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Interações

versão impressa ISSN 1413-2907

Interações v.10 n.19 São Paulo jun. 2005

 

ARTIGOS

 

Profissionais à deriva: professores e psicoterapeutas na sociedade em rede

Professionals adrift: educators and psychotherapists in the network society

 

 

Carla Faria LeitãoI; Rosane Dos Santos AbreuII; Ana Maria Nicolaci-Da-CostaIII

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Psicologia.

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A difusão das tecnologias da informação em geral, e da internet em particular, vem gerando transformações profundas nas práticas profissionais contemporâneas. Este artigo aborda os impactos destas transformações sobre profissionais da Educação e da Psicologia. Para tanto, apresentamos os resultados de duas pesquisas qualitativas, nas quais foram entrevistados professores e psicoterapeutas visando investigar como estes se percebem e se sentem desde a penetração da rede no cotidiano de seus alunos ou pacientes. Os principais resultados obtidos revelam a desorientação dos entrevistados em relação aos novos comportamentos de seus alunos ou pacientes, sua abrangente sensação de perda de controle, sua visão dos conhecimentos e técnicas tradicionais como instrumentos de trabalho inadequados, e sobretudo sua angústia e conflitos face à perda de suas antigas e sólidas identidades profissionais. Chegamos à conclusão que a construção de novas identidades profissionais implica necessariamente a análise aprofundada desses sentimentos e conflitos.

Palavras-chave: Internet, Professores, Psicoterapeutas, Identidades, Conflito.


ABSTRACT

The popularization of information technologies in general and of the internet in particular has caused deep transformations in contemporary professional practices. This paper discusses the impacts of such transformations on educators and psychologists. We present the results of two qualitative investigations in which we interviewed teachers and psychotherapists. We asked them how they felt after the arrival of the Internet in their students’ or patients’ daily life. The main results of both investigations reveal interviewees’ disorientation when faced with their students’ or patients’ new behavior, their generalized feeling of loss of control, their view of traditional knowledge and techniques as inadequate work tools, and above all, the anxiety and conflicts they face regarding the loss of their traditional and solid professional identities. We argue that the construction of new professional identities necessarily involves an in-depth analysis of these feelings and conflicts.

Keywords: Internet, Educators, Psychotherapists, Identities, Conflict.


 

 

“No presente flexível e fragmentado, talvez pareça possível
criar narrativas apenas sobre o que foi, e não mais narrativas
previsivas sobre o que será” (Sennett, 1999, p. 161).

 

Um mundo em revolução e a sensação de estar à deriva

Desde o final do século XX o mundo vem passando por transformações drásticas, em grande parte geradas pelo acelerado desenvolvimento das novas tecnologias da informação1. Mais notadamente a partir da criação da Rede Mundial de Computadores, a internet, essas tecnologias difundiram-se velozmente por todo o sistema econômico e penetraram todo o tecido social. Tal difusão e penetração, por sua vez, tiveram como resultado aquilo que o sociólogo Manuel Castells (1999a) batizou de Revolução da Tecnologia da Informação. Estamos diante de um novo período histórico, e para compreendê­lo, afirma Castells, os parâmetros da Modernidade revelam-se ineficazes. De fato, percebemos, perplexos, que a crença moderna no progresso linear, na organização das sociedades em torno de Estados fortes e no planejamento racional do crescimento econômico está irremediavelmente abalada2. Passamos a viver em uma nova organização social: a da sociedade em rede. Assistimos a modificações na forma de circulação do capital, e conseqüentemente nos modos de produção. Experimentamos, em primeira mão, mudanças no mercado e nos processos de trabalho, nas estruturas ocupacionais, nas hierarquias, nas formas de exercício do poder, na distribuição de renda etc. Para nós tudo é tão novo e desconhecido que não é raro termos a sensação de estarmos à deriva, pois os referenciais que nos guiavam deixaram de existir.

No que diz respeito à esfera profissional, esta sensação de estar à deriva vem sendo registrada por diversos autores contemporâneos. Sociólogos do porte de David Harvey (1989), Manuel Castells (1999a e 1999b), Richard Sennett (1999) e Zygmunt Bauman (1997), por exemplo, dedicam uma parte expressiva de suas obras recentes à análise dos novos significados do trabalho. Para esses autores, nossos contemporâneos enfrentam novas demandas de mercado, e para atendê-las têm que abandonar as categorias tradicionais que davam sustentação à sua identidade profissional (carreira, estabilidade, planejamento delongo prazo, proteção sindical etc). É exigida dos profissionais atuais uma adaptação veloz às noções de flexibilidade, mobilidade, agilidade, imprevisibilidade, risco, instabilidade e individualização. As conseqüências de tais exigências são várias, e sobretudo muito intensas do ponto de vista humano. Tornam-se particularmente perceptíveis através de diferentes manifestações de uma sensação que parece ser comum a diversas categorias profissionais: a de estar à deriva. Vejamos, ainda que de forma breve e pontual, como essas diferentes manifestações são descritas por Harvey, Bauman, Sennett e Castells.

Em A condição pós-moderna, Harvey examina as transformações no sistema de produção contemporâneo. Nessa obra – escrita em 1989, quando a Revolução da Tecnologia da Informação ainda estava em seus primeiros estágios –, já são mencionadas a flexibilidade, a agilidade e a capacidade de transformação contínua dos processos de trabalho como algumas das novas características da Pós-modernidade. Para Harvey, essas características emergiram tão rapidamente que geraram incerteza e insegurança entre os mais diferentes tipos de profissionais. Diante do desconhecido e da falta de referências, esses profissionais foram obrigados a criar (inconscientemente, é claro) novas formas de defesa. Uma delas, comenta o autor, é a do silêncio, que expressa tanto a dificuldade enfrentada por esses homens e mulheres de interpretar e dar sentido a um novo contexto profissional, quanto sua desorientação nesse novo contexto. Sobre esse silêncio, Harvey escreve: “a primeira linha de defesa é a fuga para um tipo de silêncio exaurido, blasé ou encouraçado, e inclinar-se diante do sentido avassalador de quão vasto, intratável e fora do controle individual ou mesmo coletivo tudo é” (p. 315).

Aproximadamente uma década mais tarde, já no auge da Revolução da Tecnologia da Informação, a falta de controle individual mencionada por Harvey permanecia em pauta. Por meio de um contraponto entre a vida contemporânea e o que acontecia durante a Modernidade, Bauman afirmava:

[No mundo contemporâneo] os projetos de vida individuais não encontram nenhum terreno estável em que acomodem uma âncora... A imagem do mundo diariamente gerada pelas preocupações da vida atual é destituída da genuína ou suposta solidez e continuidade que costumavam ser a marca registrada das “estruturas” modernas. O sentimento dominante, agora, é a sensação de um novo tipo de incerteza, não limitada à própria sorte e aos dons de uma pessoa, mas igualmente a respeito da futura configuração do mundo, a maneira correta de viver nele e os critérios pelos quais julgar os acertos e erros da maneira de viver. (...) O mundo pós-moderno está se preparando para a vida sob uma condição de incerteza que é permanente e irredutível. (...) Vivemos hoje, para tomar emprestada a feliz expressão cunhada por Marcus Doel e David Clarke, na atmosfera do medo ambiente (1997, p. 32-33).

Essas afirmações parecem ser confirmadas pelo trabalho de Sennett (1999). Baseando-se na escuta e análise de depoimentos pessoais sobre o trabalho dentro da nova economia flexível, Sennett registrou, em A corrosão do caráter, que a nova ordem econômica tem o poder de perturbar a auto-organização dos trabalhadores, o que minimamente tem como conseqüências a incerteza, a desorientação e, em alguns casos, até mesmo a depressão:

A estrutura da nova ordem perturba profundamente a auto-organização. Pode separar a experiência flexível [nova] da ética pessoal estática [antiga] (...). Pode separar o trabalho fácil superficial [novo], da compreensão e do empenho [antigos] (...). Pode tornar o constante correr riscos um exercício de depressão (p. 139).

Em A era da informação: economia, sociedade – trilogia considerada hoje a mais completa análise dos impactos sociais da difusão das tecnologias da informação –, Manuel Castells (1999a, 1999b e 1999c) também destacava as dificuldades que nossos contemporâneos estão enfrentando diante da perda de controle sobre suas vidas profissionais (e pessoais) na nova sociedade em rede. Vejamos o que ele diz:

A globalização e a informacionalização, determinadas pelas redes de riqueza, tecnologia e poder, estão transformando nosso mundo, possibilitando a melhoria da nossa capacidade produtiva, criatividade cultural e potencial de comunicação. Ao mesmo tempo, estão privando as sociedades de direitos políticos e privilégios. (...) a repentina aceleração do tempo histórico, aliada à abstração do poder em uma rede de computadores, vem desintegrando os mecanismos atuais de controle sociale de representação política. À exceção de uma elite reduzida de globopolitanos (meio seres humanos, meio fluxos), as pessoas em todo mundo se ressentem da perda do controle sobre suas vidas, seu meio, seus empregos, suas economias, seus governos, seus países e, em última análise, sobre o destino do planeta (1999b, p. 93-94).

Perturbações da auto-organização, silêncio, depressão e medo parecem ser algumas das manifestações observáveis da perda de controle, da incerteza e da desorientação contemporâneas. Todas remetem àquilo a que nos referimos como sensação de estar à deriva, sensação essa que, ao que tudo indica, é bastante comum entre aqueles que vivem em primeira mão as transformações geradas pela Revolução da Tecnologia da Informação. Harvey, Bauman, Sennett e Castells foram hábeis em identificá-las.

 

Professores e psicoterapeutas em foco

Acabamos de apresentar as dificuldades comuns a diferentes categorias profissionais que são analisadas na literatura recente. Estas, no entanto, por serem abrangentes são forçosamente genéricas. Na qualidade de pesquisadoras das áreas da Psicologia e da Educação, temos interesses mais específicos. Buscamos conhecer melhor o que vem ocorrendo com os profissionais de nossas próprias áreas de atuação. De nosso ponto de vista, psicólogos e educadores parecem enfrentar dificuldades muito particulares, embora semelhantes entre si, as quais não podem ser detectadas e compreendidas por meio de estudos mais generalistas como os discutidos acima. E há uma importante razão para tanto: diferentemente do que acontece no caso de outras categorias profissionais, psicólogos e educadores lidam diretamente com seres humanos que deles esperam orientação e auxílio.

No caso dos educadores, as expectativas são de que possam orientar crianças, homens e mulheres na construção de conhecimentos sobre o mundo atual, de forma a torná-los seres produtivos na nova sociedade. Já no caso dos psicólogos, espera-se que possam ajudar os demais na construção de conhecimentos de outra ordem: conhecimentos a respeito de si mesmos e dos conflitos que experimentam no cotidiano.

Essas expectativas – de orientação e auxílio seguros e competentes – parecem, no entanto, envolver a idéia de que educadores e psicólogos estariam preparados para absorver rapidamente as mudanças em curso, e em conseqüência disso seriam capazes de ajudar seus alunos e pacientes a darem sentido às suas novas e desconhecidas experiências na também nova realidade dos dias atuais.

Acontece, porém, que essas mesmas expectativas deixam de levar em conta o fato de que, em épocas de transformações radicais, todos são igualmente atingidos pela mudança. E isto é particularmente verdadeiro no conturbado momento atual, no qual psicólogos e educadores, tal qual aqueles que deles esperam orientação e auxílio, começam a viver em um contexto mundial ainda em grande parte desconhecido.

Parece-nos relevante, portanto, o encaminhamento de uma reflexão mais minuciosa a respeito das dificuldades específicas que os profissionais da Educação e da Psicologia estão enfrentando em suas práticas. Algumas perguntas podem servir de guias para essareflexão. É razoável supor que psicólogos e educadores, em função de suas formações especializadas, estejam de fato preparados para orientar seus contemporâneos a respeito das profundas transformações mundiais em curso? Como esses profissionais vêm reagindo a essas transformações? Que impactos a Revolução da Tecnologia da Informação está gerando sobre eles? Que sentimentos experimentam? Com que tipo de conflitos estão se deparando? Estariam eles, tal como outros profissionais, também à deriva? Em caso positivo, como podem eles ser capazes de auxiliar outras pessoas?

Ao longo deste artigo buscamos oferecer algumas respostas preliminares a essas perguntas, visando sobretudo estimular novas reflexões sobre os impactos subjetivos experimentados por profissionais da Educação e da Psicologia nos dias de hoje. Para tanto, são apresentados os principais resultados de duas pesquisas realizadas com especialistas dessas áreas. Na primeira, foram entrevistados professores (Abreu, 2003; Abreu e Nicolaci-da-Costa, 2003). Na segunda, foram ouvidos psicoterapeutas (Leitão, 2003). No que se segue, estas pesquisas serão sucintamente descritas.

 

As pesquisas de campo

Abreu (2003) e Leitão (2003) circunscreveram seus trabalhos de campo aos impactos da internet sobre os profissionais da Educação (Abreu, 2003; Abreu e Nicolaci-da-Costa, 2003) e da Psicologia Clínica (Leitão, 2003). Abreu, pedagoga, entrevistou professores a respeito da penetração da rede no cotidiano escolar. Já Leitão, psicóloga, ouviu o que psicoterapeutas tinham a dizer sobre penetração análoga no dia-a­dia de seus consultórios.

Em sintonia com as pesquisas sobre os impactos subjetivos da internet que vêm sendo realizadas por Nicolaci-da-Costa e seus alunos desde 1995 (Nicolaci-da-Costa, 1998, 2002a, 2002b, 2003; Zaremba, 2001; Romão-Dias, 2001; Prange, 2003), Abreu e Leitão privilegiaram um foco bastante peculiar. Enquanto os estudos mencionados vêm investigando os impactos diretos da rede sobre seus usuários, elas buscaram compreender os impactos que o contato com alunos e pacientes que são usuários da internet vem tendo sobre professores e psicoterapeutas. Ou seja, investigaram os impactos indiretos que a internet causa sobre esses profissionais. Seu intuito era o de compreender como professores e terapeutas vêm lidando com as mudanças que o contato com esses alunos e pacientes introduziu em suas vidas (profissionais e pessoais), bem como o de identificar suas dificuldades e conflitos internos.

Com esses objetivos em mente, Abreu e Leitão realizaram estudos qualitativos. Para tanto, fizeram uso de procedimentos metodológicos, que apesar das inevitáveis especificidades requeridas pelos diferentes tipos de profissionais estudados, eram bastante semelhantes entre si. Deixando de lado as necessárias diferenças, os resultados de ambas as pesquisas, já discutidos separadamente (ver Abreu 2003; Abreu e Nicolaci-da-Costa, 2003; Leitão, 2003), ganham enorme riqueza se reunidos e discutidos a partir de suas convergências. Esses resultados serão expostos e discutidos após a breve descrição do perfil dos sujeitos e da metodologia empregada nas duas pesquisas.

 

Perfil dos sujeitos

Na pesquisa de Abreu (2003) foram entrevistadas dez professoras, com idades variando entre 29 e 52 anos. A unanimidade das mulheres no grupo de sujeitos entrevistados não foi intencional. Simplesmente parece ter refletido a característica predominantemente feminina da carreira docente, em particular na Educação Infantil e nos Ensinos Fundamental e Médio. Todas as professoras entrevistadas atuavam há pelo menos 8 anos em escolas públicas ou particulares do Ensino Fundamental e/ou Médio do Rio de Janeiro.

Já na pesquisa de Leitão (2003) foram entrevistados dezesseis psicoterapeutas (oito psicanalistas e oito gestalt-terapeutas), que clinicavam em consultórios particulares, com idades entre 33 e 60 anos. Todos atuavam como terapeutas há pelo menos dez anos. Neste grupo, quinze dos participantes eram do sexo feminino e apenas um do sexo masculino – números que de modo análogo ao da pesquisa de Abreu, remetem à tradicional definição da psicologia como uma profissão notadamente feminina. Suas clientelas eram compostas principalmente por adolescentes e adultos.

Em ambos os casos, os sujeitos das pesquisas lidavam de forma cotidiana e intensa com usuários da rede. Eram também experientes em suas carreiras, o que os tornava capazes de estabelecer comparações entre dois períodos distintos de atuação profissional: o período anterior à difusão da rede e o atual, no qual a internet já é parte do dia-a-dia de muitos.

 

Procedimentos metodológicos

Ambas as pesquisas adotaram o método qualitativo de investigação, fazendo uso de entrevistas de questões abertas (que comportam qualquer tipo de resposta) como instrumento de coleta de dados. De modo geral, para a realização desse tipo de entrevista é construído um roteiro de itens que abordam os principais tópicos sob investigação. Esses itens são transformados em perguntas somente durante a entrevista, de modo a lhe dar o caráter informal de uma conversa cotidiana, o qual é reforçado por meio de outros procedimentos. Um deles refere-se à ordem de abordagem dos diversos itens, que varia segundo o fluxo da conversa com cada entrevistado, tornando a expressão das idéias dos sujeitos mais livre e natural3.

Tendo por base os procedimentos acima descritos, as pesquisadoras construíram roteiros de entrevista bastante similares em sua estruturação. Estes eram compostos de 3 partes.

A primeira solicitava do entrevistado dados simples e objetivos de identificação: idade, formação acadêmica, tempo e tipo de experiência profissional e local de trabalho.

Já na segunda, os itens tinham por finalidade caracterizar os entrevistados como usuários da internet. Alguns dos principais pontos abordados nessa segunda parte, nas duas pesquisas, eram: as razões iniciais para os entrevistados se conectarem à rede; para quê e como a utilizavam; e quais eram suas opiniões a respeito da internet.

Por último, a terceira parte buscava investigar a visão, as reações e os sentimentos dos entrevistados no que diz respeito à entrada da internet em suas atividades profissionais. Para tanto, os roteiros previam: o levantamento das diferentes experiências relacionadas à rede que os profissionais viveram junto a alunos ou pacientes; o relato das reações que tiveram diante dessas experiências; e o levantamento de suas opiniões e reflexões sobre as conseqüências da penetração da internet em suas escolas e consultórios.

De posse desses roteiros, Abreu e Leitão realizaram entrevistas individuais, em locais escolhidos pelos próprios sujeitos das pesquisas (a escola, o consultório onde trabalhavam ou sua casa). Com o consentimento destes, todas as entrevistas foram gravadas.

Em seguida, as pesquisadoras submeteram os depoimentos coletados às técnicas de análise do discurso propostas por Nicolaci-da-Costa (1989, 1994). De forma muito resumida, essa análise é composta de duas grandes etapas: a da análise inter-sujeitos e da intra-sujeitos. Por meio da análise inter-sujeitos busca-se obter uma visão panorâmica do conjunto de depoimentos e identificar as tendências principais apresentadas pelo grupo de entrevistados. Já na análise intra-sujeitos, a visão panorâmica dos depoimentos é temporariamente abandonada, e cada entrevista é examinada individualmente. Visa-se, com isto, detectar conflitos e inconsistências de opiniões, bem como identificar eventuais opiniões e sentimentos contraditórios. Essas etapas são realizadas repetidas vezes, até que seja obtida uma interpretação aprofundada do material.

Os resultados que Abreu (2003) e Leitão (2003) obtiveram a partir desse tipo de análise foram ricos e variados. Como já mencionado, no que se segue serão apresentados somente aqueles que as duas pesquisas tiveram em comum.

 

Principais resultados

O uso pessoal da internet: um suporte profissional usadocom moderação

Todos os professores e terapeutas entrevistados são usuários da internet, mas em sua maioria podem ser considerados usuários moderados. Utilizam a rede relativamente pouco e para fins muito específicos: trocar e-mails ou fazer pesquisas, atividades sempre relacionadas a suas tarefas profissionais. Conhecer pessoas via rede, bater papo, jogar ou realizar outras atividades pessoais e de lazer dificilmente fazem parte dos hábitos dos entrevistados. Para esses psicoterapeutas e professores, a rede é um instrumento de trabalho, ou melhor dizendo, um suporte para suas práticas profissionais. De um modo geral a internet serve-lhes tão-somente para fazer contatos com colegas de trabalho e para a aquisição de novos conhecimentos em seus campos de saber. Raros são os professores que usam a rede em sala de aula, e mais raros ainda são os psicoterapeutas que usam qualquer forma de comunicação online com seus pacientes.

Apesar de utilizada como simples ferramenta profissional, a rede desperta nos entrevistados sentimentos intensos e variados. Vejamos alguns depoimentos a esse respeito:

Eu acho que a internet por si só não é nada. A internet, só pela existência dela, elatem um monte de informação. Eu tenho horror daquilo, eu tenho verdadeira alergia. É tanta informação!” (Selma4, professora).

Eu não tenho paciência nem prazer com qualquer tipo de máquina. Eu não tenho interesse. O computador e a internet são uma necessidade. Uso e-mail. Agiliza meu trabalho pra caramba (...). Não é algo que me seduz. Eu até chamava o computador de ‘serial killer’ [risos]” (Silvana, psicoterapeuta).

[A internet] ao mesmo tempo que me atrai, me assusta porque não tem fim. Aimpressão que eu tenho é que não tem limite. É um mundo tão louco e tão mágico!” (Rosa, professora).

Horror, impaciência, susto e atração são alguns dos sentimentos e reações revelados por Selma, Silvana e Rosa. A estes somam-se outros, mencionados pelos demais sujeitos: indiferença, frieza, preguiça, incômodo, fascínio, medo etc. Ao mesmo tempo em que atrai e fascina, a internet assusta e incomoda. Lançar-se em novas aventuras na rede parece se associar à perda de controle sobre sentimentos e reações, e até mesmo sobre o tempo livre e a vida cotidiana. A psicoterapeuta Elza resume essa sensação com clareza:

Eu me sinto desconfortável em relação ao mundo da internet. Eu tenho muitos livros pra ler que eu sei que não vai dar tempo. Eu tenho uma clínica que me exige muito, que me exige demais. Eu tenho muitas atividades em minha vida. A internet me apresenta possibilidades infinitas de uso. Mais possibilidades... Então, eu tenho a sensação de que, se eu for incluir muito a internet, eu não vou dar conta”.

Essa sensação de desconforto é ativamente combatida por esses profissionais por meio do estabelecimento de limites para seu próprio uso da internet. O uso moderado e focado em tarefas relativas ao trabalho parece fazer com que os entrevistados de ambas as pesquisas se sintam mais protegidos do turbilhão de sentimentos que podem ser suscitados – eles sabem disso – pela vida online. Utilizando-a como simples ferramenta de apoio, aventuram-se pouco e cautelosamente na rede e constroem limites precisos para o espaço que ela pode ocupar em suas vidas pessoais.

Ao chamá-lo de “mundo tão louco e tão mágico” da internet, Rosa (ver acima) não reconhece fronteiras e acaba por solapar os limites colocados pelos psicoterapeutas e professores entrevistados. Nos consultórios e nas salas de aula os efeitos da penetração da internet já são intensos, mesmo sem que esta seja utilizada diretamente nas práticas docente e terapêutica. No que se segue expomos como isso vem ocorrendo.

 

A internet no trabalho: fonte de pressões, ameaças e conflitos

Para os professores e psicoterapeutas entrevistados, muito embora a internet seja uma ferramenta de trabalho que deve ser usada com moderação, eles percebem que o uso que dela fazem seus alunos ou clientes é espantosamente diferente. Para estes, ao invés de uma ferramenta de apoio ao trabalho, a internet revela-se uma poderosa e ilimitada fonte de lazer, brincadeira e prazer. Mostra-se capaz de transformá-los, gerando novos comportamentos, linguagens, formas de relacionamento e modos de pensar e sentir.

Horrorizados ou surpresos, professores e terapeutas dão exemplos dessas transformações. Os professores ressentem-se da penetração da linguagem digital (rápida, abreviada, sem acentuação, cheia de sinais gráficos – os emoticons – para expressar sentimentos) nos trabalhos escolares5. Reclamam também da prática de “recortar e colar” informações provenientes da rede nas pesquisas feitas pelos alunos, o que segundo eles, faz com que aprendam muito pouco ou nada ao fazer um trabalho. Já os psicoterapeutas falam do medo – e/ou preconceito – que têm em relação aos encontros e desencontros virtuais, às práticas de sexo online e à construção de personagens por parte de seus pacientes. De um modo ou de outro, com base em uma ou outra observação, não importa, todos os profissionais entrevistados afirmam que a internet vem introduzindo novas e importantes alterações em seu trabalho cotidiano.

Daniela (psicoterapeuta), por exemplo, destaca a necessidade de os profissionais de sua área refletirem a respeito dos impactos da internet sobre os seres humanos, para que possam auxiliar seus pacientes de forma mais fundamentada:

A maioria dos ‘psi’ são pouco ligados à tecnologia de maneira geral. (...) Mas a gente tem que se aproximar e entender isso. Porque as pessoas estão falando disso [da internet] o tempo todo no consultório. (...) Eu procuro entender isso através de cada pessoa. Mas eu poderia entender de uma forma mais generalizada. A experiência clínica fica muito no particular. Acho que a gente tem que começar a trocar sobre isso, a conversar. A gente precisa construir alguma coisa mais fundamentada sobre isso ”.

Ao falar das modificações do perfil de seus alunos a partir da difusão da rede, Maria (professora) revela a necessidade de introduzir mudanças em sua prática docente:

Pra mim está cada vez mais difícil dar aula naquele sistema antigo, que a gente chamava na linguagem popular de cuspe e giz. Eu tenho sempre que trazer uma coisa nova pra motivar o aluno”.

Rita (professora) também fala de mudanças. Segundo ela, muitos professores sentem-se pressionados a se familiarizar com o mundo da internet para se manterem capacitados para a carreira do magistério:

O que eu vejo dos meus colegas é que mesmo aqueles que nunca foram atraídos pelo computador estão vendo a necessidade de começar a saber usar o e-mail, acessar a internet”.

Elza (psicoterapeuta) relata ter sentido pressões similares às de Rita no cotidiano de seus atendimentos psicológicos:

Na primeira vez que eu tive contato com a internet, eu pensei: ‘vem algo muito novo por aí’. (...) Eu fui escutando. Meus pacientes começaram a falar disso. Aí eu comecei a me ver como alguém que nunca lidou com máquinas. Rapidamente passei a usar o computador e a internet”.

Todos parecem concordar com o fato de que o “novo” do qual nos fala Elza já chegou e está impondo transformações nas antigas práticas profissionais de nossos entrevistados. As experiências online de alunos e pacientes parecem desorganizar e colocar em xeque os modelos docente e psicoterápico tradicionais. Por estas razões, apesar de motivados a enfrentar os novos desafios, nossos entrevistados mostram-se preocupados e às vezes até mesmo assustados.

Tal como a maioria dos professores ouvidos, Sílvia preocupa-se com o novo papel dos professores nos processos de transmissão de informações e construção de conhecimentos:

A educação pra mim é algo vivo, é uma troca que a internet não consegue dar. Ela pode dar a informação pura e simples, mas a coisa do ampliar, aprofundar, ela não consegue. Acho que a escola é quem dá a estrutura. Não tem como o computador competir com a troca e com o conhecimento de cada aluno e o bom senso com que o professor trata cada aluno individualmente ou em grupo. Não tenho medo do computador, ele não vai substituir o professor”.

Rosa (também professora) parece compartilhar essas preocupações:

Até onde você pode confiar a coisa da Educação a uma tecnologia dessas, sem que haja a necessidade da presença de alguém ali junto? Tem horas que ele [o computador] se basta, que não precisa de alguém ensinando. Mas, péra aí, tudo o que eu entendo por gente precisa da presença. Essas coisas me assustam um pouco, mas me atraem”.

No campo das psicoterapias, o acesso fácil e rápido a um volumeimenso de informações também é motivo de preocupação. É o que nos revelam os depoimentos abaixo:

A internet, até pela quantidade absurda de informação, torna algumas coisas mais difíceis. As pessoas confundem informação com conhecimento. O raciocínio não vai. Tem informação. Não tem conhecimento. Em vez do computador ficar parecido com o cérebro é o cérebro que fica parecido com o computador” (Ricardo, psicoterapeuta).

Os clientes trazem muita informação. (...) Cada vez mais informações. Eles conhecem muito de doença, por exemplo. Eles vêm com patologias inteiras conhecidas pela internet. Depressão, eles já sabem sintomas, percentagens de heranças, de fatores que podem contribuir. (...) Saber muito sobre depressão às vezes atrapalha o tratamento” (Rachel, psicoterapeuta).

Esses e vários outros depoimentos mostram o quanto é difícil ser professor ou terapeuta nos dias atuais. As drásticas mudanças pelas quais passam alunos e pacientes parecem impor uma redefinição do papel de professor e de terapeuta.

Nas entrelinhas dos depoimentos expostos acima, uma ameaça paira no ar: a de uma transformação profunda nas relações de poder entre professores e alunos, bem como entre terapeutas e pacientes. Isso assusta e ameaça. Martha (professora) explicita esses temores:

Primeiro, tudo que é novo é assustador; tudo que é novo precisa de um preparo especial. Segundo, esse novo é dominado com o máximo de facilidade pelas crianças e jovens. Na frente do computador eles não têm esse tipo de bloqueio porque eles estão conhecendo o mundo, e conhecer o mundo significa conhecer o computador também. O professor, por ser sujeito formado, que já passou desse período de conhecer o mundo dessa forma, ele já fica em desvantagem em relação ao próprio aluno. O que acontece? Historicamente a gente tem o professor que sabe e o aluno que não sabe. Como vai reverter isso? Um aluno que sabe e um professor que não sabe? Isso é complicado! Administrar uma coisa dessas é complicadíssimo”.

As psicoterapeutas Rachel e Eliane são porta-vozes de um temor análogo ao dos professores. Para elas, a perda de controle (e por conseguinte do poder) no ambiente terapêutico é uma das principais conseqüências da difusão da internet:

A internet, e o computador também, isso foi um impacto pra mim. Porque a gente tem aquela coisa de manter o setting terapêutico e aí ficou assim... Eu perdi o controle dessa situação. (...) Qual o limite disso?” (Raquel, psicoterapeuta).

Porque eu achava que era uma coisa que chegava muito mais pra atrapalhar do que pra ajudar. E é por isso. Porque a internet veio bagunçar aquele setting todo certinho. [risos] [A expectativa] de que o paciente vai chegar, vai falar e vai embora” (Eliane, psicoterapeuta).

Fica claro que os professores e terapeutas entrevistados vêm se sentindo pressionados a usar cada vez mais a internet e a refletir sobre as mudanças introduzidas em suas práticas docentes ou psicoterápicas. O controle eficaz que fizeram dos impactos da rede sobre suas vidas pessoais, por meio de seu uso moderado, parece não surtir efeito no que diz respeito à sua vida profissional. Alunos e pacientes, ao revelarem-se usuários experientes e destemidos da internet, estão deixando seus professores e terapeutas inseguros e desprotegidos. Se no campo pessoal a internet foi absorvida sem impactos significativos, no campo profissional, esses impactos parecem ser intensos e desorientadores.

 

Professores e psicoterapeutas: quem somos nós?

Muita “bagunça” e pouco controle estão, ao que tudo indica, invadindo as práticas docentes e psicoterápicas e gerando conflitos subjetivos de monta naqueles que as exercem. Professores e psicoterapeutas estão confusos, desorientados e inseguros. Não sabem mais o que é serpsicoterapeuta ou o que é ser professor. É isto o que mostram os depoimentos abaixo, escolhidos dentre inúmeros outros.

Rita (professora) vai direto ao ponto:

Quem é esse professor agora? O que ele vai ensinar?”.

Fernanda (psicoterapeuta) também revela não ter respostas para a pergunta sobre o que é e o que faz um psicoterapeuta na atualidade.

Há algum tempo minha clínica era muito tranqüila. (...) Eu sabia o que fazer. Hoje não. São pessoas que vêm precisando de ajuda, de acolhimento, sem saber bem porquê. Vêm procurando alguém pra escutar, pra entender junto com você o mundo.

(...) Eu penso muito: pra que serve o meu trabalho? Eu acho que é quase um espaço pra alguém escutar. Eu, como terapeuta, me sinto muitas vezes muito sozinha. Me sinto sem nenhum porto seguro ”.

Na ausência de um porto seguro, professores e psicoterapeutas sentem-se à deriva. Não encontram âncoras ou solo firme nos quais possam se apoiar e buscar respostas para suas dúvidas. Quando buscam essas respostas na bagagem de conhecimentos da Psicologia e da Educação, a frustração é grande e a desorientação não é menor:

Não dá pra utilizar antigos referenciais mas, ao mesmo tempo a gente não tem um referencial já construído” (Alice, psicoterapeuta).

Parece haver, segundo a ótica dos entrevistados, uma espécie de vácuo de conhecimentos. Os antigos conceitos de suas áreas não fornecem subsídios para a elaboração de novas modalidades de prática e de novas identidades profissionais. Ainda não há, entretanto, novos conceitos e categorias para substituir os antigos e já inadequados conhecimentos. Em outras palavras, nada parece servir de guia para os profissionais entrevistados.

A sensação de estar à deriva parece advir justamente dessa espécie de vácuo. Inseguros, os professores e terapeutas entrevistados parecem não ter dúvidas de que estão diante de um instigante e complexo desafio: o de construir novos referenciais para a compreensão de suas práticas educacionais ou terapêuticas. Mostram-se, no entanto, dispostos a enfrentar esse desafio. Como nos revelam alguns de nossos entrevistados, “ver outros caminhos” (Sílvia, professora) e “construir alguma coisa mais fundamentada” (Daniela, psicoterapeuta) sobre os impactos da internet no cotidiano educacional ou clínico são objetivos presentes em suas práticas profissionais atuais.

 

Considerações finais: o desafio de reconstruir identidades

No início deste artigo expusemos algumas de nossas inquietações a respeito das dificuldades que profissionais da Educação e da Psicologia estão enfrentando em suas práticas contemporâneas. Perguntávamos se, tal como outras categorias profissionais, eles também estariam à deriva. Além disso, questionávmos: caso estivessem à deriva, seriam esses profissionais capazes de auxiliar seus alunos ou pacientes?

Os depoimentos dados pelos sujeitos de nossas pesquisas fornecem respostas preliminares a essas inquietações. No que diz respeito especificamente aos impactos subjetivos gerados pela internet, os psicoterapeutas e professores entrevistados não têm dúvidas a respeito do quanto estão desorientados. O raciocínio ágil (mas disperso) de alunos que parecem pensar e escrever em linguagem de hipertexto, as práticas de sexo online relatadas nas sessões psicoterápicas e os diferentes personagens virtuais que compõem a identidade de pacientes-usuários da rede são alguns dos vários problemas inesperados e inéditos com os quais esses profissionais estão tendo que lidar. Todos esses problemas – eles têm consciência disso – são decorrentes das novas experiências de seus alunos e pacientes na realidade virtual.

Os depoimentos colhidos sugerem, no entanto, que a maior fonte de sofrimento para os professores e psicoterapeutas entrevistados reside naquilo que sentem como a perda de suas identidades profissionais. No lugar das tradicionais e sólidas definições de papéis, direitos e deveres de um profissional da Educação ou da Psicologia, parece ter-se instaurado um doloroso desconhecimento do que é ser um professor ou um psicoterapeuta nos dias de hoje. Desorientados, os entrevistados de ambas as pesquisas reconhecem que os modelos tradicionais de professor e de psicoterapeuta – que ainda carregam dentro de si – estão em extinção. Angustiados, deparam-se com o desafio de construir novas identidades profissionais, e conseqüentemente novas modalidades de prática pedagógica ou terapêutica.

Os relatos de ambas as pesquisas deixam claro, no entanto, que os profissionais entrevistados, mesmo à deriva, vêm enfrentando esse desafio por meio de tentativas informais de compreender o que se passa. Lançam olhares atentos sobre as crianças, homens e mulheres com os quais trabalham, visando identificar suas novas características. Reconhecem, porém, que ainda não é possível conhecer o perfil desses novos alunos ou a organização subjetiva dos pacientes-usuários da internet. Como diz a psicoterapeuta Virgínia, ainda não é possível ter “a percepção clara das conseqüências subjetivas de tudo o que estamos vivendo”. Mesmo assim, novas características comuns aos usuários da rede já vêm sendo identificadas pelos participantes de nossas pesquisas em seus alunos e pacientes6. Algumas dessas características são: a rapidez na obtenção de informações e a dificuldade de transformá-las em conhecimento crítico; a ênfase na interatividade em lugar da absorção passiva do conhecimento sobre o mundo; a sensação de onipotência gerada pelo praticamente inesgotável potencial de experimentação, interação e conhecimento que a internet oferece; e finalmente, a dificuldade de impor limites aos excessos que o mundo virtual gera para seus habitantes.

Para que as práticas clínicas e educionais sejam compatíveis com esses novos – e ainda em grande parte desconhecidos – alunos e pacientes, nossos entrevistados vêm despendendo muito esforço. Tentam modificar suas práticas, introduzindo (direta ou indiretamente) a internet no cotidiano profissional. Muitos deles sentiram a necessidade de se tornar usuários da rede para conhecer a realidade na qual pacientes e alunos estão imersos. Além disso, no caso dos professores entrevistados, vários percebem, por exemplo, que têm que abandonar a “linguagem popular de cuspe e giz” (Maria, professora) para estimular de modo mais interativo a reflexão crítica e o aprofundamento das informações coletadas pelos alunos na internet. Já no contexto psicoterápico, entre outros novos procedimentos, os entrevistados vêm tendo que dar sentido aos relatos que seus pacientes fazem de relacionamentos virtuais (muitas vezes tão problemáticos e difíceis quanto os reais). Vêm também tendo que auxiliá-los a compreender as informações complexas que coletam na rede a respeito de patologias e modalidades de intervenção psicológica.

Uma análise da literatura recente das áreas da Educação e da Psicologia torna evidente que essas preocupações não estão restritas aos nossos entrevistados. Diversos educadores e psicólogos estãoprocurando conhecer melhor o perfil do usuário da internet. É ainda nítida a mobilização de muitos destes profissionais para elaborar propostas de transformação das práticas psicológicas e educacionais, em especial no que se refere a novas formas de utilização da rede nas atividades docentes ou psicoterápicas7.

Curiosamente, no entanto, a literatura da Psicologia e da Educação sobre a internet não explora em profundidade o sofrimento e os conflitos que os entrevistados de nossas pesquisas nos revelaram de forma tão enfática. Nessa literatura não há uma discussão sistemática sobre a dor da perda das identidades profissionais tradicionais e/ou sobre a angústia envolvida no processo de reconstrução de novas identidades. Raramente encontramos na literatura dessas áreas narrativas sobre os próprios profissionais, seus sentimentos, incertezas e conflitos. Talvez por tudo isso nossos entrevistados se sintam tão solitários frente ao desafio de reconstruir suas identidades profissionais.

É preciso, todavia, que nos lembremos de que esses sentimentos e conflitos estão na base de nossas identidades profissionais. Movidos por nossas angústias e contradições, exercemos nossas práticas profissionais cotidianas e moldamos a percepção que temos de nós mesmos e de nossos alunos ou pacientes. Sem discutir nossos próprios sentimentos e conflitos, dificilmente poderemos saber quem somos. Conseqüentemente, corremos o risco de nos tornarmos menos capacitados para ajudar aqueles que de nós esperam orientação. Ao silenciarmos sobre nossas próprias dificuldades e incertezas, podemos estar nos distanciando não somente de nós mesmos, mas também de nossos alunos ou pacientes. Angústia, medo e insegurança, além de fontes poderosas de sofrimento, podem se tornar grandes obstáculos para o acesso àqueles a quem temos por missão orientar em um mundo em mudança.

Parece-nos urgente que – na qualidade de profissionais de Educação e de Psicologia – passemos a falar, discutir e refletir sobre nossa própria sensação de estar à deriva. Somente assim poderemos ganhar consciência de que nossos conflitos são compartilhados por muitos de nossos colegas de profissão, e chegar à conclusão de que explicitá-los e dividi-los com esses colegas é o primeiro passo de um processo necessariamente longo e complexo (e talvez até mesmo contínuo) de reconstrução de novas identidades profissionais. Longo e complexo porque a reconstrução dessas identidades envolve difíceis processos de transformação. Em um primeiro momento, envolve a desconstrução de nossas antigas visões de mundo, de certezas antes peremptórias e suas identidades profissionais tradicionalmente atreladas. Em um segundo momento, requer que travemos contato com nossas próprias dificuldades de ordem interna, com nosso apego aos velhos e conhecidos modelos e referenciais, com nossos sentimentos de medo e angústia frente à perda do antigo e com nossos preconceitos diante do novo.

O silêncio existente sobre tudo isso pode mascarar nossa desorientação e distorcer nossa percepção a respeito das mudanças em curso em nossas vidas. Construir narrativas sobre nossas incertezas é um primeiro passo imprescindível para que possamos dar início à árdua tarefa de construção de novas identidades profissionais.

Tomando emprestadas as palavras de Richard Sennett citadas na epígrafe, e a elas nos permitindo acrescentar outras: se ainda não nos é possível criar narrativas sobre o que seremos, talvez seja possível – e fundamental – criar narrativas sobre o que deixamos de ser, bem como sobre as dificuldades que estamos enfrentando para nos transformarmos naquilo de ainda desconhecemos.

 

Referências Bibliográficas

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Endereço para correspondência
Carla Faria Leitão
PUC-RJ/Departamento de Psicologia – R. Marquês de São Vicente, 225 – 22543-900 – Gávea – Rio de Janeiro/RJ
tel: (21) 3114-1183
e-mail: cfaria@inf.puc-rio.br

Rosane Dos Santos Abreu
CAP/UFRJ/Serviço de Orientação Educacional – R. J.J. Seabra, s/nº – 22470-150 – Lagoa – Rio de Janeiro/RJ
tel: (21) 2294-6597
e-mail: rosane.abreu@terra.com.br

Ana Maria Nicolaci-Da-Costa
PUC-RJ/Departamento de Psicologia – R. Marquês de São Vicente, 225 – 22543-900 – Gávea – Rio de Janeiro/RJ
tel: (21) 3114-1183
e-mail: anicol@psi.puc-rio.br

Recebido em 01/04/04
Versão revisada recebida em 06/12/04
Aprovado em 17/05/05

 

 

Notas

IPsicóloga; Doutora em Psicologia Clínica (PUC-RJ); Professora do Departamento de Psicologia da PUC-RJ.
IIPedagoga; Mestre em Educação (PUC-RJ); Doutora em Psicologia Clínica (PUC-RJ) ;Orientadora Pedagógica do Colégio de Aplicação/UFRJ.
IIIPsicóloga; Ph.D em Psicologia (Universidade de Londres); Professora Associada do Departamento de Psicologia da PUC-RJ.
1Segundo Castells (1999a), tecnologias da informação são um conjunto convergente de tecnologias que têm o objetivo de coletar, (re)processar e transmitir informações. As tecnologias que formam esse conjunto são as da eletrônica, da informática e das telecomunicações. A engenharia genética também é considerada por esse autor uma nova tecnologia da informação, dado que manipula informações sobre matéria viva. Esta inclusão foge, no entanto, aos objetivos do presente artigo.
2Para uma análise minuciosa das características da Modernidade, ver Harvey (1989) e Castells (1999a).
3Sobre esse tipo de entrevista, ver Nicolaci-da-Costa (1989) e Labov (1972).
4Todos os nomes aqui utilizados são fictícios, de modo a preservar o anonimato dos sujeitos das pesquisas.
5A respeito desse tipo de linguagem, ver Nicolaci-da-Costa (1998).
6Neste artigo discutimos aqueles resultados de nossas pesquisas que estão relacionados aos conflitos subjetivos experimentados pelos profissionais que hoje atendem alunos e pacientes usuários da internet. Para conhecer em maior profundidade os resultados referentes às caracterísitcas subjetivas desses alunos e pacientes, ver Abreu (2003) e Leitão (2003).
7Para uma análise dessa literatura, ver Leitão e Nicolaci-da-Costa (2000), Leitão (2003) e Abreu (2003).