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Temas em Psicologia

versão impressa ISSN 1413-389X

Temas psicol. vol.18 no.2 Ribeirão Preto  2010

 

DOSSIÊ "PSICOLOGIA E DOR"

 

Mensuração da dor rememorada em crianças de escola: diferenças segundo a idade e o gênero

 

Measurement of remembered pain in school-age children: gender and age differences

 

 

Claudia L. E. CharryI; José Aparecido Da SilvaII

IUniversidade de São Paulo - Brasil
IIUniversidade de São Paulo - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este estudo pretendeu identificar as possíveis diferenças na mensuração da dor rememorada em crianças em idade escolar, considerando como variáveis o gênero e a idade. Participaram desta pesquisa 91 crianças, com idades entre 6 e 10 anos, matriculadas em duas escolas de Ribeirão Preto (SP). As crianças avaliaram a intensidade de uma experiência dolorosa recente utilizando duas escalas, Faces Pain Scale - Revised (FPS-R) e Coloured Analogue Scale (CAS). As análises realizadas mostraram pequenas diferenças entre meninas e meninos. As comparações entre o grupo de crianças de 6 a 7 anos e o grupo de 8 a 10 anos não revelaram diferenças significativas. Futuras pesquisas devem abordar fatores como o intervalo de tempo, entre a ocorrência da dor e sua avaliação, e a frequência da experiência rememorada.

Palavras-Chave: Dor rememorada, Crianças, Diferenças, Gênero, Idade.


ABSTRACT

This study aims to examine possible differences in remembered-pain measurement in school-age children, considering gender and age as variables. The sample consisted on 91 children, ranging in age from 6 to 10 years from two different schools of Ribeirão Preto (SP). Children assessed the intensity of a recent painful experience using two scales: Faces Pain Scale - Revised (FPS-R) and Coloured Analogue Scale (CAS). Tests revealed small differences between boys and girls. Comparisons between 6-7 and 8-10 years old groups were not significant. Future research should consider variables like time interval since the pain event and its measurement in addition to the frequency of the remembered experience.

Keywords: Remembered pain, Children, Differences, Gender, Age.


 

 

Na literatura sobre a dor, existem evidências diversas sobre a forma como a idade e o gênero influenciam a percepção e a avaliação da dor nas crianças. Os relatos obtidos em crianças mais novas mostram uma tendência a escolher as categorias localizadas nos extremos das escalas, desta forma as pontuações aparecem agrupadas nas primeiras e últimas opções de resposta e não nas categorias intermédias (von Baeyer, Carlson, & Webb, 1997). Esta tendência parece ser independente do número de opções apresentadas no instrumento (Chambers & Johnston, 2002) e poderia estar relacionada tanto a fatores de desenvolvimento (Flavell, 1965); quanto ao fato de ter passado por uma menor quantidade de experiências dolorosas comparado com crianças mais velhas ou à falta de familiaridade da criança com este tipo de instrumentos.

Outro efeito importante relacionado com a idade é a dificuldade que apresentam as crianças mais novas para avaliar separadamente a dimensão sensitiva, que tem a ver com a intensidade da dor, e dimensão afetiva, que está relacionada à emoção e ao afeto envolvidos na experiência dolorosa (Chambers & Craig, 1998; Young, 2005). Este fato implica que as pontuações obtidas poderiam ser um reflexo, não só da intensidade da dor, mas também da ansiedade ou do medo que a criança possa estar sentindo. Portanto, a interpretação dos relatos de dor em crianças mais novas requer um cuidado adicional atendendo a possíveis aspectos que possam ficar encobertos, especialmente quando se trata de medições unidimensionais.

Existem também diversos estudos que não identificam a influência da idade nas pontuações de intensidade da dor (Gauthier, Finley, & McGrath, 1998; Kotzer, 2000). A diversidade de metodologias, amostras e instrumentos utilizados dificulta a comparação dos resultados e, desta forma, possíveis tendências que caracterizam estilos de resposta ou tipos específicos de dor poderiam ficar encobertas.

O gênero é outra variável que tem recebido bastante atenção nas últimas duas décadas. A literatura mostra uma ampla diversidade de resultados a respeito. Hicks, von Baeyer, Spafford, Korlaar e Goodenough (2001) não encontraram diferenças significativas entre meninos e meninas numa amostra de crianças que se submeteram a procedimentos de perfuração da orelha para uso de brinco. Estudos sobre prevalência de dor, realizados em crianças de escola (Perquin et al., 2000; Sundblad, Saartok, & Engstrom, 2007) mostraram pontuações significativamente mais altas de intensidade da dor, principalmente das meninas em comparação com os meninos. Esta diferença também foi encontrada por Slater et al. (2009) em uma amostra de pacientes atendidos em um centro pediátrico especializado em dor de cabeça. Uma revisão recente sobre sexo, gênero e dor aponta que o achado mais consistente nos estudos sobre dor em crianças e adolescentes é que as diferenças entre gêneros seriam mais evidentes a partir do inicio da puberdade (Fillingim, King, Ribeiro-Dasilva, Rahim-Williams, & Riley, 2009). Antes deste período, os resultados divergem bastante, dependendo da condição clínica e do tipo de dor avaliada (Greenspan et al., 2007).

O objetivo deste trabalho foi avaliar as possíveis diferenças nos relatos de dor rememorada em crianças de idade escolar, considerando as variáveis gênero e idade. Levando-se em conta os relatos na literatura sobre a tendência das crianças mais novas a escolherem as categorias extremas das escalas - isto é, as primeiras e últimas opções de resposta -, espera-se que as pontuações deste grupo sejam mais altas (von Baeyer et al., 1997). As diferenças quanto ao gênero são difíceis de prever, no entanto, considerando as diferenças encontradas em estudos sobre prevalência de dor (Perquin et al., 2000; Sundblad et al., 2007), espera-se que as meninas apresentem escores mais altos em comparação com os meninos e que esta tendência seja mais clara nas meninas mais velhas.

 

Método

Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da FFCLRP, Universidade de São Paulo (Processo nº 469/2009 - 2009.1.1971.59.0). Os pais foram informados sobre os propósitos da pesquisa e aqueles que concordaram assinaram o termo de consentimento correspondente.

Participantes

A amostra foi composta por crianças matriculadas em duas escolas, uma pública e uma privada, de Ribeirão Preto - SP. Foram estabelecidos quatro critérios de inclusão: a) idade entre 6 e 10 anos, b) ausência de comprometimento cognitivo aparente, c) entender e falar fluentemente a língua portuguesa (Brasil) e d) compreender o funcionamento das escalas FPS-R (Faces Pain Scale - Revised) e CAS (Coloured Analogue Scale). Os relatos de dor rememorada relacionados a experiências exclusivamente emocionais (por exemplo, brigas com os pais ou morte de um familiar) foram excluídos; no presente estudo somente foram considerados os relatos de experiências de dor "física", como aquelas derivadas de quedas, doenças, pancadas, queimaduras, ou de procedimentos médicos como cirurgias ou punção venosa.

Foram distribuídos 180 "Termos de Consentimento Livre e Esclarecido" para as crianças das salas de 1ª à 5 ª série entregarem a seus pais. O texto incluía uma descrição do estudo e o termo de consentimento correspondente. Os pais que consentissem a participação de seus filhos deviam assinar o termo e devolvê-lo. Dos consultados, 100 pais autorizaram a participação de seus filhos.

Instrumentos

Faces Pain Scale - Revised (FPS-R, Hicks et al., 2001): É uma escala de autorrelato utilizada para medir a intensidade da dor percebida em crianças. Possui seis faces, apresentadas horizontalmente, que expressam diferentes graus de dor desde "sem dor" até "a maior dor possível". Para cada face é atribuído um valor de 0 a 10 (0, 2, 4, 6, 8 e 10). A criança escolhe a face que melhor representa a dor que esta sentindo.

Coloured Analogue Scale (CAS, McGrath et al., 1996): Este é um tipo de escala analógica visual utilizada para medir a severidade da dor experimentada. Contém um mecanismo que se desliza ao longo de uma figura; desde um extremo estreito e branco (ancorado como "sem dor") até outro mais largo e vermelho escuro (ancorado como "pior dor possível"). No verso, há uma gradação de 0 a 10 cm com incrementos de 0,25 cm. A escala mostra propriedades similares à VAS, tanto psicofísicas (expoente de 0.87 na função de poder para a CAS e de 0.89 para a VAS), quanto psicométricas (validade discriminante) em amostras de crianças e adolescentes (McGrath et al., 1996).

Procedimento

O objetivo da pesquisa foi explicado às crianças de maneira geral e apropriada para a sua idade, assim como a informação de que elas tinham a liberdade de se recusar a participar do estudo em qualquer momento, sem que isso acarretasse qualquer ônus ou penalidade. Foram realizadas entrevistas individuais, durante a jornada escolar, numa sala silenciosa, com uma duração de entre 3 a 5 minutos cada uma.

Durante a entrevista, um pesquisador auxiliar, previamente treinado, pediu à criança para lembrar uma experiência dolorosa recente e avaliá-la pelos instrumentos FPS-R e CAS. Quando aplicada a FPS-R, a instrução foi a seguinte:

"Estas caras mostram o quanto alguma coisa pode doer. Esta cara (o pesquisador aponta para a face mais à esquerda) não mostra dor. As caras mostram cada vez mais dor (o pesquisador aponta para cada uma das faces da esquerda para a direita) até chegar a esta que mostra muita dor. Aponte para a cara que mostra o quanto te doeu naquele momento".

Quando aplicada a CAS, a instrução foi a seguinte:

"Esta escala é similar a um termômetro. A parte inferior (o pesquisador assinala o extremo ancorado como "sem dor"), que é mais estreita e quase não tem cor, indica que a pessoa não está sentindo dor nenhuma. A figura vai aumentando, indicando que a dor vai aumentando também, até chegar à parte superior, que é mais larga e escura (o pesquisador aponta o extremo ancorado como "pior dor possível"). Esta parte indica que a pessoa está sentindo a maior dor possível. Deslize este marcador até a parte da escala que melhor representa a dor que sentiu nesse momento".

A ordem de apresentação das escalas foi ao acaso, para isto utilizou-se um gerador de números aleatórios no programa Excel. A aplicação da CAS teve por objetivo controlar a variabilidade devida ao uso exclusivo de um determinado tipo de escala para avaliar um único construto, neste caso, a intensidade da dor.

Análise dos dados

Os dados foram analisados através de frequências, porcentagens e tabelas de contingência. Para a avaliação das diferenças por gênero e idade, as pontuações ordinais da FPS-R foram analisadas usando os testes não paramétricos de Mann-Whitney e X2. Para avaliar a correlação entre as pontuações da FPS-R e a CAS, foi utilizado o coeficiente de correlação de Spearman. Uma correlação entre 0.3 e 0.49 foi considerada como moderada e uma correlação igual o superior a 0.5 como forte (Cohen, 1988).

 

Resultados

Os dados de nove crianças foram excluídos das análises, porque as experiências que relataram estavam relacionadas com dor emocional. Estes dados corresponderam a meninas com idades entre 8 e 10 anos.

No total, 91 crianças (40 meninas e 51 meninos) participaram no estudo avaliando diferentes dores rememoradas recentes. Na maioria dos casos, foram relatadas dores derivadas de quedas e pequenos acidentes frequentes na infância (48%), seguidas de dores de cabeça (14%) e de abdômen (9%). O restante dos relatos (29%) foi de outras dores físicas, como por exemplo, aquelas ocasionadas por doenças como pneumonia, sinusite ou viroses, ou por procedimentos de internação ou aplicação de vacina. Considerando o gênero das crianças, a distribuição dos relatos de dor é muito similar para quedas e pequenos acidentes e para a dor abdominal, mas a dor de cabeça apresenta uma frequência maior nos meninos (Tabela 1).

Para analisar os resultados segundo a idade das crianças, foram estabelecidos dois grupos: de 6 a 7 anos (n=33) e de 8 a 10 anos (n=58). Nas crianças de 8 a 10 anos, o relato de quedas e pequenos acidentes foi significativamente maior (59%) do que nas crianças de 6 a 7 anos (30%). O reporte de dor de cabeça e dor abdominal foi mais alto nas crianças de 6 a 7 anos (27% e 15% respectivamente) do que nas crianças de 8 a 10 anos (7% para dor de cabeça e 5% para dor abdominal).

Ao analisar as pontuações da FPS-R e da CAS segundo a idade das crianças, a distribuição aparece especialmente concentrada nas últimas categorias da escala (Figura 1) e, para as crianças de 8 a 10 anos, as porcentagens foram levemente maiores do que para as crianças de 6 a 7 anos. Os testes aplicados mostraram que as diferenças não foram estatisticamente significativas entre os grupos.

Ao agrupar as pontuações segundo o gênero das crianças, as diferenças entre os grupos foram ainda menores (Figura 2). A distribuição foi bastante similar para meninos e meninas, as pontuações se concentraram nas últimas faces da escala e as diferenças foram bastante leves ao longo das categorias.

As pontuações da FPS-R e da CAS foram analisadas ao interior do grupo de meninas (Figura 3) e meninos (Figura 4), considerando a sua idade. O uso das categorias intermédias da escala foi mais evidente nas crianças de 6 a 7 anos, especialmente nos meninos. A distribuição das pontuações das crianças de 8 a 10 anos foi bastante similar para os dos sexos. Os testes aplicados mostraram que as diferenças (intragrupos) de meninas e meninos, considerando a idade, não foram estatisticamente significativas. O coeficiente de correlação de Spearman, para as pontuações na FPS-R e na CAS, foi de 0.6 (p<0.01), mostrando uma associação forte entre as duas escalas.

 

Discussão

As diferenças associadas ao gênero e à idade em diversos tópicos relacionados com a dor e a analgesia são o foco principal de uma quantidade importante de pesquisa nas últimas duas décadas. O presente estudo aponta nesta mesma direção e traz evidências adicionais sobre possíveis diferenças nos relatos de intensidade de dor rememorada em uma amostra de crianças em idade escolar.

Os resultados obtidos mostraram que o gênero e a idade não foram determinantes na hora de avaliar as diferenças nas pontuações. A hipótese de que as crianças mais novas obteriam pontuações mais altas do que as crianças mais velhas, baseada nos estudos que mostram a tendência das crianças mais novas a escolherem as categorias extremas das escalas, também não foi corroborada. É importante considerar que vários desses estudos envolveram crianças a partir de 5 anos ou de menor idade (Chambers & Johnston, 2002; von Baeyer et al., 1997). Na presente pesquisa, foram incluídas crianças a partir de 6 anos de idade para garantir a compreensão e correta utilização dos instrumentos aplicados (Stanford, Chambers, & Craig, 2006) e o grupo das crianças mais novas da amostra foi estabelecido no intervalo entre 6 e 7 anos. Por outro lado, a ausência desta tendência nos nossos resultados pode apoiar a premissa de que crianças a partir dos 6 anos de idade podem utilizar de maneira mais apropriada escalas ordinais como a FPS-R.

As diferenças entre as pontuações dos meninos e das meninas não foram altas como esperado, considerando os relatos que existem na literatura sobre diferenças entre gêneros em amostras de crianças (Goodenough et al., 1997). Alguns estudos não apresentam diferenças significativas (Kotzer, 2000), outros indicam escores mais altos para as meninas (Goodenough et al., 1997) e revisões recentes sobre o tema afirmam que as diferenças somente começam a ser importantes a partir da puberdade (Greenspan et al., 2007) associadas à crescente influência hormonal que caracteriza este período (Fillingim et al., 2009). Em nossos resultados, os relatos de intensidade de dor não variaram significativamente entre meninos e meninas.

A diversidade de resultados encontrados na literatura sobre o efeito que podem ter o gênero e a idade nos relatos de dor das crianças sugerem, como apontado por Goodenough et al. (1999), que estes dois fatores atuariam em conjunto com outras variáveis, como as experiências prévias, o suporte dos pais ou as estratégias de afrontamento, mas não constituiriam uma diferença fundamental no processamento da dor nas crianças.

Algumas limitações no presente estudo devem ser consideradas. As experiências avaliadas pelas crianças foram dores rememoradas recentes. Embora este tipo de tarefa tenha mostrado ser válida e confiável (Zonneveld, McGrath, Reid, & Sorbi, 1997), diversos fatores podem influenciar a escolha que a criança faz e a lembrança que tem da dor. Futuros estudos nesta mesma direção podem incluir variáveis como o intervalo de tempo entre a ocorrência da dor e sua avaliação (e.g. evento doloroso acontecido no último mês ou nos últimos seis meses), a frequência das ocorrências de dor e outros aspectos que influenciam a avaliação que a criança faz da sua dor.

Outro ponto a considerar é que no presente estudo participaram crianças com idades entre 6 e 10 anos. Este intervalo de tempo pode ser considerado curto. Portanto, futuras pesquisas que pretendam avaliar os possíveis efeitos da idade poderiam ampliá-lo, levando em conta também o uso de instrumentos de avaliação apropriados para cada faixa etária, como por exemplo, a Pieces of Hurt Tool para crianças a partir de três anos ou a Visual Analogue Scale para crianças mais velhas.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Claudia Ligia Esperanza Charry Poveda
Departamento de Psicologia, FFCLRP/USP
Av. Bandeirantes, 3900, CEP: 14040-901
Ribeirão Preto, São Paulo, Brasil
E-mail: claudialich@pg.ffclrp.usp.br

Enviado em Junho de 2010
Aceite em Outubro de 2010
Publicado em Dezembro de 2010

 

 

Sobre os autores:

Claudia L. E. Charry - Departamento de Psicologia, Faculdade de Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Brasil. José A. Silva - Departamento de Psicologia, Faculdade de Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Brasil.

 

 

Este estudo foi financiado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Os autores agradecem aos professores e alunos das escolas pela sua colaboração nesta pesquisa.

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