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Temas em Psicologia

versão impressa ISSN 1413-389X

Temas psicol. vol.5 no.3 Ribeirão Preto dez. 1997

 

PROCESSOS SOCIAIS E DESENVOLVIMENTO

 

O mundo social da criança: jogo de faz-de-conta e comportamentos pró-sociais

 

 

Therezinha Vieira1

Universidade Federal de Minas Gerais

 

 

Apoiados sobretudo no referencial conceituai da psicologia sócio-histórica, procuramos analisar neste artigo alguns aspectos da brincadeira de faz-deconta como espaço de reelaboração de comportamentos pró-sociais e apresentar alguns indícios empíricos sugestivos de que a valorização educacional desses comportamentos pode favorecer o desenvolvimento do jogo.

Vários estudiosos do comportamento infantil vêm investigando o desenvolvimento de comportamentos pró-sociais (por exemplo, Carvalho, 1996) e ou condições que os influenciam (por exemplo, Godelli, Santana, Souza e Marquetti, 1993). Esses comportamentos podem abranger subclasses muito variadas, mas, para a finalidade da presente análise elegemos duas em especial: as que implicam cooperação, quando crianças coordenam suas ações com vistas a um objetivo comum, e ajuda, no sentido proposto por Carvalho, "fazer ou oferecer-se para fazer algo no lugar de outro... solicitar ajuda de um terceiro para auxiliar a criança-alvo" (p.92).

O jogo de faz-de-conta representa outra área de investigação que muito tem contribuído para esclarecer o desenvolvimento da criança.

Para a psicologia sócio-histórica, essa é uma atividade essencialmente social. Nas suas origens históricas estaria relacionada com as diferentes posições que a criança ocupa no sistema de relações sociais, no curso das várias transformações pelas quais passam as sociedades. Seria social, portanto, desde seu surgimento. Estaria ainda estreitamente relacionada ao surgimento histórico dos períodos de infância e a seus respectivos conteúdos psíquicos (Elkonin, 1984).

 

A REPRESENTAÇÃO DE COMPORTAMENTOS PRÓ-SOCIAIS NO FAZ-DE-CONTA

Do ponto de vista ontogenético a brincadeira de faz-de-conta pode ser entendida como espaço de apropriação cultural nos limites do qual a criança se comporta para além de sua idade, recriando as interações humanas e ações dirigidas a objetos e instrumentos usados no trabalho humano (Vygotsky, 1984). Nesse recriar retoma atitudes, posturas, sentimentos implicados nas ações do mundo adulto frente ao outro e frente ao mundo físico, reelaborando-os, ressignificando-os.

Na duplicidade de percursos que vai da brincadeira para a realidade e vice-versa, instaura-se, no plano interno, a possibilidade de reconstrução dessas posturas recolhidas pela criança como sujeito-alvo de interações sociais; a título de espectador dessas mesmas ações. Assim é que, por exemplo, quando se brinca de casinha, polícia-bandido, escolinha etc., a criança tanto pode estar reconstruindo comportamentos pró-sociais, como outros de natureza mais agonística, ambas as categorias embutidas nos papéis que incorpora enquanto brinca e/ou sugeridas nos brinquedos industrializados com que o adulto a presenteia.

Brougère (1994), referindo-se à cultura lúdica, "uma estrutura complexa e hierarquizada, constituída... de brincadeiras e conhecimentos disponíveis, de costumes lúdicos, de brincadeiras individuais, tradicionais ou universais... e geracionais (próprias a uma geração específica)... inclui ainda um ambiente composto de objetos... e particularmente de brinquedos..." (p.51), nos remete a um conceito interessante de ser aqui comentado. Menciona Brougère que, na cultura lúdica, as lógicas das brincadeiras não variam muito, mas sim seus conteúdos. Basicamente o que ele chama de lógicas são o princípio de oposição, que suporta as brincadeiras de luta, confronto com o perigo, de combate e o princípio que poderíamos chamar de aproximativo, na falta de termo melhor e que suporta as brincadeiras que envolvem cuidados com o outro, ajuda, cooperação.

Dois temas tidos como clássicos na literatura sobre brinquedo explicitam essas duas lógicas, os temas agressor-vítima e família. Ao brincar segundo uma ou outra dessas temáticas a criança re-experiencia seus medos, frustrações, alegrias e momentos de prazer. Sabemos também que tais brincadeiras são afetadas pelas diferenças de gênero.

No entanto o que queremos salientar aqui é que, no dia a dia, os adultos, agentes de comportamentos pró-sociais e que, portanto, propiciam à criança sensações de conforto e segurança, alegria e prazer são também os que disciplinam, negam, ameaçam, estabelecem limites, gerando, nesse caso, desconforto, raiva e medo. Da mesma forma a interação criança-criança vai estar atravessada por essas duas classes mais amplas de sensações/emoções/sentimentos conforme essas interações sejam amigáveis ou permeadas por conflitos. Ou, ao interagir socialmente com os outros, dependendo das circunstâncias, podemos ser tanto solidários, simpáticos, agradáveis, cuidadosos, como agressivos, desatenciosos, desagradáveis etc.

E a criança pequena como lida com essa relatividade do comportamento humano?

Em situação de faz-de-conta é difícil, por exemplo, para essas crianças menores, admitir que um animal possa ser, ao mesmo tempo, bom para os filhotes e cruel para os inimigos (Rubin e Wolf, 1979).

Para integrar essas nuanças afetivas do comportamento, do ponto de vista do desenvolvimento cognitivo, seria preciso que a criança detectasse a invariância de sujeito na multiplicidade de papéis sociais, inclusive frente a posições de sujeito paradoxais e conflitantes entre si, o que crianças menores ou cognitivamente menos desenvolvidas ainda não conseguem fazer (Piaget, 1971, Almeida, 1995). Por outro lado, progressos na invariância de sujeito requerem também que a criança avance quanto à compreensão de que a relação papel/contra-papel independe de atores particulares.

Sendo assim, a criança mais nova, no seu relacionamento cotidiano como alvo de cuidados e práticas disciplinares por parte de um adulto, deve, em relação a esse adulto, experienciar, em momentos diferentes, afetos mais ou menos positivos e negativos, sendo que tais afetos poderiam invadir esferas de relacionamento emocionalmente mais "neutras" contaminando e alterando a comunicação com o outro.

O impasse entre ter que lidar com as variações do comportamento do outro, sem ter ainda as condições cognitivas e afetivas que lhe permitam fazê-lo, poderia, em princípio, ser resolvido no faz-de-conta. Ao brincar a criança pode dissociar, segmentar, polarizar o que sente como bom e mau, reconstituindo tais vivências por meio de representações sucessivas e até por meio de personagens diferentes. Dessa forma estaria se apropriando das significações que circulam nos dois tipos mais genéricos de situações mencionadas enquanto apreende e explicita, de início, fragmentariamente, o entrejogo de comportamentos que nelas ocorrem. Nesse processo a criança está ganhando distância dessas significações, reavaliando-as, confrontando-as, conservando delas alguns traços enquanto modifica outros. Ou pode também reafirmá-las ou negá-las. É neste sentido que estamos entendendo o jogo de faz-de-conta como mediador de comportamentos pró-sociais.

Com a evolução do jogo a criança pode vir a construir estruturas relacionais nas quais integra melhor essas diferenças.

Talvez, justamente por permitir à criança lidar, nos limites de sua competência, com os diferentes impactos do comportamento do outro sobre ela própria, o faz-de-conta se mostre como uma situação proveitosa para a criança hospitalizada, quando o ser cuidado pode estar passando pelo sofrimento.

Seria interessante também verificar como tais impactos se traduzem no jogo de meninos e meninas já que tal atividade é afetada pelas diferenças de gênero (ver Mello, 1994).

Além do que foi dito, o faz-de-conta também pode ser considerado importante para os comportamentos pró-sociais porque quando a criança se comporta como o outro, imitando-o no jogo, ela está, de certa forma, se fundindo a esse outro, assimilando-o a si, mas ao mesmo tempo, está se conservando como ela própria no papel. Esse processo de fusão e diferenciação deve ser importante para que ela possa detectar no comportamento do outro pistas que lhe comuniquem que esse outro precisa de ajuda, proteção, cuidados.

Seria preciso compreender melhor como as crianças evoluem nas suas representações enquanto interagem por meio de papéis sociais, o que vem interessando aos estudiosos do jogo (Rubin e Wolf, 1979; Oliveira, 1988) antes que as questões presentemente colocadas possam ser devidamente esclarecidas.

Há que se considerar, ainda, que o outro-adulto que interage com a criança e com outros adultos o faz de diferentes lugares instituídos, conforme a posição que ocupe numa rede de relações sociais, conforme práticas instituídas e de acordo com o lugar que atribui à criança na interação.

Na brincadeira a criança tem a oportunidade de alterar esses posicionamentos, deslocando-se para postos de poder e autoridade. Ao assim proceder, no entanto, tem que se confrontar com a "realidade" do jogo, isto é, com a forma pela qual seus parceiros a estão interpretando e às suas ações.

Assim como a ressignificação do lugar do outro em relação a ela própria passa pela interação com os companheiros também o mesmo acontece com a ressignificação de seu próprio lugar em relação ao outro. Tomamos como exemplo uma cena que observamos quando da realização de um trabalho com crianças portadoras de deficiência mental (Vieira, Martinez, Oliveira e Parizzi, 1993): uma adolescente, representando seus próprios desmaios em situação de atividade lúdica, era acolhida e tratada, no plano representativo, pelos seus parceiros de jogo. Neste caso podia confrontar-se com o seu desmaio de um outro lugar e a partir de interpretações dadas por seus companheiros, como que o reexaminando.

Lembremo-nos ainda de que, no faz-de-conta, é a criança que elege as regras às quais vai se submeter. Sendo assim é pouco provável que se possa usar o jogo para ensinar comportamentos pró-sociais ou outros. De acordo com Brougère (1994) a brincadeira funciona de forma aleatória e incerta. É um espaço de aprendizagem cultural, aprendizagem essa que, por outro lado, não pode ser definitivamente assegurada. São suas condições objetivas de ocorrência, as interações com os companheiros, o impacto de experiências anteriores que vão determinar do que a criança vai se apropriar no jogo e não o controle externo de quem pretende ensinar. Isso não impede que determinamos meios possam favorecer mais que outros a representação desses comportamentos (Carvalho, 1996).

 

COMPORTAMENTOS PRÓ-SOCIAIS E DESENVOLVIMENTO DO JOGO

Se a recuperação de comportamentos pró-sociais no jogo pode ser, talvez, facilitada sob determinadas condições mas não previamente assegurada, por outro lado, parece-nos que algumas subclasses de tais comportamentos, como a ajuda de crianças mais velhas às mais novas e a cooperação favoreceriam o desenvolvimento do jogo.

Considerando a importância da cooperação e da ajuda para o desenvolvimento infantil, em princípio, de um ponto de vista educacional, caberia valorizar esses comportamentos, na expectativa de que pudessem ser reelaborados na situação lúdica, inclusive, ajudando a própria organização dessa atividade. Isto, possivelmente, daria mais potência ao jogo como fonte de aprendizagem e desenvolvimento.

Intervindo junto a uma casa para crianças abandonadas por três anos, obtivemos alguns indícios que parecem apoiar o que acabamos de dizer. Por esse motivo, esses trabalhos serão relatados a seguir, ainda que de forma resumida.

A casa em questão dispunha de excelentes espaços físicos e abrigava, por ocasião do início de nossos trabalhos, 18 meninas entre aproximadamente dois e oito anos egressas da Febem. No tempo em que lá permanecemos a equipe de atendentes se reestruturou de modo que, ao final, havia quatro atendentes responsáveis pelos serviços domésticos e cuidados das crianças trabalhando em turnos alternados, e uma quinta que tinha como função prioritária acompanhar os deveres escolares. Além disso, duas das crianças que lá residiam foram adotadas. As que permaneceram tinham, ao final dos trabalhos, entre 4 e 11 anos. Atualmente, muitas dessas crianças foram encaminhadas às suas famílias e parentes mais próximos e a casa atende novos grupos em regime de semi-internato.

Foi-nos solicitado, naquela oportunidade, um trabalho clínico e individualizado com algumas crianças com problemas de comportamento. A queixa principal era de agressividade e desobediência. Propôs-se, ao invés do trabalho clínico, um estudo mais global da situação, de modo que se pudesse melhor compreender o funcionamento institucional e o comportamento das crianças à luz desse funcionamento (Vieira, Hollanda, Rodrigues, 1993). Para tanto, inspirados numa abordagem etnográfica, recorremos por quatro meses a procedimentos como entrevistas, conversas informais com os funcionários e com as crianças, observações das interações criança-criança e adulto-criança e análises de documentos sobre os encaminhamentos feitos pela Febem.

As análises efetuadas sugeriam que a instituição funcionava de forma autoritária e centralizadora, com práticas disciplinares rígidas, as quais limitavam o acesso a brinquedos, livros, revistas e, inclusive, impediam a livre circulação pelas dependências da casa, a não ser que se estivesse sob a vigilância de um adulto. Nesse ambiente, as crianças pareciam contidas em sua fala, em seus gestos e em seus movimentos.

Para melhor observá-las em situações não restritivas, desenvolvemos, usando brinquedos e objetos vários, por um semestre letivo, com o auxílio de estagiários de psicologia, sessões semanais de atividade lúdica de duas horas cada. Essas sessões variavam quanto ao seu nível de estruturação, de acordo com um planejamento prévio, indo desde aquelas altamente organizadas e conduzidas pelo adulto, até aquelas onde as crianças podiam criar livremente as suas próprias brincadeiras. O trabalho era avaliado semanalmente e reorientado conforme hipóteses aventadas com base nos relatórios que descreviam e comentavam os procedimentos usados nas sessões e os comportamentos das crianças.

Os resultados principais nos mostraram que as brincadeiras se desenvolviam bem quando eram altamente estruturadas e conduzidas pelo adulto, mas não quando se tratava de atividade livre. Não se observavam então, nem brincadeiras em grupo, nem simbólicas, a não ser quando as crianças buscavam a parceria do adulto. Disputar e acumular objetos sem usá-los pareciam comportamentos dos mais freqüentes.

Pode-se verificar, portanto, a partir destas manipulações iniciais, que a contenção anteriormente intuída se dissipava nas situações propostas, mas, em contrapartida, as crianças mostravam um comportamento desorganizado e só conseguiam brincar coletivamente e de faz-de-conta se guiadas pelo adulto.

Outros dados coligidos ainda nesta época indicavam a construção incipiente de uma história de fracasso escolar para as quatro crianças que já estavam a freqüentar a primeira série do primeiro grau (haviam repetido de ano), o que vinha ao encontro de o que relata Altoé (1990) para crianças que vivem em situações semelhantes. Passada esta fase de diagnóstico institucional começamos a buscar estratégias que, por um lado, favorecessem o repensar da vida na instituição e, por outro, levassem à abertura de espaços lúdicos e à criação de um ambiente alfabetizador.

Essas buscas nos levaram, depois de vários tateios, à proposta de reuniões gerais com atendentes e dirigentes da casa para discussão, análise e encaminhamento dos problemas que afetavam os funcionários e o cotidiano das crianças. Paralelamente, começamos, junto às crianças, um trabalho com oficinas de atividades lúdicas e acadêmicas.

Dado o objetivo deste relato, é especialmente este último trabalho que vamos comentar presentemente.

Desenvolvemos, por um ano e meio, 9 oficinas diferentes entre si, conduzidas por estagiários de psicologia (artes, história, faz-de-conta, música, receita, leitura-escrita, jogos motores, quebra-cabeça e jogos de construção, teatro). Nos projetos desenvolvidos privilegiava-se a construção coletiva de regras e sanções com a preocupação de se definir limites que possibilitassem o agir em grupo e no grupo e encaminhassem as crianças para trocas cooperativas (Vieira, Carvalho, Ribeiro, 1995; Vieira, Resende, Mendes, Leonel, 1995).

As sessões por oficina eram semanais, de duas horas cada, delas participando as crianças que estavam na casa no momento (algumas podiam estar na escola ou na pré-escola nos horários previstos para as oficinas). Ou seja, nem todas as crianças participaram de todas as oficinas. Avaliava-se e replanejava-se semanalmente em reuniões de supervisão o funcionamento dessas oficinas com base em relatórios feitos pelos estagiários e com base em algumas vídeo-gravações.

De um modo geral podemos dizer que, ao longo de tais atividades, as crianças iam aprendendo, por exemplo, a se descontrair, construir limites, coordenar suas ações umas com as outras, comunicar-se, emitir opiniões, decidir; iam também se familiarizando com o cálculo e a leitura-escrita.

No último e décimo destes projetos, que perduraram por um semestre letivo, enfatizou-se a ajuda de crianças mais velhas às mais novas em situações lúdico-acadêmicas e numa sistemática de trabalho auto-gerido sob a mediação de um adulto. Esse trabalho será apresentado em maiores detalhes, pois sua dinâmica parece ter propiciado às crianças a oportunidade de demonstrarem que já eram capazes de se apropriar de um espaço lúdico, nele construindo de forma organizada, o que contrastava com os comportamentos exibidos no brincar durante o período de diagnóstico institucional.

Uma equipe inicial de três crianças, depois remanejada e ampliada para cinco, entre 8 e 11 anos, coordenava subgrupos de crianças menores com a função de lhes oportunizar acesso a brinquedos, revistas, livros, jornais e atividades como escrita de nomes, escrita espontânea, desenho, colagens etc.

Os critérios para a escolha destas crianças eram os seguintes: ter feito ou estar fazendo o primeiro ano do primeiro grau, ser das mais velhas da casa, saber ler e escrever.

As atividades conduzidas pelas crianças ocorriam duas vezes por semana, das 18:00 às 20:00 horas, horário em que normalmente a atendente de plantão ou via TV junto com todas as crianças, ou ajudava uma ou outra criança nos deveres escolares. Este trabalho, como os demais realizados até então, era optativo. Como alternativa na rotina da casa havia a TV. Dava-se também às crianças menores o direito de trocar de grupo, desde que alegassem um motivo para tal.

Três subgrupos trabalhavam e ou brincavam separadamente em um amplo refeitório, enquanto outros dois o faziam em uma sala de estudos também bastante ampla, a portas fechadas, pela primeira vez na instituição, sem a presença do adulto.

Embora a participação fosse optativa, nunca havia mais que três ou quatro crianças vendo TV com a atendente durante tais atividades.

Nestas sessões de trabalho-jogo, na maioria das vezes, as crianças coordenadoras "passavam atividades" para as menores, ou como as haviam aprendido na escola, ou como as haviam aprendido nas oficinas (colagens, dobraduras, leituras de histórias, contar, escrever o próprio nome etc.). Cada coordenadora era instruída a guardar o material das suas crianças em pastas apropriadas.

Simultaneamente, conduzíamos reuniões de supervisão semanais com as coordenadoras de aproximadamente 1 hora e 30 minutos, das 18:00 às 19:30 em uma terceira noite da semana, durante as quais comentávamos sobre o que havia sido feito e que nos era relatado e mostrado, inquiríamos sobre as dificuldades, tanto das crianças menores como das próprias coordenadoras. Discutíamos sobre os pedidos de troca que eram feitos e suas razões, sobre os conflitos ocorridos e seus encaminhamentos.

Estas reuniões nem sempre eram pacíficas. Muitas vezes havia acusações mútuas, discussões e choro, quando, por exemplo, uma criança se sentia rejeitada e abandonada pelas menores que pediam para trocar de grupo. Esses pedidos de troca parecem ter ocorrido, em freqüência mais alta, para duas situações principais: quando as coordenadoras se mostravam muito autoritárias e intransigentes na condução dos trabalhos (reproduzindo a forma como, em geral, eram tratadas) e ou quando sonegavam a distribuição de brinquedos. Nestes casos tinham que se confrontar com o fato de que o modo pelo qual se comportavam com as crianças menores é que as levava a se afastarem. Aos poucos, contudo, pareciam ir aprendendo a lidar com estas situações e a perceber melhor as necessidades do outro.

A estrutura destas reuniões de supervisão foi-se modificando com o decorrer do tempo. No começo ficamos por conta de montar a infra-estrutura dos trabalhos: 1. Foi montada a equipe definitiva de coordenadoras com duas desistências, uma exclusão decidida em grupo (não cumprimento de combinados) e posterior reinserção e três novos convites; 2. As crianças, apoiadas pelo supervisor, procederam à listagem dos materiais necessários definindo onde deveriam ser guardados por subgrupo. Definiram ainda em que horários e em que dias da semana as atividades poderiam ser realizadas considerando-se outros compromissos da casa, e como deveria ficar o local após o seu uso; 3. Foi planejado como ir retirando os brinquedos guardados em um depósito da casa, em que quantidade, como responsabilizar-se pelo uso dos mesmos junto às crianças menores. Semana a semana visitava-se o depósito para guardar e retirar brinquedos, ao fim das reuniões de supervisão. 4. As decisões grupais mais importantes e que deviam ser respeitadas por todos da casa eram afixadas na porta de entrada da sala de estudos para conhecimento geral; 5. Os combinados iam sendo revistos e reajustados, e as crianças iam revendo sua própria condução, em função do que era trazido e comentado na reunião.

Uma vez estabelecida a organização dos trabalhos, mais ou menos em meio ao semestre letivo, um dos grupos pediu parte do horário de supervisão para apresentar uma peça teatral que já vinha ensaiando ("A cigarra e a formiga"). A partir daí, os demais subgrupos começaram também a usar este horário para apresentação de atividades teatrais ora assentadas em histórias lidas nos grupos, ora em histórias criadas pelas próprias crianças, ora configurando-se tais atividades como números de dança com coreografias geralmente inspiradas em shows de TV ou, possivelmente, em atividades aprendidas na escola, ou inventadas por elas mesmas. Algumas eram muito bem planejadas, outras menos, com maior grau de improvisação, dependendo de se se tratava de um grupo conduzido por alguma das crianças mais velhas (11 anos), ou das mais novas (8 anos).

Procurávamos documentar as reuniões de supervisão, fazendo uma espécie de ata dos acontecimentos aí ocorridos. Procedemos também a vídeo-gravações de algumas cenas dos trabalhos desenvolvidos pelas crianças e de todas as atividades teatrais realizadas. Além disso, dispúnhamos de parte do material coletado pelas coordenadoras quando realizavam as atividades com seus subgrupos.

Comparando-se essas atividades teatrais livremente construídas com outras de tipo semelhante, ou registradas cursivamente, ou vídeo-gravadas, durante os três anos em que permanecemos trabalhando na instituição, parecenos poder destacar três subtipos principais de atividades representativas no decorrer deste intervalo de tempo.

Ao início, durante o período de diagnóstico institucional, as crianças, mesmo as mais velhas, em situação de brinquedo livre, conseguiam coordenarse apenas com o adulto, mas não entre si. Num período intermediário de nosso projeto, isto é, em meio às oficinas - criavam em conjunto, de forma bastante tumultuada, ajudadas por uma das crianças mais velhas, o que se pôde observar em vídeo-gravações de oficinas de faz-de-conta. E por ocasião de nosso último projeto, verificou-se que já foram capazes de forçar a abertura de um espaço de dramatização no qual construíram atividades que subentendem planejamento prévio, organização de cenários, scripts, apoio em narrativas, intenção de comunicar, diferentemente do que ocorre no jogo simbólico ou de faz-de-conta propriamente dito onde se representa para si e não para o outro. O nível de elaboração deste último tipo de atividade foi superior ao das anteriores se tomarmos como critério de comparação a coerência e organização das atividades (Piaget, 1971). A aprendizagem do trabalho em grupo, a construção coletiva de regras, a definição de uma estrutura de relações que descentralizava o poder adulto dando maior liberdade para que as crianças se organizassem podem ter favorecido estes resultados, para além da passagem da idade. É neste sentido que tomamos o trabalho de intervenção relatado como sugestivo de que a valorização educacional da ajuda e da cooperação pode, em princípio, contribuir para o desenvolvimento do jogo.

Imaginamos também que as últimas atividades representativas mencionadas, pelo planejamento que requeriam, estimularam nas crianças menores o desenvolvimento da função planejadora da fala - a partir da qual nos autoregulamos e nos organizamos para agir no meio, função esta construída nas interações com o adulto na medida em que esse adulto instrui e orienta a ação da criança (Vygotsky, 1984; Luria, 1987).

Especialmente para crianças institucionalizadas que dispõem de pouca atenção do adulto, ter um espaço lúdico onde esta função possa ser estimulada pelo intercâmbio com crianças mais velhas poderia ser bastante interessante ao seu desenvolvimento cognitivo.

 

CONCLUSÕES

A literatura sobre o faz-de-conta nos indica que este tipo de atividade pode constituir-se como espaço de reelaboração e ressignificação de comportamentos pró-sociais. No entanto, as aprendizagens no âmbito do jogo não podem ser previamente asseguradas, ainda que determinados ambientes educacionais favoreçam mais que outros essas representações.

Algumas subclasses de comportamentos pró-sociais, por sua vez, parecem promover o desenvolvimento do jogo. A conclusão provisória é de que uma estrutura de relações sociais que favoreça comportamentos cooperativos e de ajuda, aliada a organizações espaço-temporais que oportunizem à criança brincar livremente e recuperar tais comportamentos para e no jogo, pode ser condição especialmente propícia à educação coletiva de crianças pequenas.

 

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(1) Endereço para correpondência: Rua Ardósia, 132 Belo Horizonte - MG CEP 31210-480