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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)
versão On-line ISSN 1413-6295
Cad. psicanal. vol.39 no.37 Rio de Jeneiro jul../dez. 2017
ARTIGOS
Migração/exílio e a perda da língua materna
Migration/exile and the loss of the mother tongue
Lisette Weissmann*
RESUMO
A partir dos conceitos de migração e exílio, desenvolve-se uma análise sobre o processo migratório/exílio de Sigmund Freud. Abordam-se questões sobre a língua e a perda da língua materna. Foca-se nos percalços que aparecem frente à necessidade de fazer uso de uma língua estrangeira e na obrigação de abandono da língua materna, para conseguir comunicar-se no país de migração. O processo de luto pela perda da cultura, língua e terra de origem aparece como condição que habilita a possibilidade de elaboração da situação de migração. Diferencia-se a condição do migrante da condição do exilado.
Palavras-chave: Migração, Exílio, Língua materna/estrangeira, Sigmund Freud.
ABSTRACT
Starting with the concepts of migration and exile, the article does a review of the migratory process / exile of Sigmund Freud. It addresses topics concerning language and the loss of the mother tongue. It focuses on the obstacles that appear when people need to make use of a foreign language with the obligation to abandon the mother tongue, in order to be able to communicate in the country of migration's language. The grieving process for the loss of culture, language and country of origin appears as a condition that enables the possibility of developing and establishing the migration process. Differences are made between a migration process and the exile.
Keywords: Migration, Exile, Mother tongue/Foreign language, Sigmund Freud.
Para mim, a terra natal [...] é o lugar onde temos as nossas raízes, onde possuímos nossa casa, falamos nossa linguagem, pulsamos os nossos sentimentos mesmo quando ficamos em silencio. É o lugar onde sempre somos reconhecidos. É o que todos desejamos, no fundo do nosso coração: sermos reconhecidos e bem recebidos sem nenhuma pergunta (LENZ, 1985, p. 83).
A partir da ideia da arte como aquela que consegue abrir sentidos e significações, citamos Siegfried Lenz (1985), que nos inquire1 sobre aquele espaço no mundo em que o sujeito se sente "em casa"; assinala a terra de nascença, onde estão as raízes e salienta a importância de se sentir reconhecido e pertencente a esse lugar investido, subjetivamente, pelos outros, que, na intersubjetividade e em vínculo, o reconhecem e o assinalam como sujeito, que faz parte desse determinado espaço e lugar. Seriam, por conseguinte, os outros que inscrevem o sujeito, inserindo-o nos laços sociais como pertencente a um social que o estrutura e constitui.
Tive a oportunidade de viajar a Viena, onde fui a conhecer a casa que Freud teve que abandonar, diante do exílio londrinense. Na procura por material bibliográfico sobre o tema das migrações, descubro, no Museu de Freud, naquela cidade, uma carta em que o criador da Psicanálise escreve para um colega suíço, na qual menciona a "dor frente à perda da língua materna". Gravo a data e a quem está endereçada a epístola para continuar minha procura no Brasil, achando que isso seria uma tarefa fácil de desenvolver.
Ao não encontrar rastro da missiva, nas obras completas, escrevo para o museu pedindo ajuda; lá, dizem que essa carta não existe, que só acham uma carta de condolências a Anna Freud, datada em 1939 e aconselham a continuar à procura no Museu de Freud, em Londres.
Escrevo para Londres e localizo o assistente do curador, Bryony Davies, que consegue entender qual é o eixo de minha pesquisa e acrescenta dados importantes. Menciona um encontro intitulado A infância perdida e a língua do exílio, que aconteceu no Museu, em 2001, sobre o qual há um livro impresso; assim como uma exibição de fotos em 2010, com o título Terra prometida: o exílio de Freud. Pela possibilidade de aceder a um material impresso, ligo para o Museu e, na compra do livro, tenho a grata surpresa de saber que a atendente é brasileira, fala português comigo e entende sobre o tema. Trata-se de Francis Rita Apsan, que é a bibliotecária de fotos e gerente de loja do Museu. Ela procurará pela dita carta de 1938 de Freud a Saussure.
Para minha agradável surpresa, recebo um e-mail de Rita Apsan, contando que o original da carta de 11 de junho de 1938, ao psicanalista suíço Raymond de Saussure, está na biblioteca do Congresso, em Washington; mas a frase em que ele alude à perda da língua materna está citada no Diário de Sigmund Freud,1929 - 1939 - crônicas breves, traduzido para o português por ela mesma. Procuro pelas cartas, na biblioteca do Congresso em Washington. As cartas são em alemão e, por um acordo com a família Freud, só serão apresentadas ao público em 2100, visto que as mesmas incluem a autoanálise de Freud por carta com Fliess. Acredito, por conseguinte, que a família, eticamente, exige o segredo para abri-las ao público.
Essa procura levou um bom tempo, mas acabou resultando na recolha de um rico material que o criador da Psicanálise pôs em palavras, quando tentava dar conta de sua situação no exílio forçado, pela Segunda Guerra Mundial, em Londres. Mais adiante, abordaremos a carta antes mencionada.
Migração/exílio
Buscamos apoio de vários autores e diversas ciências que trabalham e definem os temas de migração e exílio, na tentativa de estabelecer um diálogo entre ambos conceitos, procurando tanto os pontos em comum, quanto aqueles que os diferenciam, irreconciliavelmente. Para depois discorrer sobre a migração/exílio do criador da psicanálise e os rastros que deixou em seus escritos, sobre esse duro e complexo périplo de vida, que a segunda guerra o obrigou a viver.
Na migração, a grande perda remete aos referentes do contexto e da cultura que dão sustentação e apoio a aqueles que fazem parte do social. O migrante perde essas referências e começa um cumprido périplo de busca entre a cultura, a língua e os referentes do lugar de origem e a novidade dos novos apoios sociais que a migração oferece, sem que isso seja garantia de que o sujeito conseguirá se estruturar como um sujeito intercultural inserido e atravessado pelas diversas culturas que o marcaram.
Desde os tempos imemoriais, o homem tem migrado na busca de mudanças e de transformações. Na consulta ao Dicionário Aurélio, migrações são definidas como "[...] passagem de um país para outro (falando-se de um povo ou quantidade de gente)". E também como "[...] viagens periódicas, ou irregulares, feitas por certas espécies de animais". Vemos como essa passagem imprime um caráter migrante, transitório, de ruptura e crise, tanto no ser humano quanto nos animais.
A psicóloga argentina Susana Seidmann (1990) delineia o migrante, em sentido estrito, como aquele que muda seu lugar habitual de residência por um tempo, com a consequente reconstrução de seu cotidiano; porém, em um sentido amplo, são os sujeitos que recebem a influência da migração. Isso fará com que o migrante redefina hábitos e condutas, no novo país, para fazê-las, subjetivamente, significativas. Na mudança de país, perdem-se os significados culturais que terão de ser ressignificados para corresponder com seu novo entorno, com seus vínculos e consigo mesmo.
O geógrafo Milton Santos (2007) trata das migrações e nos transmite como as mesmas "[...] agridem o indivíduo, roubando-lhe parte do ser, obrigando-o a uma nova e dura adaptação em seu novo lugar. Desterritorialização é frequentemente uma outra palavra para significar alienação, estranhamento, que são, também, desculturização" (SANTOS, 2007, p. 82). O autor alude à dor pelas rupturas e às perdas da cultura como âncora e salvaguarda do conhecimento de modos de pensar, agir e inserir-se no social, em um dado território. Isso nos traz um foco na dor individual que implica, já que cada sujeito terá que fazer sua própria adaptação e construir sua própria forma de morar nesses universos cruzados pelas semelhanças e as diferenças, os quais trazem à tona esse trânsito pelo mundo. A perda e o luto serão algumas das fases desse périplo individual e a psicanálise bem sabe dar conta dessas operações psíquicas e vinculares. Podemos pensar que, depois do reconhecimento e da perda da cultura própria na terra de nascença, o sujeito consiga reformular uma cultura que faça sentido para ele mesmo e para os mais próximos, dando conta da nova realidade na qual está vivendo.
De maneira muito certa, o filósofo e psicólogo social Dante Moreira Leite (1954) salienta que a possibilidade de que o migrante participe de outra cultura, implica que o sujeito consiga se fazer dono das capacidades necessárias para pertencer ao novo ambiente. Vemos como esse trânsito representa um périplo de constante adaptação, entre a cultura própria e as estrangeiras que os sujeitos frequentam. Isso pressupõe um processo psíquico de adaptação e criação de uma cultura própria que dê conta de todo o aprendido e incorporado, assim como do excluído e afastado.
As psicanalistas, Rosa, Carignato e Berta (2006) relatam, no artigo Metáforas do deslocamento, como os estrangeiros, migrantes apresentam a dificuldade de se localizar no mundo, chegando a poder desenvolver desenraizamento ou desterritorialização. Berta e Rosa (2006) indicam um momento inicial de angústia, a qual não pode ser articulada como significante, provocando um desamparo inicial que provoca uma sensação de não localização, referindo-se ao sentimento de estranheza, o unheimlich freudiano. As autoras enfatizam:
Este tempo no qual o sujeito custa a se localizar tem efeitos na sua posição subjetiva e política e no laço social. Entre a angústia e o desejo, é necessária a elaboração do luto face ao perdido, pois, dessa maneira, o sujeito reconstitui não somente sua imagem, mas sua posição de ser causado por um desejo que lhe permita localizar-se no mundo. Para que tenha lugar discursivo, para que faça laço social, é preciso reconstruir a história perdida na memória, reconstrução que já implica numa deformação, permitindo passar da reconstrução para a criação (ROSA; CARIGNATO; BERTA, 2006, p. 5).
Focalizam uma posição de mudança subjetiva, na medida em que possa ser tramitado o luto pela história, a terra e a língua perdida do país de origem. Salientam um movimento que provê a transmissão, realizando uma volta ao passado, capaz de favorecer uma base firme que os comporte para se projetar no futuro. Remetem a Hassoum (1996), para quem "[...] uma transmissão lograda oferece a quem a recebe um espaço de liberdade e uma base que lhe permite abandonar (o passado) para (melhor) reencontrá-lo" (apud ROSA; CARIGNATO; BERTA, 2006, p. 17). Desse modo, traduzem um movimento de báscula entre o passado e o presente, que permite se projetar no futuro, assinalando que os sujeitos podem percorrer esse processo, fixando-se em alguma das etapas, ou conseguir se modificar e mudar. Esse conceito, no formato de junção do novo e do velho, constitui intersubjetividade.
As autoras abordam o conceito de identidade atrelado à cultura e terra de nascença. Mas, frisam que "[...] a territorialização não garante a identidade - esta se produz pela evocação da palavra, pela escrita e por outros modos de transmissão" (ROSA; CARIGNATO; BERTA, 2006, p. 6).
Pensamos em um processo continuo, que permita construir uma identidade intercultural, para à qual os sujeitos deverão desenvolver um constante movimento de pêndulo entre a cultura de origem e a cultura do país que os recebe. Esse processo de construção precisa que os sujeitos apresentem uma grande flexibilidade interna, que os auxilie na hora de fazer escolhas entre aqueles elementos a conservar, aqueles que decidem abandonar e aqueles novos que escolhem do cotidiano atual. Assinalamos, assim, um movimento constante e construção ativa, ao longo do tempo, no qual irá se conformando uma interculturalidade, a modo de colcha de retalhos de marcas atuais e passadas, mas escolhidas pelos sujeitos que percorrem por várias culturas e espaços de moradia. Descrevemos esse processo interno de construção subjetiva como intrapsíquico, ao mesmo tempo que intersubjetivo.
Agora, pesquisaremos sobre o conceito de exílio. O Dicionário Aurélio, define exílio como "expulsão da pátria, desterro, deportação. Fugir da convivência, ir viver para um lugar remoto ou desviado". Marca, assim, a distância geográfica e de convívio, conjuntamente com a impossibilidade de regresso ou retorno.
Marcelo Viñar trabalha sobre o tema, no livro intitulado Exílio e tortura, e diz que o exílio imprime nos sujeitos um sofrimento pela despersonalização e o anonimato. A dor parece estar situada na separação das raízes e na distância das representações familiares. O exílio rompe a habitualidade com as pessoas da usual convivência para lançar o sujeito na estranheza do não familiar, a partir do qual se aproxima da dimensão traumática. "O exílio se apresenta como um tempo de inércia e contemplação: propõe o desafio do que podemos construir a partir da perda, da desilusão, do desencorajamento, da derrota" (VIÑAR, 1992, p. 111). Menciona pontos de impacto: a nostalgia da terra perdida, organizada, imaginariamente, como dois mundos com duas significações não sempre compatíveis; a dialética entre pessoa e personagem, que se rompe quebrando o equilíbrio e harmonia anteriores, que constituíam o personagem público que cada um ocupa, como lugar social, lugar de intimidade e estima de si; e o mito do retorno na experiência subjetiva do exílio, a meio caminho entre o sonho e a realidade, baseado na lembrança do país de origem atrelada ao passado, que fica como ideal. No processo de elaboração do exílio impõe-se ao sujeito um constante trabalho dialético, entre o ser estrangeiro e se sentir em casa e a aceitação das diferenças implica um trabalho jamais acabado que nos habilita nesse lugar de eterno estrangeiro, nas experiências da vida toda.
A experiência de exílio é vivida como traumática, na medida em que os sujeitos não têm a opção de fazer uma escolha subjetiva do país no qual vão se exilar e, simplesmente, apelam a qualquer terra que os acolha, na fuga desesperada das situações de violência vividas em seu país de origem, tanto de perseguição política, quanto religiosa, racial ou econômica. Por outro lado, nessa fuga ou pedido de exílio do país de origem, os sujeitos se deparam com a impossibilidade de regresso - e isso marca uma posição subjetiva traumática, que tem que ser processada internamente. Esses seriam os elementos fundamentais que colocam o exílio no limiar de situação traumática que deve ser elaborada.
Visualizamos, assim, um processo que, em alguns pontos, são coincidentes com a experiência de migração e, em outros, se diferencia na especificidade da situação de exílio.
O exílio bate na porta dos psicanalistas
Gostaria de relatar, nesse ponto, uma experiência vivida por psicanalistas exiladas por causa da Segunda Guerra Mundial, que decidem, no começo do século XX, se reencontrar em encontros científicos psicanalíticos, em diferentes cidades europeias, para discutir sobre a Psicanálise e as experiências de migração, exílio e abandono da língua materna e a adoção da língua do exílio. Esses três encontros aconteceram na cidade de Budapeste, Londres e Paris e foram adotando diversos nomes na compreensão da temática; assim, em Budapest nomeou-se como Lost childhood, em Londres Lost childhood and the language of exile, e em Paris como Mother, motherland, mothertongue. A trilogia de conferências foi organizada por Judit Szekacs-Weisz, Kathleen Kelley-Lainé e Judit Mêszáros. Esse trabalho acabou sendo compilado em um livro chamado Lost childhood and the language of exile. E trata-se de um trabalho que aprofunda na temática desde diversos pontos de vista.
Kathleen Kelley-Lainé nos diz, sobre o exílio, que todos devemos crescer e cada vez que isso acontece, abandonar o que tínhamos anteriormente. Menciona que todos nascemos em um lugar geográfico, o que é temporário, já que nosso verdadeiro nascimento é o da psyche que nos outorga um verdadeiro sentido de pertença e um lugar no mundo. Ingressar ao mundo do humano implica a capacidade de simbolização que nos defronta com a morte como fim último e irrevocável. Nesse ponto é que cada um de nós perde a inocência da infância e se transforma em um exilado, desse paraíso primeiro, que relembra o lugar da origem. Nesse instante, surge a nostalgia entre a perda do paraíso da infância e o desejo de poder recuperá-lo.
A língua do exílio subitamente toma conta do lento processo de simbolização e criação de metáforas. Quando "a infância perdida" combina com a perda da terra, da língua materna, dos odores, dos sonidos e dos sabores da "mãe", ali é onde "a infância perdida" transforma-se em real mais que simbólica. (...) Por enquanto, quando o terror da perda se transforma em real, nós não podemos mais brincar com a metáfora do "fort-da", já que ficamos marcados e presos na "língua do exílio" (KELLY-LAINÉ, 2004, p. 7).
A autora assinala que o lugar do exilado fica marcado pela impossibilidade da elaboração da perda da terra de origem através da metáfora do fort-da, já que o exílio implica só o fort, e não habilita aos sujeitos a fechar o círculo: com o da, ao não estar habilitado para fazer a volta para trás. Descreve as mesmas perdas primárias que acontecem na migração, mas com o grande impedimento que implica a impossibilidade do regresso, já que o exílio por definição, não o permite.
A psicanalista húngara Judit Szekacs-Weisz nos diz que as ondas migratórias posteriores à Segunda Guerra, foram propiciadas pela busca desesperada dos sujeitos por permanecer vivos e ancorados na esperança de ter uma vida melhor para eles e seus rebentos. As mudanças de contexto propiciaram, nos sujeitos, diferentes formas de elaborar essas perdas e isso foi escutado pelos psicanalistas nos consultórios, assim como vivenciado pelos mesmos na vida do exílio. O perigo aparecia sempre como uma lição elementar de supervivência para todos os sujeitos nascidos depois da guerra. Nessa Babel de línguas e culturas, esses profissionais constituíram-se como psicanalistas que participavam de um mundo terapêutico multilíngue. O trabalho, focado na língua e as barreiras para se expressar e se entender, levavam a achar uma melhor tradução simbólica dos diversos estados mentais. Desse modo, apelavam ao achado de lembranças esquecidas, que eram importantes, tanto para pacientes quanto para analistas. A autora está nos descrevendo um lugar psicanalítico do analista implicado, tanto na cena, quanto na experiência pessoal de vida. Indica a linguagem como um espaço transicional de mútua criação, dentro do qual a compreensão, os mal-entendidos e as incompreensões, nas diversas línguas, permitem esses movimentos de compartilhamento e saída da solidão, ao interagir e dividir com outros a mesma situação de vida que estão compartilhando.
A partir das três conferências, os participantes foram situando-se num território que não era somente multilíngue, mas também multidimensional, definido e modelado pela história, a política, a economia e as transformações socioculturais da época. Dessa maneira, a Psicanálise situa-se do lado de outras ciências, para tentar lançar luz sobre um sucesso difícil de definir só por uma única ótica e que leva a um enriquecimento, quando iluminado por vários olhares científicos.
Kathleen Kelley-Lainé assinala que não é fácil elaborar, racionalmente, a perda do contexto familiar na migração, já que o entorno familiar opera como uma segunda pele, que todo sujeito dá por garantida e que contém um entorno sem palavras, que abraça os sujeitos a partir das percepções iniciais do mundo circundante. A autora indica que "o exílio pode significar a perda do mundo de cada um"; mas o aprendizado da língua do exílio aparece como uma possibilidade que ajuda a lidar com as perdas, numa tentativa de reparação das mudanças e danos propiciados pela migração/exílio. Poderíamos pensar o aprendizado da língua do país de migração como um intento de busca de restauração daquela segunda pele perdida, agora restaurada, para que opere como um contexto conhecido que outorgue segurança e amparo ao migrante.
O psicanalista e sociólogo John Clare (2004) sublinha algumas ideias sobre a aventura da migração. "A chegada a um lugar estrangeiro tem a qualidade do sonho. A nova língua/localização coloca o indivíduo em um espaço intermediário entre o lar e a intensidade e vivacidade da vida em uma nova cultura" (CLARE, 2004, p. 14). O autor nos põe em contato com uma forma de ganho cultural, reservada àqueles que consigam arriscar-se frente ao novo que as culturas acordam em nós, inseridos no mundo planetário e cosmopolita. Menciona a migração e o aprendizado da nova língua, como um processo de passagem e trânsito de um país com sua língua a outra, movimento que carrega com ele mesmo, tanto as possibilidades quanto os empecilhos que esse movimento implica.
Contudo, ao lado das perdas, também podem surgir os ganhos subjetivos, já que cada sujeito e sua família construirá uma experiência singular, nessa procura que representa um processo criativo para gerar uma forma de melhor usufruir da experiência e se enriquecer subjetivamente. Judith Szekacs-Weisz (2004) salienta como essencial "[...] se permitir fazer um balanço do que foi perdido e do que foi encontrado, ao longo da passagem pelo deslocamento de um país, de uma língua e uma cultura para outra" (SZEKACS-WEISZ, 2004, p. 27). Refletimos a importância de pensar a migração também como uma possibilidade de se deslocar da questão da perda, para permitir assim uma abertura a uma experiência de novidade e aprendizado. Cada sujeito elabora o vivido de sua forma particular, mas é importante se permitir avaliar, conjuntamente, os ganhos junto as perdas, na migração.
Mencionamos as migrações, sem excluir o sofrimento que toda migração implica pelas perdas e dificuldades, para se situar e se nortear no novo contexto, estranho e desconhecido. Um longo processo de conhecimento e reconhecimento do território de migração deve ser feito pelo estrangeiro, tanto internamente quanto externamente, no ambiente a ser habitado. O deslocamento migratório tem um preço subjetivo a ser pago e é por isso que Kathleen Kelly-Lainé (2004) menciona que "[...] o aprendizado da língua do exílio significa ter que lidar, viver com, e tentar reparar a perda e aceitar se constituir em um estrangeiro, foreigner, étranger (palavra que, em francês significa estrangeiro e também estranho e bizarro). Ser um estrangeiro significa 'não ser' como os outros" (KELLY-LAINÉ, 2004, p. 7).
A condição de ser estrangeiro pode obstruir o crescimento ou permitir ao sujeito uma elaboração e transformação psíquica e vincular, dependendo de cada caso singular. Trata se de uma experiência singular intrassubjetiva, para cada sujeito; mas em vínculo intersubjetivo, com aqueles que compartilham a migração ou com os novos relacionamentos da terra de acolhida; assim como no transubjetivo ou sociocultural, que abrange a cultura que fica para trás e a nova cultura no país de migração.
Do ponto de vista psicanalítico, sabemos que toda escolha traz consigo uma perda, porque, no momento em que o sujeito opta por mudar de vida e espaço de trabalho, deixa de dar continuidade ao percurso de vida que estava tendo. Dentro do espectro das perdas, bem sabemos que temos um leque importante de formas com que os sujeitos conseguem atravessar essa situação e elaborar o processo. Alguns sujeitos conseguem construir uma experiência subjetiva que os faz crescer e aprimorar aptidões que não sabiam que tinham, enquanto outros sujeitos podem ficar fixados nas perdas, sem apresentar possibilidades para sobrepor-se às mesmas. Consideramos que os sujeitos se defrontam com um amplo espectro, nas maneiras de se encarregar da experiência de migração, que pode partir de uma experiência de enriquecimento pessoal e vincular ao limiar do traumático, do ponto de vista psicanalítico.
Por outro lado, o estrangeiro, em seu caráter de "diferente aos outros" traz uma riqueza no convívio com os "locais", já que oferece a oportunidade de outro olhar sobre aquela realidade, que, para os "locais", pode aparecer como naturalizada. O espanto do estrangeiro diante de algo com o que os "locais" não se espantam, pode ser um reorganizador de velhas convicções locais e oferecer uma propulsão e um reordenamento de coisas já cristalizadas na nova terra de acolhida. Assinalamos, assim, como o estrangeiro, em sua liberdade, por desconhecer os códigos locais, pode prestar um importante serviço de aprimoramento e esclarecimento aos "locais" do novo país.
Entendemos o processo de migração e exílio como um processo vincular2 em que os sujeitos constroem um modo de vivenciar a experiência do laço social, com o casal e a família, por um lado, e com o país de acolhida na terra estrangeira que os recebe, inserindo-os na cultura do país anfitrião, por outro. Nos vínculos, é que se joga o processo de migração como um espaço de novidade e criação de vida ou de fratura e falha subjetiva, para transitar e viver a experiência. Este processo vincular abrange sujeitos que elaboram dita experiência conjuntamente com outros para se tornar, também: outro. Descrevemos, assim, uma elaboração intrapsíquica que só é possível de ser feita intersubjetivamente.
Na migração e no exílio desenvolve-se um movimento interno de ida e volta, das marcas da cultura de origem às marcas das novas culturas, o que obriga o sujeito a criar uma grande plasticidade interna, que habilite esse movimento de umas às outras. Jacqueline Amati Mehler (2004) ressalta que "[...] a organização mental multilíngue 'pode' às vezes aumentar a riqueza, plasticidade e o desenvolvimento geral da rede simbólica. A reformulação interna do velho patrimônio psíquico na nova língua representa não só uma simples operação de 'tradução' ou 'comutação', mas um aumento em seu significado" (AMANTI-MEHLER, 2004, p. 174 apud AMANTI; ARGENTIERI; CANESTRI, 1991).
A psicanalista polonesa Eva Hoffman (2004) compartilha que "[...] o apego à primeira língua e à origem, se você pode transportá-los com sucesso de um lugar ao outro, são a fonte de apegos posteriores, os quais permitem que você venha a amar novos mundos, e amar o mundo de novas maneiras" (HOFFMAN, 2004, p. 65). Assim, define e delimita o migrante e o exilado que conseguem se apropriar da língua do país estrangeiro ao qual chegaram e elaborar assim o trânsito de um país a outro, de uma língua a outra e de uma cultura a outra. Esse seria um ponto em que ambos os processos ficam equiparados, apresentando-se, também, outras variáveis que os fazem diferir.
Migração/exílio
Teríamos de estabelecer os aspectos que distinguem o processo migratório do exílio. Uma das diferenças é que, na migração, os sujeitos se trasladam de um país ao outro com a possibilidade de retorno ao país de origem; enquanto que, no exílio, os exilados não conseguem retornar à terra natal, constituindo-se como migrantes forçados, por situações políticas, financeiras, étnicas ou religiosas. O exílio, desde o início, desenha-se como uma via de ida sem nenhum retorno possível, o que pode expor os sujeitos ao risco de ficarem atrelados à perda pela terra que os fez fugir como experiência traumática, não lhes permitindo usufruir o momento de imersão na nova cultura. A perspectiva de regresso e não regresso instala uma diferença subjetiva muito importante entre a experiência de migração e a de exílio. Outra diferença centra-se na possibilidade ou não de escolha: no exílio, os sujeitos não conseguem fazer uma escolha livre e própria, já que se trata de uma busca desesperada por uma terra - qualquer uma - que os acolha; na migração, os sujeitos conseguem fazer uma escolha subjetiva e livre do país de migração. O exílio defronta os sujeitos com o país de migração, dentro do qual vão ter que se colocar. A possibilidade ou impossibilidade de escolha também diferencia ambos os processos e isso deve ser levado em consideração para descrevê-los.
Do ponto de vista psicanalítico, poderíamos asseverar que a experiência de fort-da estabelece uma diferença psíquica entre os processos migratórios e de exílio. Na migração, a possibilidade de estabelecer um nexo entre o país de origem e o país de acolhida, tanto do ponto de vista psíquico quanto na realidade mesma, favorece uma melhor elaboração da situação de luto pela perda da terra de nascença e a adoção da terra que os recebe. Esse processo de fort-da, que as crianças têm nos ensinado, ao brincar, ajuda na passagem de um país a outro, na elaboração psíquica e vincular com os que acompanham o migrante e com os que se encontram na mesma situação. No exílio, essa possibilidade habilitada pelo brincar não está disponível, de sorte que o exilado terá de elaborar o luto e adquirir a nova cultura, sem essa oportunidade de ida e volta, na realidade, ficando mais restrito o caminho de elaboração interna, frente à situação do exílio. A impossibilidade de escolha do país do exílio também opera, gerando uma migração forçada no exilado, que, ao ser pensada como uma experiência traumática, precisa de toda uma elaboração psíquica de reparação das feridas internas vividas, em face da referida situação. Só a elaboração da experiência traumática do exílio é que os sujeitos poderiam acessar, posteriormente, ao processamento da situação da migração em si ao país que os acolheu. Assim estaríamos descrevendo um duplo processo, o qual deveria ser tramitado, psiquicamente, no exílio, primeiro, na elaboração da situação traumática, para depois lhe permitir acessar a elaboração da migração propriamente dita.
Os sujeitos pertencentes a uma cultura só constroem fronteiras internas que os contêm dentro de uma determinada forma de se desenvolver no mundo e se inserir no social. Pensamos que, frente às migrações e aos exílios, essas fronteiras que operavam como continente se perdem, cabendo ao sujeito criar um novo espaço, que lhe permita se sentir amparado, protegido e sustentado, num contexto sociocultural diferente. Esse processo corresponde a uma aceitação da distância imposta pela migração/exílio com a cultura de origem, para poderem estar abertos a apreender a nova cultura do país de migração. Com a exceção que, no exílio, essa possibilidade real de retorno fica truncada e isso gera mais dificuldades na elaboração da situação de mudança.
Deveríamos, também, considerar as capacidades psíquicas que cada sujeito traz dentro de si, na tramitação do processo, para conseguir se apropriar e desenvolver um processo interno que o habilite na passagem migratória, ou que o deixe em um limiar de pseudoadaptação ou em uma vivência traumática do vivido, sem possibilidades de se sobrepor a essa experiência. Essas capacidades psíquicas são inerentes a cada sujeito e vão sendo construídas ao longo da vida. Tanto na migração quanto no exílio é necessário portar uma boa capacidade de flexibilização interna, de abertura para o novo, de adequação às experiências, intrapsíquica, intersubjetiva e transubjetivamente, como tramitação interna e vincular dessas experiências de vida. Essa flexibilidade intrapsíquica se tramita em um ir e voltar interno e externo entre os ganhos e as perdas, o deixado para trás e o conquistado, movimento de pêndulo só passível de ser vivido em um intercâmbio com outros na experiência de migração e na integração e visualização de uma nova cultura. Múltiplos são os fatos em jogo, para a tramitação que cada sujeito faz do vivido.
Sigmund Freud frente à perda da língua materna no exílio
Considero que Sigmund Freud foi forçado a se exilar, em face da Segunda Guerra Mundial, que o submeteu à busca forçada de um país que o amparasse, a ele e sua família, ajudando-os a se evadir das forças nazistas que os prenderiam pelo fato de serem judeus. Trabalharemos, agora, sobre o processo vivido por Freud, em função da mudança de língua no país de exílio. Esses achados foram feitos por mim e penso que servem para ilustrar, de modo geral, os processos psíquicos em face das mudanças de país, língua e cultura.
Ao relatar as primeiras experiências do exílio, Freud escreve uma carta a Max Eitington em 06 de junho de 1938 e transmite sua euforia frente à chegada a Londres, onde sente que tudo é irreal, como se fosse um sonho e constata que em seu quarto tem janelas que dão ao jardim, o que o faz compará-la com sua casa de veraneio em Grinzing. No início, frente à sensação de ter se salvado dos nazistas e sentir-se em segurança em Londres, uma percepção de alegria o invade. Depois desse período inicial, começa a aparecer o sentimento de perda: do lar, da língua, dos sons, cheiros e sabores familiares. Procuraremos outros materiais que deem conta disso.
Com a inauguração do Museu Freud, em Londres, acham-se os manuscritos do diário que Freud escreveu em folhas soltas e que sempre estavam no topo de sua escrivaninha, decidindo-se compilá-lo e publicá-lo. O diário começa nos relatos em Viena e continua em Londres. Chama-o de Crônicas breves, título que fazia alusão a um relato jornalístico da vida de Freud, no qual cita aleatoriamente os eventos vividos corriqueiramente. Essa faceta de Freud repórter permite que sua escrita não tenha em consideração o leitor, mas que consiga escrever e rabiscar eventos cotidianos para si mesmo. O diário está tingido, nos últimos anos, por dois eventos paralelos, a invasão nazista na Segunda Guerra Mundial, situação a partir da qual a família Freud teve que emigrar para Londres; e seu estado de saúde muito deteriorado, já tendo ultrapassado vários anos além das previsões médicas. A proximidade com o fim da vida, a guerra, o exílio e sua doença são o pano de fundo para a escrita do texto O mal-estar na civilização.
O exílio foi um ato desesperado da família Freud para evitar o cerco nazista, ao mesmo tempo em que cumprem um sonho de infância de Freud, que era viver na Inglaterra e seu desejo mais íntimo de "morrer em liberdade" (FREUD, 2000, p. 19). Seus meios-irmãos tinham se mudado para Manchester e Freud sempre teve muitas ligações com a cultura inglesa, além de falar e escrever inglês perfeitamente; mas persistia um obstáculo:
Alguns dias depois da emigração, em 11 de junho de 1938, Freud escreveu para o psicanalista suíço Raymond de Saussure: "[...] talvez lhe tenha passado despercebido o único ponto que o emigrante sente de forma tão particularmente dolorosa. É - inevitável dizer - a perda da língua na qual vivíamos e pensávamos, aquela que nunca conseguiremos substituir por outra, apesar de todos os esforços de empatia. É com dolorosa compreensão que observo como formas de expressão, não obstante familiares, me falham em inglês e até com Isso3 [Es] tenta resistir a abrir mão da escrita gótica familiar" (FREUD, 2000, p. 19).
Vemos como Freud transmite sua dor pela perda da língua materna, sentindo que isso se constitui em um estorvo na hora de se expressar. O diretor de pesquisa do Museu Freud em Londres, Michael Molnar, conta, ao citar a carta, que Freud sabia inglês, italiano, estudou francês em Paris, com Charcot, aprendeu espanhol com o amigo Silberstein e escreviam-se cartas entre si; tinha aprendido no colégio duas línguas "mortas", grego e latim, mas, ainda assim, a língua continuava a ser um empecilho. Além e aquém da cultura poliglota que ele tinha, a língua materna parecia ser sua maior referência, na hora de se expressar.
Molnar adverte que Freud está nos contando sobre a luta interna que se debatia no seu inconsciente (Isso), entre a escrita gótica e a escrita latina. A escrita gótica persistiu na língua alemã até o século XX; porém, escrever em alemão significava escrever em letra gótica. Por outro lado, escrever em inglês significava escrever na escrita latina. Aqui, nos defrontamos com o debate interno de Freud, entre o abandono da língua materna para se comunicar na língua anglo-saxônica e a adoção da letra latina, como forma de aceitação da migração e da língua do país que o tinha acolhido.
O diário estava escrito em uma mistura de duas línguas e de duas formas de expressar-se. Conforme Molnar (2000), "[...] mesmo no seu limitado registro, há pequenos reflexos do 'exílio da língua' do qual Freud queixava-se para Saussure" (MOLNAR, 2000, p. 19). No momento da invasão alemã à Áustria, esta é assinalada com um epitáfio em latim Finis Austriae, que Molnar entende como "[...] frase que está sobrecarregada de implicações: enterra um país e uma cultura por inteiro, como se não houvesse mais nada por dizer, enquanto que, ao mesmo tempo, parece oferecer o triste consolo de se ter uma perspectiva universal dos tempos difíceis" (MOLNAR, 2000, p. 19). O único momento no diário em que escreve em inglês é para marcar a Noite dos Cristais Quebrados para os judeus, momento em que Freud tenta se distanciar do evento anotado, porque o impacta grandemente. Entretanto, com exceção de algumas datas anotadas em inglês, nunca mais o retoma no diário como língua de expressão. Molnar (2000) sublinha que, "[...] mesmo neste nível mínimo de expressão, a inércia da língua materna prevalece. Escritas ou faladas, as palavras ainda eram por demais carregadas de um peso oculto para serem despreocupadamente transpostas" (MOLNAR, 2000, p. 20).
A maior parte dos atendimentos feitos em seus últimos anos em Viena era a estrangeiros, já que a situação econômica fazia difícil o acesso à análise a pacientes vienenses; porém, Freud vinha se comunicando e trabalhando em várias línguas diferentes do alemão, principalmente o inglês. Molnar (2000) ressalta que, "[...] muito antes de a política levar Freud ao exílio, a economia já lhe impusera uma língua estrangeira no seu trabalho" (MOLNAR, 2000, p. 20).
Mas foi uma paciente, dessa época - H. D. -, por certo muito sensível e que era poeta, quem pôs em palavras o modo de se comunicar freudiano:
Ele poderia estar falando grego. O belo tom da sua voz tinha um jeito de tirar uma locução ou uma frase em inglês do seu contexto (do seu contexto associado, ou melhor, da língua como um todo) de tal forma que, embora estivesse falando inglês sem qualquer traço perceptível de um sotaque, mesmo assim estava falando em uma língua estrangeira (MOLNAR, 2000, p. 20).
A poeta nos descreve um Freud sempre estrangeiro, quando não for em sua língua e terra natal, porém, ficam as marcas nele do que denominava como "[...] a língua na qual se possa viver e pensar" (FREUD, 2000, p. 19).
Conservamos, por conseguinte, este achado sobre o parecer e as reflexões do criador da Psicanálise diante da perda do alemão como língua materna para se expressar.
O exílio de Freud e sua família teve vários entraves para serem tramitados psiquicamente, e vemos como, através do material encontrado, o autor da Psicanálise transmite o processo de luto interno que estava vivendo, tanto em função da perda da língua materna como da terra de nascença e de referência social e cultural. A situação de exílio impôs a Freud uma dura prova de realidade, coincidente com sua doença, no final da vida; todavia, em que pese a tudo isso, Sigmund Freud sempre continuou com sua profícua escrita psicanalítica, deixando um rico e abundante legado para os que se interessam pela Psicanálise e sua visão de mundo como legado para ser usufruído por gerações e gerações de pensadores posteriores a ele próprio.
Questões sobre a língua
A língua ajuda a visualizar o trânsito intercultural, na medida em que afiança a língua passada, para dar espaço à nova língua, por advir no país de migração. Perguntamo-nos: quais são os processos internos que se desenvolvem, quando o sujeito aprende uma segunda, terceira ou quarta língua? Como poderia se expressar, partindo do mais profundo das emoções, senão através da língua materna?
Pensamos que escolher a língua materna como veículo de comunicação vem colaborar para que os sujeitos possam se expressar livremente, sem ter esse empecilho capaz de travá-los. A psicanalista argentina Marina Selvatici (2007) destaca que
[...] a análise realizada na língua dos pacientes constitui-se como um dispositivo que oferece uma membrana imaginária que midiatiza os excessos difíceis de metabolizar. Frente a um verdadeiro desgarramento das envolturas psíquicas que a migração gera, a criação de uma membrana constituída pela língua em comum, diferente daquela do país em que a análise se realiza, representa a construção de uma espécie de envoltura narcisista transicional que poderá ser, por sua vez, objeto de análise. A membrana linguística que rodeia pacientes e analista remete ao que Anzieu denomina como o espelho sonoro, prévio ao visual. Se pensarmos junto com Anzieu que a necessidade de sobre investir a envoltura narcísica parece como a contrapartida defensiva de um fantasma de pele desgarrada, a possibilidade de criar uma nova matriz para esse eu pele, que apresenta déficits em suas funções de para excitação, constitui-se em uma nova construção psíquica (SELVATICI, 2007, p. 6)
Selvatici (2007) também salienta que "[...] a membrana sonora da língua compartilhada não é um mero depósito de sensações, imagens e afetos, mas se constitui em uma experiência transicional que procura nomear e comunicar as mesmas experiências" (SELVATICI, 2007, p. 6).
A língua materna é um fator importante, que traça uma aproximação entre sujeitos, porque sentem que os vínculos parecem já portar um tecido preestabelecido, o qual os ampara, ao compartilhar um idioma comum. Talvez isso encubra certo padecer, na hora de se expressar na língua estrangeira, já que pareceria que só a língua materna possibilita exprimir-se de modo mais autêntico e claro.
Para a psicanalista húngara Caterina Koltai (2011), "[...] os sujeitos ao falar na língua materna a nomeiam como um território, o que explica porque os migrantes mencionam rupturas e travessias, de passagem do heimlich, a língua perdida, para o unheimlich, esses outros lugares ainda estrangeiros" (KOLTAI, 2011, p. 1). Reconhecer essa quebra representaria uma elaboração de um luto pela língua materna abandonada e obrigaria a um trabalho psíquico, que significa apropriar-se da migração, juntamente com a perda da língua referente. Aquele que emigra tem que cuidar dessa passagem de uma terra a outra, de uma língua a outra, de um universo conhecido a um por conhecer e descobrir. Esse processo pressupõe um trabalho psíquico, de elaboração, de aceitação da mudança. Na medida em que a mudança possa ser pensada como ruptura, algo do heimlich conhecido se quebra, dando espaço ao descobrimento daquele unheimlich que aguarda por ser descoberto. Somente a partir da elaboração da mudança é que aquele universo novo, o qual aparece aos olhos do migrante, pode começar a ser tramitado, conhecido e apreendido. Trata-se de um movimento de abandono que habilita à conquista de um novo universo: se o sujeito se apropria do que abandonou ativamente, conseguirá fazer-se dono de sua própria escolha, apropriar-se da terra para a qual emigrou e tornar-se dono, consequentemente, também da nova língua.
O psicanalista francês René Kaës (1998) enfatiza, a respeito do tema da língua:
Em uma passagem sobre a análise da migração entre os povos, "disse Deus aos povos quando lhes atribuía uma língua: aos egípcios, vocês falarão o egípcio, aos gregos, vocês falarão o grego; aos franceses vocês falarão o francês; aos alemães vocês falarão o alemão; mas a um povo que habita o sul de Egito, próximo do Sudão, Deus lhes teria dito: falem o que quiserem" (KAÊS, 1998, p. 63).
O autor aponta a situação de perda da língua como unidade cultural de pertencimento a um código comum, como se fosse o abandono de Deus. Salienta como a sustentação dos laços sociais tem que ser feita de forma violenta, em um ato de confirmação, mas, por outro lado, marcaria uma situação de exílio como necessária para pertencer a essa cultura. Na liberdade citada ao povo do sul de Egito, faria uma alusão a uma língua criada, além e aquém, da língua materna, mas com a habilitação de uma fala mais livre e vinculada ao desejo desse povo. Talvez esteja fazendo alusão à língua falada pelos povos migrantes, que devem acessar a uma língua intercultural, marcada pela passagem pelas variadas culturas, as que os povos são expostos.
A língua fica em um lugar de privilégio, ao se definir a cultura e como ela nos faz pertencentes a um código comum com outros, assim como reforça um nível de pertencimento a uma dada comunidade, porque nos faz sentir que dela fazemos parte, trazendo-nos segurança e continuidade. No outro extremo, frente à perda de língua como referência compartilhada, os sujeitos se encontrariam em uma situação de exílio e expulsão, em sentido metafórico, ou seja, não incluídos em código comum nenhum. A necessidade de pertencimento imprime aos sujeitos, no campo social, uma quota de violência, que tem que ser percorrida como preço a pagar.
A língua estrangeira também poderia permitir ao sujeito dizer aquilo que, na língua do país natal, seria intolerável e difícil de ser escutado por ele mesmo. Como salienta um paciente expatriado: "Só consigo falar mal de meus pais em português; em francês não conseguiria dizer o que estou dizendo para você aqui." Desse modo, diz em uma língua estrangeira o que não pode ser dito na língua materna. Vemos como a língua aqui aparece como um objeto intermediário, que permite dizer aquilo proibido para ser dito e escutado na língua materna atrelada ao país de origem e aos objetos primários de constituição psíquica. Pareceria que a nova língua burla os rigores do superego, como se ele só fosse falado na língua materna. Dessa forma, a nova língua funcionaria como um superego auxiliar. Assim, o paciente consegue dizer, na nova língua, aquilo que apareceria proibido de dizer na língua materna. John Clare afirma que "as velhas dores podem ser experimentadas de maneira diferente em outra cultura e expressadas de forma renovada na língua daquela cultura. Talvez o levantamento das inibições acontece quando é possível escapar a sensibilidade materna" (CLARE, 2004, p. 14).
A perda da língua materna, como meio de se comunicar, corresponde a uma perda do laço com a cultura de origem e à ruptura com o marco conhecido, pelo qual as pessoas circulavam e de que se sentiam parte. Esse trânsito acarreta um choque cultural, já que o estrangeiro se vê participando de outra cultura, sem conhecer seus códigos implícitos e, para chegar a compreendê-los, seria necessário um processo intersubjetivo de apropriação. Na hora da comunicação, a possibilidade de se expressar, na língua materna, oferece uma membrana protetora imaginária como situação de amparo, ante a perda dos referentes sociais culturais que o identificam e o integram, ao contexto social conhecido.
Perguntamo-nos: que traços inconscientes circulam através da língua? Como os sujeitos transmitem os mais profundos sentimentos, desejos e anseios? Quando um estrangeiro percebe que pode se comunicar com outra pessoa, em uma língua conhecida, sente-se menos exposto a diferenças e a situações de estranhamento. Um migrante dizia: "Chega um momento do dia que não aguento mais tentar entender o que falam em português: é como se abaixasse a cortina; não escuto mais português e fico em meu próprio mundo e com minha língua. Chega uma hora do dia que começo a falar para meus colegas de trabalho em espanhol, não aguento mais; creio que nem me dou conta de que fiz o switch. Sinto-me aliviado ao saber que não tenho que me esforçar mais."
Vemos como ficam lado a lado a língua materna e a língua estrangeira, que é desconhecida, trazendo um registro do sentimento de unheimlich pelo ameaçador da experiência e também como o ajeno4, o qual parece inexorável, opaco, figura que estabelece um nós e os outros, desenhando uma fronteira entre o conhecido - familiar - cultura de origem e um desconhecido - alteridade - inquietante.
Como paradoxo, vemos como o migrante citado se comunica na língua materna, porém, utiliza um termo em inglês, switch, situação que estaria na contramão do sentimento que estava tentando dar conta, em sua própria língua.
A língua carrega sons peculiares, em sua sonoridade, no sotaque a ser utilizado ao falá-la, remetendo à temporalidade no modo de falar e tentar se comunicar, que não pode ser abandonada conscientemente. Alguns autores discutem como a língua se vincula à própria função materna, como um achado primitivo que o sujeito guarda, na forma de sons precoces que remetem a uma volta à terra natal atrelada à língua materna. O estrangeiro aparece, além das palavras, vinculado à sonoridade e ao ritmo, como fator que opera além do simbólico em si.
Diante da exposição a várias línguas, o sujeito intercultural vai se modificando. Nancy Houston e Julia Kristeva questionam as estruturas primárias como somente retidas na língua primária ou língua materna, abrindo espaço para uma interligação com a nova língua adquirida na migração. Eva Hoffman (2004), a esse respeito, enfatiza que
[...] a integridade das verdades da infância misturam-se com as divisões da dúvida adulta. Quando falo polonês agora, estou infiltrada e permeada pela declinação do inglês, na minha cabeça. Cada idioma modifica o outro, nos cruzamentos com o mesmo, e o fertiliza. Cada idioma faz o outro relativo (HOFFMAN, 2004, p. 32).
Talvez, para esses sujeitos, a língua comece a se assemelhar à torre de Babel, constituindo uma língua própria, produto de todas as culturas conhecidas através da convivência e compartilhamento de espaços comuns. Estaríamos nos defrontando com uma instância intercultural, que surge por meio da língua, quando os sujeitos se veem expostos a diferentes idiomas, diferentes culturas e diversos universos geográficos.
Referências
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Artigo recebido em: 14/04/2017
Aprovado para publicação em: 11/08/2017
Endereço para correspondência
Lisette Weissmann
E-mail: lisettewbr@yahoo.com.br
*Psicóloga, psicanalista, mestre em Psicologia Clínica/Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), doutora em Psicologia Social/Universidade de São Paulo (USP).
1Gostaria de esclarecer ao leitor que a autora do presente artigo é uruguaia, e a língua materna dela é o espanhol. O português é uma língua aprendida na idade adulta pelo que vira a segunda ou terceira língua da escritora. Por essa razão, o presente artigo oferece ao leitor uma experiência intercultural, já que oferece a leitura de um texto em português, mas escrito por alguém que proveem da língua espanhola. Leia-se então, como um texto intercultural.
2Trabalho baseado na teoria da Psicanálise das Configurações Vinculares, que considera que o sujeito nasce em vínculo e organiza sua experiência de vida entre outros e com outros. Porém, a migração também é pensada a partir do sujeito inserido nos vínculos que o acompanham nesse devir de intensas mudanças e na cultura que sempre aparece como pano de fundo também constituindo subjetividade.
3Es é o pronome pessoal neutro da terceira pessoa, mas aqui está grafado com letra maiúscula.
4Usamos o termo ajeno, em espanhol, pois não achamos na língua portuguesa nenhum sinônimo que o traduza com seu sentido próprio. Se for traduzido como alheio, pode dar possibilidade a uma má interpretação do termo, pelos vários significados que a palavra tem, em português. O termo, tal como usado aqui, inclui os conceitos de estranho, estranhamento, alteridade, diferença radical. O conceito de ajeno é um eixo fundamental na psicanálise das configurações vinculares, visto que descreve a descoberta do outro no sujeito, como ideia de alteridade máxima e de habilitação para mudanças e abertura para o novo que os vínculos permitem, dentro deles. Segundo Berenstein, [...] a ajenidad propõe uma bidirecionalidade radical, a qual chamaremos de vincular. Na diferença, cada um propõe ao outro uma ajenidad heterogênea e, a partir disso, haverá uma assimetria irredutível (BERENSTEIN, 2004, p. 64). Salienta, nesse trecho, aquela diferença, impossível de ser transposta, que o outro carrega com sua mera presença.