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Interações

versão impressa ISSN 1413-2907

Interações v.8 n.15 São Paulo jun. 2003

 

ARTIGOS

 

De Cinderela a moura torta: sobre a relação mulher, beleza e feiúra

 

From swan to ugly duckling: on the relationship of woman, beauty and ugliness

 

 

Joana V. Novaes1; Junia de Vilhena2

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Psicologia

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente trabalho busca explicitar como as atitudes em relação à feiúra, quer seja ver-se feio ou atribuir feiúra ao outro, revelam maneiras na forma de lidar com o corpo, que por sua vez produzem vínculos sociais até então não evidenciados. A feiúra é atualmente uma das formas mais presentes de exclusão social feminina. As autoras ressaltam como a imagem da mulher e do feminino continua associada à da beleza, havendo cada vez menos tolerância para os desvios nos padrões estéticos socialmente estabelecidos. Tomando a gordura como o paradigma da feiúra, apontam para os processos de exclusão vividos por aqueles que nela se enquadram. O trabalho é ilustrado com algumas falas colhidas em pesquisas anteriores realizadas por uma das autoras.

Palavras-chave: Mulher, Beleza, Feiúra, Gordura, Regulação social, Preconceito.


ABSTRACT

This article deals with the prejudice against people, specially women, who are ugly. Historically associated with beautiness, women are the ones who suffer the most. The authors discuss how socially acceptable it became to discriminate ugly people. Taking obesity or mere fatness as the paradigm of ugliness, the authors point out how intolerant society became of those who deviate from what the body culture has established as normal. The article is illustrated with some speeches that one of the authors has collected on previous researches.

Keywords: Woman, Beauty, Ugliness, Fatness, Social regulation, Prejudice.


 

 

Introdução

A gordura acabou com a minha vida”, estampava a manchete do “Jornal da Família”, suplemento dominical do jornal O Globo, de 19/01/2003 (p. 3).

No palco da cultura, à mercê de seus signos, o corpo ultrapassa os limites do biológico – sua versão mecânica –, e torna-se personagem/ ator social, travestindo-se de seu aparato simbólico. Assim ele espelha e simultaneamente se constitui. Se o imaginário cultural engendra gestos, posturas, hábitos, vícios, expressões, enfim, toda uma cartografia corporal que insere e reconhece o sujeito como membro de um grupo social, qual seria, na cultura atual, um dos maiores símbolos de inserção? Ter o corpo da moda.

Da moda do corpo ao corpo da moda, o corpo natural desnaturalizase ao entrar em cena. O estudo sobre a concepção e codificação do corpo na cultura moderna revela, paralelamente, que um outro olhar e uma atenção diferenciada estão relacionados às mudanças dos códigos sociais.

Fragmentado e serializado, mostra o que se oculta em uma tentativa de eliminar o que o separa. Tudo deve ser visto, dito e compartilhado. Ao mesmo tempo, imprime nele as marcas que o distinguem, tanto cultural quanto socialmente, por meio de seus adornos e símbolos.

José Gil (apud De Leo, 2002), filósofo português, refere-se ao corpo como uma “infralíngua” em comunicação com o mundo – porque fala. Os antropólogos são unânimes ao apontar a dimensão social do corpo – Geertz (1978) dizia que nada melhor do que o estudo do corpo para aferirse a vida social de um povo. Nele encontraremos marcas dos tabus, dos rituais, do sagrado e da magia, e acrescentaríamos – do preconceito.

O discurso do corpo fala das relações internas à sociedade – é também nele que veremos expressar-se a busca da felicidade plena. Palco privilegiado dos paradoxos e dos conflitos, o corpo que almeja sua singularidade é o mesmo que tenta negar a diferença e a alteridade. A eterna busca da imortalidade transforma-o em um corpo de encenação da obra de arte. Os discursos da saúde, da medicina, do erotismo, tamponam o real que apavora: o mal-estar e a finitude.

Como apontam Vilhena e Medeiros (2002), sem sombra de dúvidas proporcionamos hoje mais saúde ao nosso corpo, sem contudo encontrarmos qualquer alívio para a inexorabilidade de nossa finitude: apenas adiamos um pouco o desfecho trágico de nossa existência, e somos muito gratos à Ciência por nos dar a cada dia uma nova esperança... ou ilusão.

Somos gratos a ela, por indicar-nos o caminho para uma possível nova utopia, já que tanto nos ressentimos da perda das anteriores. Nossas fantasias de onipotência, vindas de tempos imemoriais, sem dúvida alguma encontram um grande abrigo nos progressos da biotecnologia. A imortalidade/perfeição sempre tão almejada deixou, para nós ocidentais, de ser assunto religioso para tornar-se matéria de pesquisadores. Nossa crença no progresso da ciência faz-nos apostar na vitória sobre todas as imperfeições, carências, sofrimento e até sobre a morte (p. 29).

No presente trabalho buscamos explicitar como as atitudes em relação à feiúra, quer seja ver-se feio ou atribuir feiúra ao outro, revelam mudanças na forma de lidar com o corpo, que por sua vez produzem vínculos sociais até então não evidenciados. Acreditamos que a transformação que se deu em profundidade foi, fundamentalmente, no âmbito do imaginário corporal, provocando implicações em nossa percepção, e repercutindo em nosso comportamento com relação à feiúra.

Queremos também apontar como a imagem da mulher e do feminino continua associada à da beleza, havendo cada vez menos tolerância para os desvios nos padrões estéticos socialmente estabelecidos. Nesse sentido, tomamos a gordura como o paradigma da feiúra, e apontamos para os processos de exclusão vividos por aqueles que nela se enquadram. As falas que ilustram o trabalho, e que utilizaremos como epígrafes, referem-se a uma pesquisa realizada em 2001, sobre a qual falaremos mais adiante.

 

Corpo moderno: apenas uma questão de aparência?

Acho que a cultura atual preconiza que estejamos bem para
poder expor ao máximo o corpo. Hoje em dia vale muito mais
um braço sarado do que roupas caríssimas, e olha que eu posso
dizer, pois já fui estilista”.

O estudo sobre a concepção e codificação do corpo na cultura moderna demanda um breve recuo histórico, a fim de que possamos identificar as condições que possibilitaram a problematização do estatuto do corpo na modernidade. Este questionamento promoveu uma série de práticas e representações corporais que hoje nos soam familia-res, mas que foram necessárias para criar o solo fértil do qual emergiram os referenciais que formam o veredicto da feiúra.

Vivenciado na modernidade diferentemente da forma como o era nas sociedades tradicionais, o corpo na cultura atual possui especificidades no modo como é percebido esteticamente. Para Le Breton (1990), o corpo moderno é fruto do individualismo e do descolamento do indivíduo do todo comunitário, causando-lhe um sentimento de “si mesmo” antes de sentir-se membro de uma comunidade.

Segundo o autor, o advento do individualismo trouxe também o aparecimento de um pensamento racional e laico sobre a natureza, bem como o afastamento das tradições populares. Com a ruptura da antiga solidariedade que integrava o indivíduo a uma coletividade e ao cosmos/natureza por meio de uma rede de correspondência, em que tudo se correlaciona, importantes modificações ocorreram nas formas de vínculo social.

Em nossa cultura “o corpo torna-se a fronteira precisa que marca a diferença de um homem a outro” (1990, p. 46) – sendo a marca do indivíduo e o lugar que, por excelência, delimita sua soberania. Essa forma específica de individuação tem como característica fundamental fazer com que a pessoa se diferencie de seus semelhantes. Entretanto, o corpo não marca somente a distinção de cada um em relação aos demais membros da comunidade à qual pertence; esse modelo permite ao ator social conceber seu próprio corpo como uma propriedade, e não mais como a sua essência –, sinalizando, dessa forma, um modelo de possessão.

Somente estruturas societárias do tipo individualista produzem um corpo como um elemento isolável do indivíduo. “O corpo é o rosto, é o que identifica e nos diferencia dos outros. Trata-se de um dos dados mais significativos da modernidade” – sentencia Le Breton (p. 46).

Dissociado de si e dos outros, da natureza, da coletividade e de um sistema que o engendra, o corpo torna-se uma esfera independente e voltado para si. Nasce uma nova rede de significações que o envolve, na qual um saber anatômico e um modelo mecanicista se fazem presentes, projetando um novo olhar sobre o corpo humano.

A invenção de um corpo pela episteme ocidental traz consigo uma série de procedimentos investigativos na esfera corporal. Le Breton (1985) sublinha como o vocabulário de anatomia, construído na época moderna, é completamente desprovido de referências e simbologia – desenraizando o corpo de sua esfera social e cultural, e de tudo o que compreende a rede de significações que dá sentido ao mundo no qual vive o indivíduo: seus laços afetivos, religiosos, familiares; seus meios de sociabilidade e a geografia à qual pertence.

O afastamento das tradições populares, além de implicar uma nova organização da imagem corporal, produz também novas categorias conceituais. A definição de Daniels sintetiza bem a concepção de corpo que vimos abordando até agora:

Nas sociedades do tipo tradicional, o corpo é um lugar e um tempo indiscernível da pessoa. A existência de cada um se funde na sua inerência ao grupo, ao cosmos, à natureza. O corpo não existe como categoria mental que permite pensar culturalmente a diferença de um ator a outro (1999, p. 25).

Assim, contrariamente à acepção moderna de corpo, vimos que este é o elemento de ligação entre os membros de uma comunidade, não o vetor de uma separação, e tampouco está restrito a ser uma singularidade na unidade diferencial de um grupo. Sua lógica reside em ser a estrutura que estabelece a ligação entre o microcosmo humano e o macrocosmo natural.

Bakhtin destaca as diferenças entre o corpo grotesco, representado nas tradições populares, e o corpo moderno.

Em oposição aos cânones modernos, o corpo grotesco não está separado do resto do mundo, não está isolado, acabado nem perfeito, mas ultrapassa a si mesmo, franqueia seus próprios limites. Coloca-se ênfase nas partes do corpo que se abrem ao mundo exterior, isto é, onde o mundo penetra nele ou dele sai ou ele mesmo sai para o mundo, através de orifícios, protuberâncias, ramificações e excrescências, tais como a boca aberta, os órgãosgenitais, seios, falo, barriga, nariz. É em atos tais como o coito, a gravidez, o parto, a agonia, o comer, o beber e a satisfação de necessidades naturais que o corpo revela sua essência como princípio em crescimento que ultrapassa seus próprios limites (1996, p. 23).

Com o advento do individualismo, verifica-se que o corpo e seus hábitos tornam-se circunscritos à intimidade e ao âmbito da vida privada corrente; esta, por sua vez, passa a ser o locus privilegiado para atender às necessidades naturais do homem. Em sua nova acepção, esse corpo adquire um sentido estreito e específico, deixando de ser uma expressão representativa do mundo que o encerra, tal qual demonstra Bakhtin:

Certas partes do corpo, como órgãos genitais, traseiro, ventre, nariz e boca deixam de representar um papel importante. Além disso, uma significação de caráter exclusivamente expressivo vem substituir-se a seu sentido primitivo; isto é, só traduzem agora a vida individual de um determinado corpo único e isolado (p. 280).

Notamos com isso a atribuição de importância que é dada às diversas partes individuais do corpo. Da mesma maneira, estas passam a assumir características e expressões diversas, dando origem a um corpo liso, fechado e sem asperezas. Qualquer traço involuntário, ou que demonstre sua origem na coletividade, é imediatamente depreciado e rejeitado socialmente.

Colocam-se em primeiro plano as posições e movimentos voluntários do corpo completamente pronto, num mundo exterior todo acabado e cuja função as fronteiras entre o corpo e o mundo não estão de modo algum enfraquecidas (Bakhtin, 1996, p. 281).

A relação de dominação verificada no âmbito corporal se dá no sentido do indivíduo em relação ao seu corpo, e não o inverso. Cabe ao sujeito a responsabilidade no agenciamento de si, determinando, vigiando, balizando e observando suas próprias ações e seu comportamento. Retornaremos a esse aspecto mais adiante, quando estivermos tratando da obrigação de ser bela.

No novo cânone, o corpo grotesco é interpretado como monstruoso, horrível e disforme, uma vez que espelha o retrato de uma sociedade na qual o seu pertencimento estava atrelado ao registro social ao invés do privado. Pouco a pouco, o corpo grotesco vai perdendo espaço para esse que é perfeitamente acabado e rigorosamente delimitado, fazendo com que suas funções, anteriormente valorizadas, tornem-se agora objeto de pudor e sejam privatizadas.

Nahoum (1987) identifica dois fatos históricos que considera fundamentais para a transformação da imagem social do corpo. O primeiro deles refere-se à difusão da técnica da feitura de espelhos, conseqüentemente ampliando sua utilização nas habitações. O uso de espelhos era restrito a uma elite até o começo do século XVIII. Somente no século XX sua utilização passou a ser maciça nas classes populares, sendo um objeto banal de se encontar entre os utensílios/mobiliário domésticos. O segundo está relacionado à educação que nossos sentidos receberam, na qual a visão assumiu um papel preponderante no que diz respeito à representação corporal. Tal fato acabou por constituir um aspecto essencial para a construção moderna das formas de atenção com o corpo, além de forjar a percepção que adquirimos em relação a ele.

Nas palavras de Nahoum: “Como viver num corpo que não se vê? Como mirar sua celulite na água do poço? Seu queixo duplo, no fundo da panela? Como construir uma imagem corporal tendo por espelho os olhos do outro?” (1987, p. 23).

Na medida em que se elegeu o sentido da visão como privilegiado dentre os demais, favoreceu-se a emergência de determinados sentimentos como o pudor – que surgia como representante de um tipo de subjetividade que estava sendo forjada. O desenvolvimento do sentimento de pudor contribuiu na educação do olhar sobre o corpo.

De acordo com Nahoum, o pudor como sentimento da vida moderna surge como uma demanda psicológica resultante da interiorização das distâncias sociais, e figura juntamente com um elenco de constrangimentos subjetivos relativos à esfera moral. Esses constrangimentos, ao mesmo tempo que reivindicam práticas de civilidade, também exigem uma constante auto-regulação e disciplinização do comportamento e dos modos, de tal forma que é esperado do sujeito que tenha uma conduta modesta, decente, discreta, prudente, honesta, amável e nobre de espírito.

É interessante notar, segundo a autora, a presença do que intitula como uma “arte paradoxal” – se por um lado observamos características como ocultamento e restrição no âmbito corporal, ambos provenientes de um código de auto-regulação e monitoramento, por outro vemos tratar-se da exibição desse silenciamento. A exibição do silenciamento do corpo, em si, já é uma linguagem na qual constam signos e sinais. Da mesma forma, a expressão do pudor também denota uma lingua-gem e um trabalho que são próprios e referentes ao corpo.

Courtine (1995) evidencia, por meio dos exemplos históricos, o fascínio e o estado de corpolatria característicos da sociedade em que vivemos. Segundo o autor, esse processo remete-nos ao fato de que, em outros momentos históricos, a apreciação estética do corpo dava-se de uma forma menos fragmentada, na qual não estavam em jogo pedaços/recortes da anatomia humana, sendo valorizado um todo harmônico.

A atração que Charles Atlas exercia sobre o público dos anos 20 centrava-se na visão de um conjunto de uma pujança corporal harmoniosa; o sucesso de Jhonny Weismuller, nas salas de cinema dos anos 40, decorria da elegância “natural” de sua musculatura (...) A fascinação que o corpo de Schwarzenegger provoca sobre o grande público da telinha é de outra natureza: congelado numa luz crua, quase cirúrgica, o body-builder faz sobressair os mínimos detalhes de sua massa corporal. Estrias das fibras musculares, ramificações da rede vascular, palpitações de um tórax estufado: a imagem ideal do corpo que o body-builder de hoje configura é aquela dos corpos destinados aos estudos anatômicos (p. 103).

É também preciso ressaltar que o controle exercido por meio da fiscalização de um olhar minucioso sobre a aparência, e com o aval da ciência, contribui para regulamentar diferenças e determinar padrões estéticos em termos daquilo que é próprio e impróprio, adequado ou inadequado, normal ou anormal. Como bem sugere Durif, “o corpo torna-se álibi de sua própria imagem” (apud Daniels, 1999, p. 29).

Esse controle da aparência traduz-se na atribuição de características estéticas, investindo-as de julgamentos morais e significados sociais.

 

Estética e expectativas sociais: a dor da feiúra

“Um professor disse que se eu emagrecesse me tratariam diferente.
É claro que os caras não vão olhar para uma banhuda e sim para a
saradona, mas as pessoas acham que se emagrecessem passariam a
fumar Marlboro, andariam de BMW e os cabelos cresceriam louros”.

É interessante notar como os discursos que normatizam o corpo – seja científico, tecnológico, publicitário, médico, estético etc – vão, pouco a pouco, tomando conta da vida simbólica/subjetiva do sujeito. Nas palavras de Daniels (1999):

As instâncias que normatizam o corpo invadem as dimensões expressivas e simbólicas da corporeidade, fornecendo imagens e informações que reconfiguram o próprio âmbito do vivido corporal. O leitor é sempre aquele que possui um conhecimento muito limitado e confuso de seu corpo (1999, p. 50).

Com efeito, os cuidados físicos revelam-se, invariavelmente, como uma forma de estar preparado para enfrentar os julgamentos e expectativas sociais. Da mesma forma, todo o investimento destinado aos cuidados pessoais com a estética vincula-se à visibilidade social que o sujeito deseja atingir – evitar o olhar do outro, ou a ele se expor, está diretamente relacionado às qualidades estéticas do próprio corpo!

Segundo Malysse (1997), esforçamo-nos o ano todo com exercícios massacrantes, para no verão termos a recompensa de poder ir à praia expor nosso corpo sem vergonha. Disciplinamos o corpo a freqüentar uma academia de ginástica, a fim de que, às custas de muito suor e calorias perdidas, consigamos reconhecimento social e aprovação.

De acordo com Durif, a imagem que as revistas oferecem para os leitores a respeito de seus próprios corpos investe nesse jogo de espelhos, produzido entre o corpo e o olhar do outro, operando na construção da auto-estima e da auto-imagem, sendo “tanto um eixo de construção como lugar de contradições inibidoras devido ao poder de coação social voltado para suas dimensões mentais, afetivas e sociais” (1990, p. 309).

Partindo da premissa de que os imperativos estéticos são, simultaneamente, produzidos e reforçados por expectativas socialmente instituídas, é possível concluir-se que é a relação com a alteridade, ou seja, com o olhar do outro, que atribui uma avaliação demasiadamente depreciativa a respeito da imagem corporal que o sujeito constrói sobre si. Nota-se, contudo, que ao descrever a própria imagem, o indivíduo ten-de a querer desvencilhar-se dos adjetivos mais depreciativos, fazendo uso de eufemismos e diminutivos para mascarar sua real aparência.

É interessante notar a maneira peculiar e afetuosa, parecendo muitas vezes negar a realidade, com que a maioria das mães de crianças obesas descrevem seus filhos – referem-se aos mesmos como gordinhos, cheinhos ou gulosos –, enquanto na escola seus colegas utilizam-se de adjetivos agressivos e que denotam uma evidente depreciação moral (balofo, hipopótamo, paquiderme, rolha de poço...). Usando esse tipo de denominação, as mães parecem desculpar seus filhos perante a sociedade, queos encara como glutões e inadequados. É também por meio da adjetivação carregada de afeto que fornecem a valoração não encontrada socialmente.

Para Roland Barthes (1982), a imagem corporal deve ser compreendida como uma resultante da influência que o ambiente exerce sobre o sujeito, em um processo em que as representações corporais estão em constante transformação. Assim, nas palavras de Barthes: “meu corpo é para mim mesmo a imagem que eu creio que o outro tem deste corpo” (1982, p. 645).

Contudo, sua maior contribuição foi destacar que inúmeras táticas de sedução e intimidação são elaboradas como um reflexo da fragilidade e vulnerabilidade existentes na construção da própria imagem corporal. Tais estratégias são articuladas para darem conta da expectativa que supomos os outros tenham sobre o nosso corpo. E é este aspecto tirânico das relações humanas com referência ao corpo, que justifica a constelação de atitudes negativas face à feiúra.

Aparentemente tratada como banal, a modelagem da boa aparência na verdade é investida de grande carga ideológica, fazendo com que a lógica do consumo permeie todos os investimentos estéticos.

Em recente pesquisa (Novaes 2001a, b) sobre as academias de ginástica da zona sul carioca observou-se, na fala das entrevistadas, o terror que a gordura provoca:

“...na cultura/moda atual infelizmente conjugamos: roupas ínfimas com corpos secos, destituídos de qualquer gordura, para meu desespero, gordinhas não são apreciadas” (Novaes, 2001a, p. 74).

“...conforme já disse, quando venho malhar e mantenho o meu peso ideal tá tudo azul, saio, me divirto, levo uma vida normal; quando não, é depressão na certa, não me relaciono nem com os meus filhos. Namorado então nessas épocas nem pensar!” (p. 85).

Como podemos observar, a ordem é cooptar tudo que desvie do padrão. E nada, na atualidade, é mais divergente do padrão do que a gordura – a exemplo do movimento negro, talvez fosse o caso de criarmos uma ação afirmativa para os gordos!

 

O difícil peso da gordura

“...se não saio para malhar, fico ociosa comendo em casa,
conseqüentemente engordo e por fim deprimo. Nessas fases, nem
acendo a luz porque não suporto a minha imagem horrorosa, caída,
toda flácida no espelho”.

Em um interessante artigo que trata a obesidade como um fenômeno social com diversas representações, Fischler (apud Sant’Anna, 1995) tenta construir uma classificação dos estereótipos morais ligados aos obesos.

Uma das primeiras coisas assinaladas pelo autor é o caráter de ambigüidade que as representações sociais sobre a gordura assumem no imaginário atual. Damos aos obesos um tratamento contraditório, e nele reside um paradoxo importante a ser destacado: aos gordos, associamos estereótipos como simpatia e amabilidade; por outro lado, sua imagem inspira a lipofobia como um sintoma social. E é neste horror à gordura que uma série de técnicas de emagrecimento forjam-se, avalizadas pelos discursos que são construídos nas malhas da cultura do fitness e do body building.

Historicamente a corpulência estava associada com a quantidade de comida que o sujeito tomava para si, ou seja, não raro o sujeito gordo era considerado como o usurpador da comida alheia. A violação das regras de divisão dos alimentos, que simboliza na maioria das sociedades uma forma importante de vínculo social, fez recair sobre os gordos uma atitude de suspeita.

No entanto, o desempenho de uma série de papéis sociais permitiram que os indivíduos obesos restaurassem sua imagem frente à comunidade. Socialmente esperados, esses papéis operam uma espécie de transação/troca simbólica, na qual a redenção social é alcançada. A figura dos bufões e dos atores cômicos em espetáculos de zombaria consta, até hoje, no elenco das atividades esperadas de um indivíduo obeso.

Prosseguindo com sua análise histórica, veremos, de acordo com o autor, que não era incomum a idéia de gordura associada à força física. Por meio da força física empregada em seu trabalho, um homem seria capaz de ver sua gordura metamorfosear-se em músculo, minorando assim o débito que mantinha com a sociedade.

De forma análoga, no século XVI, enquanto Shakespeare escrevia suas peças de teatro, constatou-se em sua obra trechos em que a gordura era exaltada, atribuindo-lhe adjetivos como a confiança. Contrariamente ao que percebemos nos dias atuais, no texto do referido dramaturgo a magreza era representativa de maldade, ambição e uma astúcia que poderia reverter-se em traição. Nesse caso, era a figura magra e adelgaçada que indicava certa dose de ameaça e perigo.

Quando a comida era escassa, e portanto privilégio dos ricos, a gordura era, de certa forma, sinônimo de saúde e prosperidade, enquanto a magreza sugeria miséria e definhamento. Atualmente sabe-se que uma dieta composta por carboidratos e farináceos é bem menos dispendiosa financeiramente do que o consumo de produtos “diets” e “lights”.

Vimos que, aos poucos, a obesidade assume um lugar de diferenciação, chegando aos dias atuais como uma forma de exclusão. Com relação ao julgamento social sobre a gordura, chamamos a atenção para a mais interessante contribuição que o texto de Fischler (1995) nos oferece: a criação de dois tipos fundamentais de estereótipos morais referentes à obesidade.

Nessa classificação, o autor divide os obesos em dois grupos, que variam de acordo com determinados padrões de comportamento, e cujas denominações são obesos benignos e obesos malignos. No primeiro grupo o autor enquadra o indivíduo de comportamento expansivo, extrovertido, brincalhão – o típico gordinho “boa praça”, que parece querer desculpar-se pela inadequação física compensando-a por meio da convivência agradável. Já no segundo figuram as pessoas que se negam a efetuar qualquer tipo de transação simbólica, com vistas a serem socialmente aceitas.

Não havendo qualquer tipo de restituição simbólica que possa despertar a piedade alheia, os gordos são mantidos excluídos, feito párias sociais, pois já não participam das regras do jogo social. Não à toa, na sociedade contemporânea, os obesos são denominados “malignos” ou “malditos” – como no jocoso termo empregado por Fischler. Possuem também um comportamento visto como depressivo, e por isso desprovido da obstinação necessária para a contenção de suas medidas corporais. Enfim, sua imagem demonstra um certo desânimo perante a vida, e traduz fracasso no agenciamento do próprio corpo e dos seus limites.

Em uma sociedade como a nossa, na qual o máximo da valoração social não reside na realização das ideologias/utopias, mas na realização dos projetos individuais, nada mais antipático e que desperte menos solidariedade do que um indivíduo incapaz de empenhar-se no projeto pessoal da boa aparência.

Em seu artigo, Fischler lança mão das contribuições do sociólogo americano Erving Goffmann para enriquecer ainda mais sua análise sobre o lugar que o indivíduo gordo ocupa nas comunidades e grupos sociais.

De acordo com Goffmann, o sucesso do que Fischler denomina de “obeso benigno” em conseguir não sofrer a rejeição do grupo no qual está inserido dá-se em função do papel ambivalente que lhe cabe ocupar. Goffmann utiliza o termo desviante integrado, conforme apontamos a seguir.

Ainda que integrado, o gordo deve desempenhar papéis muito específicos, cujo comportamento, invariavelmente engraçado ou patético, provoca uma reação de escárnio por parte dos outros integrantes do grupo. Assim, embora centralize as atenções sobre si, não partilha do mesmo estatuto que os demais membros.

Sua postura face ao grupo é a de alguém em desvantagem, ou que apresenta um demérito quando comparado aos demais. Portanto, para ingressar no grupo, é necessário “vestir a camisa” de gordo, por assim dizer. Isso requer o desempenho de uma série de atitudes pré-determinadas – não basta ser gordo, é preciso agir como tal!

Tal fato evidencia a existência de um acordo tácito, no qual o gordo, como ator social, está sempre restrito ao mesmo papel, ao contrário dos outros atores, que deslizam livremente.

O fenômeno descrito por Goffmann implica em uma transação simbólica; embora não manifesta, as regras do jogo são claras e seus jogadores precisam saber compartilhá-las. Cabe ao gordo resignar-se a desempenhar o papel de bufão, figura desleixada mas bonachona, caso queira integrar-se.

O trecho abaixo é bastante ilustrativo do que vimos até agora. Nele Goffmann destaca aspectos importantes da sociabilidade dos gordos, mostrando a posição de pouco prestígio que ocupam frente ao grupo, bem como a ambigüidade das regras que estabelecem o seu pertencimento.

.... ao mesmo tempo símbolo do grupo e representando certas funções bufas, enquanto lhe é negado o respeito devido aos membros de pleno direito. De modo característico, um tal indivíduo cessa de jogar o jogo das distâncias sociais; ele invade e se deixa invadir à vontade. Ele representa freqüentemente um foco de atenção que liga os outros num círculo de participantes, do qual ele é o centro, mas do qual ele não partilha todo o estatuto (apud Sant’Anna, 1995, p. 76).

Vimos até agora alguns estereótipos morais atribuídos à obesidade. Entretanto, dentre as representações que assume o imaginário sobre a gordura, existem ainda algumas não mencionadas. Uma das imagens mais marcantes que temos dos gordos remete à figura do aproveitador, que visa a maior retenção possível de bens materiais, não poupando esforços e sem qualquer tipo de escrúpulo para conseguir o que quer.

Ferozes, implacáveis e com uma voracidade insaciável, os gordos assumem, freqüentemente, um lugar paradoxal de destaque e marginal (lugar do mau). Possuem, dessa forma, a função de enriquecer o folclore e os mitos populares, constituindo uma metáfora social para encarnar figuras do tipo aproveitadores, bandidos, devoradores, vampiros, carniceiros, canibais etc.

Fischler (1995) sublinha ainda um outro tipo de julgamento moral que surge de forma recorrente no imaginário social. Nele indagamo-nos se os gordos são vítimas do seu metabolismo e da sua carga genética, ou culpados por um comportamento transgressor com relação à comida.

De acordo com a enquete feita pelo autor, um número expressivo de pessoas atribui aos obesos a responsabilidade por sua condição, considerados simultaneamente descontrolados e com uma voracidade desmedida. Embora socialmente compreendidos como possuidores de uma espécie de compulsão, no caso da glutonaria, o sentimento moral de culpa e responsabilidade não lhes é aliviado.

Como bem aponta o autor, as categorias que representam a gordura, a magreza e a obesidade mantêm-se relativamente estáveis ao longo dos séculos. Contudo, é preciso que estejamos atentos, pois são os critérios que determinam o limiar entre uma e outra que sofrem grandes variações. Nas palavras do autor: “era preciso sem dúvida, no passado, ser mais gordo do que hoje para ser julgado obeso e bem menos magro para ser considerado magro” (1995, p. 79).

Em última análise, nota-se que na atualidade a tolerância para com a gordura diminuiu drasticamente, chegando até mesmo a ser enquadrada na forma de uma categoria de exclusão. Carregada de estereótipos depreciativos, a gordura dá lugar à magreza, que é então positivada e exaltada.

Assim, a mesma cultura que elege o corpo como locus privilegiado dos investimentos individuais, produz simultaneamente sujeitos lipofóbicos e o atual estado de corpolatria do qual somos todos testemunhas.

 

A obrigação de ser bela

“Sabe qual é o meu maior sonho? Envelhecer para poder comer
uma macarronada sem medo de ficar gorda e feia. Imagine o que é
poder comer sem culpa!!!”

No mundo das imagens contemporâneas existem muito mais mulheres do que homens. Nossa cultura exibe a mulher permanentemente como forma de reforçar seus arquétipos. A imagem de mulher se justapõe à de beleza e, como segundo corolário, à de saúde e juventude. As imagens refletem corpos super trabalhados, sexuados, respondendo sempre ao desejo do outro, ou corpos medicalizados, lutando contra o cansaço, contra o envelhecimento ou mesmo contra a constipação.

Para a mulher, a beleza é representada como um dever cultural. E ser bela é ser magra. Enquanto o “homem público” remete-nos ao dever social, a imagem da “mulher pública” (o termo já tem uma dupla conotação) é sempre associada à sua aparência, apresentação e atração (Del Priore, 2000).

Importante ressaltar que se trata aqui da “imagem da mulher na cultura”, ou das representações sobre a feminilidade, uma vez que, felizmente, muitas mulheres são capazes de fazer escolhas não determinadas pelo discurso hegemônico, bem como identificar-se em outras posições.

Acreditamos que o terrorismo contemporâneo com relação à beleza tem menos a ver com o grau de repetição das mensagens do que com a evolução da mesma, devida inclusive à sua democratização. O que é normativo para a mulher contemporânea não é o fato de modelos de beleza serem impostos, uma vez que isto sempre existiu, nem mesmo que seja dito que ela deve ser bela (o discurso sempre foi este), mas o fato de afirmar-se, sem cessar, que ela pode ser bela, se assim o quiser.

A partir do discurso higienista do século XIX, os fabricantes da beleza retomam o mote da possibilidade de beleza, transformando-o não apenas em uma obrigação, mas sobretudo em uma “facilidade” – apenas uma questão de escolha e de vontade. Com Lancôme, “ser bela tornou-se fácil...”.

Não existe mais mulher feia… a mulher inteligente, que queira de verdade, poder tornar-se pelo menos, bonita… Até onde ela irá depende apenas dela. (...) Nos tempos atuais, é imperdoável que a gravidez faça com que a mulher perca a sua silhueta… A mulher deve ter um belo corpo para mostrar após os filhos estarem criados (Helena Rubinstein apud Rouet, 1978, p. 22).

Uma intensificação do dispositivo repressivo, em que as mulheres são objeto, por meio de seus corpos, exprime bem um mal-estar constante. O modelo de beleza proposto e a consciência corporal (identidade corporal do sentido estrito) que as mulheres têm de si, apontam para a crescente insatisfação que elas têm com seus corpos (Cash e Henry, 1995).

Se historicamente as mulheres preocupavam-se com sua beleza, hoje elas são responsáveis por ela. De dever social (se conseguir, melhor), a beleza tornou-se um dever moral (se quiser eu consigo). O fracasso não se deve mais a uma impossibilidade mais ampla, mas a uma incapacidade individual.

Enquanto nos séculos passados podíamos culpar a natureza, na contemporaneidade a negligência é a responsável e a culpa é individual. Segundo Baudrillard (1970/1981), o que hoje podemos observar é a “moralização do corpo feminino”, o que indica a passagem de uma estética para uma ética do corpo feminino.

A multiplicação das técnicas corporais e a difusão cada vez maior de modelos de beleza provocaram uma pressão cada vez mais prescritiva com relação ao autocontrole.

Uma “tarde para cuidar de si” é apresentada como uma forma de liberação. Uma consciência libertadora para a mulher que nisso investe. Trata-se, na verdade, de colocar a mulher aprisionada e sempre a serviço de seu próprio corpo, seja para aperfeiçoá-lo, ultrapassá-lo, modificá-lo, e muitas vezes, mutilá-lo, pois não importa o preço a pagar.

“No pain… No gain”, frase utilizada por Benjamin Franklin em The Way to Wealth, já no século XVIII, não foi escolhida aleatoriamente para ser o slogan do vídeo de Jane Fonda.

As mulheres devem aprender a viver seus corpos durante toda sua vida, e mais ainda, devem acreditar que isso é lúdico! A lógica das práticas corporais, que associa o prazer à saúde, vitalidade e beleza, promete eliminar a inquietude que o olhar do outro provoca, por meio do esforço, determinação e disciplina, apontando todo o tempo para a responsabilidade do sujeito.

O prazer é irreversivelmente associado ao esforço, o sucesso à determinação, e a intensidade do esforço é claramente proporcional à angústia provocada pelo olhar do outro. Nada aqui é gratuito – tudo é obtido em um sistema de regulação de trocas, seja ele dentro da lógica capitalista ou inserido no pensamento do sacrifício cristão.

Em um artigo intitulado “Os stakhanovistas do narcisismo”, Courtine (1995) discute o caráter hedonista que muitos apontam na chamada cultura do corpo. Retraça a origem aos Estados Unidos, país onde as práticas sociais, sobretudo aquelas ligadas ao corpo, são mais evidentes, e aponta para o caráter prescritivo das disciplinas corporais, herança do puritanismo e da cultura do “faça o melhor de si mesmo”. Para Courtine, “a pastoral do suor”, de inspiração puritana, foi uma das molas mestras do body building, com a crença de que a moralidade não é apenas uma questão só de piedade religiosa, mas também de forma e disciplina muscular, como mencionamos anteriormente.

Por reviravolta completa, o corpo transforma-se em objeto ameaçador que é preciso vigiar, reduzir, mortificar para fins “estéticos”, com os olhos fixos nos modelos emagrecidos da Vogue, onde é possível decifrar toda a agressividade inversa de uma sociedade da abundância em relação ao próprio corpo e toda a recusa veemente dos próprios princípios (Baudrillard, 1970/1981, p. 175).

Se a identificação com tais modelos vislumbra a potência, o narcisismo perdido, a constatação de sua impossibilidade transforma esse objeto em persecutório. Assim, a imagem esplendorosa da mulher “malhada”, jovem e perfeita volta-se como um duplo contra ela, diante da qual se sente permanentemente consumida e diminuída (Carneiro, 1997).

Não é à toa que tratam de seu corpo com profunda tirania, privando-o de alimentos, mortificando-o nas inúmeras cirurgias ou submetendo-o a exercícios físicos torturantes. O termo malhar também não é usado aleatoriamente. Malha-se como se malha com o ferro quente...

Ao elevar a exigência de beleza como uma imagem para encobrir a própria morte, esta passa a ter o efeito oposto: acaba por declarar uma promessa de morte para o ego. Isto se dá porque o nível cada vez mais elevado de exigência estética elege como ideais o inatingível, o sobre-humano, muito distante para serem minimamente apropriados pelo sujeito. A este cabem apenas duas escolhas: ou encarna o corpo da moda e não pode mais conviver com o seu corpo mortal, ou desenvolve uma relação de ódio a esse ideal inacessível e a si próprio, como aponta Costa: “Este corpo, insaciável, não é mais para o ego objetoque realiza o desejo de prazer. É o objeto que o ego tenta dominar e controlar, à custa de um crescente sentimento de culpa e de uma ansiedade infindável” (1985, p. 187).

A beleza moderna, longe de prometer uma compensação narcísica à mulher, agudiza sua frustração e sua impotência face à potência da imagem. A mulher passa a ser mais algoz de si mesma em relação à beleza – prosaicas “Mouras-Tortas”, como afirma Costa – desenvolvendo uma relação persecutória do ego com o corpo, em que cada ruga ou cada grama a mais leva-a ao desespero.

Mas como se processa essa questão da aparência no que diz respeito aos homens? Por que estamos centrando nosso olhar somente nas mulheres, quando sabemos que os homens estão ficando cada vez mais vaidosos?

Acreditamos que o aval da sociedade talvez explique por que, nos homens, as preocupações com a má aparência são mais sutis. Basta observarmos com atenção e constataremos que a sociedade mostra-se mais condescendente e tolerante com a feiúra masculina. Logo, é inquestionável que o olhar lançado sobre os homens seja menos persecutório. Ao que tudo indica, as instâncias reguladoras do comportamento fazem concessões bem maiores aos sinais de desleixo masculinos do que aos femininos.

Contrariamente ao que acontece com o grupo dos homens, no universo feminino a rigidez é de tal ordem que não há justificativa possível para o não atendimento dos imperativos da beleza. Enquanto no universo masculino o desvio com relação ao padrão de beleza está vinculado à falta de tempo, em função do ritmo atribulado da vida profissional, para as mulheres, não cultivar a beleza é falta de vaidade – um qualitativo depreciativo da moral.

Parece-nos que tanto a valoração como a sedução da imagem masculina dá-se a partir de conquistas sociais e econômicas. O embelezamento feminino, entretanto, está fortemente ancorado na utilização de inúmeros artifícios.

Enquanto a beleza masculina é associada a traços agressivos e exagerados, vistos como sinônimos de virilidade, as expectativas sociais diante da beleza feminina colocam-na no lugar de ícone dessa cultura de atenções corporais. Como parâmetros de beleza masculina, temos alguns exemplos trazendo seus traços mais significativos: sobrancelhas cerradas, linha do maxilar bem delineada, nariz acentuado (padrão italiano) e membros avantajados.

Já a construção de uma bela imagem feminina inclui dois aspectos, respectivamente: o esforço inerente à sua modelagem, e o dispêndio financeiro e de tempo, ambos inerentes ao consumo dos tratamentos voltados para essa área. Nas mulheres, a beleza vem na forma de trabalho sobre o corpo – ser bela cansa e dói. Portanto, mais importante que ganhar dinheiro é estar em forma: seca, sarada, definida.

Não é difícil perceber por que a feiúra adquire um peso dramático na estética feminina, uma vez que o seu antagônico é fruto de constante obstinação e perseverança. A beleza da mulher deve ser apreciada nos detalhes; um mero descuido, um simples desleixo é o suficiente para a feiúra nela aparecer. Um reles descascado no esmalte, uma maquiagem fora do tom, uma depilação por fazer, o uso de uma roupa fora das últimas tendências da moda ou uma raiz mal feita, são aspectos suficientes para fazerem surgir duras críticas à sua imagem.

Objeto de maior regulação social, o corpo feminino é, por conseguinte, contido ao máximo em suas ações. Como fruto disso, espera-se que toda essa contenção resulte, simultaneamente, em uma corporalidade delicada, um comportamento polido e em um gestual estudado minuciosamente em seus movimentos.

Embora não possamos desconsiderar a existência de um mercado crescente voltado para a incorporação da população masculina nas práticas ditas de embelezamento corporal, ainda é reinante no imaginário popular uma visão preconceituosa, que encara os cuidados excessivos com a aparência como uma prática gay.

Nota-se que fenômenos diametralmente opostos ocorrem entre os dois gêneros. Enquanto para os homens os cuidados com a estética corporal não devem ser demonstrados em excesso, a fim de que não haja qualquer confusão nos códigos da imagem que deseja emitir, nas mulheres os qualitativos estéticos estão intimamente ligados à identidade sexual.

A falta de esforço e de cuidados com a aparência leva à perda dessa identidade. A ética da disciplina corpórea apresenta-se como um aspecto fundamental de coação social, na medida em que define não só as insígnias de cada gênero, como também engendra a distinção entre identidade sexual e sexo biológico. O impacto que a feiúra tem sobre a imagem de uma mulher é justificado pelo discurso que diz que a feia é menos feminina.

Mais ainda, se para os homens a produção da boa aparência refere-se a elementos de ordem objetiva, como o mérito envolvido no papel social que ocupam frente à sociedade, no caso das mulheres os atrativos da sua aparência têm relação direta com um mundo de conquistas subjetivas.

Dentro dessa lógica, entende-se que os qualitativos estéticos têm uma função preponderante na felicidade amorosa, familiar e sexual. Não basta ser uma boa mãe, uma esposa dedicada e uma profissional competente, é preciso estar enxuta para que cada um desses papéis seja mais valorizado socialmente.

Estar magra é positivado em qualquer contexto, discurso ou meio de sociabilidade. Estar magra é o melhor capital, portanto, a melhor forma de inclusão social, e por fim, a moeda de troca mais eficaz. Ser magra, nos dias atuais, é um adjetivo da beleza. Esta, por sua vez, reforça e condiciona a feminilidade.

Batalhar para ser bela põe uma mulher em pé de igualdade com as outras, fá-la sentir-se em condições de competir, aumenta sua autoestima e seu poder de sedução. Uma vez segura de sua beleza e de seus dotes, está preparada para eliminar a concorrência!

Entretanto, o corpo ideal não diz respeito somente ao controle do peso e das medidas, revela também funções psicológicas e morais. A feiúra caracteriza, em um só tempo, uma ruptura estética e psíquica, da qual decorre a perda da auto-estima. Vale lembrar que a dimensão ética é também rompida, pois deixar-se feia é interpretado como má conduta pessoal, podendo resultar na exclusão do grupo social. Portanto, mudar seu corpo é mudar sua vida, e as intervenções estéticas decorrentes desse processo traduzem-se em gratificações sociais.

Na modernidade, a estética encontra-se vinculada a diversas formas de sociabilidade, impondo sua ordem como uma instância reguladora que abarca um número cada vez maior de contextos e formas sociais.

Visto assim, o terror que se abate sobre a feiúra traz uma série de prejuízos sociais, físicos e psicológicos, produzindo um conjunto de inquietações que se manifestam com relação ao sujeito e ao seu próprio corpo. Em função dos cânones estéticos, o feio vive uma tensão constante entre o constrangimento psicológico e as exigências simbólicas, tendo a própria anatomia como seu pior algoz.

 

Conclusão

“Para mim é assim, acho que a gente não tem que conviver com aquilo
que a gente não gosta; eu por exemplo: não gostava do meu nariz – fiz
plástica; achava que tinha uma bola nos quadris – lipoaspirei o culote;
achava que tinha seios pequenos demais – virei Barbie, taquei silicone;
não queria esperar o meu cabelo crescer – coloquei um mega hair”.

Iniciamos nosso trabalho dizendo que o discurso do corpo fala das relações internas à sociedade. Palco privilegiado dos paradoxos e dos conflitos, o corpo como obra de arte é o corpo teatralizado, palco no qual as palavras são encenadas. Tal qual nas cidades povoadas pelos murais e outdoors, uma nova forma de escritura se estabelece. Nela, o horror à imperfeição e a negação da finitude tamponam o real que tanto apavora:

A distância entre o modelo da revista e o reflexo no espelho também contribui para a dificuldade de integração. Não se trata apenas de conciliar senso de realidade e aspirações narcisistas. O que propõem as fotografias são corpos imaginários, abstratos e inatingíveis e, por assim dizer, eternos. Não são submetidos à dor, nem ao envelhecimento, ainda menos à morte... (Augras, 1996, p. 44-45).

É em uma sociedade globalizada, dividida entre ganhadores e perdedores e sem ideais, que os sujeitos entregam-se às compulsões. Nessa urgência, como aponta Mendlowicz (2000), qualquer espera equivale ao desespero, causado por uma enorme intolerância com aquilo que o atrapalhe em sua busca pela perfeição.

E nada mais distante da perfeição, na sociedade atual, do que a feiúra.

O que não suporto é gente se lamuriando insatisfeito com o próprio corpo, mas que não faz nada a respeito. No meu caso, por exemplo, quando começar a sentir que tem algum excesso eu vou me cortar” (Novaes, 2001a, p. 93).

As falas das entrevistadas, no estudo anteriormente mencionado, apontam claramente para os recursos, cada vez mais utilizados, em busca do corpo ideal.

Se todas as culturas de uma forma ou de outra praticaram a modificação corporal, as práticas atuais, segundo Rodrigues (1986), adquirem um caráter muito mais individualista e violento no afã de questionar as relações natureza/cultura, homem/máquina.

Um bom exemplo é o estatuto que a feiúra passou a ocupar na contemporaneidade, bem como suas novas representações. A feiúra, freqüentemente associada à gordura, sofre uma das maiores formas de discriminação nas sociedades que cultuam o corpo. Para eliminá-la, mitigá-la ou disfarçá-la, todos os esforços e sacrifícios serão dispendidos. Discriminação ostensiva, manifesta e sem culpa, ao contrário dos negros, pobres, gays ou qualquer outra minoria – discriminamos os feios e/ou gordos sem nenhum pudor ou vergonha.

Mas o que significa ser belo ou feio? Fosse este um trabalho sobre estética, certamente teríamos de nos alongar em nossas definições. Não é o caso. Longe de naturalizar a relação gordura/feiúra, buscamos justamente apontar como o desvio do padrão estético “da moda” remete o sujeito, sobretudo as mulheres, para o limbo da exclusão e para as exaustivas práticas do culto ao corpo.

Para finalizar, gostaríamos de retornar à indagação que Freud faz em 1930 acerca da beleza. Em O mal-estar na civilização, o autor mostra-se intrigado acerca da valorização da beleza pela civilização, ainda que esta não lhe proporcione nenhuma utilidade. No mesmo texto, o autor caracteriza a fruição da beleza como uma estratégia para buscar a felicidade. A essa fruição Freud dá o caráter de um “sentimento tenuamente intoxicante”, referindo-se ao sexo feminino como o “Belo Sexo”

Qual seria o significado dessa coisa inútil, sem a qual não podemos passar? Reza o ditado popular que uma imagem vale mais do que mil palavras! Em uma cultura com cada vez mais telas e menos páginas, as imagens passam a constituir, por si só, a realidade, ao invés de retratá-la, reproduzi-la e representá-la. A imagem toma o lugar do sujeito; e, sem perspectiva de si mesmo, haverá identidade possível?

Para ilustrar, recorreremos a Perrot (1984) e seu conceito de ortopedia mental. Interrogando-se a respeito do ideal feminino de emancipação, analisa historicamente as conquistas femininas e sugere, de forma irônica mas categórica, que estamos vivendo uma ditadura bem mais severa do que todas até então vivenciadas pelas mulheres.

O autor considera os diversos procedimentos de produção e manutenção do bom aspecto do corpo feminino entraves bem maiores na vida das mulheres do que os fardos que deflagraram a queima de soutiens em praça pública, ou mesmo o discurso médico atestando o mal que os espartilhos causavam.

Segundo Perrot, com a maior exposição do corpo, as atenções sobre a pele intensificam-se, assim como a rotina de cuidados com a aparência física. Para designar essa tentativa frenética de reformatação e adequação das formas, Perrot cunhou o termo ortopedia mental. O termo descreve com precisão jocosa uma ordem ainda mais tirânica que as já conhecidas formas que levaram à subserviência feminina.

Nada mais cruel do que lutar com um inimigo implacável e inexorável. Contra a ação do tempo as mulheres lutam, tentando manter-se sempre jovens e belas. Frenéticas e enlouquecidas, consumindo compulsivamente toda sorte de produtos que prometam retardar seu envelhecimento e manter sua beleza, essas mulheres lutam contra si, perdendo-se no espelho à procura de si mesmas. Se antes as roupas as aprisionavam, agora se aprisionam no corpo – na justeza das próprias medidas.

Contudo, mais uma vez é necessário cautela. Não há como pensar que todas as mulheres vivem essas transformações de forma passiva e acrítica. Neste sentido, nunca é demais relembrar que o discurso do corpo fala das relações internas à sociedade, e também nele vai se expressar a busca da felicidade plena.

Como todo culto, como toda moda, o impacto da moda do culto ao corpo sobre a sociedade só pode ser detectado a partir da compreensão da maneira como seus ditames são interpretados pelos indivíduos que, no interior de diferentes grupos sociais, lhes emprestam significados próprios. Como aponta Strozemberg (1986), o receptor nunca recebe passivamente uma mensagem, mas sempre, necessaria-mente, a interpreta e reelabora, na medida em que toda a decodificação é uma leitura. A experiência do corpo é sempre modificada pela experiência da Cultura.

 

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Endereço para correspondência
Joana V. Novaes
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Recebido em 18/02/03
Aprovado em 17/06/03

 

 

1 Psicóloga Clínica; Doutoranda do Departamento de Psicologia da PUC-RJ.
2 Doutora em Psicologia Clínica; Professora do Departamento de Psicologia e Coordenadora do Serviço de Psicologia Aplicada (PUC-RJ).