Serviços Personalizados
Journal
artigo
Indicadores
Compartilhar
Temas em Psicologia
versão impressa ISSN 1413-389X
Temas psicol. vol.5 no.3 Ribeirão Preto dez. 1997
PROCESSOS SOCIAIS E DESENVOLVIMENTO
O desenvolvimento social da criança e seus contextos de emergência
Alysson Massote Carvalho1
Universidade Federal de Minas Gerais
Na sociedade urbana industrializada verifica-se que um número crescente de crianças permanece um grande período do dia em instituições de cuidado infantil, onde são colocadas em situações de intensa convivência umas com as outras (Carvalho, 1989). Esses tipos de arranjos contemporâneos de atendimento às crianças (creches, pré-escolas, orfanatos etc.), onde elas passam grande parte dos seus primeiros anos de vida, certamente repercutem nas formas pelas quais elas interagem entre si. Neste artigo propomos abordar a influência desses diversos tipos de design ambiental sobre as interações prósociais entre as crianças.
A presença, nesses ambientes, de crianças de diferentes faixas etárias é um dos fatores que influenciam as interações pró-sociais entre as crianças. Citando vários trabalhos acerca da influência das crianças mais velhas no desenvolvimento das interações entre as mais novas, Vandell & Mueller (1980) afirmam que aquelas que possuem experiência com outras maiores são mais responsivas: tomam, com maior freqüência, a iniciativa dos contatos sociais; envolvem-se em interações mais complexas e possuem, também, maior capacidade de facilitar às mais novas o reconhecimento de um par como parceiro social potencial. Esse auxílio aplica-se, principalmente, às crianças menores que não possuem uma experiência anterior com outras crianças. Nesse contexto, os cuidados prestados pelas crianças maiores podem ter um importante efeito aliviador para o sistema adulto/criança, diminuindo os encargos dos cuidadores. Além disso, o fato de as crianças mais velhas serem menos dominantes do que os adultos, na iniciação ativa e na manutenção dos contatos, obriga as mais novas a exercerem um papel mais ativo na efetivação das interações, o que contribui para o desenvolvimento da sua competência social. Enquanto os adultos, provavelmente, respondem a um sinal social ambíguo, obscuro, as crianças mais velhas são menos inclinadas a manifestar-se por esse tipo de sinal pouco nítido. Para serem bem-sucedidas no relacionamento com outras mais velhas, as crianças mais novas precisam ser menos ambíguas na iniciação dos contatos. Considerando essa convivência multivariada quanto às idades, Eibesfeldt (1989), numa perspectiva transcultural, verificou que, em culturas tribais como a dos Yanomami, Ko e ! Kung -, os irmãos menores tornam-se objeto de cuidado afetivo por parte das irmãs mais velhas. É interessante observar que o tipo de cuidado dispendido por elas abrange vários aspectos, incluindo alimentar as crianças e brincar com elas. Segundo Eibesfeldt (1989), os irmãos mais velhos desempenham um papel importante na socialização das crianças menores, ao mesmo tempo em que aprendem responsabilidades sociais nesse cuidar. O benefício, então, é mútuo.
Esses trabalhos sobre o papel de suporte exercido pelos pares quanto à socialização leva-nos a refletir sobre os arranjos ambientais nos quais os indivíduos são criados numa estrutura diferente da familiar, ou seja, em regime de internato, sem a presença dos pais e familiares. Sobre o tema, estudos como os de Furman, Rahe e Hartup (1979) e Freud e Burlingam (1960) demonstraram que as crianças mais velhas exercem um papel importante no processo de socialização das mais novas, complementar ao dos adultos. Também demonstraram, com clareza, que companheiros podem ser instrumentos não somente para o desenvolvimento, como também para a reabilitação social de seus pares. Em alguns casos específicos, verificou-se que parceiros mais jovens foram importantes na reabilitação social daqueles mais velhos.
Trabalhando com os kibbutzim, um arranjo ambiental alternativo em relação aos orfanatos e à família nuclear tradicional, Levy-Shiff e Hoffman (1985) verificaram que as crianças de kibbatz eram mais desenvolvidas para participar de atividades coordenadas em grupo que aquelas oriundas de famílias tradicionais. Contudo, ao mesmo tempo que tinham essa competência, eram menos calorosas e próximas no contato afetivo com seus pares e, também, manifestavam agressão verbal mais freqüentemente. Quando não estavam interagindo com seus pares, as crianças de kibbutz envolviam-se, com maior freqüência, em um brincar solitário do que as outras crianças da amostra urbana. Os autores apontam o tipo de arranjo ambiental dos kibbutzim como o principal fator de influência do comportamento social dos sujeitos.
Considerando outro tipo de arranjo ambiental, como as creches e préescolas, Kalliopuska (1991) analisando, entre outras, a variável tempo diário de permanência das crianças no jardim de infância - parcial ou integral - e sua influência sobre o comportamento pró-social delas, observou que as crianças de meio período eram significativamente mais encorajadoras, prestativas, educadas, amigas, responsáveis e solidárias do que aquelas que permaneciam na escola por tempo integral. Esses resultados obtidos por Kalliopuska podem estar indicando a existência de um limite diário de tempo no qual as interações pró-sociais entre crianças podem ser otimizadas.
Os resultados obtidos por esses estudos evidenciam o papel importante desempenhado pelos diversos tipos de ambiente sobre as interações pró-sociais entre crianças. Assim, fatores como tipo de grupo de companheiros, contexto socioafetivo, orientação dada pelas professoras às crianças e outros influenciam diretamente as interações entre as crianças. Essa forte influência do design ambiental evidencia que o comportamento pró-social é, em parte, situacionalmente dependente (Weisner, 1996; Whiting & Edwards, 1992).
Tendo esses e outros trabalhos como referência, desenvolvi um estudo (Carvalho, 1996), em diferentes ambientes institucionais, com o objetivo investigar o desenvolvimento dos comportamentos pró-sociais entre crianças.
Os sujeitos foram 30 crianças na faixa etária entre 2 e 4 anos, oriundas de duas pré-escolas e uma instituição de cuidado total (FEBEM), distribuídos igualmente quanto ao sexo e à instituição. Essas crianças foram acompanhadas bimestralmente, em sessões observacionais de 20 minutos cada uma, utilizando-se a técnica de observação do sujeito focal, com registro em vídeo.
O material coletado foi objeto de análise a partir de categorias de comportamento pró-social, especificando-se os seguintes itens: idade dos sujeitos focais, duração dos episódios, número de sujeitos envolvidos, composição por sexo, postura dos sujeitos focais, idade dos parceiros e sexo dos sujeitos focais.
As técnicas estatísticas utilizadas foram CHAID (Detetor Automático de Interação Baseado em Qui-Quadrado) e ANOVA (Análise de Variância) para medidas repetidas.
Os principais resultados indicam a influência do contexto socioafetivo e dos arranjos ambientais sobre a topografia das interações pró-sociais entre as crianças, em consonância com os estudos citados anteriormente.
Dentre aqueles relacionados às características ambientais, o tipo de estruturação das atividades repercute diretamente na freqüência e características das interações pró-sociais entre as crianças. Naquelas instituições caracterizadas por uma elevada carga de atividades estruturadas, os comportamentos pró-sociais manifestavam-se principalmente através de contato afetuoso, e as brincadeiras de faz-de-conta tinham uma freqüência reduzida. A esse respeito Howes e Hamilton (1989, 1993) têm argumentado que as instituições de educação coletiva têm enfocado, nos primeiros anos de vida das crianças, mais a aquisição de habilidades cognitivas, através de atividades altamente estruturadas, com prejuízos para o desenvolvimento do potencial criativo das crianças e também das suas competências sociais. Por sua vez, em instituições pobres quanto à estruturação de suas atividades e com grande tempo de ociosidade, a música constituiu-se em elemento mediador das interações entre as crianças, inclusive pró-sociais.
O nível de fatores de risco presentes no ambiente foi outra variável importante na determinação das variações dos comportamentos pró-sociais entre crianças. Ambientes com um número maior de fatores de risco estimulavam interações sociais preventivas (evitar quedas, contato com animais peçonhentos, lixo etc.) e de socorro (aproximação de veículo, quebra de aparelho de recreação etc).
O contexto socioafetivo mostrou ser um fator importante para determinados tipos de comportamento pró-social. Em instituições onde as interações afetuosas mediadas por contato físico eram estimuladas pelas professoras, as crianças apresentaram maior freqüência desse tipo de comportamento, como abraçar e beijar umas às outras.
Os resultados obtidos com este estudo apresentam implicações tanto para os pesquisadores da área como para aqueles que trabalham com crianças em instituições de cuidado infantil.
Do ponto de vista dos arranjos ambientais, ficou clara a importância da organização do ambiente sobre o comportamento das crianças. Assim, as instituições de cuidado infantil devem estar atentas à organização de sua rotina de atividades e à conduta de suas instrutoras, de forma a propiciar condições satisfatórias para que suas crianças exercitem e desenvolvam suas habilidades sociais. Nesse sentido, é fundamental que se repense o significado da recreação livre para essas crianças. Esse tipo de atividade deve ser encarado como espaço de desenvolvimento e não, simplesmente, de lazer.
Uma derivação desses resultados tem a ver com a possibilidade de se construir um instrumento, padronizado à realidade do país, que permitisse avaliar as instituições quanto à adequação de suas programações às necessidades das crianças, sobretudo na esfera das relações interpares. Assim, seria possível identificar com mais clareza as deficiências institucionais e empreender a sua correção.
Como um intervalo maior de idade entre os parceiros favorece a ocorrência de comportamentos pró-sociais, seria possível pensar-se em uma estratégia que facilitasse esse tipo de contato, estendendo-o para além dos horários de recreação livre e introduzindo-o naquelas atividades ditas "acadêmicas", em que o auxílio das crianças mais velhas fosse produtivo.
Quanto às instituições de cuidado total, como a FEBEM e os orfanatos, a mistura de faixas etárias, referida no parágrafo anterior, talvez fosse igualmente produtiva. Nessas instituições, de modo geral, há falta de pessoal e os funcionarios são, também, submetidos a uma jornada desgastante de trabalho. Uma organização que agrupasse sujeitos de faixas etárias diferentes poderia ajudar e estimular as crianças que convivem nessas diferentes instituições.
Finalizando, seria importante continuar a desenvolver pesquisas que enfocassem esse tema, uma vez que, com relação ao aspecto social, no Brasil se vive uma realidade em que, cada vez mais, as crianças são colocadas em situações de intensa convivência, seja em instituições, seja em casa cuidando dos irmãos menores ou umas das outras, seja pelas ruas das grandes cidades. Esse quadro faz com que a teoria e a prática necessitem de mais subsídios, além dos obtidos com os estudos já realizados, para pretender alcançar mudanças possíveis e bem fundamentadas, principalmente de cunho social.
Referências Bibliográficas
Carvalho, A. (1996) Comportamento de cuidado entre crianças: um estudo longitudinal em diferentes ambientes institucionais. Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo, São Paulo. [ Links ]
Carvalho, A. M. A. (1989) Interação criança-criança: ressurgimento de uma área de pesquisa e suas perspectivas. Cadernos de Pesquisa, 71, 55-61. [ Links ]
Eibesfeldt. I.(1989) Human ethology, New York, Aldine de Gruyter. [ Links ]
Freud, A. e Burlingham. D. (1960) Meninos sem lar. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura. [ Links ]
Furman, W.; Rahe, D. e Hartup, W. (1979) Rehabilitation of socially withdrawn preschool children through mixed-aged and same-age socialization. Child Development, 50, 915-922. [ Links ]
Howes, C. (1989) Pressuring children to learn versus developmentally appropriate education. Journal od Pediatric Health Care, 3, 181-86. [ Links ]
Howes. C. e Hamilton, C. (1993) Child care for young children. Em: Bernard Spodek (Ed.). Handbook of research on the education of young children. New York: Macmillan Publishing Company. 322-336. [ Links ]
Kalliopuska, M. (1991) Study on the empathy and prosocial behaviour of children in three daycare centers. Psychological Reports, 68 (2): 375-378. [ Links ]
Levy-Shiff, R. e Hoffman, M. (1985) Social behavior of urban and kibbutz preschool children in Israel. Developmental Psychology, 6 (21), 1204-1205. [ Links ]
Vandell, D. e Mueller. E. (1980) Peer play and friendships during the first two years. Em: C. FOOT (Ed.). Friendship and social relations in children New York: Wiley, 181-208. [ Links ]
Weisner, T. (1996) The 5-7 transition as an ecocultural project. Em: A. Sameroff & M. Haith (Eds). Reason and responsibility: The passage through childhood. Chicago: University of Chicago Press. [ Links ]
Whiting, B. e Edwards, C. (1992) Children of different worlds. Cambridge: Harvard University Press. [ Links ]
(1) Endereço: Rua Camões 380 apto 102- São Lucas Belo Horizonte - MG CEP.: 30240-270 Tel.: (031) 223-6592 - Res. (031) 499-4065/4072 - UFMG. (031) 499-4066/4068-FAX