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Temas em Psicologia
versão impressa ISSN 1413-389X
Temas psicol. vol.25 no.3 Ribeirão Preto set. 2017
https://doi.org/10.9788/TP2017.3-14Pt
ARTIGOS
Avaliação de livros infantis brasileiros sobre prevenção de abuso sexual baseada em critérios da literatura
Evaluación de libros infantiles brasileños de prevención de abuso sexual a través de criterios de la literatura
Sheila Maria Prado Soma; Lúcia Cavalcanti de Albuquerque Williams
Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, SP, Brasil
RESUMO
Há diversos livros para crianças que abordam o tema do abuso sexual infantil. Espera-se que tais livros tenham o potencial para aumentar a conscientização das mesmas a respeito dessa temática. O presente estudo avaliou livros infantis publicados por autores brasileiros, por meio de um questionário online baseado em 27 critérios propostos em estudos prévios internacionais. Tais critérios têm a finalidade de identificar características e/ou assuntos que devem ser abordados em livros que tratam do abuso sexual direcionados para o público infantil. Foram identificados seis livros e os mesmos foram disponibilizados para análise de juízes especialistas juntamente com o questionário de avaliação online. As avaliações indicaram que todos os livros selecionados apresentam potencial para prevenção do abuso sexual infantil. Embora nenhum dos livros tenha preenchido todos os critérios analisados, um deles se destacou com 48% critérios preenchidos. Os resultados são discutidos com base nos critérios apontados, bem como de acordo com a correspondência dos juízes, tendo em vista a aplicação potencial de estratégias de intervenção para crianças.
Palavras chave: Prevenção do abuso sexual infantil, violência sexual infantil e livros infantis.
RESUMEN
Hay varios libros infantiles que abordan el tema del abuso sexual infantil. Se espera que estos libros tienen el potencial de aumentar la conciencia de los niños sobre este tema. Este estudio evaluó los libros infantiles publicados por autores brasileños, a través de un cuestionario en línea con base en 27 criterios propuestos en estudios anteriores para identificar las características y /o cuestiones que deben abordarse en un libro sobre el abuso sexual infantil. Seis libros han sido identificados y puestos a disposición para su análisis por parte de jueces expertos usando un cuestionario de evaluación en línea. Todos los libros seleccionados indicaron potencial para la prevención del abuso sexual infantil. Ninguno de los libros se ha completado todos los criterios analizados, pero uno se destacó con 48% de los criterios atendidos. Los resultados se discuten sobre la base de criterios indicados en vista de la aplicación potencial de las estrategias de intervención para los niños.
Palavras-chave: Prevención del abuso sexual infantil, el abuso sexual infantil y libros para niños.
A prevenção do abuso sexual infantil é cada vez mais tema de pesquisas entre os estudiosos e profissionais, tendo contribuído para a criação de programas de prevenção cuja principal função é tornar as crianças capazes de se proteger da violência praticada contra as mesmas (Brino & Williams, 2008; Padilha & Williams, 2009; Vélez, Henao, Ordoñes, & Gómez, 2015; Wolfe, 2006; Wurtele, 2008). Os programas preventivos utilizam diversos recursos para ensinar habilidades de proteção às crianças e dentre esses recursos encontram-se filmes, jogos, guias e livros para professores, pais e para as próprias crianças. Contudo, há uma escassez de estudos e pesquisas que avaliem essas estratégias preventivas comprovando a sua eficácia (Finkelhor, 1991; Kenny & Wurtele, 2010).
As crianças gostam de histórias e narrativas que as levem a ter contato com diversos enredos e personagens. Dessa forma, os livros são um importante veículo pra o seu desenvolvimento emocional, visto que trazem enredos que são facilitadores para entrar em contato com seus próprios sentimentos e vivenciá-los de forma mais clara, numa tentativa de compreender o mundo e sua própria realidade (Caldin, 2002; Souza & Bernardino, 2011).
As histórias narradas nos livros permitem que as crianças se expressem de maneira espontânea, pois são convidadas a falar de si na terceira pessoa. É possível obter informações importantes sobre a própria criança dependendo do grau em que ela se coloca como parte da história (Caldin, 2002; Souto-Maior, 2000). Daí a importância dos livros com enredos preventivos, pois têm um potencial para ajudar crianças que passam por problemas como o abuso sexual (Soma & Williams, 2014).
Um estudo realizado por Alves e Emmel (2008), com três crianças e seus cuidadores encaminhados à rede de proteção de um município do estado de SP, buscou descrever o impacto dos contos de fadas como facilitadores de conteúdos emocionais de crianças e suas mães. Por meio dos relatos verbais após as intervenções com as histórias, os pesquisadores observaram o surgimento de conteúdos da vida cotidiana dos participantes, bem como seus conflitos e riscos ao desenvolvimento. Dentre os resultados obtidos foi possível concluir que as intervenções com histórias trouxeram informações importantes sobre as vivências pessoais dos participantes, incluindo as violências sofridas, ressaltando a importância de intervenções dessa natureza para auxiliar as crianças ressignificarem suas histórias (Alves & Emmel, 2008).
Em outro estudo que pretendeu, por meio de contação de histórias, desenvolver estratégias para aprimorar aspectos psicomotores, cognitivos e habilidades expressivas em 12 crianças em situação de vulnerabilidade (Cunha et al., 2015) concluiu-se que as histórias narradas em livros são facilitadores para promover discussões a respeito do cotidiano das crianças e os conteúdos referentes à violência sofrida. As histórias foram disparadores para os pesquisadores discutirem estratégias de enfrentamento provenientes de ações com base no respeito ao outro, bem como outras estratégias de não violência.
Há dois aspectos fundamentais para que o enredo de um livro chame a atenção da criança. O primeiro é que a história deve capturar a atenção do leitor e o segundo é que deve transportá-lo para dentro da história (Zak, 2013). Isso só é possível porque, de maneira intuitiva, nos interessamos mais pelas histórias quando percebemos que, assim como os personagens do enredo, também podemos passar por situações semelhantes. Portanto, prestar atenção na história é uma maneira de desenvolvermos a capacidade de aprender a resolver problemas semelhantes aos dos personagens (Cunha et al., 2015; McDaniel, 2001; Zak, 2013).
Partindo do pressuposto de que o leitor se torna parte do livro que está lendo, é possível sugerir que ao interpretar o texto, ele imprima um pouco de si e suas vivências na história tentando compreender seus dilemas. Neste ponto torna-se coautor da história, podendo ou não acatar as intenções do escritor (Caldin, 2002). Quando falamos em um leitor criança, é importante destacar que a mesma ainda não possui desenvolvida de forma plena a capacidade crítica e, tampouco, a plena capacidade de interpretar o texto lido. Por essa razão, a criança é mais suscetível às ideologias contidas nos textos ou nas ilustrações, e esse fator deve ser motivo de preocupação quando se leva em conta a qualidade dos materiais direcionados a elas, principalmente aqueles que abordam temas complexos como a violência sexual (Caldin, 2002; McDaniel, 2001; Souza & Bernardino, 2011).
Há diversos tipos de Livros Infantis de Abordagem Preventiva (LIAPs) que tratam do abuso sexual infantil (Soma & Williams, 2014). Espera-se que tais livros tenham o potencial para aumentar a conscientização das crianças a respeito dessa temática. Contudo, Soma e Williams (2014) identificaram apenas três estudos internacionais que avaliaram esses livros por meio de critérios estabelecidos, com a finalidade de verificar quais eram mais adequados para serem oferecidos como leitura para crianças (Lampert, 2011; Lampert & Walsh, 2010; McDaniel, 2001). Com base em buscas realizadas nas bases brasileiras de dados, não foram encontrados registros de pesquisas que tenham avaliado os LIAPs sobre abuso sexual. Assim, o presente artigo pretende avaliar os LIAPs publicados por autores brasileiros, tendo como base os critérios propostos pela literatura internacional revistos por Soma e Williams (2014).
Método
Instrumento
Critérios para Avaliação de LIAPs - Livros Infantis de Abordagem Preventiva (CAL). Para atingir o objetivo do presente estudo, foi elaborado o instrumento de avaliação denominado "Critérios para Avaliação de LIAPS (Livros infantis de abordagem preventiva)", doravante denominado CAL. Tal instrumento apoia-se em 27 critérios propostos pela literatura internacional, que devem fazer parte do conteúdo dos LIAPs, a fim auxiliar na promoção de habilidades autoprotetivas em crianças. O CAL foi baseado nos critérios de avaliação descritos nos estudos de Lampert e Walsh (2010); McDaniel (2001) e Rudman (1995 citado em McDaniel, 2001), conforme descrito no estudo de Soma e Williams (2014). Para a construção do CAL, foi inicialmente realizada análise de conteúdo de cada grupo de critérios a fim de retirar aqueles que se repetiam. Dessa forma, de um total de 31 critérios foram selecionados 27 para compor o instrumento. Em sequência, foi elaborada uma questão aberta para que o avaliador pudesse emitir sua opinião a respeito do LIAP analisado.
Materiais
Livros Infantis de Abordagem Preventiva (LIAPs). Para atender aos objetivos do presente estudo, foram utilizados para análise os seguintes livros:
1. Antônio (Ferreira, 2012), narra a história de um menino de 7 anos que gostava de brincar, adorava jogo da memória, história em quadrinhos, tinha muitos sonhos e ia visitar os avós nas férias. Contudo, seu comportamento começou a mudar e o menino tornou-se agressivo e deprimido. Uma grande mão sempre aparecia, mas ele não gostava porque a mão segurava forte, pedindo-lhe que ele fizesse tudo o que ela queria, impedindo-o de revelar o que lhe afligia. A mão pertencia a um amigo da família que frequentava a casa do menino. Antônio ficou doente, foi ao médico e ao psicólogo, mas não conseguia revelar porque a mão ameaçava. Em decorrência, Antônio chorava sempre que a mão aparecia. Foi quando Olga, a cuidadora de Antônio, percebeu e o protegeu da mão, sendo que os pais também o protegeram colocando fim ao sofrimento.
2. Chapeuzinho Cor de Rosa e a astúcia do Lobo Mau (Siquenel, 2010), relata a história de Chapeuzinho Cor de Rosa que, ao visitar sua vovozinha, encontra o Lobo Mau no caminho e os dois ficam amigos. Chapeuzinho e o Lobo passam a se encontrar sempre quando Chapeuzinho vai visitar sua avó, mas em um desses encontros ele acaricia seu corpo de um jeito que a deixa desconfortável, pedindo-lhe para guardar segredo. A vovó percebe uma mudança no comportamento da neta e Chapeuzinho re-vela o que aconteceu. A vovó busca ajuda e o Lobo Mau vai preso. O livro apresenta um prefácio com algumas informações para adultos sobre o abuso sexual e, ao final, informações sobre carinho e posse do corpo destinadas a crianças e adultos.
3. A Invasão do Planeta chamado Carinho (Fonseca, 2008), narra história de dois planetas, Carinho e Desejo. No planeta Carinho todos os carinhos eram bons e no planeta Desejo todas as vontades eram satisfeitas, ao ponto que o planeta teve uma grande batalha na qual os bons desejos expulsaram os maus desejos e estes foram habitar o planeta Carinho. Lá começaram a influenciar os moradores e onde havia apenas carinhos bons, passou a existir também carinhos maus, deixando as crianças confusas. Com o tempo os maus desejos desistiram de morar no planeta Carinho, pegaram um foguete rumo à Terra, contaminando até mesmo aqueles que deveriam proteger as crianças. A mensagem final do livro é que é preciso se manter longe desses agressores que um dia também serão expulsos da Terra.
4. Segredo Segredíssimo (Barros, 2011) relata a história de duas grandes amigas, Alice e Adriana. Alice era esperta e sabida, as duas amigas eram confidentes. Um dia Adriana revelou para Alice um segredo segredíssimo: disse que seu tio não era tão legal e queria fazer brincadeiras de adultos com ela. Adriana vivia triste e com medo toda vez que o tio aparecia. Alice logo entendeu o que estava acontecendo e incentivou a amiga a revelar o segredo para a mãe e foi o que Adriana fez. A mãe acolheu a menina, entendeu sua tristeza e daquele dia em diante o tio não fez mais brincadeiras de adultos com ela e as amigas não tiveram mais medo. O livro apresenta ao final um jogo de perguntas sobre a história para serem realizadas com as crianças.
5. O Segredo da Tartanina (Silva, Soma, & Watarai, 2011) que tem como coautora a primeira autora do presente estudo. O livro relata a história de Tartanina, uma tartaruguinha que vivia alegre e feliz. Depois de um tempo, seus amigos começam a achar que seu comportamento estava esquisito porque Tartanina não queria mais brincar e carregava um baú que ficava maior a cada dia. O peixinho Glub, então, seguiu a amiga e descobriu que o polvo Malvo tirava fotos de Tartanina sem o casco. O Sr. Malvo ameaçou Glub e Tartanina, dando-lhes doces e brinquedos, mas os dois não ficaram contentes pois tinham medo e vergonha. Tartanina, que não suportava mais o que acontecia, decide revelar o ocorrido para a professora que aciona a rede de proteção buscando ajuda e a história de vitimização tem fim. O polvo Malvo é denunciado, recebendo as consequências de aprender a se relacionar com crianças de um modo saudável. O livro é interativo, proporcionando que a criança participe da história. Apresenta informações para pais em seu prefácio e um Manual do Adulto com atividades complementares como apoio para atividades preventivas com grupos de crianças.
6. Pipo e Fifi (Arcari, 2013), narra a história de dois monstrinhos irmãos (Pipo e Fifi ). Por meio de rimas delicadas, a autora inicia a história apresentado informações sobre anatomia e posse do corpo. No decorrer do livro, Fifi apresenta o Toque do Sim, que são, carinhos agradáveis que não causam desconforto e Pipo apresenta o Toque do Não, aqueles que deixam as crianças confusas, com medo e desconfortáveis. Mais adiante, Pipo e Fifi falam sobre a posse do corpo e que a criança pode dizer não aos toques que as deixam desconfortáveis. Pipo e Fifi têm uma pessoa da confiança, a professora Sofia e incentivam a criança a revelar os toques do Não para alguém em quem confiem. Pipo e Fifi também falam sobre a rede de proteção à criança. O livro é interativo, estava disponível online no momento da avaliação e apresenta atividades e orientações para pais, professores e crianças em sua plataforma.
Participantes
Foram convidados 18 pesquisadores da área de abuso sexual infantil para participarem do estudo como juízes especialistas, sendo que 12 aceitaram participar. Tais juízes eram psicólogos, com titulação mínima de Mestre e no momento das avaliações estavam vinculados a Universidades do Sul, Sudeste e Nordeste do Brasil, sendo docentes ou pós-graduandos.
Procedimentos
Foi realizada uma busca online em sites brasileiros de venda, por LIAPs que tivessem como tema central o abuso sexual infantil. Tal busca foi norteada pelas palavras chave "abuso sexual infantil", "violência sexual infantil" e "livros infantis". A seleção utilizou os seguintes critérios de inclusão: (a) livros infantis à venda nas livrarias online; (b) escritos por autores brasileiros; (c) que tratassem exclusivamente da temática do abuso sexual infantil; e (d) publicados entre janeiro de 2000 e julho de 2015. Tal busca resultou em seis livros a serem identificados doravante por letras: (A) Ferreira (2012); (B) Siquenel (2010); (C) Fonseca (2008); (D) Barros, (2011); (E) Silva et al. (2011); e (F) Arcari (2013).
Inicialmente os livros foram adquiridos pelas presentes pesquisadoras e transformados em documento eletrônico em formato PDF (Portable Document Format). Em seguida, foram inseridos em plataforma online (Google Docs) juntamente com o instrumento de avaliação (CAL). Tais documentos foram enviados aos juízes por correio eletrônico e no corpo do e-mail havia orientações sobre o estudo e preenchimento do instrumento de avaliação e disponibilizado um link para acesso ao livro em PDF e ao CAL. Por distribuição aleatória, dois juízes foram selecionados para avaliar o mesmo título e cada um teve acesso somente ao livro que iria avaliar. Tão logo o participante terminasse a tarefa de avaliação, esse era informado por e-mail que os materiais em PDF disponibilizados na plataforma haviam sido bloqueados, sem a possibilidade de serem salvos.
Análise de Dados
Para a análise dos dados, foram utilizadas estatísticas descritivas e de concordância entre as respostas dos juízes. Para tanto, as questões do formulário foram agrupadas por semelhança de temas, baseadas nas três habilidades descritas por Wurtele (2008). Tal autora descreve que, para que haja efetividade na prevenção do abuso sexual infantil é preciso que a criança aprenda três habilidades principais: (a) Reconhecer uma potencial situação abusiva ou potencial ofensor; (b) Resistir às investidas de um ofensor ao dizer não e se retirar da presença do mesmo; e (c) Relatar o ocorrido a uma pessoa de confiança. Dentre os 27 critérios do CAL, 17 correspondem à habilidade de Reconhecer, 4 correspondem à habilidade de Resistir, 3 à habilidade de Relatar e 3 correspondem a características que não se enquadram nas habilidades descritas anteriormente. A avaliação dos livros se deu conforme uma escala com três níveis avaliativos, na qual: (a) S (Sim, atende o critério) se o livro apresenta a informação de forma adequada; (b) P (atende parcialmente o critério) se o livro apresenta a informação, mas necessitando de ajustes; e (c) N (Não atende o critério) se o livro não apresenta a informação, ou se a mesma estiver inserida de maneira inadequada.
Resultados
Para análise quantitativa com a finalidade de descrever a intensidade da concordância das avaliações entre os juízes foi utilizada a estatística Kappa. Para tal, foram considerados Kappa com valores iguais ou menores do que 0 (Se K=0 ou K<0) indicando uma concordância nula entre os juízes, Kappa maior do que 0 e próximo de 1 (K=0 ou K<0), indicando uma concordância maior do que o acaso e sendo Kappa igual a 1 (K=1) indicando que há total concordância entre os juízes (Kraska-Miller, 2008).
Dessa forma, a Tabela 1 aponta que o livro E apresentou maior índice de concordância (kappa 0,485) entre os juízes para a categorias S (critério atendido).Em se tratando da categoria N (critérios não atendidos), o título A obteve o maior índice de concordância (kappa 4,19) e para a categoria P (critérios parcialmente atendidos) a concordância maior se deu para o título B (kappa 0,313). Em se tratando do título D, não foi possível calcular o valor de Kappa, pois não houve concordância entre os juízes para a categoria S, impossibilitando assim a análise. Quando observamos os valores negativos na tabela, é possível inferir que a concordância entre os juízes foi considerada nula, ou seja, os dois juízes classificaram o oposto um do outro para tal categoria, como é o caso da categoria P do título A (-0,114), das categorias S (-0,063) e P (-0,038) do título C e da categoria P (-0,244) do título F. Ao observar os valores gerais de Kappa, pode-se destacar que o livro E obteve um índice de concordância entre os juízes maior do que os demais títulos (kappa 0,384).
Ao avaliar as três habilidades propostas por Wurtele (2008), conforme pode ser observado na Figura 1, foi possível verificar que dos 17 critérios elencados em relação à habilidade de Reconhecer, os LIAPs E e F obtiveram o melhor desempenho, atingindo acima de 70% de critérios atendidos de forma completa e parcial (respectivamente 79% e 70,5%). Em relação aos 4 critérios relacionados à habilidade de Resistir, os LIAPs com desempenho superior foram B, D, E e F, sendo que os títulos B, D e E apresentaram 75% dos critérios atendidos de forma completa ou parcial e o livro F com 87,5%. Em se tratando dos três critérios relacionados à habilidade de Relatar, os melhores desempenhos foram de 100% de critérios atendidos pelos LIAPs C e E e 83% de critérios atendidos de forma completa ou parcial pelos LIAPs B e F.
Figura 1 - Clique para ampliar
A Figura 1 aponta a frequência geral dos critérios alcançados por cada uma das avaliações em relação aos níveis avaliativos. Levando-se em consideração a média total de critérios avaliados, é possível verificar que os LIAPs que obtiveram um maior número de critérios atendidos e menor número de critérios não atendidos foram respectivamente os LIAPs E (S=54% e N=17%) e F (S=37 e N=20%). Em contrapartida, o LIAP que obteve o menor desempenho nas avaliações foi o livro D, com 61% de critérios não satisfeitos.
Ao observar na Tabela 2 com as avaliações emitidas pelos juízes é possível verificar que não houve concordância unânime entre os mesmos a qualquer dos 27 critérios avaliados, destacando-se os seguintes pontos para cada uma das três habilidades (Reconhecer, Resistir e Relatar): (a) para a habilidade de Reconhecer, é possível observar por meio das avaliações dos juízes que dois livros não ensinam sobre a inexistência de estereótipos de agressores (A e B) e três não ensinam sobre não haver estereótipos para as vítimas (A, B e D). A maioria dos títulos (A, B, C, D e E) apresenta a informação de que os ofensores podem ser pessoas da confiança ou pessoas conhecidas, sendo que apenas o título F foi avaliado pelos juízes como não contemplando tal informação; (b) em relação à habilidade de Resistir, foi possível destacar o critério de ensinar normas gerais de segurança. De acordo com as avaliações, os juízes concordaram que os livros B, C e D, não contemplaram tal critério (e o restante dos títulos em geral apresentaram tal informação de maneira parcial); (c) no que diz respeito à habilidade de Relatar, é possível destacar o critério que aponta a importância de se ensinar a criança a identificar pessoas de confiança, sendo que todos os juízes concordaram que os títulos apresentam tal informação de maneira parcial ou completa, com exceção do título A. O LIAP E foi o único título a apresentar claramente o incentivo à denúncia e notificação dos casos de abuso infantil e o direito de crianças ficarem em segurança. Em contrapartida, todos os LIAPs evitaram cenas gráficas de abuso e violência, exceto um avaliador que julgou que o livro D não evitava tais cenas. Em relação ao critério de trazer informações e conteúdo de apoio a pais e professores, somente os livros E e F trouxeram tal conteúdo.
Ao analisarmos a pergunta aberta sobre a qual os juízes puderam tecer comentários ao conteúdo dos títulos analisados é possível destacar que, de forma geral, os avaliadores indicaram pontos positivos e pontos falhos nos LIAPs: o LIAP A foi descrito pelo Juiz 1 como um "livro muito longo, com muitas palavras de difícil compreensão". O Juiz 2 o avaliou como sendo "interessante o uso da palavra 'mão' para falar do abuso de maneira sutil" com a "situação do abuso revelado aos poucos". Em relação ao LIAP B, o Juiz 3 avaliou que o mesmo "é muito cifrado e de difícil compreensão para as crianças". O Juiz 4 destacou que "o fato de o abusador ser um lobo o torna estranho ao convívio habitual, podendo levar a criança a concluir que o agressor é diferente e desconhecido". Em relação ao LIAP C, o Juiz 5 avaliou como "agradável, mais útil para as crianças pequenas, contudo faltam algumas informações importantes para auxiliá-las a se protegerem do abuso sexual". O Juiz 6 concluiu que:
o texto é confuso, apresenta uma mensagem maniqueísta - o certo e errado, misturando valores morais e senso comum. Há preocupação fantasiosa na fala final de que um dia só existirá carinhos bons, o desenho não é muito atrativo para crianças.
O LIAP D, foi avaliado pelo juiz 7 afirmando que:
o título deveria ser reformulado, pois apesar de ter uma intenção de auxiliar crianças a se protegerem do abuso sexual, seria necessário que o assunto fosse abordado de forma mais detalhada, fornecendo o suporte adequado e responsável pertinente a tal temática.
O LIAP E foi avaliado pelo Juiz 8 como "um livro atrativo para crianças e que oferece informações relevantes sem perder seu caráter lúdico". O Juiz 9 considerou o mesmo título "como um livro que oferece informações relevantes e adequadas para os objetivos a que se propõe". Por fim, o LIAP F foi descrito pelo Juiz 10 como "tendo o foco na anatomia do corpo, atraente, de fácil compreensão, contudo não apresenta questão da denúncia, a não culpabilização da vítima, a não existência de perfil de agressores, a questão do segredo".
Discussão
Os resultados quantitativos resultantes da análise da concordância entre juízes do presente estudo são considerados baixos pela literatura. Landis e Koch (1977), afirmam que para um alto grau de concordância entre juízes os resultados de Kappa devem ser superiores a 0,75, sendo que um resultado como K > 0,90 indicaria uma concordância quase perfeita entre os juízes. Os resultados que variam entre 0,40 e 0,60 são considerados regulares, como o caso da categoria S do título E (0,485) e da categoria N do título A (0,419). Os demais resultados são considerados índices de concordância pobres, pois apresentaram K < 0,40. Contudo, ainda que considerados pobres, os valores de K > 0 apontam para uma concordância entre juízes superior ao acaso.
Neste caso, algumas hipóteses podem ser levantadas quando o estudo envolve categorias nominais tais como no presente estudo. Fonseca, Silva e Silva (2007) afirmam que classificações como as apresentadas no estudo atual podem resultar de vieses no sentido de estar relacionadas com a motivação dos juízes, sua personalidade, experiência em codificação, treino nas categorias, bem como a clareza da apresentação das categorias. Apesar de os juízes serem especialistas no tema do abuso sexual infantil, no presente estudo não houve treino no uso das categorias específicas utilizadas e as mesmas não foram detalhadas de tal forma que pudessem maximizar o consenso das avaliações, o que provavelmente impactou nos resultados baixos de kappa.
Pela análise qualitativa é importante ressaltar que todos os títulos avaliados, segundo os juízes, apresentam potencial para prevenção do abuso sexual infantil, pois contém informações importantes para auxiliar crianças a se proteger do mesmo. Por exemplo, o livro F foi o único título que pretendeu ensinar à criança a discriminar de forma clara um toque adequado do inadequado, sendo tal informação crucial, pois uma das estratégias utilizadas pelos ofensores consiste em apresentar o abuso como um jogo divertido, o que faz com que a criança tenha dificuldades em reconhecer a interação como abusiva (Padilha & Gomide, 2004; Padilha & Williams, 2009).
Em relação ao critério sobre informar à criança de que qualquer pessoa pode ser um(a) agressor(a), os livros A, B, C, D e E apresentam tal critério de forma completa ou parcial, o que é um ponto positivo, uma vez que é importante para a criança ter a informação de que até mesmo pessoas próximas podem apresentar comportamentos inadequados que as façam sofrer, visto que a grande maioria dos abusos acontece no âmbito familiar (Finkelhor, 1994). Embora nenhum dos livros aqui analisados tenha apresentado todos os critérios propostos, o livro E apresentou a avaliação mais positiva em comparação aos outros títulos avaliados, conforme os dados apresentados nas Tabelas 1 e 2 e na Figura 1.
É importante destacar aqui que o fato de uma das autoras do presente estudo ser também coautora de um dos LIAPS avaliados poderia, em tese, ser visto como uma limitação do estudo. Por outro lado, não se pode minimizar a capacidade crítica dos juízes de realizarem avaliações objetivas. Cabe ressaltar, ainda, que as análises realizadas não tiveram a intenção de verificar um título melhor ou pior. As avaliações demonstram que nenhum título obteve uma avaliação negativa, portanto, nenhum livro pode ser descartado como não sendo importante para a prevenção. Idealmente estudos empíricos que avaliassem a exposição da criança ao conteúdo de um livro específico, seria o indicador definitivo da utilidade de um LIAP. Finalmente, é preciso enfatizar que o livro é apenas um instrumento auxiliar dentro de programas com finalidade de prevenção do abuso sexual infantil e para que haja excelência nas intervenções desses programas é preciso combinar várias estratégias, associando vídeos, músicas, jogos e brincadeiras ao livro escolhido (Finkelhor, 2009; Wolfe, 2006). Finalmente, tudo leva a crer que, ao serem utilizados, todos os livros deveriam ser acompanhados de estratégias de aprendizagem que possam suprir os critérios da literatura não contemplados em suas respectivas avaliações.
Considerações Finais
O presente estudo se mostra como esforço pioneiro em avaliar livros infantis voltados para a prevenção do abuso sexual, podendo auxiliar profissionais que trabalham com projetos de prevenção a identificar quais títulos atendem aos objetivos dos projetos que pretendem desenvolver, aumentando assim a probabilidade de crianças desenvolverem habilidades de proteção. Adicionalmente o estudo poderá auxiliar pesquisadores a elaborar novos materiais, ou aperfeiçoar os existentes. O estudo é também pertinente aos autores dos títulos analisados, podendo fornecer subsídios que os permitam verificar os pontos fortes e deficiências de cada LIAP, sendo uma ferramenta importante para modificações em suas próximas edições ou em obras futuras.
É necessário considerar, ainda, que é difícil encontrar um livro que possa contemplar todos os critérios mencionados sem comprometer a atratividade e criatividade de uma obra literária. Por fim, verificamos a necessidade de se desenvolver estudos adicionais como, por exemplo, promover a avaliação dos LIAPs internacionais sobre a temática do abuso sexual. Adicionalmente, seriam pertinentes estudos que possam estabelecer critérios para avaliação de livros com outras temáticas como bullying, violência física e negligência, por exemplo.
Referências
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Endereço para correspondência:
Sheila Maria Prado Soma
Rua Javari, 4943, casa 12
Ribeirão Preto, SP, Brasil
Fone: 16 99754-4277
E-mail: Sheila.soma@yahoo.com.br
Recebido: 09/03/2016
1ª revisão: 21/06/2016
Aceite final: 22/06/2016
Apoio financeiro: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP; processo 2014/09582-5).