística (observação de campo natural) consiste na realização de observações, em um ambiente natural, por um longo período de tempo. Há uma descrição objetiva e detalhada de todos os comportamentos e do ambiente que foi observado, proporcionando um quadro completo e integral, sem hipóteses prévias (Cozby, 2012; Gray, 2012). Esse tipo de observação pode ser considerado como um método passivo, na medida em que ocorre naturalmente (Shaughnessy, Zechmeister & Zechmeister , 2012).
Sobre a observação sistemática, ela envolve um olhar ordenado para ações, registros, análises e interpretação dessas ações (Cozby, 2012; Danna & Matos, 2015; Gray, 2012). Ela busca por comportamentos específicos, em que tanto o ambiente como as hipóteses, são definidos previamente à realização da observação. Este método conta com uso de categorização sistemática ou prévia, registros fáceis e protocolos de observação para coleta de dados sendo, portanto, mais quantitativa (Cozby, 2012; Gray, 2012). Na observação sistemática aspectos e situações relevantes sobre o sujeito observado são priorizados, comportamentos são escolhidos de acordo com o interesse da pesquisa e não há necessidade de descrevê-los exaustivamente, como ocorre nos casos de observação naturalística (Dessen & Murta, 1997).
De acordo com Danna e Matos (2015) é indispensável que o relato da observação seja feito por meio de uma linguagem científica, cujas características específicas são não marcar impressões subjetivas, intencionalidades e finalidades. É necessário objetividade, pois é fundamental descrever exatamente como cada comportamento aconteceu e na ordem exata, incluindo posturas, entonações e expressões, além da neutralidade do observador. Além disso, a linguagem deve ser clara e precisa, de fácil compreensão, obedecer aos critérios gramaticais e não utilizar termos ambíguos.
O relato também deve seguir um ordenamento composto por um objetivo, definido de forma clara e precisa, seguido de um planejamento de coleta de dados, constituído por: quem (número de pessoas a serem observadas, sexo, idade), onde (local ou situação), como (técnicas de coleta de dados), o que (comportamentos que serão focalizados, amplos ou determinados), frequência (quantas observações) e o tempo de observação (Danna & Matos, 2015). Tais informações de planejamento devem estar presentes no cabeçalho do relato da observação. Por fim, o relato deve conter detalhes da aparência física dos indivíduos observados, os comportamentos, a hora dos eventos e sua sequência (Danna & Matos, 2015; Yin, 2016).
Portanto, para realizar uma observação sistemática é necessário dar continuidade ao planejamento, seguindo um protocolo que seja composto por identificação geral (nome do observador e objetivo), as condições de quando (data e hora da observação), quem foi o sujeito observado (sexo, idade e particularidades), onde (relato do ambiente físico - onde o sujeito estava, com formato, iluminação, objetos presentes e seus funcionamentos), e o relato do ambiente social (descrição das pessoas presentes, suas funções, sexo, idade, atividade geral que ocorre), em que são enfocados os detalhes, dependendo do objetivo da observação (Danna & Matos, 2015; Gray, 2012, Pasquali, 2010; Yin, 2016).
De acordo com Danna e Matos (2015), as observações podem ocorrer de forma direta (de comportamentos do sujeito) ou indiretamente (do produto desses comportamentos). Quanto à forma de registro, as diretas podem ser do tipo cursivo (registram-se os eventos como se apresentam), ou categorizados (categorias são pré-definidas a partir de outros trabalhos e conhecimento). O registro em relação período em que é efetuado, pode ser contínuo, na sequência em que ocorre a observação, ou por amostra de tempo. As formas adotadas para a coleta e o registro dos dados podem ser diferentes e dependerão do objetivo definido previamente para a observação.
Como é impossível que o pesquisador observe todos os comportamentos emitidos, pode-se utilizar como estratégia as amostras do comportamento, que servem para "representar a população mais ampla de todos os comportamentos possíveis, escolhendo momentos, situações e condições para suas observações" (Shaughnessy et al., 2012). Os registros categorizados em amostra de tempo são aqueles que já possuem algumas categorias pré-definidas e ocorrem de tempo em tempo. Dentro deste registro encontram-se listas para assinalar, em que os comportamentos definidos são registrados em um intervalo de tempo dividido, nos quais, primeiramente, são identificados os comportamentos que ocorrem, e após o intervalo, eles são registrados (Danna & Matos, 2015).
No entanto, não é possível observar tudo o que acontece no evento decorrido, portanto dividir as estratégias para concentrar em áreas fundamentais facilita a observação (Gray, 2012; Yin, 2016). Estabelecer definições sobre o que é considerado um comportamento, antes de observar, facilita a observação, uma vez que elimina contradições em relação ao momento em que o comportamento ocorreu, principalmente quando as observações não dependem apenas de um observador (Danna & Matos, 2015; Fagundes, 1982; Pasquali, 2010).
A fidedignidade nas observações é outro aspecto muito importante e deve ser considerada principalmente no desenvolvimento de pesquisa. A fidedignidade entre observadores diz respeito à concordância de observadores independentes em suas observações. É preciso que haja definições claras sobre os comportamentos do sujeito observado e que os observadores não saibam o que o outro registrou, de modo que seja propiciado um feedback sobre a precisão das observações. Ademais, quando da publicação de um estudo observacional é exigida a apresentação de medidas fidedignas do observador, uma vez que "dependendo do nível de mediação usado, pode-se usar uma medida percentual da concordância ou um coeficiente de correlação para aferir a fidedignidade" (Shaughnessy et al., 2012).
Vale ressaltar que, para determinar se houve ou não fidedignidade nas observações é necessária uma análise dos dados qualitativos ou quantitativos para que sejam sintetizados os dados observacionais e os comportamentos observados. Sendo assim, a fidedignidade aferida por meio do cálculo da porcentagem de concordância, dependendo de como os comportamentos foram registrados ou medidos (Shaughnessy et al., 2012).
Considerando-se a importância da observação para a prática do psicólogo, este estudo objetivou relatar a experiência de duas alunas matriculadas em uma disciplina de estágio básico com foco no desenvolvimento da observação sistemática. Trata-se da exposição de um exemplo prático sobre como se pode ensinar a prática da observação desde uma simples observação feita sem orientação prévia até a execução de observação sistemática.
Método
A disciplina Estágio Básico I – Observação acontece no quinto semestre do curso de graduação em Psicologia de uma universidade particular do estado de São Paulo. Para cada grupo nessa disciplina, o número máximo de alunos é 14. Os(as) alunos(as) matriculados(as) realizam 4 horas de observação e 2 horas de supervisão acadêmica por semana. A professora responsável pelo grupo da disciplina, alvo desse relato, é doutora em Psicologia e também pesquisadora na instituição de ensino.
Durante a supervisão acadêmica, os(s) alunos(as) recebem instruções sobre como devem ser realizadas as observações e, paulatinamente, aprendem técnicas sobre como observar saindo de observação a partir do conhecimento do tipo senso comum para uma observação sistemática. A experiência relatada foi realizada no primeiro semestre de 2016. Os(as) alunos(as) foram inicialmente orientados(as) a formar duplas para a realização do trabalho prático. Inicialmente apresentam-se as nove observações realizadas ao longo do semestre. A seguir apresenta-se a visão das estagiárias sobre a disciplina e seu processo de aprendizagem.
Resultados e Discussão
As observações
A observação 1 foi o primeiro contato prático com a disciplina. Foi solicitado que a observação de pessoa(s) fosse realizada de forma livre, informal e individual independente de sua faixa etária, sexo ou contexto. Os(as) alunos(as) não receberam orientação sobre como deveriam proceder, pois a ideia era deixar que eles observassem livremente.
Quando os(as) alunos(as) foram solicitados a compartilhar suas experiências individuais em aula a professora iniciou as explicações sobre a metodologia de observações e sinalizou os erros contra a objetividade cometidos, destacando: (a) atribuição de intenções ao sujeito observado, (b) atribuição de finalidades às ações observadas, como por exemplo, pontuar que a pessoa observada coçou a cabeça e arrumou o cabelo quando deveria descrever apenas que o sujeito observado colocou a mão na cabeça e passou os dedos por entre os cabelos, e (c) interpretação dos motivos que levaram o sujeito a se comportar de tal forma, seguindo o exemplo anterior, para parecer mais bonita para outrem, ao invés de deixar alguns fios de cabelo mais alinhados. Essa primeira atividade prática de observação evidenciou, como esperado, que não havia conhecimento prévio sobre como realizar uma observação utilizando os métodos ou protocolos observacionais.
Para a realização da observação 2, foi solicitado que (as) alunos(as) trabalhassem em duplas, independentemente, ainda de forma livre, mas em situação específica. A situação escolhida pela dupla foi um sujeito tomando café da manhã. O sujeito foi observado de forma separada, mas ao mesmo tempo. Ambas alunas atribuíram intenções ao sujeito observado e finalidades à ação observada. Por exemplo, ao levar o pão à boca, mordeu-o e então mastigou e engoliu, pontuaram que o sujeito comeu o pão, uma vez que não sabiam se a intenção seria realmente esta. A falta de instrução sobre como observar foi relatada pelas alunas como a causa desses erros recorrentes, o que contribuiu para não apresentar a objetividade de uma observação sistemática.
Além disso, não houve especificidade em relação ao tempo e à quantidade de comportamentos a serem observados. Após a supervisão dos relatos dessa observação, todos(as) alunos(as) do grupo foram orientados(as) a ler, pela primeira vez, um texto teórico que fundamentava e instruía sobre a realização de observações. O texto solicitado foi o capítulo 6 "Observação do Comportamento" do livro Métodos de Pesquisa em Ciências do Comportamento de Cozby (2012). Assim, os alunos deveriam ler este texto de apoio e planejar a próxima observação.
A observação 3 também foi realizada em dupla. Além do aspecto teórico que amparou esse momento, a novidade foi que o relatório dessa observação foi o primeiro realizado em conjunto pela dupla. Foi solicitado que cada dupla observasse uma criança em situação livre. Para o relatório dessa observação, solicitou-se que os(as) alunos(as) utilizassem fundamentação teórica referente ao desenvolvimento da criança, já estudada na disciplina Psicologia do Desenvolvimento II. Tal iniciativa permitiu o uso de conhecimentos de disciplinas prévias, nesse caso, da Psicologia do Desenvolvimento, para relembrar ações e comportamentos de uma criança de sete anos de idade. Assim, as duplas poderiam realizar associações entre as observações e a literatura científica.
Observou-se que, nessa atividade, houve evolução. Seguindo as orientações de Danna e Matos (2015), o relato da dupla de alunas se aproximou da objetividade, pois não houve utilização de termos que designavam estados subjetivos e que atribuíam intenções ou finalidades às ações do sujeito, nem generalização de tempo e quantidade de comportamentos. Do ponto de vista formal, esse relatório foi mais estruturado, pois, além de apresentar introdução teórica e considerações finais, as duplas precisaram associar os comportamentos apresentados pelo sujeito observado ao conteúdo estudado na disciplina Psicologia do Desenvolvimento II que, versa sobre o desenvolvimento infantil. Na supervisão dessa observação também foi solicitado aos(às) alunos(as) que lessem os capítulos "A linguagem científica", e "Definição dos objetivos e planejamento do trabalho" do livro Aprendendo a Observar de Danna e Matos (2015).
Para a realização da observação 4, os(as) alunos(as) foram solicitados(as) a observar, individualmente, uma criança em atividade motora. O relatório dessa observação foi realizado também de forma individual. Dessa vez, as alunas precisaram revisitar a disciplina Psicologia do Desenvolvimento no que se refere à primeira infância, uma vez que o sujeito observado tinha 4 anos. No relatório dessa observação se evidenciou que não foram utilizados termos referentes ao estado subjetivo, nem atribuição de intenções e finalidades ao sujeito observado, o que eliminou qualquer impressão pessoal e subjetiva em relação ao sujeito em questão, além de interpretações.
Nesse momento da disciplina houve determinado alcance de uma linguagem científica, pois as alunas conseguiram atingir parcialmente a objetividade, evitando as interpretações do comportamento. Após a supervisão dos relatos dessa observação, os alunos foram orientados a ler outro texto teórico para desenvolver suas técnicas de aprendizagem em observação. O texto indicado foi "Por que um curso de observação?", do livro Aprendendo a Observar de Danna e Matos (2015).
A observação 5 foi realizada em dupla, e tinha como objetivo observar uma criança no parque. Para essa observação se determinou um objetivo especifico sobre o que se pretendia observar: uma criança brincando no parque. Houve um avanço na estrutura do relatório, sendo solicitado aos(às) alunos(as) que adicionassem, além da introdução teórica, um protocolo de observação (Danna & Matos, 2015) com informações referentes: (a) à identificação geral do sujeito observado (objetivo da observação), (b) à identificação das condições em que a observação ocorreu (quando, onde e quem), e (c) ao registro de comportamentos e das circunstâncias ambientais (como foi realizada). O protocolo de observação foi entendido pelas alunas como uma ferramenta importante para ajudar a planejar e sistematizar o contexto da observação e o foco específico em uma atividade no sujeito observado – o ato de brincar – auxiliou as alunas a chegar mais perto do que é uma observação sistemática.
A observação 6 foi realizada individualmente e teve como objetivo a observação de crianças em situação de interação. Solicitou-se que o relatório dessa observação também tivesse uma introdução teórica que enfocasse aspectos da Psicologia do Desenvolvimento, relativos à faixa etária das crianças a fim de promover a integração entre os comportamentos observados e a teoria do desenvolvimento infantil. Para essa observação, solicitou-se e instruiu-se aos(às) alunos(as) que apresentassem um protocolo de observação nos mesmos moldes do relatório da observação anterior (observação 5), o qual propiciou informações referentes à identificação geral do sujeito observado, à identificação das condições em que a observação ocorreu e ao registro de comportamentos e circunstâncias ambientais.
Ressalta-se que, embora essa observação tenha apresentado um protocolo de observação e tenha se aproximado do que é uma observação sistemática, ela não pode ser considerada sistemática em função do seu caráter qualitativo. Após a supervisão dos relatos, os alunos foram instruídos a ler textos que os orientassem para as próximas observações. Os textos solicitados foram "Técnicas de Amostragem e Registro" e "A Técnica de Registro Contínuo Cursivo" do livro Aprendendo a Observar de Danna e Matos (2015).
A observação 7 foi realizada em dupla, assim como o seu relatório. Quanto a essa observação, é importante mencionar que houve uma mudança na fase do desenvolvimento humano observada, pois os(as) alunos(as) foram solicitados(as) a observar um(a) adolescente. Para o relatório dessa observação, as duplas deveriam associar os comportamentos apresentados pelo sujeito observado, ao conteúdo estudado na disciplina Psicologia do Desenvolvimento III que se refere ao desenvolvimento na adolescência. Para essa observação, os alunos tiveram como objetivo observar um(a) adolescente no shopping . Além do protocolo de observação, introduziu-se no relatório a técnica de registro cursivo por amostragem de tempo. Foram utilizados cronômetros para medir o tempo da observação, que ocorreu em 2 minutos, seguidos de outros 2 minutos para o seu registro. Embora essa observação tenha se aproximado de uma observação sistemática, aspectos importantes desse tipo de observação, como a definição de hipóteses prévias e uso de categorias, não foram realizadas.
A observação 8 foi realizada em dupla, assim como o seu relatório. O objetivo dessa observação foi observar um adulto em situação livre, seguindo a técnica de registro cursivo por amostragem de tempo. Foram utilizados cronômetros para medir o tempo da observação, que ocorreu em 2 minutos, seguidos de outros 2 minutos para o registro. Essa observação aproximou-se da observação sistemática, no entanto, aspectos importantes da observação sistemática como, definição de hipóteses prévias e uso de categorias não foram realizadas. A situação escolhida pela dupla foi um adulto trabalhando. Em relação ao relatório, os alunos foram instruídos a não acrescentar teorias sobre o desenvolvimento humano e focaram nos fundamentos sobre técnicas e métodos observacionais.
Esta observação deu um novo passo rumo à finalidade da disciplina, pois foi realizada com a técnica de registro contínuo categorizado em amostras de tempo, com listas para assinalar, tornando-se mais sistemática. Esta técnica é caracterizada por definir categorias prévias à observação e por ocorrer de tempo em tempo. As listas para assinalar são o local em que os comportamentos definidos previamente são registrados, em um intervalo de tempo dividido (Danna & Matos, 2015). A situação observada foi adulto trabalhando, e as alunas definiram os possíveis comportamentos que poderiam ocorrer naquele contexto: se o sujeito falaria, sorriria ou gesticularia com os clientes em seu trabalho. Após a supervisão dos relatos dessa observação, os(as) alunos(as) foram orientados a ler o capítulo "Eventos Físicos e Sociais" do livro de Danna e Matos (2015).
A observação 9 foi realizada em dupla, assim como seu relatório. Para essa observação solicitou-se que os alunos observassem um idoso em interação. Orientou-se que os(as) alunos(as) fizessem a observação a partir de trechos de um filme. O relato dessa observação seguiu os mesmos moldes da observação anterior. Essa observação foi feita com a técnica de registro contínuo categorizado em amostras de tempo, com listas para assinalar. Alguns exemplos de comportamentos pré-definidos foram falar, ter contato físico e brigar, comportamentos esperados do filme escolhido pela dupla. Esta observação foi baseada nos textos "Técnicas de Amostragem e Registro" e "Eventos Físicos e Sociais" do livro de Danna e Matos (2015), o que contribuiu para a observação atingisse uma linguagem objetiva e sistemática.
Pode-se concluir que as duas últimas observações realizadas possuem natureza sistemática, uma vez que foram estabelecidos, 1) objetivos prévios para ambas as observações e 2) comportamentos específicos para cada sujeito observado. Outros aspectos importantes da observação sistemática foram contemplados como a utilização de protocolo de observação para obter uma coleta de dados, bem como a opção por uma técnica de registro específico (nesse caso, listas para assinalar).
Considerações das estagiárias
Do ponto de vista das estagiárias que apresentam esse relato, foi possível perceber uma evolução ao longo da disciplina de estágio básico em relação ao conhecimento adquirido sobre os métodos utilizados na realização de observações sistemáticas no campo da psicologia. Isso foi evidenciado na evolução dos registros das situações observadas, que partiram da falta de conhecimento sobre o tema e tornaram-se mais estruturadas e sistemáticas – em termos práticos e de registro – na medida que as supervisões foram ocorrendo.
O registro das alunas também permitiu avaliar a qualidade dos registros desenvolvidos, pois para que as observações se transformassem em sistemáticas, a cada observação realizada, era solicitada a elaboração de relatório com aprofundamento teórico de forma que o repertório sobre o conteúdo da disciplina aumentasse paulatinamente. Nesse sentido, a leitura e a discussão dos textos sugeridos foram fundamentais.
Além disso, as orientações da professora responsável pela disciplina, por meio do acompanhamento do trabalho e dos feedbacks em relação aos aspectos formais e de conteúdo dos relatórios, permitiram que erros fossem retificados. Esse processo quase semanal de correção de relatórios resultou em um aperfeiçoamento na escrita da dupla de estagiárias: por um lado, houve aproximação de uma linguagem científica e, por outro, domínio do tema da disciplina em questão.
A disciplina Estágio Básico I – Observação, proporcionou às alunas um maior contato com uma das principais ferramentas de prática do(a) psicólogo(a): a observação. Conhecer este instrumento de trabalho aumenta o potencial de exatidão em experiências de avaliações psicológicas, diagnósticos ou intervenções. Outro aspecto positivo foi que, além de aproximar a teoria da prática, essa disciplina possibilitou uma integração com outras disciplinas cursadas anteriormente como Avaliação Psicológica e Psicologia do Desenvolvimento.
Considerando-se as observações realizadas, é possível dizer que as duas últimas observações foram o ápice da disciplina, pois foram observações sistemáticas. Elas indicam o desenvolvimento pessoal, teórico-prático adquirido. Retomando a primeira observação, feita sem conhecimento prévio, "às cegas", apenas com o conhecimento do tipo senso comum sobre o que seria observar, as observações sistemáticas feitas no final da disciplina refletem o conhecimento adquirido ao longo do semestre. Conclui-se que as alunas adquiriram habilidades para observar de forma objetiva e de realizar o relato da observação em uma linguagem objetiva e científica. Essa habilidade poderá ser aplicada em outros momentos da formação em psicologia e mesmo na prática profissional.
Considerações Finais
Este relato teve como objetivo apresentar a experiência de duas alunas matriculadas em uma disciplina de Estágio Básico I, no desenvolvimento da observação sistemática. Os resultados dessa primeira experiência de estágio do curso de Psicologia da [OCULTADO] mostraram que houve uma mudança em relação à visão das alunas quanto à importância da observação enquanto ferramenta de trabalho do(a) psicólogo(a). Isso ocorreu, por duas razões: 1) ao longo da disciplina as alunas puderam desenvolver um conhecimento teórico-prático adquirido a partir das observações propriamente ditas, dos relatórios das observações e das supervisões acadêmicas; 2) o estágio de observação proporcionou uma integração entre o conteúdo da disciplina com os das disciplinas anteriores do curso de psicologia, de forma específica, os de Psicologia do Desenvolvimento. Ressalta-se que, como a maior parte das observações teve como foco o período da infância, as alunas puderam revisitar os fundamentos teóricos da Psicologia do Desenvolvimento a fim de identificar se o que estavam observando era esperado para aquela faixa etária. Esse exercício permitiu às alunas integrar conhecimentos anteriores do ponto de vista teórico com observações, o que revelou a importância da prática para o aprendizado.
Por fim, pode-se dizer que a experiência de estágio apresentada neste estudo cumpre com a prerrogativa da Minuta das Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de graduação em Psicologia (CFP, 2018) e é uma alternativa para o Estágio Básico I. Por meio do estágio de observação, os (as) alunos (as) puderam observar e descrever condutas em diferentes contextos com tempo de orientação adequado e proporção entre número de alunos e orientador. Esse relato de experiência pode subsidiar, em termos teóricos e práticos, disciplinas de aproximação dos estudantes de psicologia com a prática ou os campos de estágio. Ao mesmo tempo, valoriza-se a observação, como ferramenta fundamental de trabalho e de pesquisa do(a) psicólogo(a), que precisa ser pautada em evidências científicas e não nas análises do senso comum que buscam explicar comportamentos e fenômenos. É dever do(a) psicólogo(a) saber qual a diferença entre a observação baseada no empirismo do cotidiano e observação enquanto ferramenta de trabalho.
Referências
Arpini, M., D., Zanatta, E., Paraboni, P., Rodrigues, P., M., & Marchesan, R. Q. (2018). Observação e escuta: recursos metodológicos de investigação em psicologia no âmbito da saúde materno-infantil. Contextos Clínicos, 11(2), 243-256. [ Links ]
Barletta, J. B., Fonsêca., A. L. B., & Oliveira, M. I. S. (2011). Transcrição e observação como estratégias para aprimoramento da competência clínica. Revista Brasileira de Terapias Cognitivas, 7(2), 17-24. [ Links ]
Boeckel, M. G., Rolin, K. I., & Faraco, C. B. (2016). A observação como estratégia de formação em psicologia. In J. S. Krug, L. E. Prati, & M. G. Boeckel (Orgs.) Fundamentos e práticas em serviço-escola: Espaço potencial de formação em psicologia (pp. 71-84). Curitiba: Juruá [ Links ].
Conselho Federal de Psicologia (2018). Ano da formação em psicologia: Revisão das diretrizes curriculares nacionais para os cursos de graduação em psicologia /Conselho Federal de Psicologia, Associação Brasileira de Ensino de Psicologia e Federação Nacional dos Psicólogos . – São Paulo: Conselho Federal de Psicologia/Associação Brasileira de Ensino de Psicologia/ Federação Nacional dos Psicólogos.
Cozby, P. (2012). Métodos de Pesquisa em Ciências do Comportamento . (5 ª ed). São Paulo: Editora Atlas S.A. [ Links ]
Dallos, R. (2010). Métodos observacionais. In G. M. Breakwell, S. Hammond, C. Fife-Schaw, & J. A. Smith (Eds.), Métodos de Pesquisa em Psicologia (3ª ed., pp. 134-155). Porto Alegre: Artmed. [ Links ]
Danna, M. F, & Matos, M. A. (2015). Aprendendo a Observar. (3ª ed.) São Paulo: Edicon. [ Links ]
Dessen, M. A., & Murta, S. G. (1997). A metodologia observacional na pesquisa em psicologia: Uma visão crítica. Cadernos de Psicologia, 1, 47-60. [ Links ]
Fagundes, A. J. F. M. (1982). Definição de eventos comportamentais. São Paulo: Edicon. Fagundes, A. J. F. M. (1999). Definição, descrição e registro do comportamento (12ª ed.). São Paulo: Edicon. [ Links ]
Ferreira, V. R. T., & Mousquer, D. N. (2004). Observação em psicologia clínica. Revista de Psicologia da UnC, 2(1), 54-61. [ Links ]
Gray, D. E. (2012). Pesquisa no mundo real. 2ª ed. Porto Alegre: Penso. [ Links ]
Pasquali, L. (2010). Instrumentação Psicológica Fundamentos e Práticas. Porto Alegre: Artmed. [ Links ]
Relvas, A. P., Escudero, V., Sotero, L., Cunha, D., Portugal, A., & Vilaça, M. (2010). The System for Observing Family Therapy Aliances (SOFTA) and the preliminary Portuguese studies. Disponível em: <http://www.eftacim.org/doc_pdf/softa.pdf>. Acesso em: 30/04/2020. [ Links ]
Shaughnessy, J. J., Zechmeister, E. B., & Zechmeister, J. S. (2012). Metodologia de pesquisa em psicologia . 9ª ed. Porto Alegre: AMGH. (Série Métodos de Pesquisa). [ Links ]
Yin, R. K. (2016). Pesquisa qualitativa do início ao fim. Porto Alegre: Penso. [ Links ]
Endereço para correspondência
E-mail:gabiferiani@hotmail.com
Recebido em: maio de 2020
Aceito em: maio de 2021
1 Gabriela de Paula Feriani: Psicóloga, Pontifícia Universidade Católica de Campinas
2 Camila Vassallo de Melo: Psicóloga, Pontifícia Universidade Católica de Campinas
3 Wanderlei Abadio de Oliveira: Doutor pela Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, Professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da PUC Campinas
4 Letícia Lovato Dellazzana-Zanon: Doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da PUC-Campinas