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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

versão On-line ISSN 1413-6295

Cad. psicanal. vol.39 no.36 Rio de Jeneiro jan./jun. 2017

 

ARTIGOS

 

A face humana, demasiadamente humana, da angústia em Freud1

 

The human, all too human, face of anxiety in Freud

 

 

Maria Theresa da Costa Barros*

Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo tem por objetivo demonstrar, através das elaborações freudianas sobre a problemática da angústia, uma descontinuidade entre o discurso freudiano dos primórdios da psicanálise e sua nova metapsicologia, lançada em Além do princípio de prazer (1920), desvelando, assim, a face humana, demasiadamente humana, da angústia em Freud.

Palavras-chave: Angústia, Tensão sexual, Elaboração psíquica, Eu, Medo da morte.


ABSTRACT

This paper aims to demonstrate, through Freudian elaborations about the problem of anxiety, the discontinuity between the Freudian discourse of the primordia of psychoanalysis and his new metapsychology presented in Beyond the pleasure principle (1920), thus revealing the human, all too human, face of anxiety in Freud.

Keywords: Anxiety, Sexual strain, Psychic elaboration, Self. Fear of death.


 

 

I. Introdução

Em seu livro, Humano, demasiado humano (1878/1973), Nietzsche escreve o seguinte aforismo sobre a Esperança:

Pândora trouxe consigo o vaso cheio de infortúnios e abriu-o. Era o presente dos deuses para os homens, um presente sedutor e de bela aparência, a que tinham dado o nome de "vaso da felicidade". Saíram então dele, num só voo, todos os infortúnios: seres vivos e alados rondam, desde então, à nossa volta e, dia e noite, fazem sofrer o homem. Um único infortúnio não se escapara ainda do vaso: então Pândora, seguindo a vontade de Zeus, voltou a colocar a tampa e esse último infortúnio ficou lá dentro. E agora, e para sempre, o homem guarda consigo o vaso da felicidade e espera maravilhas do tesouro que nele possui, mantém-se ao seu serviço, tenta apoderar-se dele sempre que o deseja. Porque não sabe que esse vaso trazido por Pândora é o vaso dos infortúnios e considera o infortúnio que permaneceu no fundo como a maior das felicidades - esse infortúnio é a Esperança. Com efeito, Zeus queria que o homem por maiores torturas que sofresse por parte dos outros infortúnios, não rejeitasse apesar de tudo a vida, continuasse sempre a deixar-se de novo torturar. E por isso deu ao homem a Esperança: em verdade, é ela o pior dos infortúnios, pois prolonga as torturas dos homens (NIETZSCHE, 1878/1973, p. 79-80).

Freud, tal como Pândora, trouxe-nos o Eu como o vaso que guarda dentro de si nosso maior infortúnio: a angústia e, por isso mesmo, sendo o único capaz de produzi-la e senti-la (FREUD, 1933[1932]/1989, p. 79). Mas, para propor essa tese, a qual denominamos a face humana, demasiadamente humana da angústia em Freud, Soller destaca que foi preciso, primeiro, que ele tivesse se enganado, pois como afirma a autora: "sobre esse afeto do qual Lacan nos diz que não engana, Freud se enganou. Pode ser que o afeto da angústia não engane o sujeito da angústia. Em todo caso, bem que enganou Freud, o teórico" (SOLLER, 2012, p. 18).

Mas, semelhante afirmação só faz sentido se adotarmos, em relação ao discurso freudiano, um ponto de vista continuísta. Porém, se partimos do pressuposto de que existe uma fratura entre as primeiras teorias sobre a angústia e a sua concepção final, ao contrário de Soller, estaremos adotando uma leitura descontinuísta em relação ao discurso freudiano, tal como proposta por Birman, segundo suas palavras:

Esse discurso não se apresentou nem se enunciou da mesma maneira, mas se caracterizou por inflexões, rupturas, pontuações e transformações radicais ao longo de seu percurso. Portanto as condições iniciais daquele discurso não são as mesmas que se impuseram no seu desdobramento posterior. Enfim, existiria um pensamento freudiano, nos primórdios da psicanálise, que não é idêntico ao que se constitui no seu final, e que é preciso reconhecer nas diferenças significativas que fundamentam experiências psicanalíticas também diferentes (BIRMAN, 1999, p. 13).

Em sua 32ª Conferência, sobre Angústia e vida pulsional, Freud confirma, com toda a clareza, essa descontinuidade, em seu próprio discurso, ao afirmar:

Essa decomposição da personalidade anímica em um Super-eu, um Eu e um Isso, que lhes expus na conferência anterior, nos obrigou a adotar também outra orientação no problema da angústia. Com a tese de que o Eu é a única morada da angústia, somente ele pode produzi-la e senti-la, nos situamos em uma nova e sólida posição desde a qual muitas constelações adquirem um aspecto diferente (FREUD, 1933[1932]/1989, p. 78-79).

Isto posto, pretendemos, agora, demonstrar como a tese que desvela a face humana, demasiadamente humana da angústia, é uma tese lançada por Freud, em oposição a tudo que, até então, ele havia enunciado sobre a angústia, desde os primórdios do discurso psicanalítico.

 

II. Deslindando neurose de angústia e neurastenia: o engano de Freud?

Nos primórdios da Psicanálise, Freud se consagrou, não só a fazer da psicologia uma ciência, como procurou circunscrever o campo das neuroses como o principal foco de atuação da clínica psicanalítica. Assim, muito cedo, dedicou-se a deslindar a neurose de angústia da neurastenia, uma vez que postulou a seguinte tese: "produz neurose de angústia tudo que afaste do psíquico a tensão sexual somática, tudo que perturbe o processamento psíquico dela" (FREUD, 1895/1989, p. 124).

Em seu artigo, Sobre a justificação de separar da neurastenia uma determinada síndrome em qualidade de neurose de angústia, Freud responde às críticas feitas por Löwenfeld sobre suas doutrinas relativas a essa nova nosologia das

neuroses (FREUD, 1895[1894]/1989). Como argumento para sustentar sua tese, Freud apresenta pela primeira vez o que denomina "equação etiológica", constituída dos seguintes elementos: a) condição; b) causa específica; c) causa concorrente; e, como último termo, mas que não se equivale ao anterior, d) ocasionamento ou causa desencadeante. Segundo seu ponto de vista, tais fatores etiológicos são suscetíveis de alteração quantitativa, vale dizer de acrescentamento ou diminuição (FREUD, 1895/1989, p. 134). Freud se pergunta o seguinte, no artigo que suscitou essas críticas, sobre a causa específica da neurose de angústia: "Por que o sistema nervoso, sob essas circunstâncias de uma insuficiência psíquica para dominar a excitação sexual, cai no peculiar estado afetivo da angústia?" (FREUD, 1895[1894]/1989), p. 111).

E, a título de sugestão, ensaia a seguinte resposta:

a psique cai no afeto da angústia quando se sente incapaz para tramitar, mediante a reação correspondente uma tarefa (um perigo) que se avizinha desde fora; cai na neurose de angústia quando se nota incapaz para reequilibrar a excitação (sexual) endogenamente gerada. Comporta-se então, como se ela projetasse a excitação para fora. O afeto e a neurose a ele correspondente, se situam em um estreito vinculo recíproco; o primeiro é a reação ante uma excitação exógena, e a segunda, a reação ante uma excitação endógena análoga (FREUD, [1895(1894)/1989], p. 112).

Freud ressalta que no afeto, trata-se de um estado extremamente passageiro, ao passo que a neurose é crônica. Tal diferença baseia-se no fato de que a excitação exógena atua como um único golpe, enquanto a endógena atua como uma força constante. Na neurose, o sistema nervoso reage diante de uma fonte interna de excitação, enquanto no afeto correspondente o faz diante de uma fonte externa análoga (loc. cit.).

Segundo André Green, este primeiro período das elaborações freudianas (1893-1895) gira em torno da seguinte ideia: "a fonte da angústia não deve ser procurada na esfera psíquica, mas na esfera física" e a produção da angústia depende de um mecanismo que comporta transformações quantitativas e qualitativas. Sublinha que, na origem, encontra-se uma acumulação de tensão física sexual. Porém, à medida que certo limite é atingido, ainda assim, essa tensão física sexual não pode se transformar em afeto por elaboração psíquica. Ao contrário, na sexualidade normal, a tensão física sexual, ao atingir certo limiar, busca uma conexão psíquica, ou seja, entra em relação com certos conteúdos ideativos que, lançando mão de uma ação específica, alcançam a descarga pela satisfação.

O modelo desse exemplo é exposto no Manuscrito G, sobre a melancolia, da correspondência com Fliess (MASSON, 1986, p. 100), que é destacado por Green como modelo precursor da pulsão. A seu ver, esse manuscrito, datado de 07.01.1895, apresenta grande importância, por duas razões: "a primeira é que trata de um assunto que se aproxima muito do problema do afeto, a segunda é que comporta um esquema que deve constituir uma teorização - talvez a mais avançada até então - que nos parece marcar uma viragem" (GREEN, 1973/1982, p. 31).

Vamos, agora, examinar, cuidadosamente, a descrição apresentada por Green do Manuscrito G, cujo esboço apresentamos, logo a seguir, tanto em sua versão original, em alemão nas obras freudianas (FREUD, 1887-1902/ 1950/1993), quanto na versão gráfica apresentada pelo próprio Green (GREEN, 1973/1982, p. 32). Ele afirma que, primeiro, Freud traçou dois eixos, o vertical, que constitui o limite do Eu e o separa do mundo exterior, e o horizontal que constitui o limite psicossomático e separa, na sua metade inferior, o soma e, na metade superior, a psique, localizando aí, alguns elementos e um circuito.

Entre os elementos encontramos: a) no mundo exterior, um objeto; b) no quadrante correspondente, fora do Eu e no soma, uma figura denominada objeto sexual em posição favorável; c) no quadrante correspondente à parte somática do Eu, um órgão terminal, uma fonte somática e um centro medular; d) no quadrante correspondente à parte psíquica do Eu, um aglomerado de elementos chamado grupo psíquico sexual. Quanto ao circuito trata-se do seguinte: a partir de um objeto (Δ) no mundo exterior e, devido a uma reação, este penetra no corpo do sujeito. Recebe então, a denominação de objeto sexual em posição favorável.

Prosseguindo o circuito, este objeto, quando penetra a parte somática do Eu, provoca uma sensação. Esta segue o circuito, que contorna o órgão terminal, onde ocorre uma ação reflexa, avança em direção à parte psíquica do Eu, para conduzir as sensações voluptuosas, terminando no grupo psíquico sexual, investindo-o (Ps.S). Porém, a partir do órgão terminal se constituem duas outras vias paralelas. A primeira, que parte do órgão terminal (após a passagem pelo centro medular) é a da tensão sexual que termina na rede do grupo psíquico sexual. A segunda, um pouco mais complexa, segue ao lado das precedentes, liga o grupo psíquico sexual ao objeto sexual e ao órgão terminal, contribuindo para ação reflexa neste nível, liga seus efeitos nesse ponto às influências exercidas por sua relação com a fonte somática sexual. Por último, segue uma via do grupo psíquico sexual em direção ao objeto, que é a da ação específica, visando a posse do objeto e a descarga energética. Dessa forma, a

Figura 1: Manuskript G
Fonte: Freud, 1950

Figura 2: Manuscrito G
Fonte: Green, 1982

tensão física sexual tem valor de advertência para a libido psíquica, conduzindo-a em direção à experiência de satisfação (GREEN, 1973/1982, p. 31-33).

Para Green, podemos contrapor a neurose de angústia como um mecanismo inverso e simétrico da conversão histérica. Enquanto na conversão assiste-se a um salto do psíquico sexual para o somático, na neurose de angústia esse salto se faz do físico sexual para o somático. Porém, existe uma diferença importante, como nos chama atenção o autor: na histeria, o salto para o somático conserva as capacidades de simbolização do psíquico sexual; na neurose de angústia, o salto se faz do físico sexual para o somático e não possui vínculos com a simbolização. Estamos diante de pura perturbação econômica e simbólica desqualificante (GREEN, 1973/1982, p. 74-75).

 

III. Relações entre angústia e libido recalcada

Na fase anterior, Freud tratou das relações entre a angústia e o corpo. Nesse novo período, entre 1909 e 1917, ele abordará a relação da angústia com a libido recalcada. Segundo Green, fazem parte deste período os seguintes escritos freudianos: Análise da fobia de um menino de cinco anos/O pequeno Hans (1909); Sobre a psicanálise selvagem (1910); A metapsicologia (1915); Da história de uma neurose infantil/O homem dos lobos 1918[1914]).

Neste momento, a tônica se desloca para a dominância do conflito psíquico. O foco da pesquisa se volta para as relações entre o afeto e o representante-representação da pulsão. Toda atenção de Freud se volta para o destino e a transformação dos afetos. É, à medida que avança em suas pesquisas sobre a sexualidade infantil e no estudo das neuroses, que Freud se dá, cada vez mais, conta da importância das relações entre a angústia e o recalque, pois ainda que a angústia responda a uma aspiração libidinal, recalcada em sua perspectiva, ela não é essa própria aspiração. Nesse momento, para Freud, o recalque é a causa da transformação da aspiração libidinal em angústia (GREEN, 1973/1982, p. 76).

Em sua 25ª Conferência: A angústia (1917 [1916-1917]/1989), Freud afirma conhecer em relação ao afeto da angústia - "qual é essa impressão precoce que ele reproduz em qualidade de repetição" (FREUD, 1917[1916/1917]/1989, p. 361). Trata-se, do ato do nascimento, que é quando se produz um sem-número de "sensações desprazerosas, moções de descarga e sensações corporais" e que tão logo se converteram num modelo para os efeitos de um perigo mortal que, desde então, é repetido, por cada um de nós, como estado de angústia.

Essa primeira angústia foi uma angústia tóxica, devido ao grande aumento de estímulos que ocorreram, em função do corte da respiração interna e devido à interrupção da renovação de sangue, todos esses fatores, então, se configuraram como a causa da primeira vivência de angústia. Outro aspecto ressaltado é que esse primeiro estado de angústia se origina na separação da mãe. A partir dessas considerações, Freud se pergunta o que podemos averiguar a respeito do estado de angústia das crianças.

No começo, é frequente a criança pequena se angustiar diante de pessoas estranhas. E a razão porque a criança se angustia, é que ela espera ver a pessoa familiar e amada, ou seja, a mãe. Justamente, o que se irá transpor em angústia é a sua desilusão e o seu anseio, isto é, uma libido que ficou sem aplicação, por enquanto, e não pode se manter em suspenso, sendo então, descarregada como angústia. Freud não considera mera casualidade que, na situação de angústia infantil arquetípica, se repita a condição do primeiro estado de angústia durante o ato de nascimento, ou seja, a separação da mãe.

Freud chega à conclusão de que a angústia infantil em nada se assemelha à angústia realista, tendo muito mais a ver com a angústia neurótica, pois, tal como esta, gera-se a partir de uma libido não aplicada e substitui o objeto de amor por um objeto externo ou uma situação. Mas, ele está tão convencido de que a predisposição a repetir o primeiro estado de angústia incorporou-se, através das sucessivas e inumeráveis gerações, tão profundamente no organismo, que nenhum ser humano será, jamais, capaz de subtrair-se a esse afeto (loc. cit.).

Em sua 32ª Conferência: Angústia e vida pulsional (1933[1932]/1989), Freud irá trabalhar, entre outras questões, a diferença entre angústia realista e angústia neurótica. Enquanto a primeira nos parece uma reação lógica frente a um perigo, a algum dano esperado de fora, a segunda surge como inteiramente enigmática, carente de um fim. Quando nos debruçamos sobre a análise da angústia neurótica, tendemos a reduzi-la a um estado de atenção sensorial exacerbada e de tensão motora que denominamos "expectativa angustiada".

Na perspectiva da angústia neurótica, Freud aponta dois possíveis desenlaces. No primeiro caso, o desenvolvimento da angústia, ou seja, a repetição da antiga vivência traumática se limita a um sinal e, então, a reação restante pode adaptar-se à nova situação de perigo e desembocar em fuga ou em ações destinadas a colocar-se a salvo; no segundo caso, o antigo prevalece, ou seja, toda a reação se esgota no desenvolvimento da angústia e, então, o estado afetivo resultará paralisante e em desacordo com a finalidade presente. Todavia, essa angústia neurótica pode ser observada em três classes de constelações: 1) como um estado de angústia livremente flutuante e generalizado, pronto a enlaçar-se, de maneira passageira, com qualquer nova possibilidade que apareça, é a assim denominada expectativa angustiada, como na típica neurose de angústia; 2) a angústia se liga de maneira firme a determinados conteúdos de representação, como nas fobias e, embora nesses casos possamos distinguir um vínculo com um perigo externo, a angústia, frente a ele, não pode menos que parecer-nos desmedida; 3) a angústia na histeria e outras formas de neuroses graves, que acompanha os sintomas, ou emerge de forma independente como ataque ou como estado de prolongada permanência, mas para o qual não é possível identificar fundamento em nenhum perigo exterior.

Freud coloca duas questões. Primeira: do que se tem medo na angústia neurótica? E depois: como se compadece esta com a angústia realista diante dos perigos externos? A partir dessas indagações, considera que alcançou informações importantes. Primeiro, em relação à expectativa angustiada, a experiência clínica demonstrou uma conexão regular com a economia da libido na vida sexual. Verificou-se, assim, que a causa mais comum de neurose de angústia é a excitação frustrada, porque, se provocamos uma excitação libidinosa, mas se ela não se satisfaz, não se aplica, então, em substituição a essa libido desviada de sua aplicação, emerge o estado de angústia. Ele admite que chegou a se sentir autorizado a declarar que essa libido insatisfeita se transformava, diretamente, em angústia. E diz que esta concepção encontrou algum apoio em certas fobias, inteiramente regulares, das crianças pequenas. Muitas dessas fobias nos parecem completamente enigmáticas, porém outras, como a angústia à solidão ou a pessoas estranhas, admitem explicação indubitável. Tanto a solidão quanto o rosto alheio despertam a saudade da mãe familiar. A criança não pode governar essa excitação libidinosa, não pode mantê-la em suspenso; logo, essa angústia infantil não deve ser relacionada à angústia realista, e sim, à angústia neurótica.

Da mesma forma que as angústias infantis, a expectativa angustiada das neuroses de angústia nos proporcionam exemplos de como se gera angústia neurótica: pela transmutação direta da libido. Já, na angústia da histeria e outras neuroses, Freud responsabiliza o processo do recalque pela angústia. Ele pensa que podemos descrever, de maneira mais completa que antes, se mantivermos em separado o destino da representação a ser recalcada e o destino da quantidade de libido aderida a ela. Quem experimenta o recalque é a representação, e chegado o caso, é desfigurada, até que se torne irreconhecível; porém, sua quantidade de afeto é transformada, comumente, em angústia e, por certo, sem que importe sua natureza, de agressão ou de amor.

Não encontramos nenhuma diferença essencial na razão pela qual uma quantidade de afeto se tenha tornado inaplicável: pela fragilidade infantil do Eu, como nas fobias das crianças; em consequência de processos somáticos na vida sexual, como na neurose de angústia, ou por recalque como na histeria. Dessa forma, os dois mecanismos de gênese da angústia neurótica coincidem (FREUD, 1933[1932]/1989, p. 77).

 

IV. O Eu como vaso dos infortúnios que guarda dentro de si a angústia

Na tradição oriental budista, o Eu é visto como fonte de todo sofrimento, pois em função do desejo e do apego, cria-se a ilusão do Eu (BARROS, 2014, p. 159). No livro 10 do seminário de Lacan, A angústia, intitula-se As pálpebras do Buda, a seção na qual relata sua experiência de aproximação com o Budismo e na qual faz a seguinte afirmação: "A angústia, como eu lhes disse, deve ser definida como aquilo que não engana, precisamente na medida em que todo e qualquer objeto lhe escapa. A certeza da angústia é fundamental, não ambígua" (LACAN, 2005, p. 240).

Diante dessa postulação lacaniana e, tendo em mente a afirmação de Soller, de que Freud, o teórico, enganou-se com a angústia, vamos agora então, examinar, como o fundador da psicanálise assume, ao final de O ego e o id (1923/2011), suas novas e sólidas posições sobre a angústia. Nesse texto, pela primeira vez, Freud enuncia: "O Eu é propriamente a morada da angústia" (FREUD, 1923/2011, p. 71). Tal afirmação surge no contexto teórico em que Freud já havia estabelecido seu novo dualismo pulsional. Além do princípio de prazer (1920/1989) é o texto com o qual o autor inaugura uma nova metapsicologia, a metapsicologia que rompe com a perspectiva vitalista, transposta para a linguagem da sexualidade, que havia sido mantida até então. Birman nos apresenta essa mudança de posição no discurso freudiano da seguinte forma:

O discurso freudiano enuncia aqui o conceito de pulsão de morte como sendo uma força primordial que tende para a descarga total, colocando em questão a ordem da vida. A tendência originária do organismo seria, pois, para o esvaziamento energético absoluto, visando, assim, à quietude do ser, como um retorno radical ao inorgânico, isto é, ao universo inanimado e mineral. Enfim, a morte estaria na origem do ser e da vida, presença silenciosa que se impõe imediatamente (BIRMAN, 1999, p. 21).

Vejamos agora, neste novo cenário metapsicológico, como Freud irá desvelar essa outra face humana, demasiadamente humana, da angústia. É no finalzinho de O eu e o id que ele afirma: "nossas concepções do Eu começam a se tornar claras, suas diferentes relações ganham nitidez. Agora vemos o Eu em sua força e em suas fraquezas" (FREUD, 1923/2011, p. 69). E se, por um lado, o Eu se enriquece com todas as vivências vindas de fora, por outro, o Id constitui seu outro mundo exterior, mundo diante do qual sua tarefa é subjugá-lo (loc. cit.).

Uma das facetas do Eu é que ele se configura como um ser desamparado e submetido à tripla servidão, diante das ameaças de três perigos, vindas: do mundo exterior, da libido do Id e das exigências do Super-eu. Para esses três perigos, encontramos três tipos distintos de angústia, pois esta se configura, sempre, como um recuo diante do perigo. O Eu se constitui assim, como um ser de fronteira, sempre procurando fazer a intermediação entre o mundo e o Id. Por um lado, precisa tornar o Id obediente ao mundo; por outro, em sua atividade muscular, procura fazer o mundo levar em conta os desejos do Id (Id., ibid., p. 70). Sendo o Eu a morada da angústia e, se vendo acossado pelos perigos vindos dessas três direções, só lhe resta desenvolver o reflexo de fuga, retirando seu próprio investimento da percepção ameaçadora ou do processo do Id avaliado como ameaçador e externalizá-lo como angústia.

Freud admite não saber o que o Eu teme, tanto em relação aos perigos externos, quanto ao perigo da libido do Id; embora admita que é a destruição ou a dominação, considera que, analiticamente, isso não se deixa apreender. Mas, diante da angústia do Eu frente ao Super-eu, acha possível dizer o que se esconde atrás desta angústia, a angústia da consciência moral, em suas palavras: "O ser superior, que se tornou ideal do Eu, ameaçou alguma vez com a castração, e esse medo da castração é, provavelmente, o núcleo em volta do qual se armazena a posterior angústia da consciência, é ele que prossegue como angústia da consciência" (FREUD, 1923/2011, p. 72)

Outro aspecto sublinhado por Freud é a necessidade de separarmos a angústia do medo da morte. Encontramos o medo da morte sob duas circunstâncias, que são, em tudo, semelhantes às do desenvolvimento habitual da angústia: tanto como reação a um perigo externo quanto como um processo interno, como, por exemplo, na melancolia. Nesse caso, a angústia de morte só admite uma explicação: o Eu abandona a si mesmo por sentir-se odiado e perseguido pelo Super-eu, em vez de amado. Logo, viver, para o Eu, significa ser amado pelo Super-eu, que surge como representante do Id. A mesma conclusão tira o Eu quando se acha diante de um perigo extraordinário, o qual não vê como superar com suas próprias forças. Nesse momento, sente-se desamparado por todos os poderes protetores e deixa-se morrer. Pode-se ver nessa situação um protótipo que subjaz ao primeiro grande estado de angústia, o do nascimento, e também, a angústia infantil da nostalgia, da separação da mãe protetora. Tomando em conta essas considerações, Freud pensa que a angústia de morte, tal como a angústia da consciência moral, pode ser apreendida como elaboração da angústia de castração (FREUD, 1923/2011, p. 73).

 

V. À guisa de finalização

Levando-se em conta que o nosso objetivo era demonstrar, através do desenvolvimento das elaborações freudianas sobre a problemática da angústia, uma descontinuidade entre o discurso freudiano dos primórdios da psicanálise e a nova metapsicologia lançada em Além do princípio de prazer (1920), gostaríamos de marcar mais um traço distintivo entre esses dois momentos. Se, nos primórdios, Freud tinha afirmado que a angústia era uma consequência do recalque, após 1920, a angústia passa a ser causa do recalque: logo não é o recalque que produz a angústia, mas a angústia que produz o recalque (FREUD, 1933[1932]/1989, p. 79). Nesse sentido é que compreendemos, então, como se desvela a face humana, demasiadamente humana da angústia em Freud, pois é por ela que nos constituímos como pessoas: no pensamento freudiano a angústia funda nosso Eu.

Marcel Mauss é um autor que também estudou a categoria do Eu e, na sua concepção, o Eu constitui uma categoria sagrada do espírito humano. Em seu artigo, Uma categoria do espírito humano: a noção de pessoa, a noção de Eu (1938/1974), ele já nos havia alertado sobre o perigo de que essa construção, que atravessa todas as culturas humanas, desde os primórdios da civilização, estivesse em vias de extinção, isso devido à ameaça do nazismo, que assombrava a Europa, no começo do século passado. Parece que hoje, a lição ainda não foi suficientemente aprendida... por isso, escutemos, novamente, sua advertência, que se aplica aos nossos tempos atuais, quando o reconhecimento afetivo do outro como ser humano igual a nós, está a toda hora sendo desrespeitado, em suas palavras:

Quem sabe, até, se essa "categoria" que todos nós julgamos fundamentada, há de ser sempre reconhecida como tal? Ela foi formada por nós, entre nós. Mesmo sua forma moral - o caráter sagrado da pessoa humana - está colocada em questão, não só num Oriente todo que não alcançou as nossas ciências, como também nos países em que esse princípio foi encontrado. Temos grandes bens a defender, pois conosco pode desaparecer a ideia. Mas não façamos pregação por agora (MAUSS, 1938/1974, p. 209).

 

 

Referências

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Artigo recebido em: 19/03/2017
Aprovado para publicação em: 17/04/2017

Endereço para correspondência
Maria Theresa da Costa Barros
E-mail: mtcostabarros@globo.com

 

 

*Psicanalista, membro efetivo Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro (CPRJ), mestrado Teoria Psicanalítica/Instituto de Psicologia (UFRJ), doutorado Saúde Coletiva/Instituto de Medicina Social (IMS -UERJ), pós-doutorado Saúde Coletiva/Instituto de Medicina Social (IMS-UERJ), profa. e membro/Comissão Executiva Técnica de Formação Permanente (CPRJ).
1Este artigo foi construído a partir das notas da palestra de mesmo título, realizada na mesa de abertura sobre o tema do ano de 2017, Campo dos afetos: fontes de sofrimento e fontes de reconhecimento, e realizada no Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro, tendo sido organizada pela Comissão Executiva Técnica de Formação Permanente do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro, da qual faço parte como membro. Em 11 de março de 2017.

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