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Temas em Psicologia

versão impressa ISSN 1413-389X

Temas psicol. vol.18 no.1 Ribeirão Preto  2010

 

Histórias de vida e representações sociais de violência por professores de escolas públicas

 

Life histories and social representations of violence by public school teachers

 

 

Alexandre da Silva de PaulaI; Sérgio KodatoII

ICentro Universitário de Votuporanga
IIUniversidade de São Paulo, Ribeirão Preto

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A violência escolar é um fenômeno complexo e preocupante. Os professores, muitas vezes, sentem-se incapazes de mediar os conflitos diários, as agressões ou episódios de indisciplina, o que afeta o processo pedagógico. Este estudo versa sobre as representações sociais de violência por professores de uma escola pública de ensino fundamental e médio. Os dados foram coletados por meio de entrevistas semiestruturadas com oito sujeitos. As entrevistas foram organizadas em categorias temáticas segundo a análise de conteúdo. Os resultados apontam distintas interpretações sobre a gênese da violência nas escolas, porém, a retórica dos participantes não se ancora no conhecimento científico. Emergiram dimensões polissêmicas nos discursos, com destaque para o reducionismo psicológico e os sentidos educativo-familiar e fatalista.

Palavras-chave: Violência Escolar, Representações Sociais, Escolas Públicas.


ABSTRACT

School violence is a complex and worrying phenomenon. Teachers often feel unable to mediate daily conflicts, aggressions or indiscipline incidents from students, all of which affect the educational process. This study deals with social representations of violence by elementary and High School teachers of the public school system. Data was collected in interviews conducted with eight participants. The interviews were organized in thematic categories according to content analysis. Results showed different interpretations about the genesis of violence in the schools, and participants' rhetoric was not anchored in scientific knowledge. Polisemic interpretations emerged, with emphasis on psychological reductionism, as well as family, educational and fatalistic interpretations.

Keywords: School Violence, Social Representations, Public Schools.


 

 

Na sociedade contemporânea, as instituições mediadoras dos conflitos sociais atravessam um período de crise e instabilidade, comprometendo a reprodução ideológica que estabiliza o modo de produção. Frente à natureza das mudanças que regem as relações sociais, a subjetividade encontra-se num momento de desestabilização. Segundo Rolnik (1995, p. 53), essas transformações "não são portadoras de destruição, mas, ao contrário, de uma complexificação cada vez maior do mundo".

Selligmann-Silva e Nestrovski (2000) nos indagam sobre a crise e o próprio empreendimento educacional: poderá o trauma instruir a pedagogia, e poderá a pedagogia lançar luz sobre o mistério do trauma? Na realidade, nunca a ansiedade, a incerteza e a frustração alcançaram maiores proporções no palco escolar.

Segundo Joffe (1998), em momentos de decadência, as representações negativas e depreciativas do outro se intensificam e, consequentemente, esse outro é objetivado como 'bode expiratório', 'vítima sacrificial'. Uma das formas pelas quais os segmentos sociais dominantes controlam o medo é por meio da degradação do outro pela via da desumanização, animalização ou demonização do diferente.

As instituições de confinamento (prisões, manicômios, asilos, reformatórios) compõem o locus onde a incidência da crueldade é estrategicamente utilizada1.

No contexto atual, Debarbieux (2001, p.170) afirma que, ao se investigar a violência nas instituições escolares, pode ocorrer "um erro fundamental, de significado idealista e a-histórico: acreditar que definir o fenômeno consistiria em se aproximar, o mais possível, de um conceito absoluto de violência". O autor entende que, para uma compreensão científica desse fenômeno, em suas múltiplas determinações, é necessário demonstrar como este é socialmente construído em sua designação, em seu campo semântico e representacional.

No que tange à educação pública, observa-se uma série de atos individuais e coletivos que banalizam a violência e, de fato, inúmeros graves incidentes marcaram as últimas décadas. Por outro lado, nas escolas de periferia, violência e indisciplina muitas vezes são conceitos que se confundem no discurso de professores e demais agentes educativos. Contudo, a frequência dos episódios deixa nítida a ineficácia das políticas educacionais voltadas para a prevenção dos conflitos.

No levantamento nacional realizado por Codo (2002), três tipos de situações mais frequentes se destacaram: as depredações, furtos ou roubos, as agressões físicas entre os alunos e as intimidações contra professores. Na última década houve mudanças no padrão da violência nas escolas públicas, que atingiu atos de vandalismo, agressões interpessoais e desrespeito à figura de autoridade. Destacase que a conduta delituosa nas escolas passou a envolver o porte de armas, o tráfico e o consumo de drogas.

Em estudo conduzido por Njaine e Minayo (2003, p.127), pôde-se constatar que a violência midiatizada tem influenciado radicalmente a conduta dos alunos nas escolas. A mídia, principalmente a televisão, é, na visão dos alunos, "uma das causas da violência nos colégios, sobretudo por noticiar os acontecimentos de jovens atirando em seus colegas nas escolas norte-americanas, e usar a violência para buscar pontos no IBOPE".

A espetacularização da violência, ao mesmo tempo em que estimula sua mimetização, constitui-se enquanto dispositivo catártico e atenuador. Morin (1997, p.105) postula que o espetáculo da violência na mídia "incita parcialmente a adolescência, em que a projeção e a identificação não se distribuem de modo racionalizado, mas, ao mesmo tempo, apazigua parcialmente as necessidades agressivas".

Killingbeck (2001) examinou de que modo os crimes cometidos com arma de fogo em escolas públicas, entre 1997 e 1998, nos EUA, foram representados a partir de sua exposição nos meios de comunicação. A autora indica que essas representações contribuíram para um sentimento de "pânico moral", pois os incidentes eram apresentados como uma tendência crescente nas escolas.

Na Europa, fatos espetaculares e raros que envolviam as escolas foram destacados pela mídia para descrever a barbárie infanto-juvenil, "associados a um discurso trôpego sobre o declínio dos padrões educacionais e, nesse sentido, uma das principais tarefas dos cientistas vêm sendo a de desconstruir estes discursos" (Debarbieux, 2001, p.71).

Diante disso, indústrias armamentistas e de segurança especializada nos EUA aumentaram seus lucros com os sentimentos de perigo e risco iminente. Dentre o grande número de produtos de segurança escolar que foram lançados no mercado, a partir do massacre em uma escola em Columbine, estão: mochilas de vinil transparente, software de planejamento de crises para ajudar com as futuras tragédias, software para monitorar sites violentos, manuais de prevenção da violência e programas de treinamento de professores elaborados por consultores e mochilas à prova de balas (Devine, 2002).

Algumas explicações para a suposta multiplicação da violência nas escolas são comuns e constantes nos discursos da mídia, dos professores e especialistas: abuso e tráfico de drogas, acesso às armas, poucas opções de lazer, ausência de vínculo familiar, decadência das figuras de autoridade, fracasso escolar, professor despreparado, sucateamento do Estado, estrutura precária das escolas, currículos inadequados, democratização do ensino, dentre outros fatores. De acordo com Comellas (2002, p.37), "desde diferentes pontos de vista, imprensa, professorado, família, alunado e outros coletivos, interpretam as condutas agressivas de forma a culpabilizar basicamente os menores e suas famílias".

Para Mabilon-Bonfils (2005, p.53), as recentes transformações da escola são estruturais, e a lista de mudanças é vasta: a massificação escolar, a heterogeneidade crescente dos métodos de inserção dos alunos, as modificações no recrutamento dos professores, a feminização da profissão, a inserção crescente de um relatório instrumental ao conhecimento, a crueldade doce da esfera comercial na escola e a notável insuficiência das políticas de educação. Tudo isso, na verdade, sob a ideia de crise do pacto republicano.

Wacquant (2002, p.46), analisando o ensino público nas periferias de Chicago, alerta que a educação, neste contexto, é o símbolo da pauperização avançada do Estado e se tornou uma espécie de "reserva escolar na qual as crianças são encurraladas à falta de outra coisa. O nível escolar é tão baixo que um aluno pode conseguir sua conclusão na escola Luther King sem ser capaz de escrever uma frase completa".

Devine (1996) investigou o cotidiano das escolas rotuladas de segunda linha em Nova York e afirma que essas escolas se caracterizam por concentrar alunos com trajetórias mal-sucedidas, uma elevada taxa de abandono e evasão, baixos índices de aprovação e os piores desempenhos nos exames de avaliação.

De acordo com Payet (2005, p. 687), o exercício do magistério, em estabelecimentos escolares considerados desqualificados, implica num sentimento de abandono, um rancor pelo fato de os professores terem sido abandonados pelo Estado e pela hierarquia, "sentimentos que alimentam a agressividade perante alunos que também estão ao rubro".

Nesse sentido, Dubet (2003) argumenta que a desordem escolar introduz questionamentos sobre a função cívica da escola, principalmente nas periferias urbanas, onde há um declínio na crença da utilidade dos estudos. Uma vez que a educação é incapaz de garantir a possibilidade de inserção na economia formal, a escola pública perde o seu significado simbólico de escalada social.

É necessário ressaltar que, na sociedade atual, a temática da violência escolar vem se transformando numa questão ideológica, "em meio a uma impressão generalizada de declínio global da moral, relacionada à decadência dos valores familiares e há um excesso de indulgência por parte dos professores" (Montoya, 2002, p. 104). Em muitas escolas públicas, o clima de pânico e medo é exacerbado, tornando mais graves os problemas que de fato ocorrem. Portanto, "há um fantasma da insegurança a propósito da violência na escola, fantasma este que faria somente recrudescer a demanda social de repressão?" (Debarbieux, 2001, p.175).

A história nos aponta que o problema da violência nas instituições não é recente. Nesse sentido, pergunta-se: como os professores interpretam os atuais episódios de violência e agressão no cotidiano escolar? Considerando a problemática apresentada, este estudo teve como objetivo investigar as representações sociais de violência por professores do ensino médio e fundamental numa escola pública de periferia.

 

Método

Esta pesquisa se fundamenta na abordagem teórica das representações sociais, sistematizada por Moscovici (1978). Nesta perspectiva, a ciência é definida como uma prática social. Minayo (1999, p.10) afirma que a pesquisa qualitativa é "aquela que é capaz de incorporar a questão do significado e da intencionalidade como inerentes aos atos, às relações, e às estruturas sociais, como construções humanas significativas".

De acordo com Moscovici (1978, p.181), as representações sociais compreendem "um conjunto de conceitos, explicações e afirmações inter-individuais. São equivalentes aos mitos e sistemas de crenças das sociedades tradicionais; pode-se dizer que são a versão contemporânea do senso comum". As representações são mediadas pela realidade social, produto e processo de uma atividade de elaboração psicológica (Jodelet, 1986).

Demo (1998) destaca que, nesta modalidade de pesquisa, parte-se da complexidade do real, reconhecendo que a realidade é mais complexa do que a simplificação metodológica usada para sua compreensão. O material primordial da investigação qualitativa é a palavra que se articula discursivamente. Busca-se compreender, em níveis aprofundados, os valores, práticas, lógicas de ação, crenças e normas culturais que asseguram aos membros de um grupo a atuação no seu cotidiano (Minayo, 1999).

Participantes da pesquisa

Foram entrevistados oito professores (4 mulheres e 4 homens), com idade entre 20 e 39 anos que atuavam numa escola pública de periferia, num município de pequeno porte (30 mil habitantes). Esses professores atuavam no ensino fundamental (2) e médio (6). Em termos de regime de trabalho, 6 tinham contrato temporário e 2 eram efetivos. O tempo em que atuavam na escola variava de 6 meses a 3 anos e, no magistério, o tempo de experiência oscilou de 1 a 12 anos. As disciplinas que lecionavam eram: 3 docentes em matemática, 3 em língua portuguesa, 1em história e 1 em psicologia. A escolha dos entrevistados ocorreu de forma aleatória, considerando a disponibilidade e interesse para participarem do estudo. Para efeitos de análise e visando facilitar a visualização dos dados, foram identificados unicamente através dos códigos de P1 a P8.

Caracterização do local

A escola pesquisada apresentava cerca de 1.000 alunos matriculados nos três períodos (manhã, tarde e noite), segundo dados de 2006. Possuía três salas de ensino médio e cinco de ensino fundamental no período da manhã. Todas as salas no período da tarde eram de ensino fundamental. No período noturno, além do ensino médio (3 salas), havia duas turmas de Educação de Jovens e Adultos (EJA). Era a escola mais nova do município, com apenas três anos de funcionamento. A sua inauguração oficial ocorreu em outubro de 2006, porém, desde novembro de 2004 os alunos já frequentavam as aulas mesmo sem a legitimação do Estado.

Essa escola fazia parte de uma Diretoria de Ensino do interior de São Paulo que administrava mais 28 escolas públicas, em oito municípios de pequeno porte da região de Ribeirão Preto. No período inicial, a escola funcionava em condições muito precárias. Ainda não havia recursos materiais e humanos para iniciar suas atividades. A ausência de estrutura adequada era um fato que acompanhava a instituição desde o início até os dias em que a pesquisa foi realizada.

A quadra de esportes era descoberta, a escola não dispunha de redes e era pequeno o número de bolas. Muitas das portas das salas de aula não tinham fechaduras e outras estavam danificadas. Os três computadores da sala de informática eram precários e, durante a pesquisa, esses equipamentos foram furtados. Não havia muro ao redor da escola, o terreno não era cimentado e a residência do caseiro era um barraco de madeira. Após três anos, no período letivo de 2007, o governo do Estado liberou as verbas necessárias para a construção do muro e demais reformas urgentes no prédio, muito danificado pela depredação e pelos atos de vandalismo.

Coleta de dados

O material empírico foi obtido por meio de entrevistas abertas em profundidade com professores. As entrevistas foram realizadas na escola em horário previamente agendado. No início da interação com os participantes, o pesquisador apresentou os aspectos éticos do estudo. Os seguintes tópicos foram abordados nas entrevistas: história pessoal, trabalho, família, formação escolar, contexto comunitário da escola, carreira no magistério, violência social, violência escolar, críticas e soluções sobre a violência na escola.

A entrevista aberta ou livre é indicada nos estudos de representações sociais, ou seja, trata-se de uma escolha pertinente quando se propõe a análise de conteúdo. Triviños (1992) aponta que a entrevista aberta está entre os instrumentos mais decisivos que interessam ao pesquisador qualitativo. Na interação que ocorre durante a entrevista, a linguagem é vista como uma sequência de atos por meio dos quais o entrevistador procura provocar no entrevistado verbalizações pertinentes com os objetivos da pesquisa (Minayo, 1999).

 

Resultados

O conteúdo das entrevistas foi organizado em categorias temáticas. As unidades de significado foram agrupadas tal como orientam Bogdan e Biklen (1979). A divisão do conteúdo em categorias ocorreu à medida que o material foi lido, e o pesquisador se concentrou em discursos que se repetiam ou destacavam-se por certas palavras, frases ou fragmentos. Sendo assim, emergiram as seguintes categorias:

a) Origem e contexto familiar: nessa categoria emergiram as marcas discursivas que descrevem o perfil das famílias dos entrevistados, as condições socioeconômicas e culturais. Abaixo, inseriram-se os recortes de transcrições literais das entrevistas que apontam para dificuldades vividas ao longo das trajetórias pessoais.

"Meus pais são lavradores, resolveram vir para o Estado de São Paulo, para trabalhar é (...) no corte de cana (P1)".

"A gente cresceu no sítio (P3)".

"Nós éramos assim, pessoas de baixa renda mesmo. Éramos que nem ciganos, de cidade em cidade (P7)".

"Um perde a cabeça de um lado, outro perde a cabeça de outro, a situação financeira que está meio cruel (P4)".

Os professores passaram por situações de sofrimento e pobreza desde a infância. As famílias saíram de zonas rurais para áreas urbanas em busca de melhores condições de vida e de trabalho. O grupo compartilha o mesmo imaginário social rural. Todos cresceram em pequenas cidades no interior paulista, distantes de metrópoles urbanas, com destaque regional para a cultura da cana-de-açúcar e seus contornos sociais.

b) Formação educacional e atividades dos familiares: nessa categoria surgiram falas sobre a formação escolar e a profissão dos familiares. As transcrições literais abaixo indicam a pouca escolaridade do grupo familiar.

"Eu tenho só um irmão e os estudos dele foi só até o técnico em contabilidade, ele estacionou (P7)".

"Eu tenho dois irmãos (...) só eu fiz faculdade (P3)".

"Meu pai não é alfabetizado, trabalha na usina (P2)".

Os genitores dos entrevistados, em sua maior parte (6), não concluíram o ensino médio e ocorreram também casos de analfabetismo (2). Observou-se o predomínio de trabalhos precários, rurais, de baixa remuneração e qualificação. Dessa forma, havia pouca tradição cultural ou possibilidades econômicas para uma boa formação escolar dos entrevistados. Nesse contexto, destacou-se a autorreferência dos sujeitos (P1, P2 e P7), no momento em que se referiam à formação educacional, pois se compararam aos demais membros da família e salientaram serem os únicos que concluíram o ensino superior.

c) Trabalhos anteriores e paralelos à docência: nessa categoria encontram-se as falas sobre os trabalhos exercidos antes da carreira na educação, como também, paralelos ao magistério. Os fragmentos discursivos apontam para a necessidade econômica de ingresso precoce no mercado de trabalho.

"Comecei a trabalhar com 12 anos de idade no corte de cana (P1)".

"Meu primeiro emprego foi em uma fundição (P2)".

"Trabalhei na indústria, comecei como faxineiro (P5)".

"Com 12 anos eu parei de estudar para trabalhar no frigorífico (...) trabalhava no frigorífico como ajudante (...) depois fui trabalhar como auxiliar de serviços gerais (P7)".

O histórico profissional dos professores revela ocupações precárias em diversos setores (indústria, agricultura, comércio e prestação de serviços). Destacou-se o trabalho precoce de P1 e P7, que teve início aos 12 anos de idade. Observou-se que, mesmo quando os sujeitos ingressaram no magistério, havia necessidade de trabalhos paralelos para complementar o baixo salário.

d) Determinantes na escolha da profissão: nessa categoria emergiram os fatores que motivaram os entrevistados para a opção pelo magistério. As marcas discursivas inseridas abaixo indicam alguns aspectos do processo de escolha profissional.

"Toda a dificuldade que eu enfrentaria em uma sala de aula, ela seria menor do que na lavoura (P1)".

"Você vai fazer aquilo que você tem condições (...) podia fazer alguma coisa ligada à informática, fisioterapia, eu não tinha condições (P2)".

"Então, por estar desempregado entrei no magistério (P2)".

"Meu sonho era ou trabalhar em empresa ou montar um consultório; mas não consegui (...) como última opção comecei dar aula (P8)".

As marcas discursivas indicam que a escolha profissional dependeu de fatores como a crença em melhoria financeira ou dificuldades de exercer outra profissão. Essa escolha não implicou a realização de uma meta profissional, ou seja, ser professor não era a primeira opção na vida dos entrevistados. Pode-se supor uma escolha profissional ajustada às condições peculiares, mas pouco madura, no sentido de se levar em conta a função pedagógica e social da carreira.

e) Representações do aluno pelo professor: nessa categoria incluíram-se as concepções e opiniões dos professores sobre seus alunos. As falas dos entrevistados sugerem as razões e motivações do aluno para frequentar a sala de aula. Inseriram-se abaixo os fragmentos discursivos referentes à opinião sobre uma parcela discente.

"O aluno falou assim aqui é uma porcaria, ela disse assim: 'aqui, eu odeio esta escola, pelo menos eu tenho a hora do recreio, em casa eu não tenho nada' (P8)".

"Alguns vai [sic.] lá para passar drogas (P7)".

"Uns vêm para distrair mesmo, outras, como dizem as meninas, para ficar livre do serviço de casa (...) preferem ficar aqui sem fazer nada (P2)".

"Eles não estão nem aí (P2)".

"Eles iam para fazer algum vandalismo (P6)".

Na visão dos professores, aprender ou não aprender é algo indiferente para o aluno, um investimento sem retorno. Em síntese, o aluno vai à escola por lazer, pela merenda, para se distrair, para evitar agressão dos pais ou para ficar sem fazer nada. Em nenhuma das falas dos entrevistados, houve referência à busca de aprendizagem, conhecimento ou informação, como motivação para frequentar a escola.

f) Caracterização da instituição escolar: as unidades temáticas que foram escolhidas nessa categoria envolveram as condições materiais, recursos e aspecto físico da escola. As marcas discursivas recorrentes, algumas transcritas abaixo, sugerem uma postura crítica com relação às condições estruturais do ensino.

"Aqui (...) não tem nada, é isso aí que você está vendo (P2)".

"O pessoal comenta que a segurança externa quem faz é a ronda escolar, a segurança é um problema (P5)".

"O material é precário, as portas estavam pichadas, o corredor pichado, no banheiro não tem porta (P4)".

"Aqui você vai conhecer o mundo como ele está agora (...) porque as pessoas queriam criar um mundo de utopia (P4)".

Os professores apontaram problemas estruturais, vandalismo e depredação do patrimônio material. As falas expressaram os problemas de segurança, recursos limitados para as aulas e deterioração do prédio escolar. A falta de um muro ao redor da instituição, que impedisse a passagem de moradores e jovens do bairro, intensificava as preocupações e medo dos professores.

g) A criminalização da instituição: nessa categoria elegeram-se as marcas discursivas que indicam a comparação da escola com uma instituição prisional. Os fragmentos transcritos abaixo sugerem as insatisfações com relação a essa comparação.

"Quando chama alguém de preso ele fez algum crime (...) se você estuda em uma escola que tem o nome de uma prisão é assim né? (P1)".

"A população pensa que o resto das escolas cai aqui (...) os piores elementos P3".

"A comunidade vê a escola (...) como o berço dos marginais (P4)".

"Uma escola que tem o nome de uma prisão (P7)".

Observa-se o predomínio de um discurso que estigmatiza a escola, uma vez que há em seu apelido uma referência ao presídio Carandiru. A comunidade escolar, alunos, pais e alguns professores disseminavam essa linguagem pessimista, intensificando os problemas escolares e a criminalização da instituição.

h) A violência e o professor: essa categoria agrega as marcas discursivas sobre os episódios de agressão, violência e indisciplina. Os episódios reportados, em grande parte, estão relacionados ao 'confronto diário' entre professor e aluno. Os fragmentos discursivos reproduzidos abaixo versam sobre a violência sofrida pelos professores.

"Ele queria bater na professora, agredir, só não conseguiu porque outras pessoas entraram no meio e impediram 'disso' acontecer (...) o aluno pegou uma chave e arrancou o motor do carro da professora (P1)".

"Teve uma professora que peitou um aluno, ficou esperando ele lá fora, falou assim era ele ou ela (...) falou que ia peitar ele mesmo (P7)".

"No percurso da sala dos professores, até na escadaria lá em cima que eu tinha que chegar à sala de aula, me deparava com alunos que xingavam o professor, menosprezava a gente, tacava as coisas na gente (P7)".

A violência verbal é apresentada como o problema da relação professor-aluno por se tratar de um fenômeno diário. A psicopatologia desse vínculo é representada em termos de uma rivalidade, sem limites. Nessa visão, a sala de aula é apresentada como um espaço onde o conflito é inevitável, 'uma terra de ninguém' (P4) destituída de ordem ou disciplina. Quando se utiliza uma parcela considerável da energia para fins de defesa contra um suposto ataque ou ameaça, pode sobrar pouca energia disponível para a comunicação, o ensino e a aprendizagem.

i) Conceitos e classificação dos problemas: nessa categoria se observa como os problemas escolares foram classificados pelos entrevistados. Os fragmentos discursivos transcritos abaixo indicam as representações de violência dos participantes.

"A violência é uma palavra um pouco forte (P6)".

"Eu acho que é um exagero, tem violência, mas não é tudo isso (P8)".

"Todo mundo que vem aqui acha que vai encontrar uma praça de guerra e não é isso, mas... (P2)".

"Indisciplina tem, mas ato 'infracional '? (P2)".

Os episódios foram interpretados pela égide da indisciplina e não da violência. A representação de violência se ancora no parâmetro penal, delituoso e na agressão física. Para os entrevistados, havia um exagero no discurso coletivo dos demais professores, alunos e pais quando se referiam à escola, caracterizando-a como uma instituição perigosa e comparada a uma cadeia pública.

j) Fatores constitutivos e origem da violência: nessa categoria elegeram-se as interpretações sobre as origens da violência no palco escolar. As falas apontam para uma diversidade de causas e justificativas sobre a origem dos problemas.

"O Estado obriga ser descompromissado e ingressar no inferno (P2)".

"A gente tem que botar a culpa em alguém, aí bota no governo (P3)".

"Eu acho que tudo começa em casa (...) então a violência está ligada à falta de afetividade (P8)".

"O lado psicológico está bem forte, sei lá (...) eu acho que é um distúrbio. Nós seres humanos temos essa coisa da discórdia (...) no mesmo tempo que a gente tá bem, a gente tá mal (P4)".

Os dados apontam múltiplos fatores, um discurso polissêmico com destaque para a atual política educacional do Estado, o reducionismo psicológico e as famílias dos alunos. Os problemas da escola são apresentados numa retórica minimalista, são vistos de forma genérica, negligenciados ou apontados como sendo externos à instituição.

k) Sentimentos de impotência e conformismo: nessa categoria, foram incluídas as falas sobre as possibilidades de mudança e formas de enfrentamento dos problemas da escola. Foram reproduzidas abaixo as marcas discursivas recorrentes que denotam os problemas da situação atual.

"Não há quem mude (...) você pode tentar de todas as formas (P2)".

"Os problemas vinham e ninguém resolvia, todo mundo ficava parado, era como uma bola de neve (P4)".

"O desinteresse era muito grande, de certa apatia das coisas, tanto faz como eu ensinasse ou não ensinasse era a mesma coisa (P2)".

"Então, é (...) não existe salvador da pátria, não existe herói (P1)".

Os professores demonstram uma visão pessimista que aponta para a impotência e a noção fatalista da violência na escola. Essa ótica se associa a um processo de 'lavar as mãos' (P1) e se esquivar da responsabilidade dos problemas. Nesse sentido, os discursos indicam que 'não existe salvação' (P3), ou seja, é um fato consumado que a educação brasileira 'é uma das piores do mundo' (P2), e os professores não se posicionam sobre como poderiam melhorar esse panorama: 'não há o que fazer' (P1).

 

Discussão

A história de vida dos professores revela o percurso de indivíduos desfavorecidos economicamente, que conviveram com limitações econômicas para concluírem o ensino superior. É pertinente a reflexão de Wacqüant (1999) sobre a divisão entre as classes sociais, afirmando que a pobreza é um sinônimo de maldição para a classe média. Concluir o ensino superior, num contexto de familiares semianalfabetos, foi um acontecimento que, supostamente, traria o 'passaporte da cidadania' (P2), significaria ascensão e inclusão social.

Contudo, a partir das experiências iniciais no ensino público, dos baixos salários, da realidade difícil em sala de aula, vieram à tona a desvalorização, o sofrimento e as situações de humilhação. De fato ser o único na família a concluir o ensino superior possibilitou que os professores abandonassem trabalhos precários e assumissem um trabalho intelectual. Porém, foram frustradas as expectativas de reconhecimento social e melhorias financeiras significativas.

É importante assinalarmos, também, a tendência dos professores em falarem do passado na família de origem, citando pouco o momento atual. Por outro lado, sobre as famílias dos alunos, verificou-se que os discursos associam as famílias pobres a contextos em que a convivência e interação são mínimas: 'o pai que não tem tempo pro filho, quando chega a sua casa bate no filho e na mãe, e é assim mesmo' (P7).

Os professores se veem incapazes de manejar as dificuldades atuais em sala de aula e 'não adianta querer o aluno de vinte anos atrás' (P1); educar o aluno de hoje é um enigma para um 'professor retrógrado' (P1). Esse sentimento de impotência ou inadequação é um sentimento perigoso, "induz a certa resignação diante do presente e, desse modo, uma aceitação de seus males" (Sennett, 1999, p. 317).

De fato, os professores convivem com muitas incertezas sobre seus valores, ética e postura profissional: 'você começa a questionar se adianta ter uma moral, uma ética que te leva aonde? '(P2). É relevante o que Batista e Codo (2002) afirmam sobre a crise de identidade docente. Os aspectos estruturantes da identidade do professor, a formação, os papéis sociais da escola e da educação hoje são questionados: 'eu não sei mais se o professor tem que fazer o papel de professor, de educador, passar o conhecimento ou se o papel dele é acolher' (P6).

Sobre a escolha da profissão, as falas apontam que atuar no magistério não implicou a realização de um sonho. A necessidade de renunciarem, devido à condição econômica, a outras metas profissionais é um fator fundamental a ser considerado, seja em termos de ideais que foram frustrados, seja em termos da satisfação com a profissão. Segundo Esteve (1999, p.34), quem escolhe ser professor na atualidade não está se pautando numa vocação, mas no álibi de sua incapacidade de fazer algo melhor. 'Os meus colegas de secundário do período da manhã, hoje são engenheiros, médicos... porque eles já tinham outro patamar, poucos se tornaram professores. Quem tem um nível melhor vai ter outra profissão' (P2).

Nas incursões para observação do contexto escolar, foi possível verificar a situação precária em que se encontrava a escola. De fato, chamava a atenção que naquele período não houvesse separação entre a escola e o bairro. O prédio público em construção parecia um espaço abandonado. Cardia (1997, p.56) apreendeu os significados do vandalismo em escolas na cidade de São Paulo. Os prédios degradados, com ar de vandalismo, fazem um convite ainda maior para destruição. "Vandalizar é o modo de se apropriar de um espaço decadente".

Os alunos foram transferidos de uma escola situada no centro da cidade para a escola do bairro. A possibilidade de estudarem num ambiente escolar de classe média foi interpretada pelos professores como um suporte que os alunos tinham no sentido de inclusão social e educacional: 'na escola do centro eles não tinham problema de comportamento, agora nessa outra escola, são os mesmos alunos, mas viraram bagunceiros' (P3).

Tavares dos Santos (2002) afirma que o vandalismo se constitui de expressões de um ressentimento social de jovens que foram ou se sentem excluídos do processo pedagógico. A escola foi representada como um depósito de sentimentos negativos e de retrocesso aos alunos, considerando que sua construção significou o fim da transição entre o bairro e o centro. A comparação entre uma escola pública e um presídio expõe um discurso coletivo enviesado por uma visão alarmista de rejeição ao novo.

No que tange às representações de violência escolar, os professores não assumiram que havia uma 'violência perigosa ', uma vez que se pautaram no parâmetro penal e na violência social para a classificação dos problemas: 'não sei nem se é realmente, assim uma violência? Tanto é que a gente não tem nem boletim de ocorrência' (P2). Portanto, o dilema da escola foi representado a partir do confronto ou enfrentamento entre aluno e professor, o que implica agressões verbais e depreciação mútua.

Segundo Montoya (2002, p. 122), o objeto-tema "violência escolar" não deve ser avaliado sem as tensões trazidas para o interior da relação pedagógica, hoje assimétrica pelas demandas atuais dos alunos que, em boa parte, são inaceitáveis para os autores do sistema público. Vários estudos sublinham "o aspecto da constituição social dos problemas da violência escolar, rejeitando a idéia de que um simples determinismo encontre-se em operação". A violência nas escolas se constitui de uma série de fatos que, acima de tudo, estão sujeitos à interpretação de distintos atores sociais.

O aluno foi representado como sujeito 'bagunceiro' que não 'sabe o que é errado ', 'carente de afeto ', que desconhece limite e respeito à autoridade. Por outro lado, há uma tendência no discurso dos sujeitos a explicar os problemas apontando a interação familiar e o Estado como origens do problema, contribuindo para que a responsabilidade do fracasso escolar seja direcionada para esferas além da pedagógica e institucional. Constata-se que, dentre as origens da violência escolar, não foram consideradas as relações e processos sociais, a escola "em seus currículos e em sua metodologia, em seu funcionamento, em sua natureza e papel na formação [...] o problema está na criança pobre e em sua família" (Patto, 1984, p.318).

Nesse sentido, destaca-se a fala de P7 ao teorizar sobre o significado da escolarização hoje: 'o aluno está como um peixinho fora d 'água, cuspindo muita água suja' (P7). Montoya (2002, p. 112) afirma que o enfraquecimento do significado da escola se relaciona, entre outros fatores, com o desaparecimento do consenso quanto ao que significa lei. Com efeito, cada vez mais se observa "a desregulamentação das situações escolares, a disparidade dos níveis educacionais dos alunos, a falta de motivação e o descontentamento dos jovens".

 

Considerações finais

Segundo Jovchelovitch (1998, p. 64), "as representações sociais estão ligadas à experiência vivida, e o compromisso que elas expressam é o compromisso com o vivido, com suas dores, suas distorções, suas possibilidades e impossibilidades". Diante disso, a história de vida dos entrevistados, além de um aspecto fundamental a se pensar em termos das representações sociais, fornece indícios sobre o perfil dos professores temporários da rede pública no interior de São Paulo: a origem é pobre e rural, são membros de famílias cuja formação ocorre até ensino básico, os trabalhos anteriores são precários e desqualificados, há necessidade de trabalhos paralelos para complementar o salário, o ensino fundamental e o médio são concluídos em supletivo, a formação superior ocorre em faculdades de baixa qualidade e depende do curso que conseguem pagar.

A escola pública de periferia, uma vez objetivada na imagem do Carandiru, reflete um ambiente agonizante com a apatia, desinteresse e revolta dos alunos. A representação social da escola como unidade prisional convida cada ator a dar um sentido à sua presença, a projetar uma imagem de si, afirmando um aspecto de contra-autoridade e marginalidade.

O discurso dos professores aponta que o vandalismo se relacionava com a transferência de alunos considerados problemáticos para a escola investigada. Ou seja, a destruição do equipamento público se associou tanto à inadequação do prédio quanto à recusa frente a uma instituição que passou a impedir a transição centroperiferia. Assim, foram ressaltados aspectos negativos do ambiente que chamavam atenção e, de certo modo, foram espetacularizados pela pequena mídia local. A rádio comunitária noticiava os incidentes escolares no município, fortalecendo estereótipos em relação aos alunos e à instituição, multiplicando a noção de que se tratava de uma 'praça de guerra' (P3) dominada por aprendizes de marginais.

À medida que a escola falha na tarefa de mediar civilizadamente a violência, ocorre o predomínio da rivalidade na relação professor-aluno, de modo que o próprio professor é escolhido como a "vítima sacrifical", e assim, está sujeito a humilhações, agressões e ameaças diárias. Na tese de Girard (1991), em vez de um contra o outro, a horda primitiva é apaziguada a partir da união de todos contra um. A violência é transferida para uma vítima específica: o bode expiatório.

No embate diário entre aluno e professor, o estudo aponta para um processo de regressão ou infantilização do educador. Uma vez que não há punição e o 'aluno tem o poder, a lei que o protege' (P2), chama a atenção que hoje o professor convide o aluno para a briga no final da aula. A forma de resolver a situação é por meio da agressão física, e não da negociação e conquista civilizada do respeito. Com efeito, isso indica a decepção e perda de sentido do trabalho docente, fatores que alimentam um círculo vicioso a partir do qual alunos, docentes e instituição caminham para a banalização dos conflitos.

Deparamo-nos com falas acentuando que mudanças significativas sobre a violência na escola 'é uma coisa que foge dos professores' (P1). Sendo assim, a escola se desobriga das suas responsabilidades pedagógicas e sociais, uma vez que a origem da violência está localizada no bairro, no Estado ou nos próprios alunos. O debate científico se torna, também, um debate estratégico: "deveria a escola ser isolada do bairro e protegida contra as agressões externas? Ou, pelo contrário, a solução não residiria numa parceria genuína com a família e com os habitantes da comunidade local?" (Montoya, 2002, p. 113).

De acordo com Jodelet (1989, p.360), as representações sociais são "uma maneira de interpretar e de pensar nossa realidade social, uma forma de conhecimento social". Uma pesquisa social com enfoque nas representações nos instiga na compreensão de como essas percepções, que justificam atitudes, são mantidas e compartilhadas. No que se refere aos sentidos das representações que professores produziram acerca do fenômeno da violência, podemos apreender que as falas apontaram para um discurso polissêmico que envereda para distintas dimensões.

Num primeiro momento, observa-se uma dimensão fatalista no discurso. Tendo em vista que os professores encaram um presente trágico na sala de aula, a violência pode ser interpretada como uma predestinação, algo impossível de se alterar. Frente a essa dimensão fatalista, os professores assumem o pessimismo e salientam a impotência: "não há o que fazer".

Num segundo momento, emergiu a dimensão educativo-familiar que aponta para a noção de incivilidade dos alunos. Neste âmbito, o aluno foi conceituado como sujeito "bagunceiro" que não "sabe o que é errado", "carente de afeto", que desconhece limites e respeito à autoridade, pois as famílias fracassaram em sua função de formação.

Por fim, aponta-se uma dimensão de reducionismo psicológico nessas representações, para as quais o insucesso ou fracasso dos alunos é compreendido a partir de uma matriz individual, vinculada à noção de doença mental. Sendo assim, atribuem-se causas psicopatológicas aos comportamentos perturbados, indisciplinados e agressivos. O aluno foi representado como um sujeito carente de afeto que reage naturalmente com agressão e violência às suas frustrações. As demandas dos docentes, nessa esfera, indicam intervenções no âmbito da psicologia clínica, como forma de reparar o déficit afetivo.

Enfim, os professores recorrem a diferentes formas de justificativas para explicar o fenômeno. Porém, a análise indicou que as representações não se ancoram em um saber científico e pedagógico do objeto, o que impossibilitaria formas de enfrentamento capazes de despertar algum sentido na prática profissional e reduzir o agravamento dos problemas.

A crítica da ideologia do fracasso escolar, portanto largamente vulgarizada, não gerou efeitos sobre as práticas e representações dos professores em matéria de agressão escolar. Segundo Mabillon-Bonfils (2005), no coração da unidade de ensino, a violência da instituição está presente, não apenas nos que impõem limites ao prazer, mas também naqueles que denegam sua gênese social e são funcionalmente políticos.

Enquanto lugar político, o palco escolar deve ser compreendido como instância decisória que organiza os jogos de poder, saber e violência, ligados, em parte, à discussão e apropriação da situação pedagógica. Enquanto peça essencial da gestão escolar, o corpo docente possui função política macro e microssocial, presença ativa no lugar dos conflitos e instância de negociação. O docente é produto da restrição negociada de um conflito entre pontos de vista antagônicos, bem como agenciamentos coerentes e totalitários de uns com os outros.

Assim, a violência nas escolas enquanto construção social é uma forma política: cotidianamente são praticados jogos de poder e saber. A instituição é percebida pelos professores como um tribunal, julgando os desempenhos didáticos e, como numa espécie de paródia da democracia representativa, jogando também no segredo das estratégias de encobrimento e descobrimento, de dissimulações e de revelações, de conivência tácita e de trocas de influência, de informações, de sentimentos, de poderes que se embaralham em meandros dificilmente identificáveis.

Lugar de afrontas imperceptíveis e de lutas de influência, a sala de aula funciona como ritual coletivo de manutenção da realidade imutável: dispositivo instável numa escola em crise, ao menos parcialmente, marca sua perenidade e fugacidade. Os conflitos disciplinares produzem efeitos ligados à hierarquia escolar e social dos saberes. Os diferentes atores perseguem alvos que podem, às vezes, ser atingidos e não é raro ver surgir, no seio dos jogos de poder, o clamor pelo conhecimento.

 

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Endereço para correspondência:
Sérgio Kodato
Departamento de Psicologia e Educação, FFCLRP/USP
Av. Bandeirantes, 3900, Cidade Universitária
Ribeirão Preto, SP, 14040-901
Tel:16-36023713, fax:16-36024835
skodato@ffclrp.usp.br

Alexandre da Silva de Paula:
aledpaula@hotmail.com

Enviado em Junho de 2009
Revisado em Dezembro de 2009
Aceite final em Fevereiro de 2010
Publicado em Dezembro de 2010

 

 

1 De acordo com Foucault (1983), entre o século XVII e XX, as técnicas disciplinares foram baseadas numa economia política do corpo. Muitas formas severas de punição e castigos sangrentos eram empregadas, como as técnicas de suplício (esquartejamento, dilaceramento, mutilação, fervura em óleo quente e etc.), de submissão ou domesticação (trabalhos forçados, privação de liberdade, redução alimentar, privação sexual e expiação física).

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