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Temas em Psicologia
versão impressa ISSN 1413-389X
Temas psicol. vol.17 no.2 Ribeirão Preto 2009
ARTIGOS
Fundamentos da avaliação psicológica e a produção de "imagens psíquicas"
The foundation of psycholgical evaluation and the production of "psychic images"
Francisco Ramos de Farias
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - Brasil
RESUMO
Objetiva-se, neste trabalho, circunscrever os fundamentos da avaliação psicológica, destacando o advento da Ciência Moderna que possibilitou pensar a dinâmica psíquica expressa em termos de grandezas matemáticas. Pretende-se diferenciar duas modalidades de procedimentos do diagnóstico psicológico e alertar que a avaliação diagnóstica deve seguir uma postura ética, senão produz representações sociais que transformam o homem em sombras de objeto. No entanto, a realização do tratamento requer a construção prévia de um saber sobre a doença e o doente. Em circunstâncias apriorísticas, o acento recai em um traço da vida psíquica, indicando que a afecção psíquica, captada pela objetividade, é referenda apenas pela utilização dos instrumentos psicológicos. Por outro lado, focalizando os arranjos subjetivos, tem-se de postular a existência de uma estrutura psíquica não revelada a priori. Por isso, somente após o término de um tratamento, pode-se formular um diagnóstico estrutural. Além disso, o processo de avaliação intervém a subjetividade do avaliador, sendo preciso considerar esse aspecto. Contudo, a cautela é fundamental, para evitar a pressa de se formular um quadro nosológico, como tradução do estado psíquico. A reticência tem seu valor, pois adverte o clínico para não reduzir uma subjetividade pulsante a uma objetividade científica. Eis o encaminhamento a ser seguido na investigação realizada com detentos em uma unidade prisional.
Palavras-chave: Diagnóstico psicológico, Fenômeno psíquico, Estrutura psíquica.
ABSTRACT
The objective is to circumscribe the foundation of psychological evaluation, bringing emphasis upon the advent of Modern Science, which has permitted to think psychical dynamics in mathematical greatness. The intention is to differentiate two modes of psychical diagnosis procedure and to alert that an ethical posture should be undertaken throughout a diagnosis evaluation or, otherwise, it will produce social representatives which transform man into "shadow" objects. The fruition of the treatment, however, requires a prior construction of knowledge of the illness and of the patient. In aprioristic circumstances, the accent befalls upon a psychic trace of life, revealing a functioning mode, when the psychic affection, captured by objectivity, countersigns the psychological instruments in use. On the other hand, focusing on subjective arrangements, the existence of a psychic structure is not revealed a priori, it should be postulated. Therefore, for this reason, we can only formulate a structural diagnosis at the end of a treatment. Consideration should also be given to the intervention of the subjectivity of the evaluator in the evaluation process. Thus, it is necessary to capture the "invisible". Caution is fundamental in order to avoid rushing into the formulation of a nosological picture as the translation of a psychic state. Reticence has its value as it warns the clinic not to reduce pulsating subjectivity into scientific objectivity. By the way, the intention is investigate the subjective structure the prisoner in a prison.
Keywords: Psychological diagnosis, Psychical phenomenon, Psychical structure.
Discutir as demandas e a problemática do na esfera do domínio psicológico requer, processo da avaliação dos fenômenos psíquicos primeiramente, traçar as devidas articulações entre o campo que se definiu pela emergência do saber psicológico voltado para as questões de cunho subjetivo e a evolução de outros saberes, nos quais também se fundamentam o diagnóstico psicológico. Referimo-nos à emergência do saber psicológico no cenário decorrente da derrocada dos esteios teóricos que concebiam o homem como um ser meramente contemplativo em relação ao conhecimento. Certamente, a possibilidade de um diálogo entre a modalidade do saber científico, acerca dos fenômenos psíquicos e o conhecimento produzido, no campo das ciências naturais com o processo de quantificação, deveu-se, sobretudo, às grandes transformações que o mundo conheceu com o advento da chamada Era Moderna, não somente pelo expansionismo das grandes descobertas, como também especialmente pela revolução que desmoronou as pilastras do cosmo aristotélico que defendia a ideia da ausência de movimento da terra (Milner, 1996). Tal ato revolucionário, ou melhor, o grande corte epistemológico, no sentido bachelardiano, foi cunhado a quatro mãos, conforme depreendemos dos legados galileano e cartesiano, do que resultou uma forma de saber completamente nova, e a proposição de um sujeito da ciência. Eis o horizonte daquilo que o mundo conheceu com a produção da ciência moderna.
Aliado ao contexto do novo modo de pensar, constata-se que os fundamentos que edificaram a ciência psicológica, voltados para os processos de aferição e conhecimento da dinâmica psíquica, redundaram em formulações diagnósticas com nuanças diferenciadas quando são situados os campos do saber jurídico, a prática clínica e o âmbito das instituições escolares. É pertinente ressaltar que tais fundamentos vieram a lume, atrelados ao desenvolvimento da ideia de individualismo, surgida no século XVII, principalmente quando teve lugar, no campo das práticas jurídicas, o deslocamento do interesse da Justiça, outrora centrado na ordem divina, para o entendimento da natureza do ser humano enquanto aquele que pensa e, por isso, deve ser convocado a responder pelas suas ações. Fazemos o recorte para situar o campo das práticas jurídicas, pois pretendemos suscitar uma discussão dos fundamentos do diagnóstico psicológico nesse campo.
Reviravolta semelhante ocorre na esfera das afecções psíquicas mórbidas. Outrora explicadas a partir de uma causalidade sobrenatural, passaram doravante a serem compreendidas pelo conceito de lesão, com o grande avanço propiciado pelos estudos da anatomia patológica, assim que o homem foi autorizado estudar o cadáver. (Le Breton, 1999). Temos assim a grande mudança que nos permite realizar a leitura acerca do homem apresentada ao mundo sob os auspícios da ciência moderna em função do que as leis do funcionamento psíquico começaram a ser compreendidas e desvendadas pela razão científica, distanciando-se das crenças e das convicções meramente opiniáticas (Milner, 1996). A razão que explica a natureza e a conduta do homem justificou a construção de um ser ativo-reflexivo, doravante senhor do livre arbítrio. Se, no mundo antigo, imperava a vigência de um ser passivo-contemplativo determinado pela ordem divina, então tudo o que lhe ocorria era explicado por essa ordem, de modo que havia quase a isenção de responsabilidade pelos atos praticados. A mudança de compreensão do homem advinda da formulação cartesiana em função da concepção do homem como ser pensante foi importante para a compreensão de que as ações humanas podem ser explicadas a partir de uma causalidade psíquica. Com isso, estamos sinalizando o abandono das crenças que postulavam a presença de forças malignas na explicação da conduta humana. Esse novo cenário repercutiu no campo do saber psicológico em que novas possibilidades de pensar o fenômeno psíquico são adotadas, como também esse tipo de fenômeno passa a ser explicado em conexão com um determinante de natureza psicológica e não mais natural, conforme eram pensados os fenômenos físicos, ou apelando para causas sobrenaturais.
Muitos dos pensadores, movidos pelas descobertas advindas da Era Moderna, empenharam-se numa outra modalidade de explicação dos fenômenos psíquicos. Eis o que se depreende da iniciativa fechneriana: o conhecimento e a avaliação dos fenômenos psíquicos passaram a ser objeto de preocupação no campo do saber psicológico (Guberman, 2009). Esse grande empreendimento traduziu-se não só para estabelecer um paralelo entre as ocorrências da esfera sensorial e suas consequências na esfera do psíquico, como também na tentativa de expressar essa correlação por intermédio de grandezas matemáticas, conforme o projeto newtoniano que consistia em explicar os fenômenos não pelas suas qualidades, e sim por intermédio da interpretação de grandezas matemáticas.
A possibilidade de quantificação dos fenômenos psíquicos, que teve sua origem no espaço conhecido como o laboratório wundtiano, era sugestiva de certa analogia estabelecida em relação aos procedimentos de observação dos fenômenos naturais. Não obstante, Brentano (1973), de forma veemente, demonstrou ser impossível pensar os fenômenos psíquicos caracterizados pela intencionalidade da consciência, em comparação aos objetos do mundo físico, visto que "sensação e imaginação são fenômenos distintos, pois uma é do campo dos fenômenos físicos, enquanto que a imaginação é um fenômeno psíquico" (p. 78). O elemento diferencial dos fenômenos psíquicos é a referência ao objeto ao qual se lança a consciência pela intencionalidade, ou seja, os fenômenos psíquicos apresentam uma direção ao objeto ao qual se referem.
Diante da impossibilidade de equacionamento entre os fenômenos psíquicos e os físicos, surge uma questão crucial: como expressar objetivamente aquilo que, por sua natureza, tem características subjetivas? Isso quer dizer que, dificilmente, podemos empregar os parâmetros que nos informam sobre os fenômenos objetivos no entendimento dos fenômenos da vida psíquica que se revestem de arranjos subjetivos. Sendo assim temos de admitir então duas maneiras distintas de aproximação aos fenômenos da vida psíquica, especialmente no tocante às afecções que acometem o psiquismo denominadas por Jaspers (1994) de afecções psíquicas mórbidas. Uma que considera os indícios objetivos e outra que pretende a compreensão dos aspectos subjetivos da vida psiquica. Os procedimentos empregados, em uma ou em outra, indicam-nos que essas duas abordagens não são excludentes, tampouco complementares. Em outras palavras, objetiva ou subjetivamente, traduzem o que há de singular no funcionamento do psiquismo em condições de saúde ou de doença.
É de fundamental importância reconhecer que os fenômenos psíquicos podem ser pensados a partir de um interior e, segundo as leis de comparação, é possível estabelecer seus contornos, da mesma maneira que age um geômetra ao traçar um círculo ou o linguista ao construir uma gramática. No entanto, podemos também supor que, enveredando pela exterioridade desses fenômenos, levando em conta seus arranjos estruturais e aquilo que é expresso como arranjo subjetivo, poderemos estabelecer qual a natureza estrutural que produz tais fenômenos. Estamos assim indicando que podemos realizar uma aferição que nos mostre uma circunstância fenomênica, ou seja, superficial e momentânea, como também enveredar por meandros que nos revelem a condição subjetiva postulada em termos de estrutura psíquica, discriminadas, no campo da psicopatologia, em neurose, perversão e psicose.
Quando nos debruçamos nas ocorrências da vida psíquica e em determinados impasses no processo diagnóstico, defrontamo-nos com duas questões delicadas: a) o acesso aos recônditos da vida anímica é impossível, a não ser pelo emprego do método introspectivo ou, b) os instrumentos psicológicos produzidos oferecem informações confiáveis que retratam a dinâmica psíquica do sujeito. Em uma direção ou em outra, não podemos afirmar, com segurança, sobre os meios de acessibilidade à intrincada complexidade da vida subjetiva; nem, pôr em xeque os instrumentos de avaliação disponíveis, resolveria a questão. A adoção dessas posturas, sem uma reflexão acurada, pode ocasionar a produção de reducionismos extremistas.
Sabemos que este é o grande desafio dos profissionais que tomam as questões da vida anímica como objeto de estudo e de prática. Em princípio, pelo fato de que, no terreno" do funcionamento psíquico, estamos diante de uma estrutura virtual, pois o fato psíquico, em razão de conter o objeto a que se dirige pela intencionalidade da consciência, não pode ser apreendido como grandeza puramente objetiva, mas sim, considerado enquanto fenômeno com propriedades que são de natureza da compreensão e da interpretação. Essa é uma vertente de aproximação ao problema da avaliação que pressupõe o engajamento do avaliador, sem a pretensa neutralidade, no campo de observação e intervenção. Por outro lado, os defensores da objetividade científica advogam, considerando a aproximação entre fenômenos psíquicos e fenômenos naturais, que a utilização das provas psicológicas, segundo critérios preconizados, oferecem, sem a coparticipação do avaliador, informações precisas sobre o acontecer psíquico, indicando o estado de saúde do homem, visto ter-se nesse procedimento o "grau zero de interpretação" (Lanteri-Laura, 1989, p. 85).
Provavelmente essas duas possibilidades de leituras redundam em procedimentos diferenciados na realização do diagnóstico. Uma reflexão epistemológica sugere então duas modalidades de estratégias na realização de um diagnóstico: a) a forma apriorística e, b) a forma a posteriori. Devemos estar atentos para o fato de que, ao nos valermos de uma ou de outra, não corramos o risco de produzir imagens de sombras do homem muito próximas da condição de mero objeto de estudo. Eis o ponto a ser problematizado no tocante à realização do diagnóstico que focalizaremos em termos de seus fundamentos.
A intervenção psicológica no campo dos fenômenos psíquicos
A primazia do conhecimento biológico, que propunha explicações de cunho objetivista para as alterações observadas no corpo e no psiquismo, inspirado nas teses darwinianas, chega até a compreensão dos diferentes estados de loucura como doenças do psiquismo, pensadas a partir de um substrato neuroanatômico, ou seja, assentadas em um substrato orgânico. Esse empreendimento, de certo modo reducionista, foi de grande importância. Em princípio pelo fato de que seguia as diretrizes do novo saber que adveio da Era Moderna, como representou o deslocamento de uma causa explicada em termos de forças malignas para um dado objetivo, encontrável na objetividade corpórea, como achado anatômico. Presumiam então, os defensores dessa corrente de pensamento, que nessa objetividade ficariam rastros dos acidentes ocorridos no percurso de vida, passíveis de serem detectados à luz de uma minuciosa observação, conforme podemos depreender das ideias de Canguilhem (1978). A tese matricial na qual se norteavam os estudiosos dessa época era a de que se, a integridade corpórea apresenta sinais de rupturas e estes se devem a circunstâncias que alteram a morfologia corpórea, então esses sinais e rupturas apresentam consequências no funcionamento biológico. A compreensão da lesão como fator que altera o funcionamento foi o ponto de partida para a produção da doutrina da degeneração, como critério de separação dos doentes. Os seguidores dessa doutrina formulavam diagnósticos em duas categorias de degenerados: os maiores, com lesões evidentes no sistema nervoso, e os menores, sem lesões aparentes (Bercherie, 1989). Mesmo de forma simplista, esses argumentos são o germe de uma tentativa de classificação dos processos psíquicos mórbidos. Sendo assim, a doutrina da degeneração se constituiu, por muito tempo, o argumento válido e aceito na explicação da causalidade dos distúrbios do psiquismo, agora pensada em termos do conceito de lesão. Daí um novo capítulo foi inaugurado no campo do saber médico, dedicado às dissecações, uma vez que se fazia necessário encontrar lesões e alterações na estrutura corpórea que servissem de parâmetros explicativos para aquilo que o doente expressara, impulsionado pela sua condição subjetiva de ser-doente. Conforme assinala Foucault (1977), um novo capítulo do saber médico constitui-se em um ato revolucionário fazendo um corte entre um período teórico pautado em explicações considerando forças sobrenaturais em que o corpo era considerado sagrado e intocável e, outro, marcado pela preocupação em encontrar, no corpo, dados de cunho objetivo e correlacioná-los aos sintomas apresentados em vida pelo ser-em-sofrimento, valendo-nos da expressão de Clavreul (1983). É pertinente assinalar que o procedimento da dissecação não teve apenas o caráter negativo de reducionismo assinalado acima, pois muitas descobertas vieram a lume em decorrência da autorização da Igreja para o estudo científico do corpo humano pela dissecação. Todavia, não podemos esquecer que os defensores das causas anatômicas estavam tão preocupados em encontrar dados objetivos que se tornaram cegos às nuanças subjetivas próprias do viver. Prova disso é o surgimento de inúmeras categorias nosológicas utilizadas para manter em exclusão aqueles que apresentassem lesões objetivas, sendo, por esse motivo, considerados desviantes da norma social vigente devido a uma alteração no substrato biológico. Explicam-se os atos como decorrentes de uma alteração na morfologia que evidencia seus efeitos em termos de um funcionamento impróprio. Se a autorização das necrópsias, para fins de estudo, conforme constatamos no empreendimento vesaliano, representou um grande avanço em termos do conhecimento do interior do homem, pelo estudo minucioso de seus órgãos, por outro lado, representou um grande reducionismo, pois significou abordar a subjetividade do corpo pulsante por achados meramente objetivos, conforme podemos depreender da leitura crítica de Mandressi (2005), que é da opinião de que para estes anatomistas "os sentidos constituem a pedra de toque do conhecimento anatômico, empírico e qualitativo, descrevendo as formas, cores, texturas, consistências e temperaturas" (p. 322). Os dissecadores estavam tão obcecados em catalogar esses aspectos que, provavelmente, esqueceram-se de que aquela realidade objetiva, o cadáver agora em estudo, foi a morada de um ser habitado pela linguagem. (Foucault, 1977).
Essa postura reducionista pôs em prática o estudo da dinâmica psíquica atrelada a uma marca de objetividade, o que vemos se refletir, em larga escala, no saber psicológico, que fez uma espécie de interação com o saber médico, tomado como verdade inquestionável no processo de aferição das nuanças da vida subjetiva do homem. Desse modo, pretendia-se explicar determinadas nuanças da conduta, consideradas afastadas do padrão ditado pela máxima de que a saúde é o silêncio dos órgãos e sistemas do corpo, com o propósito de melhor aplicação dos princípios de compreensão dos aspectos relativos às condições incluídas na rubrica de estados anormais, uma vez detectados através de instrumentos psicológicos e exames clínicos, seja no campo das práticas jurídicas, em que a lei é aplicada, seja em termos de condenação, para aqueles considerados responsáveis pelos seus atos, seja ainda em termos de tratamento para aqueles considerados psiquicamente incapazes de responder por suas ações em razão da existência de uma perturbação psíquica. (Carrara, 1998). Situação semelhante ocorreu no campo clínico, na categoria ser-emsofrimento (Clavreul, 1983), em se tratando daqueles sujeitos que não praticam nenhuma infração ou nas instituições escolares para quem fosse observado em termos de rendimento desfavorável.
Assim, esperava-se, com os recursos do saber psicológico, cumprir a função de ordenação e controle da sociedade segundo a aplicação dos dispositivos uma vez traduzida a vertente subjetiva, por instrumentos psicológicos, que indicava o lado desconhecido do funcionamento psíquico. Há de se considerar que houve e ainda existe uma demanda do saber jurídico ao saber psicológico para fornecer explicações às intrincadas nuanças próprias do psiquismo. Dessa demanda iniciaram-se os primeiros estudos no campo do saber psicológico, objetivando traçar o perfil do criminoso e, mais especificamente, práticas voltadas para o exame de suas condições psíquicas, como também, na área clínica, houve um grande esforço para estabelecer balizas, para categorizar os chamados "sujeitos anormais". Acrescente-se que nas instituições escolares também se utilizaram instrumentos psicológicos para separar os alunos "normais" daqueles que eram alocados, de forma segregativa, em classes especiais. (Cordié, 1996).
Em todos esses campos havia a exigência de encontrar, no homem, uma essência que explicasse os atos que colocam em risco a dinâmica do contexto social. Para tanto, era preciso identificar quais seriam os aspectos que compunham essa essência. É assim que entra em ação a aplicação da tese galtoniana de uma correspondência entre as condições físicas e achados objetivos fornecidos por instrumentos psicológicos e a estrutura psíquica, para interpretar as ações humanas segundo características físicas que eram consideradas verdadeiros estigmas. Ao lado desse empreendimento, temos a antropologia lombrosiana, que compreendia a criminalidade como fenômeno hereditário, explicitável nas características físicas do sujeito, considerando o criminoso como quem porta uma condição atávica, ou seja, um ser estagnado em termos do processo evolutivo. Em certo sentido, quando os procedimentos de avaliação psicológica foram empregados com a finalidade da formação de classes especiais, nas instituições escolares, tem-se nesse tipo de procedimento, provavelmente, a extensão das ideias lombrosianas, uma vez que tais procedimentos acentuavam o suposto déficit como um fator negativo e consequentemente aqueles que o portam seriam indesejáveis ao convívio com os demais, da mesma forma que os criminosos deveriam, devido à periculosidade e atavismo, serem afastados do convívio social. (Alexander & Healy, 1946).
Porém, queremos assinalar que a necessidade de agir sobre o psiquismo, mesmo de forma incipiente conforme retratam os procedimentos citados, teve grande influência no processo de produção de instrumentos de avaliação visando o conhecimento do terreno onde intervir, pois sabe-se que qualquer operação de intervenção psicológica requer a utilização de instrumentos, e um saber prévio, mesmo que se trate de hipóteses a serem verificadas posteriormente. Daí o valor histórico desse tipo de aproximação e leitura dos aspectos psíquicos. Quer dizer, a construção de um instrumento psicológico, da mesma forma que o processo de avaliação devem considerar, como ponto de partida, a circunscrição em um dado campo teórico que fundamente a dinâmica do psiquismo.
Não obstante, devemos estar advertidos para o fato de que o uso em excesso das provas psicológicas, muitas vezes, ante a possibilidade de manipulação do sujeito, é um solo propicio para difundir uma espécie de imagem psíquica que, dependendo da maneira como é considerada, retrata as circunstâncias de situações artificialmente forjadas. Isso representou, sobretudo, um abuso do poder devido à utilização, às vezes rígida e estereotipada, de procedimentos de intervenção, em razão da pressa de se construir uma categoria nosológica para aqueles que se apresentam na situação de pedido de ajuda, em face do sofrimento psíquico. Nessas circunstâncias, como em quaisquer nas quais a intervenção psicológica se faça necessária, o diagnóstico seria formulado como o passo precedente a qualquer procedimento de intervenção clínica, com a finalidade de reconhecer aspectos psíquicos mórbidos (Bercherie, 1989). Tal necessidade justificava-se em razão de:
a) circunscrever qualquer anomalia ou mesmo a doença, sua gravidade e o prognóstico;
b) decidir o empreendimento terapêutico adequado à situação;
c) avaliar as condições do sujeito em suportar um tratamento;
d) tomar medidas necessárias ao bem-estar; decidir pelo isolamento do doente do contexto familiar e social, e,
e) as expectativas relativas ao desenrolar do tratamento ao lado do recrudescimento dos sintomas.
Considerando todos esses aspectos que podem ser detectados no processo de formulação diagnóstica, uma avaliação deve preceder à primeira aproximação clínica, mas sem encerrar o sujeito em uma categoria de enfermidade psíquica. Tampouco o avaliador deve aprisionar-se nela, ou ficar fixado na crença de que o modo de viver e o de adoecer sejam dois quadros estanques: uma coisa é estar diante do ser que porta um tipo de sofrimento, considerado em termos de seus arranjos subjetivos; outra é ver a doença em primeiro plano, sem ter em conta aquele que se apresenta com ela. Porém, diante dessas dificuldades, acreditamos que não é recomendável qualquer intervenção clínica sem antes uma avaliação por mais preliminar que seja.
Pensar a avaliação psicológica clínica exige definir a dimensão daquilo que se entende pelo psicológico e qual a referência diante da realização de uma avaliação. O termo clínico alude aos fenômenos psíquicos mórbidos, sendo essa a particularidade norteadora do empreendimento da avaliação. (Nathan & Stengers, 1995). No que concerne ao psicológico, parte-se da ideia de que o homem é dotado de atividade psíquica, entre outros tipos e que se diferencia da atividade nervosa. Com isso, fazemos uma remissão ao pensamento aristotélico no qual o psíquico é considerado como a atividade anímica que aciona a matéria. Não obstante, o entendimento de que o psiquismo adoece é recente, datando somente de dois séculos, e apesar de todo o avanço no campo do saber psicológico ainda se mantém envolto de enigmas encerrados no obscurantismo.
O projeto de avaliação psicológica, tal como o conhecemos, tem sua matriz no advento da ciência moderna, momento em que Galileu (1974), contrariando a física aristotélica, afirmou o movimento da terra e Descartes (1986) enuncia ao mundo que há no sujeito uma substância pensante. Disso resulta que o sujeito, a partir de então, é imbuído de responsabilidade, engendrando-se assim outro posicionamento ético. Além disso, ocorre a reformulação geral do sistema do mundo com o estabelecimento da ciência calcada no cálculo matemático sobre a natureza e não mais na descrição. Os fenômenos que eram conhecidos em razão de suas qualidades sensórias passam a ter, doravante, uma grandeza matemática para traduzi-los, segundo a aplicação da doutrina newtoniana. (Koyré, 1991).
O advento da ciência moderna descortinou a névoa de incertezas no diagnóstico psicológico, fazendo o seu começo no campo da delinquência, quando se pretendeu construir o perfil do criminoso. Igualmente na esfera da doença psíquica tivemos a produção de categorias diferenciadas apresentadas com tipos de loucura. Enfim, o diagnóstico também, até certo ponto, produziu, no âmbito escolar, a categoria de deficiente. Assim, temos, em três campos distintos, a produção do delinquente, do louco e do aprendente com dificuldades de aprendizagem, rotulado em termos de fracassoescolar (Farias, 2007). É pertinente assinalar que o alvorecer do século XX levantou problemáticas relevantes em relação a esse tipo de aproximação, visto que, com a emergência do saber psicanalítico, a ideia de correlação precisa entre características físicas e psíquicas não se sustenta mais, uma vez que a descoberta do inconsciente aponta uma dimensão subjetiva, ou seja, trata-se de uma modalidade de saber sem sujeito e da qual não tem qualquer controle.
Como todas as ações psíquicas podem ser explicadas a partir de um contexto que considera, além de outras causas, mecanismos de natureza psicológica, assim o delito, o sofrimento psíquico, o fracasso no processo de aprendizagem, entre outras, também devem ser compreendidas desse modo. Nesse sentido, podemos aludir à afirmação freudiana de que "nosso inconsciente não executa o ato de matar, ele simplesmente o pensa e deseja. Contudo seria completamente errado subestimar essa realidade psíquica posta em confronto com a realidade factual" (Freud, 1976, p. 336). Certamente essa nuança referida à subjetividade tem também de ser considerada no diagnóstico, em qualquer circunstância. Não se pode mais em função da fragmentação do sujeito, na contemporaneidade que fractalizou as relações com o crime e com a loucura, sustentar o ideal positivista de uma continuidade perfeita entre características físicas e a dinâmica do funcionamento psíquico. Isso porque o século XX assistiu à banalização de ações que confrontam os umbrais da lei e a ruptura do suposto contínuo normal-patológico, tanto na esfera individual, quanto em termos dos projetos de Estado que levaram ao extremo uma política de destruição não mais selada em pactos estabelecidos pela palavra.
Igualmente a essa tentativa de objetivação dos fenômenos psíquicos, assiste-se a um processo semelhante no tratamento destinado à abordagem do subjetivo com o empreendimento de circunscrever tais fenômenos por grandezas matemáticas. Eis a influência do pensamento de Galileu que, na opinião de Milner (1996), teria afirmado ser o "o grande livro do universo, escrito em língua matemática" (p. 37). Constata-se que, com o advento da ciência moderna, todo existente empírico poderia ser objeto de tratamento por alguma técnica e que a matematização seria, por assim dizer, o paradigma de toda teoria. Conforme depreendemos dessa orientação, é plausível admitir que a matemática e a medida são apresentadas como os meios de produção do saber científico, o que influenciou, na psicologia, o projeto de construção de instrumentos que visavam a oferecer uma quantificação dos fenômenos psíquicos. Porém, atentemos para o fato de que o paradigma cartesiano rompeu com a tradicional visão de que a realidade psíquica seria acessível aos sentidos, colocando obstáculos a qualquer possibilidade de efetuar tal comparação. A objeção cartesiana decorre do fato de que os sentidos não seriam um caminho frutífero, pois enganam e, às vezes, distorcem a realidade. Daí, o acesso à dinâmica psíquica será realizado pela mediação de una grandeza matemática, sem deixar de considerar a esfera do arranjo subjetivo, para expressar uma qualidade. Com isso, há uma mudança do campo da comparação para o campo da inferência. Registra-se, assim, a passagem da prática calcada na experiência para a episteme centrada na racionalidade matemática. Ao invés dos sentidos para apreensão do mundo, em termos de meras qualidades sensoriais, entra em cena o processo de quantificação, mediante o qual os fenômenos são interpretados em razão das grandezas matemáticas que os expressam.
Com isso, podemos, pois, nos aventurar a concluir que o progresso que inspirou a avaliação psicológica somente pode ser referido à construção de saber de pretensão científica em decorrência da fundação da ciência moderna. Desse modo, a avaliação psicológica deve considerar os acidentes produzidos e revelados pelo sujeito na sua existência, em termos dos sentidos e das significações produzidas para os mesmos. O grande desafio, no campo da aferição psicológica, consiste em delimitar qual o objeto de avaliação (Sauri, 1982). Trata-se de uma posição sem unanimidade, pois a psicologia é o espaço teórico caracterizado pela diversidade de correntes teóricas.
Modalidades de intervenção diagnóstica
Quando nos defrontamos com a demanda para a realização de um diagnóstico, nos deparamos com duas possibilidades. Em princípio, temos o diagnóstico denominado apriorístico, que é realizado com o auxilio de instrumentos psicológicos. Consiste em uma leitura momentânea, de cunho fenomênico, pautada, na maioria das vezes, na observação dos traços psíquicos, pois expressa um estado expresso por aspectos mutáveis que traduzem, naquele momento, certo estado de coisas. Tal modalidade diagnóstica centra-se em aspectos visíveis, seja diretamente ao olho do clínico; seja na abordagem indireta mediante a utilização de instrumentos psicológicos. Seja por um caminho ou por outro, a investigação consiste na busca precisa de indícios que são agrupados e categorizados em sinais e sintomas conformando um dado quadro clínico circunscrito nos compêndios de psicopatologia e apreendido nos manuais das provas psicológicas.
A outra modalidade, denominada de diagnóstico a posteriori, somente tem lugar no término de um processo terapêutico, pela leitura das ocorrências clínicas sobre a estrutura do sujeito. Significa, conforme aponta Clavreul (1983), a convocação do "doente" a produzir um saber dobre a doença, e também a convocação do clínico, para ser testemunha nesse processo. No entanto, nem sempre se pode esperar o fim de um tratamento para formular um diagnóstico: existem circunstâncias em relação às quais se faz necessária a emissão de um parecer psicológico para que uma decisão seja tomada.
Tal modalidade de diagnóstico pautado no a posteriori consiste em capturar aquilo que é da ordem do invisível, ou tudo aquilo não passível de expressão direta, uma vez que se admite que, quando se interroga o sintoma, descobre-se a existência de um mundo secreto que permanece oculto, e a possibilidade de uma determinação que não pode ser pensada em termos de uma relação causal direta. Ainda assim, esse tipo de diagnóstico se assenta na construção de um saber ao longo de um processo e não comparação dos indícios que são revelados pelo doente com as indicações existentes nos compêndios sobre doenças.
Em uma ou em outra modalidade, aborda-se, diferentemente, o processo de aferição da dinâmica psíquica, pela recorrência aos universais do saber psicológico, para circunscrever a ocorrência psíquica expressa como um traço, conforme a orientação do saber médico com o objetivo de conformar quadro nosológico categorizado como síndrome. Assim, realiza-se uma comparação entre as indicações dos compêndios sobre as doenças e as nuanças de vida, como se houvesse uma correspondência e uma chave fixa confiável. Em uma outra vertente do processo de avaliação, faz-se necessário compreender o aspecto estrutural que pode ser detectado além da análise que se procede nos fenômenos que se expressam por signos indicadores de uma situação vivencial. Eis um outro propósito que deve adotar estratégias de avaliação que considere não apenas os dados objetivos, mas que produzam informações sobre os arranjos subjetivos. Nas habilidades psicomotoras, traços psicofísicos, capacidade de atenção e destreza, os instrumentos psicológicos revelam estados circunstanciais que, tomadas as devidas precauções, são índices precisos, expressos por grandezas objetivas. Também existem os achados psíquicos que evidenciam os arranjos subjetivos do doente, os quais nem sempre são objeto de captação por provas psicológicas, em um primeiro momento de abordagem.
Consequentemente, se existem duas modalidades de diagnóstico, certamente devem haver também duas estratégias a serem empreendidas na realização do processo diagnóstico, fundamentadas em pressupostos teóricos de naturezas diversas: a) Conforme já assinalado, a abordagem apriorística, centrada nos fenômenos psíquicos mórbidos evidenciados pelo processo de observação de sinais e sintomas, constitui-se como um procedimento de elaboração científica que realiza uma leitura fenomênica antes do início de um tratamento, sem a preocupação de reconstituir as filigranas concernentes à história subjetiva. De certo modo, quando se alude a essa modalidade de diagnóstico, "se pensa logo no saber psiquiátrico, caracterizado, quase sempre, por sua suposta objetividade, e, por isso, pode parecer macanístico" (Miller, 1997, p. 230). b) Por outro lado, a abordagem a posteriori, de cunho estrutural, contém procedimentos cuja abordagem recai num além dos fenômenos, uma vez que o objetivo consiste em convocar o sujeito a produzir um saber mediante a reconstituição de sua história, e da história de seu sofrimento. De certo modo, busca-se implicar o sujeito diante de sua escolha para o adoecer, pois sabemos que muitas vezes é mais importante saber, em termos subjetivos, quem é o doente que tem uma doença, do que propriamente qual é a doença. Isso quer dizer que a mesma doença não se manifesta da mesma forma em diferentes sujeitos, pois devemos considerar a relação singular e vivencial do homem com a sua doença, como possibilidade de justificar o ato final de seu destino: a morte. Isso quer dizer que, diante da única certeza de que o homem dispõe, a doença surge em um horizonte vivencial para justificar a morte. Por isso, o elemento novo, nessa abordagem, consiste em introduzir o "doente" a responder, minimamente, pelos seus sintomas. Assim, esperamos circunscrever os parâmetros que remetem à estrutura.
Conforme podemos depreender, temos duas possibilidades de leituras concernentes ao processo diagnóstico: em uma, são identificados traços que revelam um estado momentâneo e, em outra, é identificada a estrutura como algo permanente do psiquismo. Devemos considerar que as situações nas quais se verifica a intervenção psicológica são, por vezes, tão complexas que nem sempre podemos recorrer à segunda modalidade diagnóstica. Por serem fundamentadas em eixos teóricos divergentes, essas modalidades diagnósticas podem ser consideradas complementares? Delicada questão, visto que, no primeiro caso, o sujeito é reduzido a uma objetividade capturada pelos meios técnicos relativos ao arsenal científico, devido à quase total supressão de sua realidade histórica e, no segundo, é convocado a produzir um saber e assim participar da montagem diagnóstica com os achados referentes à sua dinâmica subjetiva. Assim, essas duas possibilidades são indicativas da existência de dificuldades práticas em termos de uma contradição: para começar um tratamento, deve-se ter uma hipótese diagnóstica, contudo o diagnóstico de estrutura somente pode ser feito uma vez terminado o tratamento. Então, qual via deve ser seguida pelo clínico? Em princípio, este não deve realizar um tratamento guiado pela lógica do ensaio-e-erro, ou seja, tem-se de partir de uma hipótese diagnóstica para elaborar as estratégias do tratamento. Entretanto, deve-se acreditar também que essa hipótese pode ser reformulada durante o percurso clínico, uma vez que nem sempre as previsões iniciais se confirmam, principalmente, considerando as diversas reações do "doente" aos procedimentos do tratamento e a si próprio ante a possibilidade de viver sem estar doente. Nada é mais intrigante, aos clínicos, as reações negativas de um "doente" que apresenta pioras em decorrência da submissão a um tratamento. Isso pelo fato de que existem "doentes" que temem estar curados e que não acreditam dispor de meios para viver, caso a doença falte. Certamente, não podemos pensar que, nessas situações, houve um erro de diagnóstico, embora isso não seja impossível, ou mesmo a aplicação inadequada de determinadas estratégias, e que a engrenagem da vida psíquica produz circunstâncias, às vezes, muito surpreendentes.
O aspecto crítico a ser considerado na avaliação da dinâmica psíquica reside na dificuldade de encontrar a chave de confiabilidade na interpretação dos traços revelados pelos instrumentos psicológicos, visto que a esse respeito as opiniões são bastantes divergentes no diversificado campo do saber psicológico. Além disso, temos, por um lado, que considerar a incidência da subjetividade do clínico no processo e, por outro, a experiência acumulada e o domínio teórico como fatores auxiliares na interpretação dos achados subjetivos. Esses não são aspectos simples, especialmente o último, pois, como sabemos, a interpretação dos achados diagnósticos pode ser viesada em razão da escolha da linha teórica adotada pelo profissional em seu exercício. Quer dizer, a observação realizada é lida nos parâmetros de, apenas, um dado enfoque teórico que pode deixar de fora aspectos importantes que, em outras leituras, seriam considerados.
Em face dessas dificuldades, indaga-se: o instrumento de avaliação que requer uma interpretação baseada em um dado modelo teórico pode ser considerado um argumento válido sobre a estrutura psíquica? Questão difícil de ser respondida afirmativa ou negativamente. Não obstante, existem correntes teóricas que fundamentam essa possibilidade, enquanto que outras linhas teóricas do saber psicológico advogam em direção contrária. Eis o grande dilema com que se defrontam os clínicos quando são convocados a diagnosticar a estrutura psíquica, seja utilizando os parâmetros do saber médico, que primam pela objetividade; seja na utilização do saber psicológico, cujo acento recai nos aspectos subjetivos e assim centram-se na singularidade (Leguil, 1989).
Na práxis, a avaliação da estrutura psíquica é um assunto repleto de controvérsias e obscuridades em que existem os prós e contras. Alguns defendem e outros advogam ser inviável realizar a avaliação de uma qualidade psíquica. Afora esse solo de controvérsias, não devemos esquecer que a diretriz de um tratamento requer um posicionamento preliminar. Então, o que o clínico deve considerar, no início do tratamento, se não pode ter uma certeza acerca da realidade da estrutura e somente informações fornecidas pelos instrumentos de observação e aferição sobre os traços psíquicos?
O clínico tem de tomar uma decisão a partir de elementos fornecidos pelos instrumentos e considerar as informações de natureza subjetiva. Alerta-se, em ambas as situações, a prudência na abordagem dos achados como informações úteis a serem analisadas ao longo de um processo, pois no tocante à dinâmica do psiquismo há ainda muito a ser descoberto. Exige-se cautela, para se distanciar das coordenadas que encerram qualquer grau de ambiguidade, pois não se pode tomar como base um saber de previsão indicada à primeira vista. Seria apenas uma pista importante, mas não o desvelar de uma estrutura. Sendo assim, o diagnóstico, admitido em uma pressa excessiva, pode transformar a prática clínica no emprego de clichês, dificultando a investigação que tem lugar durante um tratamento, ou qualquer modalidade de intervenção psicológica. Por isso, a atividade de avaliação psicológica, no processo diagnóstico, deve reconhecer a complexidade subjetiva, em razão do estado mórbido em que se encontra o sujeito, para assim regular o tratamento de modo que o diagnóstico se identifique ao tratamento.
Embora saibamos desses impasses, devemos ressaltar que nem sempre é possível esperar o término de um tratamento para formular um diagnóstico. O clínico deve estar alerta sobre a possibilidade de que o diagnóstico apriorístico não é indício de uma estrutura, e sim uma roupagem de traços evidenciados em um recorte devido a um momento da existência do sujeito. Isso nos serve de advertência para pensarmos que, no âmbito da prática clínica, o diagnóstico pode ser realizado antes ou depois de terminada uma intervenção terapêutica. Certamente existem outros espaços em que a prática psicológica não pode seguir essa diretriz, como no setor jurídico ou nas instituições escolares, onde o diagnóstico é utilizado, quase sempre, para que seja tomada uma decisão outra que não o tratamento psicoterápico, e ainda, muitas vezes, o parecer psicológico decorre da solicitação de outros profissionais que se utilizam das informações sobre a dinâmica psíquica para tomarem decisões sobre qual tipo de intervenção deve ser indicada para aquele sujeito. Faz-se necessário assinalar ainda que essas duas modalidades de realização diagnóstica se edificam em eixos paradigmáticos que se opõem. No primeiro caso, o sujeito, em função da suspensão de sua realidade histórica, é reduzido a uma objetividade capturada pelos meios técnicos relativos ao arsenal científico e, no segundo, tem-se a convocação do sujeito e ser coautor do seu diagnóstico. Em virtude dessa constatação, adverte-se que os instrumentos psicológicos devem ser repensados, para traçar balizas demarcadoras de nuanças subjetivas do criminoso, do louco ou daquele que apresenta distúrbios de conduta, principalmente se considerarmos que no campo das práticas jurídicas, "a psicanálise soluciona um dilema da teoria criminológica: ao irrealizar o crime, não desumaniza o criminoso" (Lacan, 1998, p. 136). Eis uma nuança de suma importância no processo diagnóstico.
Uma vez convocada a se posicionar frente ao campo jurídico, a psicanálise apresenta a sua versão para os fatos, que não são explicados segundo a lógica da causa-efeito, e sim que todo efeito tem de ser pensado a partir de uma causa. Além disso, aponta para a instância crítica, fonte da lei, denominada de Supereu que, na vinculação com a situação familiar, serve de fundamento para explicar: a) como as tensões criminosas se tornam patogênicas, b) as dificuldades de melhora de um doente no curso de um tratamento e, c) o fracasso diante de situações de êxito na vida, entre outras.
Tendo em vista esses argumentos como o profissional do campo da saúde psíquica e, em especial o psicólogo, deve agir quando é convocado a formular um diagnóstico, no exercício de sua prática? Isso quer dizer que estamos indagando sobre os procedimentos empregados e também a utilização que, no caso das práticas referentes ao saber jurídico, seja feita de tais informações, pois conforma salienta Legendre (1999), "o direito surge de um duplo registro: enunciados e representações" (p. 17). Por esse motivo, discutir as demandas contemporâneas da avaliação dos fenômenos psíquicos requer considerar primordialmente a articulação da Lei com as leis em consonância com o sujeito do desejo, visto que a Lei delimita o círculo da interdição a respeito do incesto e do assassinato, para que assim sejam possíveis, no campo da linguagem, as práticas sociais, de acordo com a observância das leis, das tradições e dos legados institucionais. Situação não muito diferente deve ser considerada quando um diagnóstico é solicitado por profissionais do campo do saber médico ou das instituições escolares.
E importante ressaltar, considerando essas particularidades, que, na segunda metade do século XX, o saber psicológico redimensiona a questão do diagnóstico, em uma outra compreensão do crime e da loucura, concebendo o homem como a expressão do funcionamento da linguagem e totalidade histórico-social. Por esta razão, o diagnóstico do criminoso, do louco ou de qualquer categoria, apresenta sutilezas quando os arranjos subjetivos são considerados, ao lado do funcionamento das instituições (Galeotti, 2007). Como se pode depreender das considerações aventadas, qualquer apreciação diagnóstica do criminoso, ou de qualquer sujeito, não pode ser feita em parâmetros meramente objetivos, sem se considerar a teia de relações que conferem, ao cenário atual, complexidade e obscuridade.
Um estudo em situação de campo sobre o ato criminoso
A investigação O ato criminoso como modalidade de gozo, pesquisa, realizada com fomento do CNPq, no período de 1995 a 1999, no sistema penal do Rio de Janeiro em 118 presos do total de 1103 condenados do Presídio Hélio Gomes, partiu da premissa de estudar o crime, considerando o discurso dos criminosos com o objetivo de identificar traços das estruturas neurótica, perversa e psicótica, visando desfazer o mal-entendido, difundido pela mídia e comum no linguajar policial, de que todo criminoso é psicopata. Cada detento, voluntariamente, se submeteu a entrevistas com o objetivo de historiar seu crime à luz dos fatos importantes de sua história de vida. De modo geral, não foi fixado o número de encontros com cada um, pois ficava a critério do pesquisador ou por vontade do detento o término ou a interrupção do processo.
A premissa norteadora que tomamos como eixo matricial do estudo considera que o ato criminoso é de natureza perversa, embora isso não garanta que seu agente também o é, ou seja, neuróticos e psicóticos cometem crimes como os perversos. Não obstante, povoa o imaginário popular e policial de uma única atribuição para o criminoso, na vinculação direta entre crime e maldade, sem considerar a necessidade de punição e até mesmo um projeto de realização calcado em uma produção delirante.
Considerando esse aspecto sombrio, investigaram-se, durante quatro anos, os detentos que espontaneamente submeteram-se ao psicodiagnóstico, segundo as linhas diretrizes propostas para o contexto dessa investigação: tempo para realização das provas psicológicas, a falta de privacidade (muitas vezes os detentos eram examinados diante da presença de um agente de segurança), entre outras. Deparamo-nos com dificuldades relativas à instituição, aos detentos e à utilização de instrumentos. Em princípio, muitos abandonavam o processo depois do primeiro encontro quando lhes era informado que tal circunstância não teria qualquer relação com a sua condenação em termos de diminuição da pena. Além disso, houve detentos, "chefes" de convívio em cubículos que, por imposição aos demais, "vendiam" a possibilidade de participar da pesquisa como condição de exercer uma atividade diferente do viver em cárcere. Ainda os funcionários do presídio sentiam-se ameaçados com a presença da equipe, especialmente, diante da possibilidade de divulgação das informações colhidas. Acrescente-se a isso a descrença explicitada pelos agentes penais de que qualquer intervenção com os detentos seria infrutífera.
O procedimento de investigação consistiu em entrevistas e aplicação de provas psicológicas que fornecessem indícios para que fossem tecidas considerações acerca da estrutura. Para tanto, utilizou-se o teste de Zulliger, cinco lâminas do Teste de Apercepção Temática escolhidas a partir das entrevistas realizadas em cada detento e dois desenhos da figura humana, tanto para a análise dos traçados projetivos, quanto para um aprofundamento a ser feito pelas histórias produzidas sobre o homem e a mulher. Dos 118 detentos, apenas 105 concluíram o processo. As perdas decorreram de óbitos, desistências, interrupções e transferências de detentos para outras unidades.
A partir do processo de análise do material, de cada detento, organizado em protocolos, constatamos que, embora estivéssemos trabalhando com os traços de uma dada estrutura subjetiva, atentamos para agrupá-los de acordo com as rubricas propostas pela psicanálise (neurose, perversão e psicose) no entendimento das modalidades de constituição subjetiva, como três possibilidades de arranjos psíquicos decorrentes de operações defensivas específicas: o recalque, o desmentido e a foraclusão. Assim, procedemos a uma separação dos protocolos que mostravam uma maior incidência de traços de cada estrutura subjetiva. Aqueles protocolos que mostravam certa adversidade em relação às três estruturas referidas compuseram uma quarta categoria, conforme ocorreu com os detentos que mostravam incidência de traços de epilepsia. A partir de então, elaboraram-se laudos psicológicos de cada detento que se submeteu e completou o processo.
Da análise nos laudos psicológicos, constatou-se que 48% dos detentos investigados encontram-se no contexto da estrutura neurótica; 34% da perversa; 11% da psicótica e 7% apresenta traços epilépticos marcantes. A via de condução à alocação de um sujeito na rubrica de cada estrutura foi formulada na consideração do tipo de defesa revelado nas entrevistas e nos dados observados nas provas projetivas, especialmente, o teste de Zulliger que contém indicações precisas acerca dos elementos diferenciais para a neurose, psicose, perversão e quadros de organicidade, entre os quais se encontra a epilepsia. Além dos dados obtidos nas provas psicológicas, um fator importante foi o discurso produzido pelo detento, tanto sobre sua história de vida, quanto sobre as circunstâncias do crime. Procedeu-se dessa maneira a fim de considerar as informações de cunho objetivo e os dados discursivos que trazem indicações sobre os arranjos subjetivos.
Cabe salientar que muitos dos detentos diagnosticados na rubrica de psicose foram condenados não tendo sido feita qualquer alusão à possibilidade de o sujeito ter cometido o crime movido por um comando delirante. Quer dizer, esses sujeitos foram julgados e condenados sem que qualquer avaliação clínica do estado psíquico tenha sido realizada. O caso mais marcante a esse respeito é o do condenado que serviu de inspiração à minissérie Noivas de Copacabana, exibida pela Rede Globo de Televisão. Tal detento forneceu explicação para seus crimes, todas pautadas numa lógica delirante: admitia que se as mulheres não se casaram ou se têm vestidos de noivas, estão tristes, então deviam ser mortas para que assim fosse aliviado o sofrimento com o qual conviviam. Afirmava ouvir vozes imperiosas para que executasse tais mulheres e que não tinha como evitar. Muitas vezes, quando lia um anúncio de venda de vestidos de noivas nos jornais, interpretava como uma convocação para a execução da vítima, o que fazia segundo um projeto metodologicamente planejado. Não obstante, o aparato jurídico o considerou responsável pelos seus atos, daí ter sido julgado e condenado. Isso quer dizer que detentos que deveriam ter sido encaminhados para tratamento encontram-se sob condenação. Esse foi um caso raro em que a série de atos perversos praticados se justifica por uma espécie de comando exterior que ordena e exige que o sujeito realize tais atos. É uma ordem imperiosa a qual não pode, em qualquer hipótese, desobedecer.
Considerando os achados da investigação, conclui-se que a fenomenologia neurótica é predominante naqueles que praticaram um ato perverso. O grande desafio na realização dessa investigação consistiu no suporte aos detentos diante das situações advindas do contato com aspectos encobertos de suas realidades psíquicas, além da mobilização diante das provas psicológicas.
Acrescente-se também a insistência de representantes institucionais em ter acesso aos dados dos detentos, o preparo para a devolução dos resultados e a orientação quanto a determinados encaminhamentos. Enfim, o emprego do instrumental psicológico serviu para deslindar nuanças psíquicas expressas pelos detentos. Cabe assinalar que, nas situações de avaliação, evidenciou-se a preocupação, sem sucesso, dos detentos em ocultar dadas peculiaridades de suas vidas a partir do ingresso no mundo do crime pelo assassinato.
Enfim, no cenário da atualidade, as demandas acerca da avaliação dos fenômenos psíquicos são inúmeras e a avaliação psicológica tem cada vez mais se firmado, solidificando-se como uma prática dos profissionais do campo da saúde psíquica, seja visando a inclusão da vítima nos procedimentos judiciais como um sujeito de direito; seja na possibilidade de punição do criminoso, e até em outras finalidades. Certamente sabemos que, na prática, isso ainda é um sonho em um país que tem como norma a impunidade e que a justiça, quase sempre, só julga e condena os crimes dos pobres. Basta para isso trazer à baila a situação da senhora que ficou presa por um ano por ter roubado um produto em um supermercado e o desembargador que recebeu uma propina de um milhão para conceder uma liminar e que não ficou preso por mais de uma semana.
Considerações Finais
No campo das ocorrências psíquicas, temos fenômenos que apresentam propriedades matematizáveis e outros que são da ordem da compreensão e interpretação. Nesse sentido, quando se procede a uma avaliação psicológica, temos de adotar estratégias elaboradas a partir do encaminhamento teórico do saber psicológico, ou seja, abordar, diferentemente, o processo de aferição quando o tema em pauta é a dinâmica psíquica, visto ser necessário considerar que:
a) o fenômeno que se expressa objetivamente é de uma natureza e a estrutura psíquica de outra, ou seja, pode haver relações entre ambos, mas não se pode garantir que o traço seja a indicação da estrutura.
b) a singularidade da ocorrência psíquica, como aspecto não padronizável, mantém um caráter diferencial, ou seja, todos os "doentes" de uma mesma doença jamais são iguais, pois a relação de cada um com sua "doença" assume contornos subjetivos e significações próprias.
c) a expressão de um traço conforma um quadro apreendido enquanto um conjunto de indícios existentes acerca da doença. No campo do saber médico é objetivado como síndrome.
d) o aspecto estrutural, além dos meros fenômenos expressos por signos indicadores de uma situação vivencial deve ser considerado. Eis o nó górdio da avaliação na apreciação da dinâmica da estrutura psíquica, pois qual a chave de confiabilidade na interpretação dos traços revelados pelos instrumentos? Esperamos que a ciência psicologia, um dia, desvende esse mistério.
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Endereço para correspondência:
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Enviado em Janeiro de 2009
Texto reformulado em Maio de 2010
Aceite em Julho de 2010
Publicado em Outubro de 2010
Sobre o autor:
Francisco Ramos de Farias. Professor Adjunto do Departamento de Fundamentos da Educação e do Programa de Pós-Graduação em Memória Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO/PPGMS.