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Temas em Psicologia
versão impressa ISSN 1413-389X
Temas psicol. vol.18 no.1 Ribeirão Preto 2010
Representação social de adolescentes sobre violência e suas práticas preventivas
Social representation of violence in adolescents and their preventive practices
Maria de Fátima de Souza SantosI; Angela Maria de Oliveira AlmeidaII; Vivian Lemos MotaIII; Izabella MedeirosIV
IUniversidade Federal de Pernambuco
IIUniversidade de Brasília
IIIUniversidade Federal de Pernambuco
IVUniversidade Federal de Pernambuco
RESUMO
Este artigo analisa as representações sociais de violência entre adolescentes de diferentes segmentos sociais e as práticas preventivas por eles utilizadas. Foram entrevistados 109 adolescentes de ambos os sexos, estudantes do Ensino Médio, dos quais 53 estudavam em escolas particulares de nível socioeconômico médio e alto e 56 em escolas públicas. As entrevistas foram analisadas com o auxílio do software ALCESTE, obtendo-se quatro classes de palavras que reúnem os discursos dos jovens sobre o sentido dado à violência e suas estratégias de prevenção. Não se constatou diferenças expressivas entre os dois grupos de adolescentes quanto à concepção de violência. Entendida como criminalidade que ocorre no espaço público, os adolescentes explicitaram como estratégias de enfrentamento da violência o afastamento de grupos, locais e horários supostamente ameaçadores.
Palavras-chave: Representação Social, Violência, Adolescentes, Práticas Preventivas.
ABSTRACT
This paper analyzes social representations of violence among adolescents of different social segments and the preventive practices they utilize. An interview was conducted with 109 adolescents of both genders, who were High School: 53 students had middle to upper income, and attended private schools, and 56 attended public schools. The interviews were analyzed using the software ALCESTE, resulting in four categories of words related to the meaning given by the adolescents to violence and their prevention strategies. No significant differences were found between the two groups of adolescents regarding their notion of violence. Perceived as crime occuring in public spaces, youngsters suggested strategies for coping with violence, such as keeping a distance from groups, as well as avoiding locations and times allegedly threatening.
Keywords: Social Representation, Violence, Adolescents, Preventive Practices.
Este trabalho teve como objetivo analisar o conteúdo das representações sociais da violência entre adolescentes de camadas econômicas médias e baixas da cidade do Paixão (2009), tem se tornado recorrente, Recife e as práticas preventivas por eles adotadas relativas a situações de violência.
Como salientam Almeida, Góes e Paixão (2009), tem se tornado recorrente, entre diversos pesquisadores, a ideia da adolescência como uma construção social (Schmidt, 2001; Ozella, 2003; Menandro, 2004; Castro & Correa, 2005), compreendendo-a a partir de sua inserção sociocultural e histórica. Todavia, nem sempre a ciência, particularmente a Psicologia, partilhou dessa visão. A adolescência surge no pensamento social moderno como uma fase intermediária e de transição - ao mesmo tempo em que rompe com a infância, a adolescência estabelece uma continuidade no processo de desenvolvimento, preparando o indivíduo para a fase adulta. A essa fase atributos negativos foram associados. Ainda no século XVIII, em produções artísticas e literárias, como na música de Wagner ou na obra Emílio ou da Educação, de Rousseau, pode-se identificar a presença de atributos que a sociedade moderna ainda recorre para caracterizar o adolescente: contradições e instabilidades de sentimentos, oposição às normas sociais estabelecidas, impulsividade, entre outros. Assiste-se, ao longo dos anos, particularmente a partir do início do século XX, a uma tendência de se pensar a juventude como um "problema social". Como observa Abramo (1997), a juventude parece se tornar objeto de atenção só quando representa uma ameaça de ruptura com a continuidade social1. Na ciência psicológica uma conceituação da adolescência próxima daquela construída no pensamento social foi sustentada por Stanley Hall, em 1904. Mais recentemente, uma breve análise temática das publicações científicas no campo da psicologia (Câmara, 2005; Frizzo, Kahl & Oliveira, 2005; Benetti et al., 2006; Gauer, Zogbi, Beidel & Rodríguez, 2006; Biasoli-Alves, Amparo, Cardenas, Chaves & Oliveira, 2007; Dell'Aglio & Dalbem, 2008; Coutinho & Ramos, 2008) mostra que o jovem ainda é investigado a partir de questões como comportamentos de risco, violência, infrações, drogas, distúrbios psicoafetivos, dentre outros, confirmando a tendência histórica de significar a adolescência a partir dos problemas a ela associados.
Cresce, no Brasil2 e no mundo3, o número de pesquisas focando a violência praticada contra e pelos jovens. Todavia, um elemento novo, constatado na literatura examinada, aponta para uma direção oposta ao que se convencionou durante longos anos: vários trabalhos de pesquisas buscam romper com o clássico binômio violência-pobreza, evidenciando que há, atualmente, um "(...) crescimento das práticas da violência entre os jovens de classe média e de segmentos privilegiados da sociedade, nos seus diferentes espaços de atuação: na família, na escola ou na rua" (Camacho, 2001, p. 125).
Apesar do crescimento do número de trabalhos de pesquisa sobre a violência entre adolescente e da diversidade de violências investigadas, pouco ou quase nada tem sido pesquisado sobre as práticas preventivas ou práticas de enfrentamento adotadas pelos jovens para se protegerem de situações de violência, sendo o estudo realizado por Zamberlan, Freitas e Fukamori (1999) uma das poucas exceções. Reflexões teóricas sobre escolas que adotam uma proposta sociopedagógica, capaz de fazer face aos comportamentos "rebeldes" dos adolescentes são pautadas por Mührel (2008). Alguns poucos estudos têm abordado, no âmbito das ciências da saúde, a prevenção da criminalidade juvenil (Concha-Eastman & Malo, 2006; Assis & Souza, 1999).
Sem perder de vista que as representações sociais têm implicações diretas nas práticas sociais, em um conjunto de pesquisas sobre representações sociais da violência pelos adolescentes, realizados por Almeida, Santos e Trindade (2002); Almeida, Santos, Diniz e Trindade (2006); Melo e Santos, (2003), constatou-se: 1) tendência a banalizar a violência, justificando-a com motivos fúteis e atribuindo-lhe gravidade apenas quando ela se concretiza nos atos de agressão física, principalmente, nos atos que redundam em morte; 2) presença de elementos funcionais no núcleo central da representação (elementos da representação que se ligam à prática do ato violento), evidenciando uma quasi-ausência de elementos normativos (que se ligam à avaliação do ato violento) que pudessem funcionar como coercitivos de atos que transgridam as normas sociais.
É importante aqui retomar Doise (2001), quando afirma que "relações múltiplas ligam direta ou indiretamente os seres humanos entre si. Entre os diferentes grupos que constituem estas relações não circulam apenas genes, vírus, poluentes, epidemias, bens de consumo, dinheiro, mas também idéias" (p.15). E essas ideias que circulam dão origem a "contratos sociais", definidos culturalmente, que permanecem mais ou menos implícitos, e que normatizam diferentes tipos de relações entre as pessoas e seus efeitos sobre uns e outros.
Assim ocorrem também com os sentidos atribuídos às noções de adolescência. Na forma atual de se conceber a adolescência, pensamento social e ciência psicológica se interpenetram, ao longo de sua recente história, na tarefa de perpetuar a ideia de uma "idade do perigo" que vai marcar a transição entre a infância e a vida adulta. Sobre um pretexto biológico (a puberdade) edifica-se um texto (a crise) construído e partilhado socialmente na cultural ocidental. Nesse processo de construção de uma identidade transitória, pautada na ideia de negação, que caracteriza o adolescente como um não ser em relação ao adulto, ambos, adolescentes e adultos, ancoram suas práticas sociais sustentando e afirmando essa negação (Almeida, Cunha & Santos, 2004; Almeida, 2005).
Os estudos empíricos acima citados sobre as representações sociais da adolescência e da violência mostram como adolescência e violência se constroem e se constituem como realidades sociais no pensamento cotidiano. Vale retomar aqui Abric (1994), ao assinalar que o caráter social das representações reside no fato de elas estarem imersas nas relações sociais e nas práticas específicas de grupos de uma determinada cultura, desde a sua produção. Por outro lado, não se pode esquecer que as representações sociais também orientam práticas específicas que são dirigidas a um determinado objeto de representação, participando de sua construção e instituindo-o como um ente objetivado e materializado no cotidiano das pessoas. Como afirma Moscovici (1988):
(...) as representações sociais dizem respeito ao conteúdo do pensamento social e ao conjunto de idéias que dão coerência a nossas crenças religiosas, idéias políticas e associações que fazemos tão espontaneamente quanto respiramos. Elas nos permitem classificar pessoas e objetos, comparar e explicar comportamentos, e objetivá-los como parte de nosso contexto social (p. 214).
Nessa direção, partiu-se do pressuposto de que as representações sociais de violência seriam elementos de ancoragem na elaboração de estratégias de prevenção à violência adotadas pelos adolescentes. Estimou-se que os adolescentes interpretam a situação de violência, dando-lhes sentidos que permitem antecipar atos que os protejam ou que os envolvam diretamente com situações violentas. Nessa perspectiva, pergunta-se, no âmbito deste estudo: quais ações ou práticas sociais são interpretadas pelos sujeitos como violência? Como significam as "pequenas" violências do dia a dia? Que estratégias, efetivas ou idealizadas, têm sido adotadas pelos adolescentes para enfrentarem e se prevenirem da violência? Diante de tais questões, esta pesquisa visou analisar o conteúdo das representações sociais da violência entre adolescentes de camadas econômicas médias e baixas da cidade do Recife e as práticas preventivas por eles adotadas relativas a situações de violência.
Método
A população estudada foi composta por 109 adolescentes, estudantes do Ensino Médio da cidade do Recife (1º ao 3º ano), com idades entre 15 e 19 anos, de ambos os sexos. Dos adolescentes entrevistados, 53 estudavam em escolas particulares de camadas média e alta e 56 em escolas públicas. A escolha de escolas públicas e privadas foi feita como estratégia de acesso aos sujeitos de camadas socioeconômicas distintas.
Foram realizadas entrevistas com os adolescentes, cujo roteiro (constituído de 15 questões) contemplava as ideias e os sentimentos dos adolescentes a respeito da violência, a que e a quem eles atribuíam a responsabilidade pela violência, o sentido atribuído ao bem-estar e as práticas que consideravam eficazes e/ou que utilizavam para se proteger da violência.
Os sujeitos foram contatados a partir da escola em que estudavam. Foi solicitada a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido a todos os adolescentes. Para aqueles que tinham idade menor que 18 anos solicitou-se também a anuência dos pais ou responsáveis.
A análise das entrevistas foi realizada com o auxílio do software ALCESTE - Analyse Lexical par Contexte d 'un Ensemble de Segments de Texte (Análise Lexical pelo Contexto de um Conjunto de Segmentos de Texto) -, que permitiu vislumbrar, a partir de uma Classificação Hierárquica Descendente (CHD), classes de palavras que reúnem os discursos dos jovens sobre a violência e sobre as suas estratégias de prevenção e de segurança. O ALCESTE faz uma análise de texto que busca aglutinar, em um mesmo eixo, palavras que se relacionem entre si para depois construir classes que se dispõem hierarquicamente. A classificação hierárquica descendente é disposta em um dendrograma, e a proximidade entre essas classes é apresentada em uma escala (R = relações de semelhança) que vai de 0 a 1 (quanto mais o R se aproxima de 1, mais semelhantes são os conteúdos das classes).
Como destaca Saraiva (2010), o ALCESTE descreve a frequência e o percentual das palavras do corpus, calcula em seguida a significância estatística das palavras dentro das classes, utilizando o teste do qui-quadrado (χ2), realiza a classificação hierárquica descendente das classes encontradas e possibilita ainda a análise fatorial de correspondência.
Resultados e discussão
A análise realizada pelo ALCESTE evidenciou a existência de quatro classes, as quais foram analisadas em seu conteúdo com o objetivo de compreender os sentidos atribuídos pelos sujeitos à violência, bem como as práticas preventivas por eles utilizadas. O dendrograma com as classes obtidas a partir da CHD, assim como as palavras que compõem cada classe e os respectivos qui-quadrado (χ2), são apresentados na Figura 1. Observe-se que os títulos de cada classe são dados pelo pesquisador a partir da análise dos contextos em que as palavras foram produzidas. O programa possibilita ao pesquisador conhecer os contextos em que as palavras são ditas a partir de pequenos trechos dos discursos ou unidades de contexto elementar (UCE). Os trechos dos discursos dos adolescentes oriundos de escola de camadas médias e altas serão apresentados com a indicação "esc_1", e os trechos de discursos de adolescentes de escolas públicas serão indicados como "esc_2".
A partir da CHD fornecida pelo ALCESTE (Figura 1), pode-se constatar que o discurso dos adolescentes acerca da violência se estrutura em três eixos, em torno dos quais se organizam as quatro classes identificadas. Dessas classes podem-se depreender os elementos que compõem o conteúdo das "teorias implícitas" compartilhadas sobre violência, ou seja, os aspectos que levam às representações sociais de violência entre os adolescentes.
O eixo composto pelas classes 1 e 2, aqui denominado "A violência e seus sujeitos", reúne os discursos que remetem às definições da violência e suas formas de manifestação, à pessoa violenta e aos responsáveis pela violência. O eixo "Espaços de violência", composto pela classe 3, traz uma descrição da "violência vivida", seja na rua ou na escola. O eixo "Estratégias de prevenção", representado pela classe 4, reúne os elementos das práticas preventivas e do sentimento de bem-estar.
A violência e seus sujeitos (Classes 1 e 2)
Para os adolescentes entrevistados, a violência configura-se de forma multifacetada, assumindo tanto um aspecto físico/funcional (assalto, estupro) quanto verbal ou moral/normativo (Classe 2). Os sujeitos fizeram, ainda, referência à violência sociocultural, como o racismo. Observou-se, entretanto, uma nítida associação entre violência e criminalidade, como se fossem um único e mesmo fenômeno. Essa Classe foi fortemente marcada pelo discurso dos adolescentes de camadas médias e altas.
"Violência é uma agressão física, violência é uma agressão cultural, violência é uma agressão verbal, não sei muito bem como definir violência não. (esc_1)"4.
"Ela pode ser isso tudo, existe uma violência cultural, uma violência verbal, uma violência física. É tudo que agride ao próximo, eu acho que é tudo aquilo que agride ao próximo ou impõe algo ao próximo (esc_1)".
Rinda nessa classe, observa-se que os adolescentes identificam a pessoa violenta como alguém que é agressivo, sem paciência, estressado, não respeita os outros, fala e age de forma brusca. Essa classe, além de definir a violência e suas formas de manifestação, também reúne as características utilizadas como referência para definir alguém como violento. Chama a atenção o fato de que a pessoa violenta é definida por aspectos individuais e subjetivos. Resultados semelhantes foram encontrados em um trabalho realizado por Santos e Aléssio (2006) sobre as representações sociais de adolescência e violência entre adultos. Tratase mais uma vez da responsabilidade individual pela violência. Essa explicação ancora-se na ideia que circula na sociedade de que o indivíduo é totalmente responsável pela determinação de suas ações e dos acontecimentos, como remarca Dumont (1985).
"Acho assim, assim quando uma pessoa, uma pessoa, com muito estresse, uma pessoa totalmente estressada, ela acaba descontando naquela que não tem nada haver, está entendendo, mais estresse, o povo se estressa demais, demais (esc_1)".
"O modo de a pessoa agir, falar, as atitudes. As atitudes agressivas, o modo exaltado de falar. Se estressa por qualquer coisa, começa a se exaltar com alguma coisa (esc_1)".
Ao definirem, entretanto, quem pratica a violência, os jovens utilizam como parâmetro os marcadores sociais de gênero, classe e as drogas lícitas e ilícitas (Classe 1). Essa Classe é fortemente influenciada por adolescentes de baixo nível socioeconômico. Para os adolescentes entrevistados, a pessoa que pratica a violência é, em geral, jovem, homem, morador da favela, desempregado, consumidor ou traficante de drogas ou álcool.
"Os pobres, as pessoas das favelas, acho que os traficantes, todos que são excluídos pela sociedade... acho que são eles que geralmente vão cometendo [a violência] (esc_1)".
"Por causa das drogas. Eles drogados cometem mais assaltos e agressividades. O homem [comete mais violência, porque] o homem tem mais coragem de fazer as coisas. A mulher não (esc_2)".
"Geralmente, as pessoas que moram nas favelas têm esse costume, mas tem muito rico violentando os outros poraí. Às vezes, esses filhinhos de papai fazem isso por manha, para aparecer, para dizer que são da turma, que são feras (esc_1)".
Ao mesmo tempo em que utilizam marcadores sociais para a prática da violência, os adolescentes, coerentemente com seus argumentos, consideram que o governo e a sociedade, de modo geral, são os responsáveis pela violência, delegando ao primeiro o poder de decidir o que deve ou não ser feito. Nesse aspecto, os dois grupos de adolescentes (nível socioeconômico alto e baixo) se assemelham, ao colocarem em evidência o conflito entre grupos social e economicamente distintos e sugerirem medidas de contenção da violência: punição, pena de morte, educação e projetos de conscientização. No que concerne particularmente à punição, consideram que ela deve ser aplicada proporcionalmente à falta cometida e como exemplo para os outros.
"As pessoas deveriam se conscientizar, o governo deveria dar mais oportunidades a todos. Construir infra-estrutura para a polícia. Mas, para resolver mesmo, só conscientizando todos. Não estou falando de informação, pois acho que isso todo mundo tem (esc_2)".
"Mas se não for possível qualquer coisa, podemos chegar à pena de morte. Acho que todos nós somos responsáveis pela diminuição da violência. Deve partir de cada um. E preciso dar estrutura para todos. Educação é a base de tudo. Os filhinhos de papai são violentos para aparecer, mas eles precisam ter consciência da punição que eles podem receber (esc_1)".
"Faz aquelas medidas provisórias, não sei o que, cota mesmo e não adianta de nada, então eu acho que isso é que contribui com a violência, começa assim. O governo. Ele deveria investir mais em educação, formação das pessoas para diminuir a violência, acho que é isso (esc_1)".
Espaços de violência (Classe 3)
A classe 3 reúne os discursos que descrevem os espaços em que as experiências de violência são vividas pelo adolescente, de ambos os grupos. São, em grande parte, experiências vividas na rua e na escola.
"Morrendo de medo que o celular estivesse na minha bolsa atrás, com medo que tocasse, ai na hora que ele se virou, deu bobeira, eu arranquei com o carro, fui me embora, mas não fiquei nervosa, foi uma coisa assim graças a Deus, só pediu a gente deu e pronto (esc_1)".
"Há anos atrás meu irmão, estava aqui nessa mesma rua, estava com celular, carteira na mão, aí chegaram dois caras com bicicleta por aqui, chegou perto dele e disse bora boy, a carteira e o celular, ai ele pegou deu (esc_1)".
"Nem tenta entender né, vai logo batendo. Acho que é justamente isso, assalto né. Até um dia desses, eu fui assaltada. Eu estava saindo do Mc' Donalds, aí um cara chegou com um caco de vidro, botou na minha barriga, disse que ia me cortar, aí levou meu celular, meu dinheiro, aí ele foi embora, saiu correndo (esc_1)".
A experiência vivida na rua parece mais ameaçadora para o adolescente. A violência é descrita frequentemente pelos assaltos vividos por eles ou familiares e amigos. Na escola, entretanto, a violência ora é minimizada, descrita como uma brincadeira, iniciada por motivo banal, ora é tratada como algo grave, como a explosão de uma bomba em sala de aula que trouxe graves consequências para o espaço físico da escola. A violência na escola predomina nos discursos dos adolescentes de camadas socioeconômicas baixas.
"É briga, é confusão, um querendo dar no outro, brigando por qualquer coisa. Se um pisa no pé do outro já quer brigar. Briga na escola, esse tipo de coisa (esc_1)".
"Na escola, só brincadeira, de ficar dando porrada um no outro (esc_2)".
"Ontem no colégio aconteceu uma coisa. Estava na aula, o professor dando o assunto e colocaram uma bomba relógio perto da sala e a bomba explodiu, apagaram-se todas as luzes, quebrou um bocado de coisa lá, quebrou janela e isso foi o que aconteceu (esc_2)".
Diante de situações de violência, vividas na escola e nas ruas, e da descrença em medidas coletivas que garantam a segurança, o sentimento de medo se impõe e algumas práticas são adotadas pelos jovens na tentativa de se prevenir de situações de violência.
As práticas preventivas e o bem-estar (Classe 4)
A classe 4 reúne os discursos dos adolescentes, dos dois grupos, sobre as práticas utilizadas para prevenção da violência. Essa Classe descreve também as concepções dos adolescentes sobre o bem-estar e seus maiores temores.
No que concerne ao bem-estar, os adolescentes destacam:
"Importante para mim é saúde, conseguir passar no vestibular e arrumar um bom emprego, ter um emprego fixo também, eu acho que só (esc_2)".
"O importante na vida primeiramente é a família e também estudar para ser alguém na vida e também não se misturar com coisas que não prestam (esc_1)".
Vale ressaltar que, contrariamente à ideia difundida e socialmente partilhada de que o adolescente se caracteriza pela transgressão das normas, eles afirmam que o seu bem-estar e seus projetos de futuro incluem a família, o estudo, o trabalho e a saúde, cumprindo, assim, o projeto socialmente aceitável.
Os seus medos incluem exatamente as perdas do que se constituiria em seu bem-estar. Perda da família, da saúde, de não conseguir atingir os seus objetivos são destacados pelos jovens.
"Eu tenho medo de não conseguir realizar meus objetivos, de não ter força para me controlar, porque o grande problema em si, o meu problema, é de não conseguir fazer o que realmente eu quero (esc_1)".
"Medo, eu posso dizer que basicamente da morte. De que parentes meus, queridos, morram. Eu acho que eu sofreria muito. Eu acho que tudo depende da saúde. Você pode estar bem hoje e amanhã ficar doente e acontecer uma reviravolta na sua vida (esc_2)".
A violência também aparece como um dos medos dos jovens entrevistados. Por essa razão, algumas estratégias são fundamentais na prevenção da violência e todas elas são iniciativas individuais, como evitar sair em determinados horários ou evitar determinados locais da cidade. Tanto para os adolescentes de escolas públicas como de escolas privadas, a violência parece objetivar-se em lugares, tempos e grupos sociais.
No que concernem as práticas relacionadas aos lugares e ao tempo, os jovens afirmam que procuram não sair de casa em horários específicos e buscam não frequentar determinados locais da cidade.
"Preciso evitar algumas coisas, como lugares e horários, minha família tenta se proteger, fechando janelas e travando portas nos semáforos, por exemplo, trancando tudo em casa, evitamos sair só, não chegamos tarde (esc_1)".
"Tentar se proteger ao máximo, tentar não sair à noite, tentar passar por lugares ditos menos perigosos, esse tipo de coisa (esc_2)".
Observa-se que as práticas preventivas são decorrentes das representações sociais de violência, que orientam e justificam a conduta para lidar com a violência. Há, do ponto de vista teórico, uma relação entre representações e práticas sociais. Mesmo se não se pode ser categórico sobre uma relação de causa e efeito, pode-se observar que as representações e as práticas se engendram mutuamente, como destacam Almeida, Santos e Trindade (2002). Considera-se aqui que as representações sociais de violência organizam certas práticas que legitimam o grupo economicamente desfavorecido em um espaço marginal na sociedade. A violência é objetivada em determinados espaços geográficos da cidade que, em geral, são relacionados à pobreza. Ao mesmo tempo em que a violência é objetivada em grupos específicos, em espaços delimitados, ela ancora-se na vinculação entre pobreza e violência. É o grupo da favela que deve ser evitado, são os bairros mais pobres da cidade. A noite é também considerada uma ameaça para os adolescentes. A violência associada, basicamente, à criminalidade é pensada como um fenômeno que acontece fora de casa, que está situada na rua, não pertencendo aos grupos nos quais os jovens estão incluídos. Em um movimento semelhante àquele encontrado por Joffe (1994) ao analisar as representações sociais da Aids entre homens ingleses e africanos de diferentes orientações sexuais, configura-se um processo que visa afastar a ameaça e manter a identidade grupal, atribuindo ao outro a causalidade e, portanto, a responsabilidade por um fenômeno que coloca em xeque a segurança e a manutenção da vida.
Embora façam menção à "violência cultural", ao "preconceito" e à "violência verbal", expressões utilizadas pelos sujeitos, as estratégias preventivas são predominantemente ligadas à violência urbana, à violência da rua. Dessa forma, os adolescentes assumem determinadas estratégias para lidar com esse fenômeno, relacionadas com a ideia de "casa" como um lugar seguro, assim como a ideia de que o sujeito se encontra mais seguro em um grupo, seja este um grupo de amigos ou a própria família. O fechamento em grupos e o comportamento de evitar o grupo ameaçador é uma característica assumida pelos dois grupos sociais. Os diferentes grupos sociais constroem estratégias pessoais de proteção que têm em comum a ideia de que o outro é sempre ameaçador. A casa, a família, os amigos aparecem como lugar de proteção em um mundo ameaçador, que provoca um sentimento de insegurança generalizada diante de uma violência difusa. A casa é destacada como lugar de proteção e refúgio, e a rua o lugar da ameaça. A ideia da família como base e proteção, lugar de harmonia, o "refúgio em um mundo sem coração", como destacava Lasch (1991), parece ancorar essas justificativas. Assim, é possível caracterizar a existência de um segundo conjunto de práticas relacionadas às pessoas de grupos distintos.
"Não freqüentar lugares onde não haja pessoas com más intenções, você não fazer mal a ninguém, ficar em casa, não sair à noite, esse tipo de coisa (esc_1)".
"Tento conviver com aquelas pessoas que acredito que são mais parecidas comigo, que não tenham comportamento explosivo e procuro selecionar os ambientes que eu freqüento (esc_2)".
"Eu evito andar na rua à noite, fico em casa, não converso com gente estranha (esc_2)".
As práticas preventivas que implicam em afastamento de grupos distintos, espaços sociais específicos se configuram como verdadeiros auto-apartheid, como destaca Zaluar (1995), promovendo o espaço doméstico como espaço de segurança e legitimando a exclusão social dos mais pobres.
Ressalta-se, ainda, que mesmo apontando um conjunto de práticas utilizadas pelos adolescentes entrevistados, não existem práticas preventivas eficazes, revelando a impotência desses jovens diante de uma violência difusa. Apesar de eles objetivarem a violência em lugares, horários e pessoas/grupos, esse fenômeno social aparece como algo impossível de ser previsto ou controlado. Assim, além de esses jovens sentirem dificuldades de encontrar estratégias preventivas eficazes, eles não acreditam estar imunes à violência.
"Não tem estratégia ideal, não tem, por mais que você queira se prevenir, eu posso ser roubada na escola, no caminho de casa, no ônibus, em qualquer canto que você esteja não está segura (esc_2)".
"Acho que não sair de casa, não sei por que hoje em dia até dentro de casa está se correndo risco, eu acho que não tem uma estratégia, assim, perfeita, você tenta evitar não acontecer, a gente tenta ao máximo evitar mas não tem condições, não dá! (esc_1)".
Eles destacam a inexistência de estratégias que de fato os defendam da violência. Como afirma Almeida (2005)
Diante de uma violência difusa, que permeia todo o tecido social, todos se sentem igualmente ameaçados, porque a violência assume um caráter de imprevisibilidade. Indiferente à forma que possa assumir, ao lugar onde possa ocorrer, a quem possa se dirigir ou quem possa praticá-la, a violência se impõe como um ingrediente que orienta as práticas sociais do cotidiano, estas últimas orquestradas pela perplexidade e afinadas pelo medo e pela insegurança (p. 219).
Conclusões
Apesar de se tratar de grupos distintos, que ocupam lugares diferentes na sociedade, com diferentes oportunidades e acesso aos bens materiais e culturais, diante dos resultados das análises das entrevistas, observa-se na estrutura e no conteúdo das representações de violência um sentido compartilhado pelos jovens adolescentes entrevistados. Os dois grupos representam a violência como criminalidade, o que os leva a definirem, como práticas preventivas, um conjunto de comportamentos de distanciamento dessa criminalidade a partir da seleção das companhias e dos ambientes frequentados, assim como a escolha de horários considerados por eles como menos perigosos para se estar nas ruas.
Eles procuram definir uma situação, um ato ou uma pessoa como violenta a partir das normas e dos valores que orientam as relações sociais intra e intergrupos. As representações sociais, por sua vez, são ferramentas poderosas nessa orientação, já que se constituem enquanto mediadores, códigos entre aquilo que se vê e aquilo que se fala, aquilo que se pensa e aquilo que se faz. Como afirma Silva (2004), vive-se hoje um processo de socialização cujo referente das ações humanas é a violência.
Partindo-se da ideia de que as práticas sociais são transformadas e orientadas pelas representações sociais, bem como as transformam e as orientam, pode-se compreender que as práticas preventivas também emergem desses acordos estabelecidos socialmente (Doise, 2001), a partir de modelos de funcionamento do grupo do qual fazem parte.
O estudo em questão possibilita diferentes indagações sobre a relação entre representações e práticas sociais. Se, por um lado, pode-se destacar a relação entre representações sociais de violência e práticas preventivas, por outro lado, não se pode afirmar que apenas a representação social de violência oriente tais práticas. Os resultados obtidos remetem à discussão sobre a articulação de diversas representações na orientação de práticas relativas a um dado objeto As representações sociais de família, as representações sociais relativas ao outro grupo parecem ter um importante papel na construção dessas práticas preventivas.
Como bem salienta Abric (1994, p. 8), "o estudo das relações entre representações e práticas enfrenta o problema da articulação e da interação entre os diferentes campos constitutivos da realidade social".
Os resultados obtidos demonstram a necessidade de se estar atentos para não se reforçar o binômio violência-pobreza ainda presente entre as pessoas comuns. A busca de explicações para um fenômeno ameaçador como a violência engendra um jogo de culpabilizações, que parecem ter a função de concretizar o fenômeno e, ao mesmo tempo, afastar a ameaça nele contida. Como prática preventiva para essa violência difusa cria-se um verdadeiro apartheid que penaliza mais fortemente os adolescentes de camadas economicamente desfavorecidas uma vez que, sendo a violência a eles associada, as políticas públicas não lhes destinam aparelhos de proteção.
Referências
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Enviado em Junho de 2009
Revisado em Novembro de 2009
Aceite final em Janeiro de 2010
Publicado em Dezembro de 2010
Esta pesquisa foi realizada com o apoio do CNPq e do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica.
Nota dos autores:
Maria de Fátima de Souza Santos - Departamento de Psicologia e Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Pernambuco.
Angela Maria de Oliveira Almeida - Universidade de Brasília - Departamento de Psicologia Social, Trabalho e Organização (PSTO), PPG em Psicologia Socialk, Trabalho e Organização.
Vivian Lemos Mota - Psicóloga. Ex-bolsista PIBIC CNPq. Mestranda em Psicologia na Universidade Federal de Pernambuco
Izabella Medeiros - Psicóloga. Ex-bolsista PIBIC CNPq. Mestranda em Sociologia na Universidade Federal de Pernambuco.
1 Os termos adolescência e juventude são aqui tratados como sinônimos, ainda que se reconheça que na literatura psicológica e sociológica eles tenham sentidos diversos.
2 Cf. Castro (1993); Deslandes (1994); Teixeira & Porto (1998); Beato Filho (1998); De Antoni & Koller (2000); Kodato & Silva (2000); Camacho (2001); Araújo (2002); Lordelo, Bastos & Alcantara (2002); Brancalhone, Fogo & Williams (2004); Algeri & Souza (2006); Flores, Sullca & Schirmer (2006); Gomes, Falbo Neto & Viana (2006); Reichenheim, Dias & Moraes (2006); Suarez & Menkes (2006); dentre outros.
3 Cf. Aber, Brown & Jones (2003); Schwartz & Gorman (2003); Slep & O'Leary (2005); Card & Hodges (2006); Hardway & Fuligni (2006); Kenny & Press (2006); dentre outros.
4 As palavras grifadas nos trechos das entrevistas indicam presença nas Classes, com χ2 significativo.