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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)
versão On-line ISSN 1413-6295
Cad. psicanal. vol.40 no.38 Rio de Jeneiro jan./jun. 2018
ARTIGOS
Sexualidade na contemporaneidade1
Sexuality in contemporary times
Joel Birman*
Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos - Brasil
Espace Analytique - França
Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ - Brasil
Universidade Paris VII - França
RESUMO
A intenção deste ensaio é problematizar as novas formas de práticas sexuais e suas relações com as modalidades de subjetivação na contemporaneidade, enfatizando as mudanças produzidas pelos movimentos feminista, homossexual e transexual.
Palavras-chave: Feminismo, Homossexualismo, Transexualismo.
ABSTRACT
The aim of this essay is to problematize the new forms of sexual practices and their relation to the forms of subjectivation at present times, emphasizing the changes caused by feminist, gay and transexual movements.
Keywords: Feminism, Homosexuality, Transexualism.
1. Preâmbulo
A intenção deste ensaio é delinear e circunscrever devidamente algumas das modalidades de práticas sexuais existentes na contemporaneidade, assim como as formas de subjetivação (FOUCAULT, 1976) que lhes são correlatas. Contudo, no que concerne às modalidades de práticas sexuais, o que se pretende efetivamente é colocar principalmente em destaque aquelas que são paradigmáticas e, portanto, dominantes no campo social da atualidade.
Assim, ao se enunciar a existência de práticas sexuais no plural e não no singular, implica-se o reconhecimento explícito de que ocorreu transformação radical no campo da sexualidade na contemporaneidade, rompendo com os padrões sexuais anteriormente existentes na tradição social do Ocidente, assim como são múltiplos os campos dessa transformação. O reconhecimento dessa transformação no campo sexual é hoje algo da ordem do consenso, se enunciando assim de maneira ampla, geral e irrestrita. Com efeito, mesmo aqueles que não aceitam e criticam vivamente tais transformações reconhecem que estas aconteceram de forma surpreendente e, por isso mesmo, assumem posições de crítica ostensiva ante essas transformações do campo da sexualidade. No campo dessa crítica existem até mesmo muitas vozes que propõem ativamente o retorno às práticas sexuais tradicionais, como se esse processo de mudança fosse ainda reversível.
O que implica dizer que a leitura das transformações ocorridas no campo da sexualidade tem como pressuposto não apenas pretensões de ordem teórica e científica, mas enuncia também questões que envolvem o campo dos valores, sejam estas inscritas nos registros da ética e da política. Portanto, a leitura das ditas transformações incide num campo de forças onde não existe qualquer neutralidade dos atores sociais. Vale dizer, o campo sexual em pauta não é marcado pela opacidade, pois é atravessado por valências conflitantes e por posições contrapostas, temperadas que são pela paixão dos oponentes. Enfim, o debate sobre o campo sexual na contemporaneidade é permeado pela militância, não se restringindo, assim, ao mero enunciado e confronto de discursos, nos registros teórico e científico.
Não obstante tais diferenças, é possível reconhecer inicialmente que as coordenadas, constitutivas do campo da sexualidade, se transformaram radicalmente desde os anos 50 e 60, de forma que se certas fronteiras foram inequivocamente ultrapassadas de forma surpreendente por um lado; as condições de gênero passaram a ser marcadas por bordas até então inexistentes, pelo outro. Em decorrência disso, o vocabulário anteriormente estabelecido para se descrever as práticas no campo da sexualidade teve que ser reinventado de alto a baixo, disso resultando a produção de outra retórica para se referir a algo sobre o campo do sexual. Portanto, a transformação nas coordenadas constitutivas do campo da sexualidade teve como corolário a reconfiguração do campo do discurso, com a constituição de novos enunciados e enunciações sobre a sexualidade.
Pelas transformações das antigas fronteiras existentes no campo da sexualidade e das bordas estabelecidas nas condições de gêneros, a categoria de identidade sexual foi colocada radicalmente em questão, uma vez que se fundava na crença de uma essência ontológica e inamovível sobre o que seria o sexo. Com isso, o que significa as categorias do masculino e do feminino, assim como o que implica ser homem e ser mulher, foi colocado em questão de maneira frontal. Com efeito, outra modalidade de existência para as condições masculina e feminina foram então forjadas, assim como a condição homossexual foi completamente reconfigurada nesse cenário. Além disso, constituiu-se a condição do transexual, como categoria de gênero até então inédita na tradição social do Ocidente, de maneira a promover a subversão de todas as fronteiras instituídas no campo da sexualidade. Portanto, não sobrou pedra sobre pedra do que existia anteriormente no campo do sexual, pela transformação radical que incidiu nos alicerces e nas fundações que constituíam o dito campo.
Assim, é preciso se indagar inicialmente quais eram os alicerces e as fundações que constituíam o campo da sexualidade e que foram assim radicalmente subvertidos pela dita voragem transformadora. Sem ter a pretensão de ser exaustivo e pontuar apenas o que é fundamental neste processo, pode-se enunciar então de maneira sintética e condensada que foi a marca do patriarcado, que caracterizou a tradição social do Ocidente, que foi assim mortalmente atingida, uma vez que era a tradição patriarcal o que caucionava a relação hierárquica existente entre as figuras do homem e da mulher, por um lado, assim como era o que interditava a condição homossexual, pelo outro.
Seria assim em decorrência dos pressupostos presentes na tradição patriarcal que o campo da sexualidade de outrora era marcado fundamentalmente pela heterossexualidade compulsória, na leitura importante que enunciou Judith Butler (2003) no início dos anos 90, na obra intitulada Problemas de gênero. Portanto, foi em consequência do primado conferido à heterossexualidade compulsória que a homossexualidade foi considerada pela psiquiatria do século XIX como uma modalidade de aberração sexual, marcada pela degeneração (KRAFT-EBBING, 1950), e pela psicanálise no século XX como uma modalidade eloquente de perversão (LANTERI-LAURA, 1979).
Portanto, foi a desconstrução progressiva da relação hierárquica entre os gêneros, assim como a colocação em questão da heterossexualidade compulsória o que transformou e subverteu as coordenadas instituídas no campo da sexualidade, de forma que foram essas as condições concretas de possibilidade para a constituição de outro campo sexual no Ocidente. Além dessas condições fundamentais outras operações cruciais também aconteceram, como vamos enunciar ainda ao longo deste ensaio. Porém, com o intuito de puxar o fio da meada do processo complexo em pauta, vou me guiar inicialmente por tais referências fundamentais.
2. Questão de método
Desta maneira, a minha proposição axial neste ensaio é a de empreender a genealogia (FOUCAULT, 1974b) do campo da sexualidade na contemporaneidade, de forma a colocar em evidência as linhas de força e de fuga que nortearam as transformações ocorridas no campo da sexualidade, desde os anos 50 e 60, no Ocidente.
Para empreender essa genealogia vou me pautar pelos conceitos enunciados por Foucault para conceber a leitura genealógica (FOUCAULT, 1974b), baseando-se para tal no percurso teórico de Nietzsche na crítica que realizou do discurso positivista da história (FOUCAULT, 1970/1994). O que implica dizer que vou colocar em destaque o filosofema crucial que orientou Foucault na sua prática genealógica, a saber, de que o registro do saber remete ao do poder e vice-versa. Vale dizer, na leitura genealógica enunciada por Foucault os pressupostos teóricos presentes na arqueologia do saber (FOUCAULT, 1969) se conjugam necessariamente com os pressupostos teóricos da genealogia do poder (FOUCAULT, 1974b).
Além disso, é preciso evocar ainda que se o campo da sexualidade contemporânea se constitui efetivamente como um problema, o trabalho teórico realizado sobre esse problema implica a realização de problematizações, com a perspectiva então de construir problemáticas sobre o problema em pauta. É preciso destacar que esse estilo de leitura e de teorização, que se constitui pelo tríptico problema/problematização/problemática, foi enunciado de forma sistemática por Foucault no final do seu percurso teórico (FOUCAULT, 1974a).
Nesta perspectiva, para empreender a genealogia da sexualidade na contemporaneidade, colocando em pauta as problematizações e as problemáticas resultantes do dito problema, vou pautar esta exposição pelo destaque conferido aos momentos cruciais que marcaram as transformações fundamentais do campo da sexualidade no Ocidente, para enunciar então as descontinuidades históricas que foram engendradas no dito campo (FOUCAULT, 1969). Será, enfim, pelo viés desses momentos cruciais e dessas descontinuidades que poderemos aquilatar efetivamente a desconstrução das coordenadas do campo da sexualidade na contemporaneidade.
Finalmente é preciso destacar devidamente os três momentos cruciais que constituíram essas transformações de forma substantiva, a saber, o feminismo, o movimento homossexual e o transexualismo, que em conjunto representaram a realização efetiva de uma revolução dos valores no Ocidente, visto que transformou o mundo de ponta-cabeça, de forma radical. Enfim, esses três movimentos em conjunto colocaram frontalmente em questão a antiga hierarquia existente entre os gêneros, pois de maneira descontínua balançaram todas as certezas e crenças presentes na longa tradição do patriarcado.
3. Mulher e mãe
Desde os anos 50 e 60, do século XX, a primeira irrupção do movimento feminista buscou estabelecer a igualdade dos direitos e das condições de vida entre as figuras do homem e da mulher, de forma a quebrar a hierarquia existente entre aquele e esta. As mulheres demandavam assim ter as mesmas oportunidades sociais que os homens, por um lado, e ocupar posições similares a estes no espaço social, pelo outro. Com efeito, se pelo movimento sufragista, que perdurou durante décadas em escala internacional, as mulheres já tinham conquistado o direito ao voto neste contexto histórico, o que se impunha agora era a perspectiva de ampliar as conquistas femininas para novos territórios do espaço social e ampliar assim o usufruto de novos direitos.
Contudo, para isso, necessário seria afirmar em alto e bom som que a condição feminina não deveria se restringir à condição exclusiva de ser mãe, que foi a condição efetiva das mulheres no Ocidente, desde o final do século XVIII (BIRMAN, 2001). Com efeito, durante duzentos anos a condição feminina se identificou plenamente com a condição materna, uma vez que representadas como estando próximas da condição da natureza (BIRMAN, 2001), as mulheres estariam assim destinadas fatalmente e de maneira determinada para o campo dos afetos no registro moral, sendo marcadas então no registro biológico pelo instinto materno e no registro psíquico pelo sentimento do amor materno (BADINTER, 1980). Desta maneira, as ancas largas configuradas no organismo das mulheres seriam biologicamente a evidência eloquente disso, delineando assim o espaço corporal determinado pela natureza para a instalação das crianças no corpo feminino.
Além disso, por serem portadoras de um cérebro mais reduzido, quando comparado ao que existia no organismo masculino, as mulheres teriam em consequência a restrição das funções da razão e do entendimento e, em contrapartida, a expansão correlata das funções dos instintos e dos afetos, que não poderiam então ser devidamente regulados pela razão e pelo entendimento (BIRMAN, 2001). Em decorrência disso, as mulheres estariam destinadas inequivocamente à maternidade e aos cuidados das crianças, por suas disposições biológicas específicas.
Em contrapartida, por suas disposições naturais e seus desdobramentos específicos no registro moral, a figura do homem se inscreveria efetivamente no registro da cultura. Com isso, a figura do homem estaria naturalmente destinada ao espaço público, enquanto a da mulher se inscreveria no espaço privado, sendo assim a condição da maternidade o eixo constitutivo desta experiência feminina inscrita na privacidade (BIRMAN, 2001).
Assim, a figura da mulher se inscreveria no campo da família, na qual exerceria a governabilidade privada. Em contrapartida, a figura do homem exerceria a governabilidade no espaço público, no campo mais abrangente das práticas sociais e das práticas econômicas. Enfim, se os campos do trabalho, da política e da economia seriam estritamente masculinos, o campo dos cuidados familiares seria então efetivamente feminino (BIRMAN, 2001).
Porém, esta distribuição estrita de territórios sociais bem delimitados e de suas funções correlatas, das figuras do homem e da mulher, teve como condição concreta de possibilidade a constituição da família nuclear burguesa, pela qual o campo da família foi restrito à presença exclusiva de duas gerações somente, a saber, a dos pais e a dos filhos (BIRMAN, 2001). Essa nova modalidade de estrutura familiar se contrapõe nos seus menores detalhes à antiga família extensa, na qual conviviam diferentes gerações, e era comandada de maneira incontestável pela figura do pai, que detinha outrora a soberania no campo da família (FOUCAULT, 1974b).
A ruptura da família extensa representou efetivamente a primeira fratura importante na tradição do patriarcado, pois a figura do pai perdeu a soberania pelo esvaziamento do pater potesta, pelo qual aquele detinha o poder absoluto no campo familiar (BIRMAN, 2001). Existia neste contexto, com efeito, o isomorfismo entre o poder do pai na família, com o poder do Rei no espaço público e com o poder de Deus sobre todos os homens. Enfim, o que estava assim em pauta era o poder soberano como eixo constitutivo da ordem hierárquica no Antigo Regime (FOUCAULT, 1974b).
Assim, com a quebra do pater potesta a figura da mãe passou a exercer parcela do poder no espaço da família, pelo exercício da governabilidade privada, como vimos acima. Portanto, o poder do pai foi relativizado. Com isso, a mãe passou a realizar a mediação entre a instituição da família com a instituição da escola e com a instituição médica, norteando assim o exercício do biopoder (FOUCAULT, 1976).
4. Sexualidade e infância
No entanto, a dita função de mediação exercida pela figura da mulher teve como condição de possibilidade concreta a constituição de outra concepção de riqueza da Nação, centrada na qualidade de vida da população (FOUCAULT, 1976). Se anteriormente, a concepção de riqueza da Nação se bastava na extensão do território dessa e nos bens naturais existentes no seu território, com a emergência da modernidade a concepção de riqueza, em contrapartida, passou a implicar a qualidade de vida da população, pois seria em decorrência disso que o trabalho como fonte de riqueza poderia ser exercido e produzido efetivamente (FOUCAULT, 1976).
Assim, para promover a população qualificada necessário seria produzir uma população que fosse ao mesmo tempo portadora de saúde e de boa educação (FOUCAULT, 1976). Foi em consequência disso que se realizou neste tempo histórico o amplo processo de medicalização do espaço social (BIRMAN, 2001) por um lado, e o estabelecimento do ensino obrigatório, pelo outro. Portanto, a infância ganhou na modernidade importância decisiva que não detinha outrora, pois seria pelo investimento na criança que a Nação poderia constituir no futuro o capital econômico para promover a sua riqueza (FOUCAULT, 1963). Com efeito, se a figura da criança se constituiu como capital simbólico com a emergência da modernidade ocidental, isso se deveu ao fato de ela ser ao mesmo tempo a garantia futura do capital econômico da Nação (FOUCAULT, 1963). Por isso mesmo, a criança devia ser bem educada e ser portadora de boa saúde, como condição concreta de possibilidade para a riqueza futura da Nação.
Foi desde então que a figura da criança passou a ocupar a posição soberana para as figuras parentais, como nos disse Freud (1973) em Introdução ao narcisismo, - "sua majestade, o bebê" -, que deviam então fazer sacrifícios pessoais em nome dos filhos, para que estes fossem bem educados e saudáveis. Além disso, foi ainda neste contexto histórico, que a figura da criança passou a condensar no Ocidente a metáfora do futuro (BIRMAN, 2001), pelos investimentos e expectativas que foram nela então depositados.
Foi assim por conta do exercício da governabilidade privada que a mãe promoveu os laços das crianças com a escola e com a medicina, para qualificá-las socialmente dos pontos de vista pedagógico e sanitário. Com isso, a figura da mãe ganhou certamente uma parcela do poder que não detinha no tempo histórico da família extensa, mas que estava centrada exclusivamente na sua função materna (BIRMAN, 2001).
De qualquer maneira, restrita à escala de duas gerações a família passou a ser permeada por laços afetivos intensos, entre as figuras dos pais e dos filhos. Em nome da promoção da saúde das crianças a sexualidade infantil passou a ser meticulosamente controlada pelos pais, pois a masturbação infantil passou a ser então considerada uma prática erótica perigosa para a saúde das crianças (FOUCAULT, 1976).
Ao lado disso, ficando restrita à condição exclusiva de mãe, a figura da mulher foi reduzida nos registros corporal e psíquico, não dispondo assim plenamente do seu erotismo, que deveria ser canalizado para a condição da maternidade. Constituiu-se com isso a condição de possibilidade para a constituição da figura da mulher permeada pela histeria, na qual a sexualidade coartada passou a se manifestar de forma indireta pela produção de sintomas, tal como Freud passou a empreender a leitura do corpo feminino para constituir a psicanálise, no final do século XIX (FREUD; BREUER, 1896/1971).
Portanto, a invenção da psicanálise como discurso teórico e clínico se deveu à articulação íntima que foi então tecida entre as figuras da histeria (FREUD; BREUER, 1896/1971) e da criança (FREUD, 1905/1962), pela qual foi delineada a teoria da fantasia em A interpretação dos sonhos, de forma sistemática (FREUD, 1900/1976) por um lado, e a teoria da sexualidade infantil nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (FREUD, 1905/1962), pelo outro.
5. Desejo e reprodução
Assim, se as figuras da mulher como mãe e da criança foram articuladas e condensadas, com a constituição da modernidade, este laço foi rompido com o movimento feminista nos anos 50 e 60, do século XX. Com isso, a mulher passou a demandar outra modalidade de existência e de reconhecimento social que deveria ultrapassar a sua condição materna, visto que ser mãe deveria representar apenas uma das possibilidades da condição da mulher dentre outras.
Por isso mesmo, o símbolo originário do movimento feminista, que ficou marcado para sempre no arquivo do Ocidente, foi o gesto célebre da feminista norte-americana Betty Friedan de rasgar impetuosamente o sutiã, no espaço público, de forma a expor os seios publicamente para quem quisesse ver. Desta maneira, a figura da mulher se apossava definitivamente de seu seio, como objeto erótico, rompendo a articulação desse com a figura da criança na cena da amamentação, cena essa que foi sacralizada e que representava de forma eloquente o poder do pai e do homem sobre as figuras da mãe e da mulher, respectivamente.
Contudo, a revolução feminista teve como condição concreta de possibilidade a descoberta das técnicas anticoncepcionais seguras, de forma que o tempo do desejo foi então destacado definitivamente do tempo da reprodução, com o qual estava articulado anteriormente (BIRMAN, 2001). Assim, ao dispor livremente do tempo do desejo sem o risco iminente da reprodução, a figura da mulher passou a dispor de seu corpo para o exercício pleno de seu erotismo e do seu desejo, pois passou a decidir quando engravidar e com quem empreender essa experiência decisiva, sem ficar assim atrelada necessariamente à servidão reprodutiva como ocorria outrora (BIRMAN, 2001).
Pela posse plena que passou a ter sobre o seu corpo e de seu desejo, sem o risco da gravidez, a figura da mulher passou a exercer livremente a sua sexualidade fora da condição estrita do matrimônio. Em decorrência disso, o casamento como figura sacralizada que era no Ocidente desde a modernidade, passou a ser desconstruído progressivamente, sendo substituído posteriormente por formas mais flexíveis de laços conjugais, pelas quais as mulheres e os homens passaram a estabelecer tais laços entre si à proporção que cada um dos parceiros sustenta o seu desejo sexual com o outro, por um lado, e o seu projeto existencial, pelo outro. Com isso, as separações conjugais se multiplicaram na contemporaneidade e deixaram de ser uma vergonha para os divorciados, como ocorria anteriormente (BIRMAN, 2001).
Tudo isso teve incidência efetiva sobre o registro do pudor, uma vez que os corpos das mulheres passaram a ser exibidos no espaço público, pois não estavam mais restritos ao espaço social da família, aos laços do casamento e da condição da maternidade. Assim, se evidencia em ato o empoderamento efetivo conquistado pelas mulheres sobre seus corpos e seus desejos, rompendo definitivamente assim com a servidão à figura do homem e da criança, como ocorria desde a aurora da modernidade (BIRMAN, 2001).
A relação hierárquica entre os gêneros começou a ser então desconstruída, se delineando de forma progressiva na direção da igualdade entre aqueles, de maneira tal que ironicamente o filósofo e psicanalista Castoriadis, de origem grega e radicado na França, pode afirmar que o movimento feminista realizou a maior revolução no Ocidente no menor espaço, uma vez que se materializou entre o quarto de dormir e a cozinha. Com efeito, pelo imperativo da igualdade as práticas domésticas foram subvertidas de ponta-cabeça pelo deslocamento definitivo da figura da mulher da condição de mãe e de doméstica, pelo investimento daquela em novas possibilidades existenciais e sociais. Enfim, o patriarcado entra num processo definitivo de desconstrução, num processo que continua ainda ocorrendo hoje (BIRMAN, 2001).
A totalidade deste processo complexo incidiu ainda no campo da moda de maneira radical, à proporção que a figura da mulher passou a se vestir com mais liberdade e ousadia, expondo publicamente o seu corpo sem pudores, pois o erotismo passou a norte ar a sua existência como forma privilegiada de afirmação de si. Enfim, a expressão mais eloquente deste conjunto radical de transformações, ocorridas com as mulheres neste contexto, é que era proibido proibir, que foi vocalizada passionalmente em prosa e verso pelos jovens do mundo todo nas manifestações públicas de maio de 1968.
6. Homoerotismo
A quebra da relação hierárquica entre as figuras do homem e da mulher, que se estabeleceu de forma progressiva, mas sempre segura, teve ainda um efeito fundamental no campo do homossexualismo, pois retirou também os homossexuais definitivamente de sua existência sombria e espectral. Assim, os homossexuais saíram então do armário, onde tinham uma existência envergonhada nas suas intimidades e passaram a se inscrever no espaço público sustentando os seus direitos de serem reconhecidos como tais. Com isso, os homossexuais passaram a respirar o ar puro e a desfrutar da luz do sol, se inscrevendo assim no espaço público sem qualquer arrependimento e vergonha, no que concerne às suas condições eróticas.
Desta maneira, sejam homens sejam mulheres, os homossexuais passaram a reivindicar abertamente o direito às suas diferenças eróticas frente aos heterossexuais, sem que a dita diferença fosse considerada como anomalia e como enfermidade a ser corrigida e ser cuidada terapeuticamente pela medicina. Não somos defeituosos, nem tampouco enfermos, passaram a vociferar os homossexuais em toda parte, para sacudir a poeira nefasta que maculava os seus corpos enegrecidos pela severidade dos preconceitos, nos quais esses eram fundados nos pressupostos teóricos e morais do discurso psiquiátrico e do discurso psicanalítico, desde a aurora da modernidade.
Com efeito, se desde o século XIX o discurso psiquiátrico considerava os homossexuais como marcados por uma das modalidades recenseadas de aberração sexual, na qual o paradigma teórico da degeneração ocupava a função de causalidade (KRAFT-EBBING, 1950), a psicanálise depois de Freud, em contrapartida, passou a considerar aqueles como inseridos no registro da perversão.
No que tange a isso, é preciso destacar devidamente que a publicação dos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (FREUD, 1905/1962), teve o mérito efetivo de retirar a homossexualidade dos registros da aberração sexual e da degeneração, uma vez que enunciou a tese de que a sexualidade humana não visaria a reprodução, mas seria norteada pelo prazer e pelo gozo. Além disso, sustentava que existia a sexualidade infantil, de forma que esta seria perverso-polimorfa, voltada que era para o usufruto do gozo e do prazer, ao invés de promover fundamentalmente a reprodução da espécie, como sustentava o discurso sexológico no século XIX (FREUD, 1905/1962). Finalmente, o discurso freudiano enunciava ainda que não existia qualquer marca de degeneração entre os homossexuais, visto que estes mostravam no seu psiquismo a presença da operação da sublimação, já que muitos dentre eles eram artistas e poetas (FREUD, 1905/1962).
Vale dizer, para o discurso freudiano inicial sobre a sexualidade, que inaugurou clínica e teoricamente a psicanálise, o homossexualismo seria uma variação no campo da sexualidade, não sendo assim nem uma anomalia erótica, nem tampouco uma modalidade de aberração sexual (FREUD, 1905/1962). Por isso mesmo, o discurso freudiano, nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, subverteu a leitura instituída pela sexologia no século XIX no que concerne ao homossexualismo, de acordo com a rigorosa interpretação formulada por Lanteri-Laura (1979), na obra intitulada Leitura das perversões.
Contudo, ainda segundo Lanteri-Laura (1979), a subversão teórica e ética enunciada pelo discurso freudiano foi silenciada em seguida, seja pelo discurso psiquiátrico dos anos 20 e 30 do século XX, seja pelo discurso psicanalítico pós-freudiano, pela inscrição do homossexualismo no campo da perversão. No que tange a isso, o enunciado teórico da existência especifica da estrutura psíquica da perversão no discurso psicanalítico foi o caminho encontrado na psicanálise para suspender e silenciar a novidade promovida pelo discurso freudiano sobre o homossexualismo.
Foram estes discursos teóricos, oriundos assim da psiquiatria e da psicanálise, que relegaram os homossexuais a uma existência sombria e espectral até os anos 60 e 70 do século passado, quando eles se rebelaram ostensivamente contra tais sistemas classificatórios e nosográfico para demandarem ser reconhecidos na sua diferença erótica ante os heterossexuais. Esse processo acabou por se desdobrar triunfantemente na suspensão da leitura psiquiátrica do homossexualismo como enfermidade, nos anos 80 do século XX, com a publicação do DSM III pela Associação Norte-americana de Psiquiatria.
Contudo, foi a crítica sistemática da relação hierárquica existente entre os gêneros, promovida inicialmente pelo movimento feminista, que promoveu em seguida o movimento homossexual na sustentação da diferença erótica existente dos homossexuais ante os heterossexuais. Com isso, o homoerotismo foi enunciado assim na sua especificidade e diferença.
7. Recriação e invenção de si
Nos rastros dos movimentos feminista e homossexual constituiu-se o movimento dos transgêneros, desde os anos 80 do século XX. Se bem que tivessem sido iniciadas com êxito logo após a 2ª Guerra Mundial, as cirurgias de transgenitalização eram realizadas de maneira assistemática e localizadas somente em certos países periféricos, em decorrência da existência de legislações que interditavam então essa modalidade de prática médica nos países centrais. Portanto, foi apenas ao longo dos anos 70 e 80 que legislações autorizando tais cirurgias se formularam com mais abrangência, de maneira a forjar práticas médicas e jurídicas sistemáticas para nortearem as demandas efetivas dos transgêneros em diferentes países. Constituiu-se assim o movimento transexual propriamente dito, que ganhou desde então volume, intensidade e importância em escala internacional.
No que concerne a isso, é preciso reconhecer preliminarmente que a demanda dos transgêneros é bem mais radical do que a do movimento feminista e a do movimento homossexual, uma vez que o que o transexual demanda é a transformação absoluta de sua condição de gênero, com todas as implicações e desdobramentos que isso impõe. Com efeito, o que os transgêneros demandam é a transformação anatômica de sua genitália, acompanhada com as mudanças respectivas de ordem hormonal. Além disso, uma transformação psíquica correlata seria colocada em movimento, conjugada com a mudança de nome a ser devidamente realizada no registro civil. Enfim, como resultante desse processo múltiplo e complexo, envolvendo uma equipe multidisciplinar de profissionais e diversas instâncias sociais, a transformação radical da condição de gênero finalmente acontece, de forma que um homem se transformaria numa mulher e uma mulher se transformaria num homem.
Além da transformação biológica em pauta, de ordem anatômica e endócrina ao mesmo tempo, o que esta transformação implica ainda de fundamental, como disse, é a mudança de nome do transgênero em pauta no registro civil, como correlato da transformação psíquica demandada, com todos os desdobramentos sociais e éticos que isso tudo implica. Portanto, é preciso enunciar que um outro ser se constitui efetivamente, nos seus menores detalhes, em todos os registros da existência do sujeito.
No entanto, no que tange à condição transexual em si, a radicalidade em questão deve ser devidamente aquilatada pelo destaque a ser conferido às duas dimensões colocadas em pauta, a saber, a não aceitação em ato realizada pelo sujeito de seu corpo delineado por uma certa condição de gênero e a assunção correlata de outra condição de gênero que seria marcada no seu corpo reformatado, assim como pela mudança operada na sua nomeação realizada pelas figuras parentais desde o nascimento e reconhecida pelo registro civil do Estado. Com efeito, o que o sujeito não mais aceita é a condição do acaso da combinação genética ocorrida na ordem da natureza na sua constituição biológica, assim como a nomeação realizada pelos pais na ordem simbólica, de forma que o que o transexual pretende empreender é a recriação de si, fundada no desejo do sujeito. Enfim, o que está assim em pauta de forma eloquente é um movimento efetivo de invenção de si realizada pelo sujeito transexual, norteado que é pelo seu desejo, de forma a se consubstanciar finalmente como outro ser, como enunciei acima.
Em contrapartida, nos movimentos feminista e homossexual não existe qualquer demanda de invenção de si por parte do sujeito, pelas mulheres e pelos homossexuais respectivamente, que desejam apenas ser efetivamente reconhecidos pelo que são, sem os entraves colocados pela redução da mulher à condição exclusiva de mãe e pela negação ao homossexual à especificamente diferencial de seu desejo.
O que implica enunciar que, de estrito do ponto de vista psicanalítico, o que está em pauta nas demandas das mulheres e dos homossexuais se inscreve no campo da estrutura edipiana, visto que o sistema simbólico da nomeação parental não é atingido por tais demandas, já que o sujeito em causa exige somente outras modalidades de reconhecimento, ao mesmo tempo ético e psíquico. No que tange aos transgêneros, em contrapartida, é a estrutura edípica que é atingida efetivamente pelo sujeito nas suas coordenadas fundamentais, de forma que este pretende então realizar a recriação e a invenção de si, numa transformação eloquente de si, numa reviravolta de seu ser de ponta-cabeça.
Por isso mesmo, na experiência psíquica dos transgêneros é bastante comum nas narrativas do sujeito os enunciados de morte e de renascimento ao longo do processo de transgenitalização, que cadenciam e pontuam essa transformação radical de si realizada pelo sujeito, que implica a construção de outro corpo, do enunciado de outro nome e o estabelecimento de novos laços sociais.
As leituras psicanalíticas sobre os transgêneros são múltiplas e diversas, evidenciando diferenças radicais na interpretação que enunciam sobre o transexualismo, como se verá no que se segue.
8. Transgênero
Desde os anos 70 o psicanalista norte-americano Stoller enunciou a tese sobre a especificidade psíquica da condição transexual, de forma a não a reduzir à estrutura da perversão, nem tampouco inscrevê-la na estrutura da psicose (STOLLER, 1970). Este percurso teórico-clínico original de Stoller foi precedido por longa pesquisa anterior voltada para o hermafroditismo (STOLLER, 1964).
Assim, na leitura enunciada por Stoller o que estaria em pauta no futuro transexual seria a permanência do sujeito na condição feminina originária oriunda da identificação com a figura da mãe. Esta, contudo, na perspectiva teórica de Stoller, teria uma identificação fálica, na qual a identificação feminina seria objeto de denegação. Com isso, promoveria e cultivaria a permanência do filho homem na identificação feminina primordial (STOLLER, 1970). Porém, a identificação fálica da figura da mãe não a inscreveria numa estrutura psíquica perversa, de forma que existiria efetivamente a especificidade psíquica da figura do transgênero, sem que seja delineada na estrutura psíquica da psicose (MELMAN, 1996).
Em contrapartida, na leitura empreendida pelo campo lacaniano existiria a oposição estabelecida entre a falsa transexualidade e a verdadeira transexualidade. Com efeito, enquanto esta seria o signo inconfundível da psicose, se evidenciando pela produção delirante, tal como aparece na narrativa clínica de Schreber realizada por Freud, aquela não evidenciaria propriamente qualquer consistência psíquica como transexual (MELMAN, 1996).
Qual seria o argumento teórico decisivo que sustentaria tal distinção entre o verdadeiro e o falso transexual?
Assim, Melman e demais colaboradores da Association Freudienne Internationale enunciaram a tese de que a identidade de gênero somente é atingida na psicose, como no delírio de transformação em mulher de Schreber, descrita por Freud (MELMAN, 1996), constituindo então o campo dos verdadeiros transexuais. Ao lado disso, existiriam os falsos transexuais que se formariam pelo imperativo da mídia e que teriam ainda a colaboração e cumplicidade dos discursos da medicina e da psiquiatria para autorizarem a cirurgia de transgenitalização, pela mediação do mecanismo psíquico da passagem ao ato (MELMAN, 1996).
Para isso, contudo, Melman sustenta ainda que, em consequência da identificação bissexual fundamental e da estrutura edipiana, todos nós duvidamos múltiplas vezes sobre a nossa identidade sexual ao longo da vida, sem que isso signifique que a condição de transgênero estaria em causa (MELMAN, 1996). Assim, tais demandas de cirurgia de transgenitalização, seriam baseadas nessas dúvidas corriqueiras e regulares do sujeito que, quando são tomadas literalmente pelas equipes médica e psiquiátrica, constituem o mecanismo da passagem ao ato (MELMAN, 1996).
Além disso, Melman enuncia ainda que com a demanda de tais cirurgias para a transformação da condição de gênero pelo sujeito, uma dupla transgressão estaria em pauta, a saber, a da ordem da natureza que forjou a existência de um dado corpo sexuado (macho ou fêmea) pela combinação aleatória dos genes oriundos dos corpos biológicos dos pais, e a da ordem simbólica, uma vez que a nomeação parental conferida ao sujeito (homem e mulher) seria igualmente transgredida pelo sujeito de forma desafiante e peremptória (MELMAN, 1996). Enfim, o que é assim enunciado é que os falsos transexuais estariam inscritos na estrutura da perversão, em decorrência da dupla transgressão em pauta (FRIGNET, 2000).
Outra versão oriunda do campo lacaniano foi enunciada recentemente por Marco Antonio Coutinho Jorge e Natália Pereira Tavares, num artigo publicado na Revista latino-americana de psicopatologia fundamental, em 2017. Com efeito, se para esses autores os verdadeiros transexuais estariam inscritos na estrutura psíquica da psicose, os falsos transexuais, em contrapartida, estariam inscritos no campo da histeria (COUTINHO JORGE, 2017). Como seria sempre no registro da histeria que a identidade sexual seria colocada em questão, assim como as indagações fundamentais sobre a sexualidade, os transexuais falsos seriam então efetivamente histéricos (COUTINHO JORGE, 2017).
Se com essa interpretação os autores em questão mantêm a oposição enunciada no discurso lacaniano de Melman entre o falso e o verdadeiro transexual, mas inscrevendo o falso na estrutura de histeria e não na da perversão, por um lado, procura ainda responder pelo transexualismo ao destino enigmático configurado pela histeria na contemporaneidade, pelo outro. Vale dizer, quando o campo psicanalítico na atualidade se questiona repetidamente sobre o desaparecimento e o silêncio da histeria na contemporaneidade, Coutinho Jorge e Pereira Tavares (2017) respondem a isso de forma peremptória, a saber: que o transexualismo é a forma inequívoca pela qual a histeria se apresentaria hoje.
Além disso, esses autores sustentam ainda que existiria uma verdadeira epidemia de transexualismo na contemporaneidade - como enunciam no título do artigo em questão de forma eloquente -, se inscrevendo assim no discurso da ciência e no contexto histórico e social da globalização. Porém, ao enunciar a existência de uma efetiva epidemia transexual, Coutinho Jorge e Pereira Tavares inscrevem inequivocamente o transexualismo no registro específico da patologia médica, de forma a não restringir a sua leitura ao discurso psicanalítico, pois o significante "epidemia" além de remeter ao discurso da medicina e da epidemiologia em particular, indica a existência de um risco grave de uma dada enfermidade para a saúde pública da população concernida.
Em decorrência disso, esse artigo de Coutinho Jorge e de Pereira Tavares foi vivamente contestado pela comunidade dos transgêneros, que escreveu para a Revista latino-americana de psicopatologia fundamental onde o artigo foi publicado, demandando que os autores deveriam ser censurados e se retratar pela revista em pauta, por terem patalogizado a condição do transgênero. Contudo, a direção da revista em questão formulou que a revista não poderia eticamente censurar e pedir a retratação dos autores em causa, mas que a dita comunidade de transexuais poderia escrever uma resposta ao artigo em questão e que a direção da revista o publicaria efetivamente.
O que esse debate sobre o transexualismo indica com bastante eloquência, aliás, é como as leituras sobre as diferentes condições de gênero ocorridas na contemporaneidade são a fonte de confrontos diversos e apaixonados, onde o discurso psicanalítico é contestado com vigor pelas diferentes comunidades das mulheres, dos homossexuais e dos transgêneros, de maneira que no exemplo em pauta a militância dos transexuais reagiu frontalmente ao serem patologizados pela psicanálise.
Contudo, a possibilidade entreaberta de recriação e de invenção de si, colocada em cena pelo transgênero na contemporaneidade, é o signo mais radical das transformações ocorridas na sexualidade contemporânea, de forma insofismável, visto que coloca na pauta da atualidade a questão de saber se existiria efetivamente algo como o sexo verdadeiro para o sujeito. Com efeito, a multiplicidade e a pluralidade das condições de gênero, delineadas pelas novas condições eróticas das mulheres e dos homossexuais já colocava em surdina essa indagação, que foi radicalizada, no entanto, pelas coordenadas originais enunciadas pela problemática do transexualismo.
9. Sexo verdadeiro?
Desde o Renascimento até o início do século XIX na Europa o destino do hermafrodita era marcado pelo alto coeficiente da liberdade, quando uma inflexão decisiva marcou a ferro e fogo o destino do hermafroditismo pela impossibilidade, na aurora da modernidade no Ocidente. Com essa inflexão crucial a problemática do sexo verdadeiro foi colocada em cena de maneira trágica.
Assim, desde o Renascimento o sujeito hermafrodita era batizado com um nome escolhido pelos pais, que evidenciaria a condição de gênero escolhido para a criança pelas figuras parentais. Contudo, no momento do matrimônio era possível que o sujeito escolhesse outra condição de gênero, que contrariava a nomeação e a condição de gênero que lhe foi outorgada no ato sagrado do batismo. Porém essa regra socialmente instituída durante séculos foi rasurada no início do século XIX, uma vez que o sujeito não poderia mais transformar a condição de gênero por um ato de liberdade e contrariar assim a escolha dos pais e sacramentada pelo batismo, já que aquele não poderia mais definir a sua condição de gênero por um ato oriundo de seu livre arbítrio (FOUCAULT, 1978).
Com efeito, o que se constituiu desde então foi a problemática do sexo verdadeiro, pela qual foi suspensa definitivamente a existência de qualquer duplicidade no que concerne à condição de gênero para o sujeito. Desde então caberia ao discurso da medicina definir inequivocamente a condição do gênero do sujeito, baseado no critério anatômico da genitália em conjunção com as marcas secundárias que evidenciassem qual era o sexo verdadeiro do sujeito em questão. Portanto, foi o saber médico quem passou a deter efetivamente a autoridade simbólica, política, social e ética na definição da condição de gênero do sujeito (FOUCAULT, 1978). Enfim, essa condição foi assim medicalizada no Ocidente, desde o início do século XIX.
Esta inflexão decisiva que selou o novo destino existencial do hermafroditismo foi produzida pela questão pontual colocada pelo hermafrodita Herculine Barbin, que convivia com outras meninas num internato religioso na França e promovia ao que parece grandes paixões entre as demais moças da escola. Contudo, a partir da narrativa de suas experiências realizadas ao padre confessor da escola a jovem foi retirada do convívio com as demais, pois foi considerada como sendo inequivocamente do sexo masculino, pelo exame anatômico de sua genitália e por suas características sexuais secundárias, realizados pela medicina legal. Com efeito, se o gênero masculino era assim o sexo verdadeiro de Herculine Barbin, esta não poderia então mais conviver e namorar com outras meninas numa escola interna (FOUCAULT, 1978). Enfim, em decorrência desse ato e da decisão médica Herculine Barbin veio a se suicidar logo em seguida, em confronto aberto e rebelde com a condição de gênero e no sexo verdadeiro que lhe foi atribuído, definido arbitrariamente pelo discurso da medicina legal (FOUCAULT, 1978).
Assim, a história trágica do hermafrodita Herculine Barbin se tornou o paradigma insofismável de outra leitura forjada no Ocidente sobre a condição de gênero do indivíduo, baseada nas evidências da anatomia e dos caracteres sexuais secundários, que passaram desde então a definir o sexo verdadeiro do sujeito. Com isso, o sexo verdadeiro passou a definir a condição de gênero do sujeito desde a modernidade, no Ocidente, marcando assim a nossa tradição de forma inquestionável.
No entanto, os discursos do feminismo e do homossexualismo colocaram em questão de forma radical o discurso do sexo verdadeiro, fundado na conjunção entre o registro biológico do sexo e o registro social do gênero, no qual aquele teria a primazia inequívoca sobre este, pela inversão dos registros em questão; por essa inversão o registro do gênero desde então seria o decisivo. Com isso, o discurso do sexo verdadeiro começou a ser desconstruído, de forma progressiva e paulatina, no Ocidente, desde os anos 60, quando se iniciaram de forma triunfal as diversas revoluções sexuais que marcaram a contemporaneidade.
Porém, o discurso do transgênero radicalizou a desconstrução do discurso do sexo verdadeiro de forma ainda mais radical, já que o sujeito em pauta pretende escolher a sua condição de gênero e forjar então cirurgicamente o registro anatômico específico que lhe fosse correlato num ato original de invenção e de recriação de si. É claro que para que tudo isso aconteça de fato é preciso que o sujeito seja monitorado pelos discursos da medicina e da psiquiatria, enfim, não se restringindo assim o processo em pauta à escolha e ao ato do sujeito na sua solidão radical.
Nesta perspectiva, a condição de gênero é que seria então decisiva e passou a ser crucial ante a condição biológica do sexo (FOUCAULT, 1976) nas diferentes versões que assumiu a revolução sexual no Ocidente, desde os anos 50 e 60. Contudo, do feminismo ao transexualismo, passando pelo homossexualismo, o coeficiente de ousadia e de radicalidade foi certamente bastante radicalizado na modulação e na construção das formas de subjetivação na contemporaneidade (FOUCAULT, 1976).
10. Desdobramentos
No entanto, o conjunto de transformações sexuais em pauta continua ainda em marcha no espaço social contemporâneo, uma vez que o processo em questão ainda não se concluiu e continua certamente em pauta de forma contínua. Assim, existiram e existem ainda múltiplas resistências a essas transformações, oriundas dos setores e dos segmentos sociais mais conservadores existentes no espaço social da contemporaneidade. Essas resistências existem certamente em escala internacional, mas que no Brasil assumem formas não apenas violentas, mas também caricatas, como as diversas manifestações públicas oriundas dos discursos religiosos em 2017 contra a presença de signos eróticos na arte, evidenciaram claramente.
É preciso evocar que nos três registros onde a revolução sexual aconteceu efetivamente, a violência dos grupos conservadores se enunciou ostensivamente e de forma eloquente, seja de forma real seja de forma simbólica. Assim, as mulheres livres, os homossexuais e os transgêneros foram fisicamente agredidos e foram espancados em praça pública, ficando quase sempre impunes os agressores, quando aqueles não foram mortos pelo exercício da violência aberta. No que concerne a isso, o Brasil ocupa indiscutivelmente o primeiro lugar no campo internacional no exercício de tais violências, nos três registros em pauta.
Assim, se as mulheres pretendem afirmar a sua liberdade de ser e o que desejam, a reação machista responde pelo incremento do estupro e do assédio, seja sexual seja moral. Além disso, é preciso evocar que foi criada recentemente a figura jurídica do feminicídio no Brasil, tal o volume e a quantidade de mulheres mortas por homens machistas.
É preciso considerar ainda que o incremento da pedofilia em escala internacional foi o contraponto encontrado por segmentos sociais de homens de não poderem mais exercer o machismo como outrora, onde as mulheres eram reduzidas à condição passiva e submissa de objeto sexual para o gozo masculino. Com efeito, as crianças indefesas e passivas representam hoje o que eram as mulheres de outrora, entregues que ficavam ao desejo absoluto dos homens na submissão dos seus corpos.
No contexto social de tal violência contra as mulheres foi criada no Brasil a Lei Maria da Penha para punir e criminalizar os agressores sexuais das mulheres. Contudo, é preciso evocar ainda que nem sempre as mulheres têm coragem suficiente de denunciar seus parceiros na justiça, seja por medo da represália violenta destes, seja pelo medo de perdê-los como companheiros. O que isso evidência é a ambiguidade de certos setores femininos ante as transformações em pauta, ora aderindo a estas ora se opondo a elas, ao mesmo tempo.
Além disso, é preciso evocar ainda que setores e segmentos significativos da população feminina realizam a dupla jornada de trabalho, se dividindo entre as práticas laborais e domésticas, o que é a fonte certamente de exaustão física para as mulheres concernidas, sem esquecer da angústia e da depressão que isso pode lhes produzir. No entanto, se assim ocorre isso se deve à não colaboração de parcela da população masculina com a divisão de trabalho doméstico, de forma que tais encargos acabam recaindo nas suas parceiras que têm a dupla jornada de trabalho e permanecem parcialmente então na personagem tradicional da mulher. Enfim, isso evidencia também a ambiguidade de certos segmentos da população feminina de resistência às transformações enunciadas pelo movimento feminista, que se conjuga à resistência respectiva de seus parceiros.
No registro da homossexualidade a morte e a violência física contra os homossexuais são gigantescas, sem considerar, é claro, o assédio moral de que são objeto permanentemente em diferentes contextos sociais. O casamento gay é sempre repelido pelos grupos conservadores de todas as matrizes, assim como a adoção de crianças por parceiros homossexuais. Além disso, a cura gay foi colocada novamente na cena social brasileira em 2017, apesar de ser sido interditada pelo Conselho Federal de Psicologia por razões científicas, pois a homossexualidade não é mais considerada uma doença desde os anos 80, como vimos acima.
Constituiu-se também recentemente a figura jurídica da homofobia como uma modalidade nova de crime, para que a comunidade gay pudesse se proteger de tais violências arbitrárias, de forma a poder punir os agressores judicialmente. Porém, o índice de impunidade por homofobia no Brasil é gigantesco, o que evidencia a existência persistente na mentalidade brasileira do horror ao homossexualismo e a afirmação da heterossexualidade compulsória como norma social (BUTLER, 2003).
Contudo, é preciso dizer ainda que a descoberta pelo sujeito de sua condição homossexual é sempre difícil inicialmente, marcada que é pela dor, sendo a fonte repetida de angústia e de depressão por aquele, temperada que a dita descoberta é pela vergonha ante os parceiros sociais e os familiares. Na dependência direta da aceitação destes e daqueles a assunção da condição homossexual pode ser ou não traumática para o sujeito. O que implica dizer que a assunção da condição homossexual é sempre modulada pelo campo dos laços sociais estabelecido pelo sujeito.
O que mesmo ocorre com a assunção efetiva da condição transexual, onde a nova modalidade de subjetivação se articula com o campo dos laços sociais estabelecido pelo sujeito, de forma a modular pelas alianças a nova condição subjetiva.
Se a descoberta das condições homossexual e transexual é inicialmente difícil para qualquer sujeito, isso se deve à dor e ao conflito que são sempre provocados em qualquer um por contrariar o imperativo normativo sobre a condição de gênero. Com efeito, essa ruptura normativa radical se enuncia sempre como anúncio de uma morte possível e que se traduz pela conjunção entre a angústia, a culpa, a depressão e a vergonha pelo sujeito, mas que pode ser positivamente modulada pelos laços sociais que este estabelece, com os amigos e a família, como enunciei acima.
Além disso, para as figuras parentais a dificuldade em aceitar inicialmente que o filho (ou a filha) seja gay ou transgênero passa não apenas pela angústia produzida pela ultrapassagem da ruptura normativa em pauta, mas também pela aceitação da impossibilidade de não ter descendentes, pela interrupção do sistema de filiação. O que implica dizer que as figuras parentais dos homossexuais e transexuais terão que realizar um trabalho de luto, para poderem aceitar internamente o filho ou a filha que não vai lhes dar uma descendência.
De qualquer maneira, o conjunto destas transformações radicais incide positivamente sobre a juventude na atualidade, que é bem menos preconceituosa - indiscutivelmente preconceituosas que foram as gerações de seus pais e avós. Vale dizer, as cristalizações identitárias de gênero, sejam masculinas ou femininas, entraram em franco processo de dissolução, uma vez que a condição subjetiva do estado se afirma de forma eloquente ante a condição da permanência e da substância, pela maneira em que o verbo estar se afirma ostensivamente diante do verbo ser. Em decorrência disso, os jovens se permitem hoje carícias e beijos com homens e mulheres, sem que isso implique necessariamente cristalizações identitárias de gênero. Enfim, este é o saldo e o ganho efetivos de tais transformações eróticas, que foram transmitidos para as novas gerações.
11. Para concluir
É preciso evocar ainda à guisa de conclusão que, diante de todas estas transformações nas práticas sexuais e nas suas formas correlatas de subjetivação, a posição do psicanalista é a de saber escutar e de acolher o que está acontecendo com o sujeito na sua singularidade, sem julgar assim os analisantes, baseando-se para tal nos seus preconceitos morais e nos seus preconceitos teóricos.
Isso porque, como se sabe, as proposições teóricas e éticas do feminismo, do homossexualismo e do transexualismo colocaram em questão diversos conceitos e até mesmo pressupostos teóricos da psicanálise, de forma que diante disso o discurso psicanalítico pode ser criticado e mesmo se reconstruir, pela incorporação crítica do que é enunciado por esses discursos. Não me parece assim que a posição teórica dogmática seja a melhor escolha neste contexto de transformações cruciais, momento em transformação e de maneira que o melhor que pode acontecer com a psicanálise é ficar atenta ao que acontece hoje, sem preconceitos e sem dogmatismo, para estar à altura dos desafios colocados pela contemporaneidade, à medida que a prática da experiência psicanalítica pressupõe que o analista esteja à altura da subjetividade de seu tempo, como enunciou Lacan de forma rigorosa e pertinente.
Neste contexto decisivo para o destino e o futuro da psicanálise, cabe assim ao psicanalista saber escutar e acolher efetivamente o que acontece com os sujeitos, sem fechar seus ouvidos e olhos com dogmas teóricos ensurdecedores, que apenas os relançam e impedem então a emergência fulgurante da diferença.
Referências
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Artigo recebido em: 12/01/2018
Aprovado para publicação em: 09/02/2018
Endereço para correspondência
Joel Birman
E-mail: joelbirman@uol.com.br
*Psicanalista, Membro do Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos e do Espace Analytique. Professor Titular do Instituto de Psicologia/Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Diretor de Estudos em Letras e Ciências Humanas/Universidade Paris VII, Pesquisador associado do Laboratório "Psicanálise e Medicina e Sociedade" e Professor associado da École Doctorale de Psychanalyse/Université Paris VII. Pesquisador e Consultor Ad-hoc do CNPq.
1Este texto foi escrito a partir das notas que me nortearam na conferência realizada no Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro, em 20 de outubro de 2017.