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Estudos de Psicologia (Natal)

versão impressa ISSN 1413-294Xversão On-line ISSN 1678-4669

Estud. psicol. (Natal) vol.26 no.1 Natal jan./mar. 2021

https://doi.org/10.22491/1678-4669.20210008 

10.22491/1678-4669.20210008

TEMAS EM POLÍTICAS SOCIAIS: ASSISTÊNCIA SOCIAL E SISTEMA DE GARANTIA DE DIREITOS

 

Representações sociais da devolução na adoção: tensionamentos e estratégias possíveis1

 

Social representations of disruption in adoption: tensioning and possible strategies

 

Representaciones sociales de la devolución en la adopción: tensiones y posibles estrategias

 

 

Juliana Gomes FiorottI; Andréia Isabel GiacomozziI; Andréa Barbará da Silva BousfieldI; Ana Maria JustoI; Aline Daniela SauerI

IUniversidade Federal de Santa Catarina

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A concepção da adoção vem se transformando ao longo dos tempos. Apesar de ser uma medida irrevogável, a devolução de crianças e/ou adolescentes na adoção é recorrente. A devolução é o ato de desistência da adoção feito por parte dos adotantes, no qual as crianças ou adolescentes sofrem um novo rompimento de vínculos e retornam às instituições de acolhimento. A presente pesquisa teve o objetivo de compreender as representações sociais sobre a devolução de crianças e adolescentes na adoção para profissionais do Poder Judiciário e do Acolhimento Institucional. Realizou-se um estudo qualitativo que consistiu em entrevistas em profundidade com 30 profissionais. A análise de dados foi realizada com o auxílio do programa informático IRaMuTeQ. Como resultados, foram identificadas as dimensões constituintes das representações sociais da devolução na adoção e peculiaridades nos enunciados de profissionais no Acolhimento Institucional quando comparados aos profissionais do Poder Judiciário.

Palavras-chave: devolução; adoção; representação social; poder judiciário; abrigo.


ABSTRACT

The concept of adoption has been changing over time. Despite being an irrevocable measure, the return of children and / or adolescents during adoption is recurrent. The disruption is the act of abandonment of the adoption made by the adopters and in these cases, these children or adolescents suffer a new rupture of bonds and return to the host institutions. The present research had the objective to understand the social representations about the disruption of children and adolescents during adoption to professionals of the Judiciary and Shelters. A qualitative study was carried out, which consisted of in-depth interview with 30 professionals. Data analysis was performed with the aid of IRaMuTeQ software. As a result, the constituent dimensions of the social representations of devolution in adoption and peculiarities in the statements of professionals in Shelters were identified when compared to professionals from the Judiciary.

Keywords: disruption; adoption; social representation; judiciary; shelter.


RESUMEN

El concepto de adopción ha ido cambiando con el tiempo. A pesar de ser una medida irrevocable, el devolución de los niños y / o adolescentes en adopción es recurrente. El devolución es el acto de abandono de la adopción realizada por los adoptantes y en estos casos, estos niños sufren una nueva ruptura de lazos y regresan a las instituciones de acogida. La presente investigación tuvo el objetivo de comprender las representaciones sociales sobre el devolución de niños y adolescentes en adopción a profesionales del Poder Judicial y la Instituciones de Acogida. Se realizó un estudio cualitativo en el que se entrevistó a 30 sujetos en profundidad. El análisis de datos se realizó con la ayuda del software IRaMuTeQ. Como resultado, se identificaron las dimensiones constitutivas de las representaciones sociales de la devolución en la adopción y las peculiaridades en las declaraciones de los profesionales en Instituciones de Acogida en comparación con los profesionales del Poder Judicial.

Palabras clave: devolución; adopción; representación social; poder judicial; refugio.


 

 

Entre os diferentes modos de exercício da parentalidade, encontra-se a adoção. Compreendida como forma de construção familiar, em que se procuram pais e/ou mães para crianças e adolescentes que tiveram seus vínculos rompidos com as suas famílias consanguíneas, a adoção possibilita a crianças e adolescentes recriar vínculos significativos com uma nova família (Trindade, 2010; Weber, 1999).

A concepção de adoção vem se transformando ao longo dos anos. Incluída na legislação brasileira pela primeira vez, no ano de 1916, os adotantes deveriam obrigatoriamente não ter filhos biológicos e possuir no mínimo 50 anos (Silva, 2009; Weber, 2015). Ou seja, no início priorizava-se atender à necessidade dos adultos. Atualmente, as novas concepções focam o convívio familiar e a busca de famílias para crianças e adolescentes (Farias & Rosenvald, 2015).

As pesquisas sobre a adoção no Brasil versam sobre o processo de habilitação para adoção (Cecílio & Scorsolini-Comin, 2018), preparação para a adoção (Levy & Gomes, 2017; Sequeira & Stella, 2014), motivações para adoção (Giacomozzi, Nicoletti & Godinho, 2015; Gondim et. al, 2008) e diferentes configurações familiares na adoção (Rosa, Melo, Boris & Santos, 2016; Silva, Silva, Lopes & Frizzo, 2017). Alguns estudos brasileiros abordam a temática da convivência familiar e seus desafios na constituição de famílias adotivas (Peixoto, Giacomozzi, Bousfield, Berri & Fiorott, 2019), bem como realizam análise documental ou revisão de literatura sobre a devolução (Palacios, Sanchez-Sandoval & Leon, 2005; Rossato & Falcke, 2017). A partir disso, observa-se que o olhar específico para a devolução na adoção ainda é escasso, especialmente quando falamos da equipe profissional e de representações sociais sobre esse fenômeno.

A legislação brasileira atual recomenda que a adoção seja precedida de estágio de convivência com a criança ou adolescente, salvo exceções, em que já existe um vínculo pré-estabelecido entre adotantes e adotados (Lei nº 13.509, de 22 de novembro de 2017). Juridicamente, é possível não concretizar o processo de adoção ao longo deste período. Por sua vez, alguns casos de "devoluções" ocorrem mesmo após o fim do estágio de convivência e findado o processo de adoção. Neste caso, há uma nova destituição do poder familiar, desta vez da família adotiva (Dias, 2005). Assim, apesar de irrevogável, a devolução na adoção é recorrente. Trata-se do ato de desistência da adoção feito por parte dos adotantes, quando as crianças ou adolescentes sofrem um novo rompimento de vínculos e retornam às instituições de acolhimento (Riede & Sartori, 2013).

Estudos têm buscado compreender quais fatores poderiam ser preditores para a devolução na adoção. Tais estudos verificaram associações relacionadas à história pregressa da criança, ao contexto da família adotiva e também fatores associados às equipes de adoção (Child Welfare Information Gateway, 2012; Coakley, 2005; Festinger, 2002; Palacios et al., 2005; Smith & Howard, 1991; Selwyn, 2016). As experiências prévias das crianças estão relacionadas à idade no momento da adoção, o número de lares anteriores e a já terem passado por um processo adotivo que não se concretizou. O contexto da família adotante relaciona-se à idade em que as pessoas optam pela adoção, falta de suporte social, expectativas não realistas, bem como à falta de concordância entre o casal sobre o projeto adotivo. Já no que diz respeito às equipes de adoção, a falta de informações acerca do histórico da criança e a alta rotatividade de profissionais foram fatores que também estiveram associados a um maior risco de devolução.

Pesquisa de Barbosa-Ducharne e Marinho (2018) buscou identificar a incidência, riscos e razões justificadoras para a interrupção da adoção na fase compreendida como pré-adoção, equivalente à terminologia brasileira "estágio de convivência". Foi verificado que no período entre 2006 e 2009, de um total de 2.015 colocações em adoção, houve um total de 117 adoções interrompidas na fase pré-adoção, o que significa que uma em cada 17 colocações pré-adotivas terminaram antes da formalização no tribunal. O relato feito pelos pretendentes que optaram por interromper o processo estava associado ao mau comportamento da criança (50,7% dos casos), às dificuldades no desenvolvimento de vínculos com a mãe (34,8%) e com o pai (29,0%), e às dificuldades da criança em lidar com a separação da família consanguínea (18,8%).

O interesse desta pesquisa debruça-se sobre o cotidiano dos profissionais atuantes, tanto nas varas de infância quanto na proteção da criança e do adolescente e das casas de acolhimento institucional, que, por vezes, já vivenciaram experiências profissionais relacionadas à devolução na adoção (Ghirardi, 2008). Estudos realizados com profissionais de varas de infância que buscaram compreender as motivações para a devolução na adoção identificaram a responsabilização das crianças e adolescentes para a tomada da decisão da devolução, sob estigmas relacionados ao preconceito, indiferença e violência psicológica. As motivações também estariam atreladas a divergências do casal acerca do desejo da adoção, diferença entre a expectativa que se tinha acerca da maternidade/paternidade e realidade que se apresentava (Carvalho, 2017; Silva, 2017). Destaca-se que a escolha por trabalhadores do serviço de acolhimento e do poder judiciário ocorreu pois são profissionais diretamente envolvidos na avaliação, acompanhamento de estágio de convivência e elaboração de documentos técnicos (psicólogos e assistentes sociais), bem como realizam a preparação da criança para a adoção e acompanham o retorno das crianças/adolescentes à instituição de acolhimento em caso de devolução (equipes do acolhimento institucional - coordenação e equipe técnica). Ademais, compreende-se que as representações sociais desses profissionais podem atravessar suas práticas de trabalho, influenciando nas atuações frente aos processos, desde o momento de habilitação para adoção (Cecílio & Scorsolini-Comin, 2018; Silva et al., 2017).

Diante do exposto, a presente pesquisa buscou compreender as representações sociais desses grupos de profissionais acerca deste fenômeno. A partir do aporte teórico da Teoria das Representações Sociais - TRS, tal como concebem Moscovici (1961/2012) e Jodelet (1989), enquanto sistema de crenças, significados e concepções compartilhadas entre os sujeitos sociais e passíveis de investigação científica. Além de auxiliar na compreensão do modo como determinados grupos constroem saberes para expressarem sua identidade, a teoria das representações sociais possibilita a identificação de crenças, imagens, atitudes, valores e significados construídos e partilhados pelos grupos (Moscovici, 2009).

Por meio da sua abordagem dimensional, Moscovici (1978) explica sobre a construção das representações sociais. Compreende três dimensões para as representações, que são: informação, atitude e campo. A primeira diz respeito à sistematização dos conhecimentos que um determinado grupo possui sobre um objeto social. A segunda dimensão refere-se à organização das pessoas em relação ao objeto que envolve um componente afetivo e, por fim, a dimensão campo, que se relaciona à noção de imagem. Assim, as representações sociais são caracterizadas como um processo criativo, que é elaborado cognitivo e simbolicamente e pode servir de orientação aos comportamentos dos sujeitos (Moscovici, 1961/2012).

A ancoragem e objetivação são processos constituintes das Representações Sociais. A ancoragem é entendida como um processo de reconhecimento de objetos não familiares com base em sistemas previamente conhecidos. No que diz respeito à objetivação, ela ocorre em virtude do processo em que conceitos ou fenômenos abstratos são materializados em realidades concretas. Dessa forma, uma das finalidades de todas as representações é tornar o não familiar em algo familiar (Moscovici, 2003).

Segundo Moscovici (1981), as representações sociais são concebidas na inter-relação dos universos consensuais e universos reificados. O universo consensual é constituído pelo conhecimento leigo, partilhado por pessoas não especialistas. Já o universo reificado, apresenta o conhecimento científico e especializado e é constituído de modo hierárquico (Chaves & Silva, 2011). Nessa articulação de saberes, são difundidas as representações sociais (Moscovici & Hewstone, 1986).

Parte-se do pressuposto de que as ações dos profissionais que operam no poder judiciário e no acolhimento institucional estão embasadas além do conhecimento técnico (universo reificado) adquirido ao longo de sua formação, mas também em representações sociais de vários objetos sociais (universo consensual), como a devolução na adoção. Especificamente, o grupo de profissionais do acolhimento institucional poderá contribuir, pois vivenciam o retorno da criança ou adolescente ao acolhimento. Os profissionais do poder judiciário, por sua vez, realizam a avaliação dos candidatos à adoção, acompanham as famílias no período de aproximação e estágio de convivência, realizando intervenções e buscando evitar que a devolução na adoção ocorra. Nesse sentido, o conhecimento das representações sociais destes grupos pode servir de apoio ao desenvolvimento de práticas e até mesmo políticas públicas, a fim de prevenir e diminuir o insucesso na adoção. Assim, essa pesquisa buscou compreender quais as representações sociais deste tema para profissionais técnicos do poder judiciário e profissionais do acolhimento institucional de Santa Catarina.

 

Método

Realizou-se um estudo qualitativo exploratório (Robson, 2002) por meio de entrevistas em profundidade com objetivo de compreender as representações sociais acerca da devolução de crianças em processos de adoção.

Participantes e Critérios de Inclusão

O estudo abrangeu 30 profissionais de seis comarcas e 10 instituições de acolhimento pareados por equipes: poder judiciário e rede de acolhimento institucional. O número de entrevistas seguiu os critérios de saturação dos dados em pesquisas de natureza qualitativa (Ghiglione & Matalon, 1993). Optou-se pela escolha de equipe técnica do poder judiciário, composta por psicólogas e assistentes sociais, tendo em vista que estes profissionais lidam cotidianamente com casos de adoções, estágio de convivência e atuam diante dos processos que não foram concretizados pela devolução na adoção; ou que foram finalizados, mas após a finalização, houve a devolução. Escolheu-se profissionais do acolhimento institucional porque vivenciam o cotidiano das crianças ou adolescentes, atuam na preparação delas para adoção, além do retorno para a casa de acolhimento quando ocorre a devolução. Ou seja, em ambos casos, os profissionais, em suas práticas cotidianas, atuam frente à adoção e à possibilidade ou ocorrência da devolução ao longo do processo adotivo. No que diz respeito aos critérios de inclusão, foram considerados: ter sido profissional atuante da equipe técnica do poder judiciário em comarcas do Estado de Santa Catarina ou da rede de acolhimento institucional do mesmo estado, por no mínimo 6 meses e a concordância em participar do estudo.

O recrutamento dos participantes aconteceu por meio de contato telefônico com as instituições de acolhimento institucional e do poder judiciário, através da técnica snowball sampling. A partir desse contato inicial, verificou-se o interesse dos profissionais em participarem da pesquisa e, posteriormente, foi agendada a entrevista. As entrevistas aconteceram a partir da disponibilidade de acesso aos profissionais e ocorreram nos locais de trabalho dos participantes, de modo individual, preservando todos os cuidados éticos, conforme apontado na Resolução 466 de 2012, do Conselho Nacional de Saúde. Os profissionais que se dispuseram a participar do estudo assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). O projeto foi submetido à avaliação do Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos (CEPSH) e obteve parecer favorável (nº 3.334.837).

Instrumento e técnicas de coleta de dados.

Utilizou-se técnica de entrevista em profundidade visando compreender conteúdos relacionados à devolução na adoção. A entrevista em profundidade consiste na exploração de um ou mais temas de forma extensa. Quando necessário, são utilizadas técnicas interventivas (repetição das últimas palavras ditas pelo entrevistado, aceno de cabeça, entre outras) a fim de estimular a fala dos entrevistados sobre a temática. Desse modo, as entrevistas trouxeram questões norteadoras relacionadas aos casos de devolução, buscando o conhecimento compartilhado desse fenômeno (Ghiglione & Matalon, 1993). Ao final da coleta, foi utilizado um instrumento sociodemográfico a fim de investigar as variáveis de caracterização dos participantes da pesquisa. As entrevistas foram audiogravadas e posteriormente transcritas na íntegra e de forma literal, compondo o corpus de análise.

Análise de Dados

Os dados textuais obtidos das entrevistas foram analisados com o auxílio do programa informático IRaMuTeQ - Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires, realizou-se uma Classificação Hierárquica Descendente (CHD), um tipo de análise textual multivariada, na qual a distribuição de vocabulário pelas classes é feita pela semelhança do vocabulário dos segmentos de texto do corpus inicial. Para cada classe, pode-se identificar os segmentos de texto mais característicos, permitindo a contextualização do vocabulário típico (Camargo & Justo, 2013). Em pesquisas sobre representações sociais, tendo em vista o status que elas concedem às manifestações linguísticas, estas classes podem revelar conhecimentos do senso comum ou campos de imagens sobre um determinado objeto, ou ainda apenas aspectos de uma mesma representação (Veloz, Nascimento-Schulze & Camargo, 1999). Os dados coletados provenientes do instrumento sociodemográfico foram submetidos à análise descritiva (média, desvio-padrão e frequência) com o emprego do software PSPP, versão 1.0.1. A interpretação dos dados foi pautada na literatura da área e na Teoria das Representações Sociais de Moscovici (1961/2012).

 

Resultados

A presente pesquisa contou com a participação de 30 profissionais atuantes em instituições de acolhimento ou no poder judiciário no Estado de Santa Catarina, Brasil. Sendo 28 mulheres e dois homens, 15 assistentes sociais, 13 psicólogas, uma fonoaudióloga e um jornalista, com idade entre 25 e 57 anos (M = 43 anos e 6 meses; DP = 8 anos e 1 mês). Por ser maioria profissionais do sexo feminino, optou-se por utilizar-se termos femininos na descrição dos resultados.

Quanto ao nível de escolaridade, a maioria das participantes possui Ensino Superior em nível de Especialização (23), seguido de cinco que possuem Ensino Superior apenas e dois que possuem Ensino Superior a nível Mestrado. Em relação ao estado civil predominaram aquelas que se declararam casadas (18), cinco participantes se declararam solteiras, quatro separadas e três estão em uma relação estável. Quanto à quantidade de filhos, 20 participantes possuem filhos e 10 não. Nenhuma participante possui filhos por meio da adoção.

As entrevistas foram transcritas e organizadas em um único corpus textual,compondo o material de análise. Ao submeter o corpus a uma CHD, o material dividiu-se em 4720 segmentos de textos, desses 80% foram retidos na análise.

O corpus foi dividido em cinco classes. A classificação indica contextos lexicais, que se associam ou não a variáveis descritivas, podendo indicar aspectos de uma RS ou indicadores de diferentes RS (Veloz et al., 1999). As palavras apresentadas foram selecionadas por meio de seus escores de quiquadrado em relação às classes, com valor igual ou maior que 3,84 (p < 0,05 para gl = 1). Observa-se na Figura 1 as classes originadas pela CHD nomeadas qualitativamente pela pesquisadora que se baseou nos segmentos de textos pertencentes a cada classe para realizar a análise.

 

 

A primeira e maior classe do corpus foi a classe 5, nomeada de "Romantização da adoção", trouxe questionamentos sobre a idealização que os adotantes constroem acerca da filiação e, sobretudo, a necessidade de melhor preparação e acompanhamento destes. A fim de elucidar esses aspectos, a seguir um trecho: "Então aquele filho ideal narcisado não é, e aí tudo aquilo que se tinha como castelinho de adoção cai e aí "não quero esse filho que eu tenho, eu quero um filho que eu idealizei" (Participante 09, Psicóloga, Poder Judiciário).

Assim, o contraste entre a criança real e a criança idealizada pelos adotantes aparece como conteúdo comum às entrevistadas, bem como a necessidade das profissionais de proteção ao bem-estar da criança, focando o trabalho com os pretendentes à adoção visando desconstruir esse filho ideal para poder receber o filho real que virá. Ainda, as participantes percebem uma falta de estrutura da rede, falta de um acompanhamento sistematizado pré e pós adoção por parte da justiça, entendendo que tais estratégias poderiam psicoeducar essas famílias para que estivessem melhor preparadas no momento do estabelecimento da relação parental, assim como consta em alguns trechos:

muitas vezes essa família teve uma preparação relativamente frágil durante esse período que ela está habilitada para adotar, esses pretendentes ficam ali, tem uma capacitação 2, 3, 4, encontros não sei quantos encontros são. Mas no momento em que a adoção acontece surgem os dilemas, porque muitas vezes vem crianças que já vêm de uma conjuntura sócio familiar de territórios diferentes e que não há um processo de acompanhamento pós adoção e esses conflitos muitas vezes geram a desistência. Nós tivemos situações, 2017 foi um ano que nós tivemos muitas devoluções de adoção principalmente de crianças maiores em razão dessa falta de acompanhamento. Tem uma lacuna que precisa ser preenchida

(Participante 05, Assistente Social, Casa Lar).

A segunda subdivisão originou as Classes 1 e 3. A Classe 1, intitulada "A culpa não é da criança", evidencia a atitude desfavorável em relação à devolução na adoção e traz percepções acerca do sofrimento que as crianças passam diante de uma situação de devolução, como demonstram os trechos a seguir: 'Na família biológica não deu nada certo, aí a gente construiu todo um processo dizendo "não, não é tua culpa, tu sabes que pode ter outras possibilidades de uma nova família" (Participante 12, Assistente Social, Casa Lar).

Ainda responsabilizando os adultos pela devolução, algumas participantes, em especial vinculadas ao Poder Judiciário, trazem relatos associados a um entendimento mais amplo do fenômeno, buscando compreender os adotantes e tentar realizar um acolhimento destes, encaminhamento para atendimento psicoterápico, o que pode auxiliar no manejo com as demandas latentes.

A gente tem uma noção de que as pessoas que devolvem são pessoas ruins, não tem sentimento "que horror, que desumano fazer isso com uma criança", mas a gente também esquece que são pessoas que chegam no limite do esgotamento do dia a dia.

(Participante 18, Psicóloga, Poder Judiciário)

Já as profissionais da Casa Lar apresentam falas mais associadas a uma necessidade de reparação financeira dos adotantes que devolveram, como destaque no trecho abaixo:

eu acho que todo mundo que devolve tem que se responsabilizar por essa criança de alguma forma. Vai devolver, mas vai pagar uma pensão, isso para mim é muito. Não pode brincar disso, você não quis entrar nisso embarcar na história de ter um filho, agora você não quer mais? Então você vai pagar uma pensão vai dar um auxílio de algum jeito, isso para mim tem que ser.

(Participante 26, Psicóloga, Casa Lar)

Na classe 3 pode ser verificada a dimensão informação, em que as profissionais apresentam os preditores da devolução que eles reconhecem a partir do trabalho com a temática. Nesse sentido, seus conteúdos envolvem os desafios que surgem na relação parental, bem como dificuldades comportamentais atribuídas às crianças adotivas. As entrevistadas relatam a atribuição de comportamentos negativos em decorrência de estereótipos e reforça a diferença entre o imaginário e o real de uma relação parental adotiva:

quando chega o real, claro que tem choque só que às vezes as pessoas não conseguem lidar com isso, com esse filho real, com essas demandas que têm sempre. Os testes às vezes já iniciam no período da aproximação e são testes muito fortes que se os pais não estiverem preparados para essa situação, não conseguirem vai ficando meio complicado.

(Participante 07, Psicóloga, Casa Lar)

O fato de o casal já ter filhos também foi relatado como dificultador pois os conflitos entre as crianças também é algo que geralmente não é pensado previamente pelos adotantes:

os pais adotivos trouxeram que ela era uma menina muito agressiva, tinha um comportamento de bater e eles já tinham um outro filho, então às vezes é isso, porque uma coisa é quando você imagina que vá acontecer, outra coisa é realmente o que vai acontecer, são duas coisas muito diferentes.

(Participante 20, Psicóloga, Casa Lar)

A vivência de violências diversas na história da criança nem sempre é previamente conhecida pela equipe do judiciário e, portanto, quando a criança revela para a família verbalmente ou através de comportamento sexualizado, mexe com tabus dos adultos sobre a sexualidade das crianças, o que é bastante difícil de lidar:

comportamentos que as pessoas não aceitam, tipo perceber que a criança teve algum contato em relação a homossexualidade e poder envolver mais filhos, medo de que os outros filhos sejam abusados por essas crianças que foram adotadas como se os próprios filhos não pudessem ser os abusadores, então a rotulação que tem na própria adoção.

(Participante 30, Psicóloga, Casa Lar)

A classe 2 nomeada de "A justiça é cega" e a dimensão campo se reflete nessa classe, uma vez que aborda o contexto onde ocorre a devolução. Nessa perspectiva, os relatos giram em torno das possíveis falhas no sistema de justiça, da aversão sentida pelas profissionais sobre a devolução e da objetificação da criança.

Já vi devoluções de chegarem aqui na comarca, deixar a criança, virarem as costas e sair ou largarem as trouxinhas da criança do adolescente tirar do carro e deixar no meio fio, uma técnica tem que pegar porque eles pegaram e foram embora se livraram do problema.

(Participante 16, Assistente Social, Poder Judiciário)

As participantes referem-se a uma impossibilidade da devolução, visto que a adoção é um ato irrevogável, mas que ainda assim é um fenômeno que ocorre cotidianamente:

acho que isso (devolução) não deveria acontecer, mas também por que hoje acontece? Porque hoje a justiça não impõe lei para isso, porque uma devolução de uma adoção, tudo bem não sanar aquele sofrimento daquela criança, mas aquela família vai ser punida porque ela optou por uma adoção ela que foi lá ela que procurou ela que fez o movimento teve o filho e devolveu.

(Participante 10, Assistente Social, Poder Judiciário)

Algumas situações não eram de adoções de processos concluídos, mas eu considero devolução igual porque as crianças já estavam com a perspectiva de serem filhos, já era uma guarda com fins de adoção (Participante 21, Assistente Social, Poder Judiciário).

Por fim, a classe 4 trouxe presentes elementos relacionados às marcas que a devolução deixa. O trecho a seguir denota esse contexto:

ao meu ponto de vista tem que fazer um olhar para poder fazer essa separação porque agora tem um rompimento, uma separação, mas não se rompe assim tão fácil nem que seja um mês, nem que seja às vezes até um passeio, tem um cuidado pra se fazer.

(Participante 24, Assistente Social, Poder Judiciário)

Com relação à alteração do perfil, algumas participantes destacam que esse pode ser um fator de risco uma vez que, em alguns casos, a ampliação ocorre muito mais por uma ansiedade, com o intuito de diminuir o tempo de espera, do que por estarem de fato resolvidos quanto a questões de faixa etária, sexo ou grupo de irmãos. O trecho a seguir denota essa questão: é muito comum a devolução quando o casal amplia o perfil. "Vai ser difícil para adotar de repente uma criança com esta idade, vou ficar tanto tempo na fila, então vou ampliar ou vou adotar dois" (Participante 28, Assistente Social, Poder Judiciário).

Resumindo os achados, observou-se uma atitude negativa diante da devolução, sendo esse fenômeno algo que não deveria acontecer. O principal apontamento que as participantes fazem é a necessidade de acompanhamento tanto no momento preparatório para a adoção, quanto no momento pós adoção, pois, em suas percepções, a devolução poderia ser evitada por meio de intervenções qualificadas. Além disso, observaram como dificultadores do estabelecimento da relação adotiva: adotantes que já possuem filhos, provisoriedade da guarda para fins de adoção, comportamento sexualizado das crianças, comportamento agressivo e atribuição de estereótipos associados às crianças e adolescentes.

No que diz respeito às diferenças entre profissionais de Casa Lar e profissionais do Poder Judiciário, percebe-se que as profissionais das casas lares apresentam maior preocupação com os desafios e as demandas relacionadas a comportamentos da criança ou adolescente, entendidos como inadequados ou aceitáveis pelos pretendentes à adoção. Ademais, a preocupação com os estereótipos que estão atrelados às crianças acolhidas esteve presente nas falas destas profissionais. No que tange às profissionais do Poder Judiciário, estas trouxeram elementos mais relacionados a questões jurídicas e ao modo como os pretendentes conduzem as devoluções. Ainda, essas profissionais relatam a necessidade do fortalecimento dessas famílias.

 

Discussão

A presente pesquisa teve o objetivo compreender as representações sociais sobre a devolução de crianças e adolescentes na adoção para profissionais do Poder Judiciário e do Acolhimento Institucional. À vista disso, realizou-se um estudo qualitativo em que foram entrevistados 30 participantes, divididos entre profissionais do Poder Judiciário de Santa Catarina e profissionais de acolhimento institucional da Grande Florianópolis. A análise do corpus textual permitiu a nomeação de 5 classes emblemáticas nas entrevistas: Romantização e idealização da adoção; Culpabilização e responsabilidade na devolução na adoção; Desafios; Autorização para devolução e Marcas da devolução.

No que se refere à classe de número 5, essa é composta por elementos relacionados a romantização e idealização como fatores atrelados a um possível insucesso na adoção, estando assim mais associada a representação da adoção e seus desdobramentos, bem como elucidando processos de ancoragem (Moscovici, 2012) na representação estudada. Estudo de Costa e Kemmelmeier (2013) trazem a idealização como um elemento marcante dos pretendentes à adoção. As autoras evidenciam que a expectativa surge desde o momento da habilitação na adoção, quando ocorre a descrição das características físicas da criança desejada, mas que essa expectativa se prolonga e expande até o momento de espera e chegada dos filhos. No mesmo sentido, Ghirardi (2015) aponta que expectativas extremas são depositadas na criança que chegará e que tal questão pode ser um risco para a ocorrência da devolução, pois os adotantes idealizam uma criança diferente do real e depois não conseguem lidar com suas frustrações.

Para além de desconstruir a romantização na adoção, torna-se necessário romper com a concepção de uma família ideal, historicamente construída (Machado, Ferreira & Seron, 2015). Pode-se entender que a idealização do filho adotivo é atravessada pela concepção de ideal de família. A representação de família é presente no imaginário social como aquela fundamentada em laços consanguíneos, com conotação de permanente (Schettini, Amazonas & Dias, 2006).

Um modo de desconstruir e/ou ampliar tais concepções pode se dar por meio dos cursos preparatórios à adoção previstos por lei, que devem ser ofertados pelas comarcas. Pesquisa de Flora e Porto (2019) fala da importância de se problematizar a idealização do filho adotivo perfeito, que respeita todas as regras, que se adapta rapidamente, que será um bom aluno e que não se lembrará de sua história. O autor refere que o curso ofertado pelo Poder Judiciário pode servir como dispositivo para uma reflexão acerca dessa idealização. Ainda, em seus resultados, identifica que os pretendentes ao darem início do projeto adotivo se pautam em uma visão caritativa e romantizada da adoção que é construída a partir do senso comum.

Tal visão romantizada foi um elemento trazido pelas participantes da presente pesquisa. Entendendo as representações sociais como uma modalidade de saber do senso comum a respeito de um determinado objeto, que são difundidas por diferentes modos de comunicação e interação (Jovchelovitch, 2011), pode-se refletir que o processo de ancoragem da adoção possui uma representação vinculada à romantização e idealização de família. Esta representação pode ter consequências negativas para o estabelecimento da relação entre pais e crianças, pois produz expectativas irreais da configuração familiar que irá se constituir por meio da adoção. O entendimento das participantes da pesquisa foi de que a romantização/idealização pode ser um fator de risco para a devolução na adoção, bem como a falta de preparo real para o projeto adotivo.

Moscovici (1978) propõe a abordagem dimensional das RS, sendo esta a utilizada para interpretar os dados desta pesquisa. Nesta perspectiva, os conteúdos de uma representação se organizam em três dimensões: a informacional, a atitudinal e a de campo. A dimensão informacional refere-se tanto à quantidade quanto à qualidade de um determinado conhecimento compartilhado por um grupo social acerca de um objeto. A dimensão atitudinal é voltada à tomada de posição frente a um objeto socialmente relevante para um grupo específico, seja favorável ou não. A dimensão campo diz respeito aos conteúdos concretos e limitados das imagens e proposições de um objeto relevante para um grupo. Assim, por meio da análise de resultados gerados pelo corpus textual foi possível identificar as dimensões das RS da devolução na adoção: dimensão atitude, dimensão campo e dimensão informação.

A classe 1 diz respeito à dimensão atitude. Nela são manifestas atitudes negativas que profissionais têm a respeito do fenômeno devolução na adoção. A ideia presente nessa dimensão representacional remete à devolução como algo que não deveria ocorrer, bem como ao sofrimento que as crianças vivenciam diante da devolução na adoção, assim como os achados no estudo de Muniz (2016), em que foram identificados aspectos associados a um posicionamento majoritariamente desfavorável à devolução na adoção por profissionais de casas lares. Ainda, a classe 1 menciona a urgência em responsabilizar os adotantes que desistem do processo adotivo, realizando a devolução das crianças/adolescentes. Na presente pesquisa observou-se que os estereótipos atribuídos às crianças e adolescentes acolhidos podem facilitar essa culpabilização direcionada. Ao mesmo tempo, a capacidade de entendimento e maturidade dos adotantes pode ser entendida como critério para que a responsabilidade não seja da criança e sim dos adultos.

No que diz respeito à divulgação da adoção nos meios midiáticos, estudo realizou uma análise do material discursivo disponibilizado no site da Associação Nacional de Grupos de Apoio à Adoção (ANGAAD) e matérias do Jornal Folha de S. Paulo veiculadas durante o período de 2009 a 2014. Foram identificados diferentes atributos que são mobilizados na construção da identidade do filho adotivo: abandono, uma suposta periculosidade do filho adotivo; assimetria entre filhos adotivos e consanguíneos; a ideia de que os filhos adotivos possuem uma predisposição para apresentarem qualquer distúrbio psicológico e demais problemas comportamentais (Duque, 2016). Foi possível observar, na presente pesquisa, alguns destes atributos, tais como a suposta periculosidade associada ao filho adotivo, a diferença entre o tratamento dado ao filho adotivo com relação ao consanguíneo e a atribuição de problemas comportamentais. Essas questões foram trazidas pelas participantes da presente pesquisa como justificativas dificultadoras para o estabelecimento da relação parental, levantadas por adotantes que efetivaram devoluções.

É cultural em nossa sociedade a busca por uma culpabilização. Entre as funções essenciais das representações sociais (Abric, 1998), explica-se que as RS possuem função justificadora que possibilita aos sujeitos justificar as tomadas de posição e os comportamentos. Assim, podemos entender que os profissionais participantes da pesquisa trouxeram elementos representacionais atrelados a responsabilidade dos adultos no processo de adoção, bem como a necessidade de responsabilização destes, no caso de devolução.

No que diz respeito à responsabilização dos adotantes em caso de devolução na adoção, alguns autores discutem essa questão (Caires Rocha & Mendes, 2019; Moreira & Marinho, 2019; Rezende, 2014), refletindo a necessidade de se avaliar a responsabilização civil, a depender do caso (Rezende, 2014), bem como problematizam a importância da responsabilização civil, ainda que não exista impedimento legal para o abandono antes do trânsito em julgado (Caires Rocha & Mendes, 2019). A importância e a obrigatoriedade da responsabilização dos adultos foi ponto comumente levantado pelas profissionais entrevistadas na presente pesquisa. O entendimento é de que os danos causados às crianças não possuem um valor específico, mas que com a responsabilização seria possível encaminhar as crianças para atendimentos psicológicos e demais acompanhamentos necessários em virtude da devolução.

No que tange a classe "Desafios na relação parental", envolve aspectos relacionados aos desafios que surgem no período pós adoção. Nesta classe, verifica-se a dimensão informação, em que os profissionais apresentaram os fatores preditores que são percebidos por meio do trabalho com a temática da adoção e devolução. As profissionais questionaram as dificuldades comportamentais que os adotantes atribuem às crianças adotivas. Ainda, trouxeram aspectos que reforçam a diferença entre a criança imaginária e a criança real na relação parental adotiva.

Foi possível observar, no presente estudo, que a necessidade de preparação dos adotantes foi um elemento levantado em comum entre as participantes. Alguns estudos trazem a discussão de como grupos de apoio à adoção ou grupos ofertados pelo juizado da infância e juventude podem servir como espaço de acolhimento, reflexão e desconstrução de estereótipos e idealizações atreladas à adoção. Grupos como esses podem servir de apoio ao Poder Judiciário, como um complemento ou continuação do grupo que ocorre na modalidade de curso preparatório previsto em lei (Fiorott, Palma & Ecker, 2019; Levy & Gomes, 2017; Menezes & Dias, 2018; Sequeira & Setella, 2014). A preparação em grupo pode ser uma estratégia para que nesse período em que os pretendentes ficam mais distantes do Poder Judiciário, em que finalizam o processo de habilitação e aguardam pela chegada dos filhos, possam refletir acerca do projeto adotivo, ter trocas de experiências com pares e um espaço de acolhimento de angústias e ansiedades (Fiorott et al., 2019).

O'Dell, McCall e Groark (2015) mencionam que o acompanhamento de diferentes áreas profissionais tais como educadores, médicos, psicólogos, rede de apoio e intervenções são importantes para garantir esse acompanhamento antes e depois da adoção. Entende-se como primordial a busca por programas mais eficazes de treinamento pré-adoção para pais e mães bem como ferramentas de preparação para crianças, visto que durante a adoção eles enfrentam uma crescente necessidade de serviços de suporte. Assim, quanto maior o suporte e ferramentas, mais estratégias de resolução de conflitos os adotantes terão para prosseguirem com o projeto adotivo.

No que diz respeito à classe "A justiça é cega", nela ressalta-se o contexto onde ocorre a devolução. Ainda, houve uma representação comum entre as participantes: a devolução como algo que não deveria acontecer, com uma atribuição negativa. Perante a legislação brasileira, toda adoção é irrevogável (Lei nº 13.509, de 22 de novembro de 2017). Nesse cenário, a justiça não reconhece o conceito de devolução, tendo como única possibilidade prevista a restituição da criança durante o período denominado estágio de convivência, que antecede a decretação da sentença da adoção, no qual os requerentes à adoção têm apenas a guarda provisória da criança, podendo desistir em virtude de dificuldades vivenciadas na relação. Majoritariamente, as profissionais entrevistadas na presente pesquisa entendem que, independentemente do estágio da adoção, o retorno da criança para o serviço de acolhimento, após a ida para a adoção, configura em devolução na adoção.

Durante o estágio de convivência, adotantes e adotados podem encontrar desafios para sustentar o processo da adoção e o ato de devolução da criança representa uma saída para os variados conflitos experimentados na relação (Abrahão & Parrão, 2019; Ghirardi, 2015). Tais questões são problematizadas pelos profissionais participantes da pesquisa, em especial do Poder Judiciário, que questionam essa "autorização" para a devolução, que é ancorada no imaginário dos adotantes como se o estágio de convivência pudesse ser um período de teste. Ainda que o estágio possa ter finalidade parecida, os profissionais questionaram o modo como esse período é conduzido pelos adotantes, que muitas vezes optam pela devolução sem demonstração de preocupação com o bem-estar da criança ou ainda alegando justificativas associadas a problemas comuns do desenvolvimento infantil e do estabelecimento de vínculos parentais. Assim, a crítica vai para a utilização do estágio de convivência como pretexto para uma desistência "mais fácil", em que juridicamente a adoção propriamente dita ainda não ocorreu.

O estudo de Frassão (2000) considera que as expectativas e motivações dos adotantes na busca por um filho pode ser um fator determinante para o insucesso na adoção, bem como a "guarda" como uma forma de colocação de crianças e adolescentes em famílias substitutas, favorece a característica provisória e revogável dessa relação. Desse modo, a estrutura atual, que permite a saída para estágio de convivência com o termo de guarda provisória poderia ser um facilitador para que os adotantes desistam antes do trânsito em julgado da adoção, em que o processo é findado.

Por fim, a classe "marcas da devolução" em que também se identifica a dimensão campo, trouxe elementos associados às consequências da devolução, bem como a ampliação do perfil escolhido para a adoção como um possível fator de risco para a devolução. Nos casos de modificação do perfil inicial desejado, torna-se necessária a reflexão acerca do projeto adotivo dos pretendentes, incluindo sua autoanálise sobre a capacidade de desenvolver vínculos afetivos com uma criança maior, lidar com o preconceito associado a crença de que crianças maiores serão "mais problemáticas", bem como refletir sobre a trajetória de vida já percorrida pela criança/adolescente e a relação com possíveis problemas futuros. Assim, há a preocupação de que a mudança de perfil esteja atrelada à ansiedade dos pretendentes em antecipar a chegada do filho e não a uma concepção ampliada da adoção, o que pode causar insucesso no projeto adotivo (Mello, Luz & Esteves, 2016).

Os adotantes ou os pretendentes à adoção justificam o desejo de adotar um bebê pelo receio de se depararem com "uma criança difícil". Na verdade, crianças maiores demandam de seus pais adotivos maior disponibilidade afetiva e capacidade de integração ao novo ambiente familiar, pois é comum terem vivido sua infância mais precoce em um meio quase sempre caótico, marcado por relações de violência e abandono (Levy, Diuana & Pinho, 2009). Nesse contexto, a preocupação dos profissionais na presente pesquisa demonstrou o cuidado em se certificar qual a real motivação pela ampliação do perfil, evitando que essa se dê em virtude de ansiedades e que os adotantes estejam cientes das mudanças que irão ocorrer no caso da chegada de uma criança maior.

Por meio do presente estudo foi possível perceber que existe um conjunto de diferentes objetos de representações sociais que se imbricam na representação de devolução na adoção, tais como: adoção, família, criança. Assim constituindo-se um sistema de representações sociais que engloba o fenômeno devolução na adoção. Desse modo, nota-se que a representação social deste fenômeno é envolvida por representações sociais primárias que estão associadas ao conceito família e à compreensão do que é a adoção.

Destaca-se que os diferentes contextos (Casa de Acolhimento X Poder Judiciário) nos quais as participantes estavam inseridas influíram na maneira como elaboram suas representações acerca da devolução na adoção, visto que o sentimento de pertença a determinada categoria faz com que se construam diferentes representações sociais de um mesmo fenômeno (Souza & Camargo, 2002). Profissionais das casas lares trouxeram elementos relacionados a preocupação com a criança e adolescente, com os estereótipos atribuídos a estes, bem como a importância de uma preparação para a parentalidade adotiva. Profissionais do poder judiciário apresentaram reflexões acerca da responsabilidade dos adotantes e injustiça diante da devolução, ao mesmo tempo em que trouxeram a importância de pensar junto a esses adotantes estratégias de enfrentamento dos desafios antes que a devolução ocorra, visando minimizar os riscos.

Ainda que alguns profissionais reflitam sobre a importância de proporcionar acompanhamento especializado a esses adotantes, pontua-se que, muitas vezes, eles se mostraram distantes dessa discussão, projetando a problemática da devolução nas famílias adotivas. Compreende-se que tal posicionamento também pode se dar devido às fragilidades do contexto do sistema judiciário e acolhimento institucional, que, por vezes, não proporcionam instrumentalização necessária para que os profissionais atuem diante dessa possibilidade tão crítica, que é o rompimento de vínculo entre criança ou adolescente e família adotiva, com o consequente retorno delas às instituições de acolhimento.

 

Considerações finais

As representações sociais da devolução na adoção para as entrevistadas apresentam aspectos relacionados a uma atitude negativa sobre a devolução, envolvendo sentimento de frustração e tristeza. Ao falarem sobre a devolução, as participantes trouxeram elementos relacionados a representações sociais da adoção, problematizando a romantização e idealização que os adotantes depositam nas crianças e adolescentes. Ainda, evidenciaram a importância de uma preparação para o exercício da parentalidade adotiva, bem como um acompanhamento sistematizado pré e pós adoção, que possa desconstruir mitos e crenças estereotipadas acerca das crianças adotivas.

O relato das participantes também trouxe em voga a legitimação que a própria legislação dá para a devolução, diante da inexistência de reconhecimento de devolução quando esta ocorre no estágio de convivência, apontando para sentimento de injustiça e de objetificação da criança. Os desafios diante da parentalidade adotiva são ancorados no passado da criança, em que os adotantes, majoritariamente, sustentam crenças de que determinados comportamentos estão atrelados à família de origem e não que possam ser comportamentos comuns da faixa etária.

Por fim, mostra-se pertinente o tensionamento de políticas públicas que se atentem às peculiaridades da adoção, considerando seus desafios e importância de acompanhamento sistematizado nos diferentes momentos: pré e pós adoção. Considera-se que algumas estratégias possam ser tomadas visando minimizar os riscos e devoluções na adoção. Grupos voltados para pretendentes à adoção e grupos direcionados para adotantes durante o estágio de convivência podem colaborar como metodologia para um acompanhamento sistematizado nessas diferentes fases, bem como propiciar trocas de experiências, fortalecimento de redes de apoio e reflexão acerca do projeto adotivo.

 

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Endereço para correspondência:
Centro de Filosofia e Ciências Humanas
Campus Universitário – Trindade, Florianópolis – SC
CEP: 88.040-500
Telefone/Fax: (48) 3721-2435
Email: juliana.gomesfiorott@gmail.com.br

Recebido em 14.abr.20
Revisado em 04.ago.20
Aceito em 30.mar.21

 

 

1. O artigo é fruto da dissertação de mestrado desenvolvida na UFSC com apoio da CAPES.
Juliana Gomes Fiorott, Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Doutoranda na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), é Professora da Anhanguera Educacional.
Andréia Isabel Giacomozzi, Pós-doutora pela Università degli Studi di Padova (UNIPD)/Itália, Doutora em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), é Professora Adjunta da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Email: agiacomozzi@hotmail.com
Andréa Barbará da Silva Bousfield, Pós-doutora no Instituto Universitário de Lisboa (ISCET-IUL)/Portugal, Pós-doutora na Università degli Studi di Padova (UNIPD)/Itália, Doutora em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), é Professora Associada II da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Email: andreabs@gmail.com
Ana Maria Justo, Doutora em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), é Professora adjunta da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Email: justoanamaria@gmail.com
Aline Daniela Sauer, Graduada em Psicologia pela Universidade do Contestado (UnC), Graduada em Educação do Campo pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), é Mestranda em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Email: psicologa.alinesauer@gmail.com

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