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Interações

versão impressa ISSN 1413-2907

Interações v.11 n.21 São Paulo jun. 2006

 

RESENHAS

 

 

Ricardo Mendes MattosI

Universidade São Marcos. Programa de Pós-Graduação em Psicologia

Endereço para correspondência

 

 

DOMINGUES JUNIOR, Paulo L.; Cooperativa e a construção da cidadania da população de rua. 1. ed. São Paulo: Leopoldianum/Loyola, 2003. 121 p.

Pesquisadores, políticos, funcionários municipais e as próprias pessoas em situação de rua afirmam estar no trabalho a possibilidade de saída das ruas. Mas de que “trabalho” se fala? Seria a inserção no mercado formal de trabalho uma possibilidade, considerando a baixa escolaridade, pouca qualificação profissional e dificuldades na aquisição e manutenção desse tipo de atividade produtiva? Ou seria mais verossímil a organização de cooperativas de trabalho, principalmente quando se observa o êxito de empreendimentos solidários que envolvem membros da população em situação de rua?

No âmbito dessas discussões sobre possibilidades de saída das ruas que emerge a importância do livro do administrador de empresas Paulo Lourenço Domingues Junior, oriundo de sua dissertação de mestrado defendida em 1998 junto ao Departamento de Sociologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP).

Trata-se de um estudo de caso sobre a formação de uma cooperativa de trabalho por pessoas que moravam nas ruas, a COOPAMARE (Cooperativa dos Catadores Autônomos de Papel, Aparas e Materiais Reaproveitáveis Ltda.). Pesquisando esta experiência pioneira, Domingues Junior possuía como objetivo avaliar a possibilidade de construção de cidadania e autonomia pela população de rua, a partir da do trabalho cooperativo. Para tanto, o autor lançou mão de dois instrumentos de pesquisa: a observação participante e a realização de entrevistas com catadores, membros da diretoria e integrantes da Organização de Auxílio Fraterno (OAF) – ONG apoiadora da COOPAMARE.

Assim, no primeiro capítulo de seu livro, Domingues Junior procura traçar o perfil da população de rua na cidade de São Paulo, perfil este que coincide com as características dos catadores de materiais recicláveis da cooperativa. Baseado em recenseamentos da população de rua, o autor afirma que este contingente é composto, de maneira geral, por homens em idade produtiva (entre 18 e 44 anos), sem vínculo matrimonial ou contato constante com familiares, com baixa escolaridade e pouca qualificação profissional, oriundos da Região Sudeste do Brasil. Considerando que a grande maioria exerceu trabalho formal e regular, se trata de um contingente de desempregados.

Ao investigar os motivos que levaram essas pessoas a morar na rua, o livro aponta dois grandes processos. O primeiro deles possui na perda de emprego a principal motivação, pois o trabalhador vai se subordinando a empregos com rendimentos instáveis até ficar desempregado, perder a reciprocidade com a família e ir morar na rua.

O segundo processo se inicia com a ruptura com o vínculo familiar e se divide em dois tipos. O primeiro tipo se dá quando conflitos com familiares ocorrem na infância, levando, normalmente, a criança a morar com parentes próximos até ocorrerem divergências que a leva para a vida nas ruas. No segundo tipo, o mau relacionamento ocorre com a pessoa adulta, em relação aos pais ou esposa, que o conduz a saída de casa e itinerância por empregos cada vez mais precários até chegar às ruas.

Desta forma, Domingues Junior caracteriza a população de rua como o conjunto de pessoas excluídas do mercado formal de trabalho e destituídas de um local fixo de residência. A ida para as ruas não ocorre de forma abrupta, mas constitui-se como um processo gradativo relacionado, necessariamente, a rupturas com as instituições da família e do trabalho, pois a presença de somente uma dessas rupturas não desencadeia a rualização.

Uma vez vivenciando a moradia nas ruas, a pessoa passa a sofrer severa estigmatização que a rotula como sujeito vagabundo, que não quer trabalhar, além de constituir um sujeito marginalizado e perigoso para a sociedade.

Enveredando nos processos constitutivos da identidade da pessoa de rua, Domingues Junior aponta para a “internalização” desses atributos, fato que conduz a pessoa a se culpar por não conseguir trabalho, bem como se considerar fracassada e inútil.

Desenvolve-se, assim, uma identidade fragmentada, que não consegue atribuir um sentido à vida, nem tampouco traçar projetos de vida para o futuro. Tal condição se acirra ainda mais quando se percebe a falta de controle do próprio cotidiano, em virtude da dependência de instituições públicas ou privadas para conseguir os elementos mais necessários para sua sobrevivência (tais como banhar-se, comer e dormir).

Em suma, indo para a rua, a pessoa tem alterada sua “ordem simbólica”, pois esvaem-se referências estáveis nas quais poderia “lançar âncoras”. Fica, literalmente, “sem lugar no mundo”, vivenciando um momento marcado pela angústia, sofrimento e humilhação.

No segundo capítulo, Domingues Junior discorre sobre os princípios do cooperativismos, relacionados à propriedade, gestão e repartição cooperativas. Com o objetivo de conhecer a história da formação da COOPAMARE, apresenta um breve histórico da OAF, organização existente desde 1955. Relata o período “assistencialista” dessa entidade formada por religiosos e sem vínculos formais com a Igreja Católica ou o Estado. A partir de 1975, no entanto, seus membros fazem uma crítica ao trabalho anterior que conduz a uma proposta de organização comunitária da população de rua para a reivindicação de seus direitos junto ao Estado. Cria-se, nesse período, um centro comunitário para a troca de experiências e convivência em grupos. Desses encontros surge a união de dez catadores que, em 1985, fundam uma associação de catadores de materiais recicláveis.

Essa associação foi marcada pela necessidade de organização coletiva para fazer frente à repressão municipal na gestão do prefeito Jânio Quadros, que possuía a idéia de impedir o trabalho dos catadores. Em 1989, com o apoio da OAF, do Centro Santos Dias de direitos humanos, BNDES (Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social) e Senacoop (Secretaria Nacional de Cooperativismo), surge a COOPAMARE.

No capítulo terceiro, acompanhando as vicissitudes da organização de seus trabalhadores, principalmente no que se refere à relação da cooperativa com a OAF, Domingues Junior procura analisar a construção da autonomia dos trabalhadores. Observa que os princípios do cooperativismo estão integralmente presentes na cooperativa. Não obstante, esclarece as ambigüidades implicadas nesse processo de autonomização. Embora os catadores controlem integralmente seus trabalhos, autogerirem a cooperativa e acreditem existir igualdade e justiça em seu interior, o autor aponta para algumas reproduções de desigualdades que permeia a sociedade brasileira: diretores, presidentes (ambos eleitos democraticamente pelos cooperados) e funcionários da OAF, em virtude de seus conhecimentos e competências, tendem a querer mandar nos catadores.

No âmbito da identidade do morador de rua, Domingues Junior aponta a grande conquista dos catadores: de dependentes institucionais, eles vão construindo a possibilidade de controlar seus cotidianos a partir de seus próprios esforços. As relações de solidariedade e companheirismo entre os cooperados, assim como a utilização das instalações da cooperativa para fazer refeições e banhar-se, vão possibilitar a constituição de um lugar no mundo, um território familiar que oferece referências estáveis e um grupo de pertencimento no qual podem ser reconhecidos como pessoas dignas.

Assim, muitos deles se referem à cooperativa como suas “casas” ou “família” (embora a maioria possua residência fixa e tenha reconstituído vínculos familiares após o ingresso na cooperativa), conseguindo, a partir do trabalho cooperativo, reconstruir suas auto-estimas, atribuir um novo sentido à vida e traçar projetos futuros.

Sem embargo, da mesma forma que a questão da autonomia, também a cidadania é permeada por ambigüidades e contradições. Essa “reformulação da identidade”, o controle da própria vida, é contraposta à estigmatização social que sofrem pelo trabalho de catador, sendo comparados a “burros”e tidos como pessoas “sujas”. Defronte a essa estigmatização, é comum os catadores reproduzirem a “ideologia dominante” ao repassarem essas características às “pessoas de rua”, como sujeitos “que não querem nada com a vida” ou “que não vão pra frente”.

Essas ambigüidades, no entanto, não impedem que os catadores se constituam enquanto novos atores políticos na esfera pública. A partir de breve histórico sobre os movimentos de luta da população de rua, Domingues Junior explicita a importância dos membros da COOPAMARE na conquista de direitos para este contingente. Paralelamente à reformulação da identidade pessoal, surge assim uma identidade coletiva (o “nós” da COOPAMARE) que participa ativamente de manifestações, da proposta de soluções e de reivindicações para a ampliação e melhoria das políticas públicas dirigidas à população de rua.

Nesse sentido, entendemos que o livro de Domingues Junior apresenta importante relato das possibilidades e limitações do trabalho cooperativo como proposta de saída das ruas. A partir da formação de cooperativas, não apenas ocorre a geração de renda, mas, principalmente, a reestruturação de relações sociais solidárias que possibilitam a constituição de identidades pessoais firmadas em valores positivos, bem como a construção de identidades coletivas que participam como importantes atores políticos na luta por melhores condições de vida para a população de rua.

No interior dos diversos estudos realizados sobre a formação de propostas de economia solidária por pessoas em situação de rua1, pensamos que a pesquisa de Domingues Junior se destaca pelo pioneirismo, imparcialidade e pelo foco em questões tão necessárias, como o são a cidadania e autonomia das pessoas em situação de rua.

Indubitavelmente, o livro que ora apresentamos tangencia assuntos multifacetados e complexos, que vão desde a constituição da subjetividade da pessoa em situação de rua à avaliação dos espaços de participação atrelados às gestões municipais da cidade de São Paulo. Nesse itinerário, Domingues Junior não se prostra defronte os desafios de pensar processos como a construção de autonomia e exercício da cidadania frente às metamorfoses do mundo do trabalho e as possibilidades e limitações oferecidas pela autogestão cooperativa como nova organização do trabalho solidário. Considerando essa abrangência de temáticas abordadas, o livro é recomendado para estudantes e profissionais de diversas áreas do conhecimento que compõe as ciências sociais, além de pontuar questões em linguagem acessível a profissionais que atuam com a população e os próprios integrantes dos movimentos sociais protagonizados pela população em situação de rua.

Se a contínua luta pela construção da autonomia e cidadania pode ser o mote das reivindicações históricas da população em situação de rua, acreditamos que este livro oferece importante subsídio teórico que pode contribuir na práxis de transformação dessa realidade social.

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: ricardodebaterua@yahoo.com.br

recebido em 28/03/06

 

 

Nota

I Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade São Marcos e membro fundador do Fórum de Debates Sobre a População em Situação de Rua.
1 COUTO, Ana Magna Silva. Trabalho, cotidiano e sobrevivência – catadores de papel e seus modos de vida na cidade – Uberlândia – 1970-1999. Mestrado, Programa de História, PUC-SP, 2000; DOZZI, Carla Carusi. Cooperativas de catadores de papel – uma alternativa para moradores de rua. Trabalho de Conclusão de Curso, Psicologia, PUC-SP, 1999; DOZZI, Carla Carusi. Paradoxos e Ambigüidades de uma Cooperativa Popular de Produção: um estudo psicossocial. Mestrado, Departamento de Psicologia Social, PUC-SP, 2003; ESCURRA, Maria Fernanda. Sobrevivendo do lixo: população excedente, trabalho e pobreza. Mestrado, Escola de Serviço Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1997; HAYASHIDA, Érika Haruno. Economia Solidária, como alternativa à situação de rua. Relatório Final de Iniciação Científica, Faculdade de Serviço Social, PUC-SP, 2003; JUNCÁ, Denise Chrysóstomo de Moura. Mais que sobras e sobrantes: vida e trabalho no lixo. Doutorado, Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca/FioCRUZ. Rio de Janeiro, 2001; MATTOS, Ricardo Mendes.; FERREIRA, Ivan Bruno. Da negação do humano no sistema capitalista à negação humana do sistema capitalista: a reciclagem do lixo, da natureza e da sociedade pelo homem. Revés do Avesso, ano 13, n. 08, p. 17-24, ago. 2004; PASSADOR, João Luiz. Os sofredores de rua: estudo de caso da cooperativa de catadores de papel e papelão da Várzea do Glicério. Dissertação de Mestrado em Administração Pública e Governo na Fundação Getúlio Vargas, 1993.