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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

versão On-line ISSN 1413-6295

Cad. psicanal. vol.42 no.43 Rio de Jeneiro jul./dez. 2020

 

ARTIGOS

 

A lei do tráfico na horda brasileira: o Nome-do-Pai na criminalidade

 

The traffic's law at brazilian horde: the Name-of-the-Father in crime

 

 

André Fernando Gil Alcon CabralI*; Aline Accioly SieiroI, II, III**

IUniversidade Federal de Minas Gerais - UFMG - Brasil
IIUniversidade Federal de Uberlândia - UFU - Brasil
IIIHaeresis Associação de Psicanálise - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Partindo do estudo da violência que ocorre no distrito de Sapopemba, interrogamos se o significante do Nome-do-Pai se mantém como baluarte à criminalidade. Primeiramente, investigaremos como a desagregação da família incide como causa da entrada no crime. Após constatar que não há uma dicotomia tão bem demarcada entre família e tráfico, mas uma fronteira tênue entre os dois mundos, demonstraremos que o pai é sempre uma figura carente e decrépita. Por fim, concluímos que, no crime, há a inscrição do significante do pai como aquele que permite o pacto entre os irmãos, o que se explicita na irmandade pelo Nome do Primeiro Comando da Capital (PCC).

Palavras-chave: Nome-do-Pai, Imago paterna, Crime, Tráfico, PCC.


ABSTRACT

Based on the study of violence that takes place in the district of Sapopemba, a district on East of São Paulo, we asked whether the signifier "Name-of-the-Father" remains a bastion to crime. At first, we investigate how the family's disintegration could be the cause of crime's entrance. After discovering that there is not such a well-defined dichotomy between family and trafficking, but a subtle border between the two worlds, we demonstrate that the father is always a needy and decrepit figure. Finally, it is concluded that in crime, there is a signifier register that allows a pact between brothers, which is made explicit on the brotherhood by the "Name-of-the-PCC".

Keywords: Name-of-the-Father, Paternal imago, Crime, Traffic, PCC.


 

 

No ano de 2018, o Brasil chegou ao índice de, aproximadamente, cinquenta e um mil, quinhentos e oitenta e nove homicídios. No primeiro semestre de 2019, o quadro alcançou mais de vinte e quatro mil mortes violentas em todo o território nacional . Os dados foram levantados por meio de uma parceria entre o G1, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública e o Núcleo de Estudo de Violência da USP. Na contabilização das mortes violentas estão os crimes de latrocínio, homicídio e lesão corporal seguida de morte. Tudo indica que o tráfico de drogas se mantém como um dos motores fundamentais na alimentação de estatísticas tão surpreendentes para um Estado democrático.

Ainda que esse índice represente a expressão máxima da violência no país, não se pode estabelecer uma relação biunívoca entre a presença do tráfico e a constatação de mortes violentas. Conforme demonstra Gabriel Feltran (2008), o Primeiro Comando da Capital (PCC) é um exemplo de como uma facção pode agir como uma irmandade, produzindo a queda dos índices de violência. Nesse sentido, o PCC não se refere a um modelo piramidal, seguido da compartimentalização hierárquica entre seus membros. Não se trata de uma organização que se expande militarmente com o intuito de subjugar e empregar o dominado, mas de incorporar irmãos na luta contra a polícia e o Estado opressor. Os fins da organização não visam ao lucro, mas à paz entre os participantes da facção, à igualdade entre os irmãos e à união do mundo do crime.

Tal modo de operacionalização produz a queda de índices de homicídio em diversas regiões do Brasil, o que foi demonstrado na contabilização de mortes em algumas regiões de São Paulo, nas últimas duas décadas. Diante disso, resta interrogarmos se o mesmo não ocorreu, de certo modo, no restante do país. Sabe-se que de 2017 para 2018 o país apresentou uma queda de treze por cento nos índices de mortes violentas e, no primeiro semestre de 2019, temos contabilizado uma queda de vinte e dois por cento se comparado ao primeiro semestre de 2018. Aparentemente, pode-se dizer que se trata da redução das áreas de controle do tráfico pela iniciativa de políticas públicas e da intervenção do Estado. Porém, essa é uma hipótese que se mostra falaciosa e midiática, uma vez que ignora a forma como algumas facções vêm agindo.

Embora alcancemos o aparente declínio da violência em áreas pontuais, tal fato não implica que não estamos indo em movimento crescente a uma guerra que já atinge a polícia, o Estado e, principalmente, os cidadãos das grandes periferias brasileiras. Esse crescimento é demonstrado quando se deflagra a quebra do pacto de mais de duas décadas entre PCC e Comando Vermelho (CV). O resultado do rompimento se evidenciou, majoritariamente, em agosto de 2016, quando inúmeras cadeias, no norte do país, presenciaram o massacre mútuo das duas facções. Assim sendo, as organizações criminosas têm expandido o seu poder por diversas áreas do país, sendo os índices de violência mais ou menos fidedignos, conforme a política interna adotada naquele instante.

Advertidos da complexidade da análise dos dados sobre a violência no País, buscamos interpretar quais relações causais conduzem o sujeito a ingressar no universo criminoso. Questionamos: (1) a entrada de moradores periféricos no tráfico decorre da falência de leis e laços regulatórios da família? Ou seja, é na desagregação da irmandade familiar que o crime passa a agregar membros em sua irmandade? Utilizamos a pesquisa de doutorado de Gabriel Feltran (2008) - Fronteiras de tensão: um estudo sobre política e violência nas periferias de São Paulo - como fonte documentada para interpretar a violência no distrito de Sapopemba e, a partir deste estudo, extrair hipóteses interpretativas em relação ao restante do país.

Longe de esgotar a complexidade envolvida na temática da violência e do crime, recorremos igualmente à psicanálise como uma prática que contribui para a compreensão do objeto analisado. Investigamos de que modo a psicanálise interpreta a relação entre o crime e a Lei. Assim, questionamos: (2) é na desagregação da Lei paterna que ocorre a ascensão do tráfico nas vilas e periferias? E, por fim, não menos importante, (3) cabe investigar a relação entre o crime e a psicopatologia? Assim, demonstramos que o sujeito no crime pode se orientar por um modo de funcionamento ora neurótico, ora perverso. Evidentemente, trata-se de compreender o modo de funcionamento do social frente à Lei (os arranjos de uma irmandade frente à Lei), e não tanto realizar o diagnóstico estrutural de um sujeito, tomado especificamente a partir da singularidade de sua biografia.

Acreditamos que a compreensão da relação entre o sujeito, o desejo e a lei, pode guiar-nos para melhor intervir nas políticas públicas, seja para o Estado seja para os psicanalistas e psicólogos presentes em periferias e espaços públicos das grandes cidades brasileiras. Centramos nossa leitura nos escritos Os complexos familiares na formação do indivíduo (1938/2003), Introdução teórica às funções da psicanálise em criminologia (1950/1998) e Kant com Sade (1963/1998), todos de Jacques Lacan.

 

A cena clássica como dicotomia entre a família e o crime

Há uma famosa e recorrente tese de que jovens entrariam no tráfico, exclusivamente devido ao enfraquecimento das estruturas familiares. Sobre a temática, Feltran (2008) constatou a existência de um emparelhamento do discurso de jovens infratores e do discurso difundido nas políticas públicas e nos modos midiáticos de reprodução. Ao realizar entrevistas no distrito de Sapopemba, o autor documentou a cena clássica de entrada no crime. O começo no circuito delituoso foi justificado devido à ausência da mãe, que viera a falecer, ou ao alcoolismo do pai, ou aos bicos que não davam dinheiro suficiente e, por fim, aos inúmeros convites feitos por amigos e por conhecidos da região.

A cena, até aqui clássica, tem como fundamento a oposição entre a casa trabalhadora e a criminalidade, dois mundos divididos de modo estanque. Em suma, "quando a família se desagrega, o crime abraça", fórmula muito repetida e conhecida, quase um jargão nas entidades de ação social das periferias de São Paulo. Frases que, como todo jargão, merecem ser lidas em sua sabedoria e em seus limites (FELTRAN, 2008, p. 82).

Feltran (2008) demarca, por meio dessa oposição, uma relação interessante entre a família e o crime: uma relação de antinomia que apresenta a casa como reduto radicalmente alheio ao universo criminoso. Na hipótese de esse reduto se desagregar, o mundo delituoso acolhe e subverte a lógica daquele que, num futuro breve, se torna infrator. Nessa perspectiva, há a dimensão de que, na declinação das leis familiares - ou seja, na desagregação da família trabalhadora -, a criminalidade aparece como forma sintomática em oposição às leis civilizatórias e familiares.

Para a psicanálise, essa é uma tese conhecida (pelo menos como interpretação análoga). Lacan (1938/2003, p. 67), no escrito Os complexos familiares na formação do indivíduo, retoma o trabalho de Durkheim para afirmar que há, nos últimos séculos, um novo modo de relação com a lei e o desejo, realidade decorrente do "declínio social da imago paterna". Evidentemente, não se trata da declinação do pai biológico, afinal, como Lacan nos esclarece, a partir de Malinoswki, existem culturas em que a função repressora de guardião dos tabus e iniciação nos ritos tribais é deixada para o tio materno, enquanto o pai pode ocupar o papel de mestre nas técnicas e de tutor das audácias nas iniciativas. Portanto, só temos a junção das funções de repressão e instrução na figura do pai em decorrência dos acordos sociais realizados na família patriarcal.

No caso de famílias periféricas, o modelo patriarcal não parece concentrar as duas funções sobre a égide do pai. Isso ocorre porque, em inúmeros lares, o genitor sequer existe ou, quando se encontra presente, possui a função decrépita e a de coadjuvante. Assim, é possível pensarmos em formas múltiplas de apresentação contingente da família, a exemplo dos povos elucidados por Malinoswki, sendo importante verificarmos a inscrição da imago paterna como reguladora do desejo. Desse modo, a imago paterna pode se apresentar pelo pai, como presença biológica, ou mesmo pela figura do padrasto, tio ou avô, não dependendo necessariamente da forma de apresentação ocidentalizada da família. O importante é pensarmos que se trata de uma lei social que regula o desejo ao fundar a interdição fundamental e constitutiva na entrada para a cultura.

Pois bem, Lacan interpretou que, pelo declínio social da imago do pai, observamos a mudança da família patriarcal para a família conjugal. Trata-se de um enfraquecimento que acontece a partir do campo jurídico, pois o Estado passa a assumir a função de legislar leis que antes se apresentavam sob a égide do pai. Evidentemente, veremos seus reflexos também na cultura. Temos, como exemplo, o filho e a filha que passam a se ocupar de sua própria fortuna ou dinheiro, independentemente das relações empregatícias e políticas do patriarca. O mesmo pode ser dito do matrimônio, que passa a se organizar mais pela influência do Estado e legislado segundo os instrumentos da lei jurídica, do que pelo poder paterno.

E qual a importância de pensarmos o enfraquecimento da imago paterna? É possível interpretar que o enfraquecimento da figura paterna foi responsável pelo que Lacan denominou como um "recalque incompleto" (LACAN, 1938/2003, p. 80), ou seja, um recalque que permitiu que as neuroses e os seus sintomas irrompessem na sociedade contemporânea. Aqui, Lacan parece retomar uma tese comum à obra freudiana, que mencionava que a partir de um recalque insuficiente irromperiam as neuroses. "Caracterizar a neurose como resultado de um recalcamento fracassado não é algo novo" (FREUD, 1924/2019, p. 280).

Lacan então vai afirmar que, na neurose contemporânea (a ele), verificamos sempre a presença de um pai carente e humilhado. "Nossa experiência leva-nos a apontar sua determinação principalmente na personalidade do pai, sempre de algum modo carente, ausente, humilhada, dividida ou postiça" (LACAN, 1938/2003, p. 67). Na realidade, o psicanalista descreve não apenas a neurose, mas também as mais distintas "crises psicológicas" (LACAN, 1938/2003, p. 67), o que se traduziu pelo crescimento de sintomas como a depressão e o aumento de suicídios. Na citação abaixo, vemos o suicídio a partir de sua relação com a imago materna, o que retomaremos adiante.

Essa tendência psíquica para a morte, sob a forma original que lhe dá o desmame, revela-se nos suicídios especialíssimos que se caracterizam como ‘não violentos', ao mesmo tempo que neles se evidencia a forma oral do complexo: a greve de fome da anorexia nervosa, o envenenamento lento de certas toxicomanias pela boca, o regime de fome das neuroses gástricas. A análise desses casos mostra que, em seu abandono à morte, o sujeito procura reencontrar a imago da mãe (LACAN 1938/2003, p. 41).

Seguindo a hipótese do agravamento do quadro psicopatológico na atualidade, vemos que, para Lacan, é possível correlacionar o suicídio igualmente à criminalidade e à violência. Na realidade, foi Durkheim (1983) quem, primeiramente, reconheceu o suicídio como a expressão mais forte da declinação social da lei. É também o sociólogo que correlaciona o suicídio ao ato delituoso. "Esta argumentação não se aplica unicamente ao suicídio, ainda que seja especialmente convincente no caso deste. Aplica-se também ao crime sob todas as suas formas. O criminoso é, à semelhança do suicida..." (DURKHEIM, 1983, p. 189).

Tal correlação encontra-se em Durkheim, mas também em Jacques Lacan, que alguns anos depois, estabeleceu uma relação "direta" entre o crime e a desintegração da família patriarcal. No escrito "Funções da psicanálise em criminologia", Lacan menciona: "assim é que as tensões criminosas incluídas na situação familiar só se tornaram patogênicas nas sociedades onde essa própria situação se desintegra" (LACAN, 1950/1998, p. 137). Na realidade, veremos junto à desintegração do pai, a própria desintegração da realidade.

É conhecido que Lacan tenha se ancorado em Hegel, mencionando que pela frustração, encontramos negações que correspondem a um "processo dialético" (LACAN, 1938/2003, p. 34), onde a própria realidade e seus objetos se constituem ou ganham uma nova dimensão. Daí pensarmos, de algum modo, a passagem da imago materna para a imago paterna como a própria constituição dos objetos no campo da realidade. Notemos, todavia, que esse progresso da realidade depende, fundamentalmente, da inscrição da imago paterna. Caso ocorra a precária inscrição da imago paterna, encontramos igualmente o estancamento do progresso da realidade.

A morte do pai, seja qual for a etapa do desenvolvimento em que se produz e conforme o grau de consumação do Édipo, tende do mesmo modo a estancar o progresso da realidade, paralisando-o. A experiência, ao relacionar com essas causas um grande número de neuroses e sua gravidade contradiz, portanto, a orientação teórica que aponta como seu principal agente a ameaça da força paterna (LACAN, 1938/2003 p. 62).

Vejam que, para Lacan, a morte do pai é apresentada como estanque da realidade. Assim, o parricídio corresponde não só a uma experiência simbólica, conforme Freud nos apresentou em Totem e tabu, mas à fantasia em que prevalecem os desejos de morte do pai. Não se trata de inscrever uma operação necessária para interditar o incesto e parricídio. Trata-se, antes, do efeito sintomático gerado pelo enfraquecimento do pai na sociedade. Em outras palavras, a morte do pai, isto é, o desejo parricida, conduz à quebra do pacto civilizatório e fundante da humanidade. Por isso, o desejo parricida corresponde ao estancamento do progresso da realidade e da civilização, pois a interdição fundamental dos crimes de parricídio e de incesto mostra-se em perigo na queda do patriarcado.

Pois bem, vemos que a fantasia parricida se apresenta a partir do desejo de assassinar e de devorar o pai. Retomando o mito de entrada na cultura, é possível interpretarmos o parricídio como responsável pela quebra do pacto de irmandade entre os descendentes contemporâneos da horda no mito primitivo . Aqui, retiramos como consequência a interpretação de que Lacan (1938/2003), no escrito Os complexos familiares na formação do indivíduo, acaba por inverter a sentença freudiana para dizer que não é o crime do parricídio que inscreve a lei mais forte, mas o enfraquecimento da lei social que permite a fantasia do crime de parricídio. Nessa perspectiva, Lacan, opondo-se a Freud, acompanha a hipótese de que, se o pai está morto, então tudo é permitido.

Poder-se-ia dizer, conforme Lacan, que na falência da imago paterna emergem o desejo parricida e o desejo incestuoso. Por isso, Lacan vai descrever que o Édipo (desejo parricida e incestuoso) se torna a própria contingência da sociedade vienense dos séculos XIX e XX, isto é, "o complexo de Édipo" deve ser compreendido como "relativo a uma estrutura social" (LACAN, 1938/2003, p. 63). Não por acaso, a própria psicanálise de Freud, centrada e estabelecida sobre o Édipo, foi mencionada por Lacan como resultado das crises psicológicas oriundas daquele período. "Seja qual for o seu futuro, esse declínio constitui uma crise psicológica. Talvez seja com essa crise que convém relacionar o aparecimento da própria psicanálise" (LACAN, 1938/2003, p. 67).

Diante da queda do pai e da emergência de desejos mortíferos, é necessário acentuar que Lacan (1938/2003), especificamente no escrito Os complexos familiares na formação do indivíduo, não retorna à castração como forma de maturação subjetiva na dinâmica inconsciente. Trata-se, nesse caso, de uma fantasia que tentaria "liberar a sexualidade" (LACAN, 1938/2003, p. 59), pois na "fantasia" (LACAN, 1938/2003, p. 54) de castração (análoga à fantasia parricida), o sujeito busca retornar às expressões psíquicas mais antigas, àquelas que são referentes às primeiras inscrições constitutivas para o sujeito.

Ora, a fantasia de castração permite uma tentativa de regresso à imago materna, ou seja, às primeiras inscrições psíquicas equiparadas, por Lacan, às culturas matriarcais. Esse retorno constituiria nada mais nada menos do que a tentativa de restituir o narcisismo para o sujeito. "Esse fato define, para nós, a originalidade da identificação edipiana: ele nos parece indicar que, no complexo de Édipo, não é o momento do desejo que erige o objeto em sua nova realidade, mas sim o da defesa narcísica do sujeito" (LACAN, 1938/2003, p. 61). Ora, sabe-se que não há maior movimento narcísico do que aquele que busca encontrar o esvaziamento tensional, desvencilhando-se de todo e qualquer objeto que possa produzir tensão. É aqui que correlacionaremos a busca narcísica, isto é, a busca pelos primeiros traços presentes na imago materna, ao suicídio do sujeito.

Cabe ainda salientar que, apoiando-se na leitura de Bergson, Lacan observa que, nas culturas matriarcais (análogas à imago materna), encontramos as formas mais cruéis de manifestação dos desejos e das fantasias inconscientes, a exemplo de "vítimas humanas desmembradas ou enterradas vivas" (LACAN, 1938/2003, p. 64). Não por acaso, Feltran (2008) demonstra haver uma relação de simbiose entre os jovens criminosos e as suas mães, uma relação que se deve à superestima da figura materna demonstrada por tatuagens e pela intensa afetuosidade do jovem infrator com a mãe. Evidentemente, devemos ter cautela ao tomar conclusões apressadas - em que a mãe representa o narcisismo -, tendo em vista que há um número significativo de brasileiros que foram registrados apenas pela mãe, ou, em muitos casos, apenas conviveram significativamente com a genitora. Feitas as considerações sobre a contingência dos povos no Brasil, retornemos à fantasia de castração.

Estabelecida a hipótese de que, na falência do pai, encontramos o crime - seja pela fantasia parricida ou pela fantasia de castração -, é possível dizermos que pela potência dada ao pai, no patriarcado, o vemos como uma espécie de baluarte ao crime. Ora, tal baluarte também foi encontrado por Feltran (2008), em sua pesquisa, quando jovens relatam a "casa trabalhadora". Aproximamo-nos da cena clássica, relatada ao antropólogo, na qual a falência da família trabalhadora conduz à irrupção da delinquência e da vida delituosa nas periferias. Vemos assim a dicotomia entre a "casa operária" e o "mundo marginalizado".

Pois bem, diante da cena clássica, Feltran (2008) chama a atenção para a necessidade de interpretar e observar os limites impostos pelo quadro costumeiro relatado por jovens, assistentes sociais e psicólogos. Assim, ele nos apresenta uma leitura crítica ao retornar à cena de entrada dos jovens no mundo do crime.

 

A queda da cena clássica: do caráter neurótico à estrutura da neurose

Diante da dicotomia entre a casa e o crime, Feltran (2008) interpreta que haveria uma relação mais cambiante do que propriamente de oposição entre os mundos. Na hipótese do etnólogo, não existe uma divisão tão bem definida entre os vértices da família trabalhadora e do mundo delituoso. Em muitas casas constatou-se que não havia, efetivamente, uma represália ao tráfico e que o dinheiro trazido de modo ilícito permitia, rapidamente, produzir o reconhecimento familiar e social. Além do mais, há, quase sempre, elementos que habilitam uma ponte da família com o crime, o exemplo de um irmão ou de um tio que já se envolveu ou ainda se envolve com o movimento do tráfico.

Neste momento, a família ... ainda aparece bastante na narrativa, sempre em registros cambiantes - a casa era espaço de proteção retórica do crime (grifo nosso), mas ao mesmo tempo o irmão é lido como uma ponte para a turma de amigos ‘envolvidos'. O pai não gostava disso, mas seguia bebendo e não provia o suficiente, a irmã reprova suas companhias, mas seguia ausente. O dinheiro que ele trazia gerava cara feia, mas era aceito (FELTRAN, 2008, p. 84).

Assim sendo, vê-se que a ideia de uma família que asseguraria e salvaguardaria do tráfico os filhos é, mediante observação dos relatos, a marca de um ideal, não uma realidade. "A figura do pai protetor, da mãe doméstica torna-se, com os anos, papéis do tipo ideal, que servem mais como referência moral e código de hierarquização interna da família, do que achados etnográficos" (FELTRAN, 2008, p. 110). Ora, mas e no caso onde, supostamente, encontramos a encarnação desse ideal, sem que as características deficitárias citadas acima fossem observadas?

Feltran (2018) traz o relato de famílias em que pai e mãe trabalhavam e, por acreditarem ser uma medida educativa, incentivaram os filhos a trabalhar precocemente no intuito de inserir a valorização do ofício e o manejo do dinheiro. Em suma, assim agiram para que os filhos se tornassem trabalhadores como os pais. Porém, o etnólogo demonstra que, em diversas famílias em que foi observada a entrada de alguns dos filhos para o tráfico, sempre prevaleceu o trabalho na infância. Às vezes mais ou menos ligado à evasão escolar, mas, de certo modo, uma espécie de traço constitutivo dessas famílias.

Ante a análise do etnólogo, é imprescindível notar que, ao afirmar a relação cambiante entre o universo da família trabalhadora e o mundo do crime, pode-se dizer que, nas casas que possuem um membro envolvido com a criminalidade, nunca houve uma fronteira tão bem estabelecida como oposição ao tráfico que nos levasse a colocar a família como reduto antitráfico. Como Feltran (2018) demonstra, o crime e a casa trabalhadora possuem frestas e relações menos dicotômicas do que se propaga, inicialmente, na cena clássica relatada pelos jovens traficantes e pelas políticas públicas.

A questão é que ao produzir uma realidade menos dual e mais imbricada, ocorre a queda do papel do tipo ideal para famílias que possuem algum envolvimento com o tráfico, mas não há a queda desse ideal para todas as famílias. Como consequência, seria possível dizer que para as casas que não apresentaram envolvimento com o crime, o pai ou a família exerceram plenamente o papel patriarcal na medida em que interditaram qualquer ligação com o mundo criminoso. Trata-se de tomar o pai como suficiente para interditar os desejos mortíferos, inscrevendo para o sujeito a entrada na civilização. Notemos que para esses casos, a tese apresentada por Lacan, no escrito Os complexos familiares na formação do indivíduo, mantém-se vigorosa no que se refere à potência paterna.

Assim, é imprescindível retornar à distinção realizada no escrito Introdução teórica às funções da psicanálise em criminologia com o intuito de verificar como Lacan (1950/1998) problematiza a figura ideal do pai. O psicanalista vai perceber que, na realidade, a família e o pai são sempre marcados pela precariedade. Não porque houve uma declinação do pai, na atualidade, mas porque o pai potente e garantidor se sustenta apenas como efeito da fantasia neurótica. Uma espécie de mitologia que tentaria estabelecer um marco zero onde tudo se originou. Em outros termos, um mito do elo perdido, o pai que Freud descreveu na horda primeva como aquele que possui o saber sobre a verdade originária. Por meio da subversão de sua própria obra, Lacan distingue finalmente o pai social de Durkheim da função do pai como significante. Tomemos primeiramente a relação entre a lei social e o crime.

O psicanalista mantém a hipótese de que houve a declinação social do pai, mas descreve tal fragilização como responsável, unicamente, pela configuração do "caráter neurótico" do jovem infrator. Para a "estrutura desse caráter" (LACAN, 1950/1998, p. 135), veremos o pai fraco e decaído como sua etiologia. Assim, problemas como o alcoolismo do pai, a ausência do pai, o pai violento com os filhos e com a esposa, se mantêm como desencadeadores da delinquência e dos comportamentos criminosos. No entanto, se quisermos falar do pai como aquele que sustenta a Lei paterna e a entrada na "estrutura da neurose", veremos que se trata de pensar outra inscrição, de estabelecer outra relação entre a Lei e o crime.

Nessa nova compreensão, o pai carente e humilhado perde sua condição de causa da neurose. Na realidade, trata-se mesmo de internalizar um Nome que demonstre que todo e qualquer pai na contingência é insuficiente perante o Nome dele. Pois bem, Lacan (1950/1998) subverte seu posicionamento anterior (durkheimiano) para dizer que a "declinação" do pai não subentende a fragilização da inscrição do Nome-do-Pai na "estrutura da neurose" (LACAN, 1950/1998, p. 135). Na realidade, a inscrição do Nome-do-Pai é que permite dizer da internalização de uma falta a todo pai empírico que se apresente na contingência. Lacan (1950/1998), assim, reafirma a dimensão totêmica do Pai morto de Totem e tabu. Para tal, foi necessário ao autor retomar o parricídio (ou castração) não como uma fantasia, mas como corte que permite internalizar um Nome - aquele que Freud compreendeu como sendo mais forte do que foi em vida.

Na estrutura da neurose, o pai passa a ser, efetivamente, um pai morto e elevado ao nível do significante. Aqui, Lacan retoma a tese freudiana (1913/1996) de Totem e tabu para dizer que, se o pai está morto, então tudo é proibido. "Não importa a que crítica de método esteja sujeito esse trabalho, o importante foi que ele reconheceu que com a Lei e o Crime começava o homem..." (Lacan, 1950/1998, p. 132). É no assassinato do pai que se inscrevem, para Freud, as duas principais interdições: o parricídio e o incesto. Desse modo, a castração deixa de se apresentar como fantasia libertária, sendo aquela que, na realidade, permite mudar "imperceptivelmente de objeto" (LACAN, 1950/1998, p. 139). Ora, de que modo essa mudança é possível?

Ao cometer o pecado constitutivo da civilização, subverte-se o significante, engendrando a opacidade de seu Nome. Em outras palavras, apaga-se o sentido, nele presente, permitindo que ele se esvazie, e, daí, permaneça na cadeia significante como vazio. Tal mudança no estatuto da lei, refere-se à passagem de uma lei social, portanto, predicável, para uma Lei vazia (sem predicação). Pelo parricídio, elevamos o pai social e contingente à função de uma lacuna como Nome.

O vazio do Nome é apresentado pela analogia de Lacan (1959-1960/2008), no seminário A ética da psicanálise, quando o autor retorna à construção do vaso pelo oleiro. À medida que se constrói o vaso, compondo suas paredes de barro, algo se inscreve como uma negatividade ou opacidade em seu interior. Para Cabral & França Neto (2018), tal opacidade será descrita por Lacan como um traço puramente negativo frente ao mundo empírico e do sentido (leis utilitárias e sociais). Dito de outro modo, trata-se de fazer um corte que permita ao Nome internalizar a negatividade, reconhecendo a falta no seu interior, pois elevar o significante contingencial do pai à opacidade do Nome-do-Pai, significa negativar o empírico pelo vazio de um Nome. Assim, deve-se considerar o vazio de um Nome mais como dimensão de uma "deficiência que de um excesso" (LACAN, 1950/1998, p. 150).

Mas qual a função desse vazio? O vazio representa a inscrição de que nenhum elemento contingencial ou social possa vir a ocupar o lugar de onipotência, pois é impossível saturar a falta pelo mundo empírico. Algo sempre escapa ou se inscreve como uma incompletude à empiria. Ora, notemos que esse vazio vem a ocupar o lugar de exceção não por acaso. Afinal, quando no mito do pai totêmico os filhos assassinam o pai, é esse mesmo pai que retorna como Nome mais forte, internalizado pelos filhos e capaz de interditá-los. E do que esse pai morto os interdita? Exatamente dos dois crimes que desejavam cometer após ocupar o seu lugar. Desse modo, o Nome desse pai, estabelece todos os filhos como irmãos descendentes, sem que nenhum deles concretize o desejo de assumir o lugar do pai morto, isto é, o lugar de exceção.

Temos a dissociação das leis cívicas e contingentes da Lei estrutural, o que permite retornarmos à psicopatologia psicanalítica sem aspectos ideais ou morais. É o que permite que interpretemos o PCC como Nome regulador da irmandade - semelhante em função ao Nome-do-Pai -, capaz de interditar a violência entre os próprios irmãos. A irmandade, nessa organização, representa a interdição dos homicídios entre os participantes do grupo que buscam se fortalecer ante a opressão externa. Ante a irmandade constituída pelos membros do PCC, é possível mencionar o caráter delituoso como contravenção diante das leis sociais, mas nada sugere a priori que se trate da quebra do pacto selado em torno do Nome. Assim, mesmo que o sujeito esteja envolvido com o tráfico, nada sugere que, do ponto de vista da inscrição da Lei, exista sua precariedade como função.

Pelo contrário, a violência se organiza em torno de um interdito com os irmãos. O PCC é o resultado de um pacto que destina a violência àquele que não compactua com a irmandade. Ora, no que consiste a irmandade do PCC? Trata-se, primeiramente, de evitar qualquer interpretação que pressuponha a hierarquização de seus membros. Para Feltran (2018), é um equívoco dizer que se trata de uma empresa expandida, pois não há verticalidade entre seus componentes, o que existe é uma relação horizontalizada. O pesquisador propõe que a facção seja encarada como uma espécie de "fraternidade secreta", assim como a maçonaria. Os membros se utilizam da rede de contatos, mas cada um possui seu próprio negócio. A finalidade maior não é o lucro, e sim a proteção mútua contra o inimigo e o fortalecimento do crime. Desse modo, a horizontalidade da irmandade pressupõe a morte de qualquer membro que assuma ou tente assumir o lugar interdito, o lugar da exceção. Essa é a maior definição possível para o inimigo na irmandade - aquele que, estrangeiro ou não, tenta estabelecer um nível hierárquico assumindo um lugar de exceção aos demais irmãos.

Vemos que é inequívoca a oposição diante das leis jurídicas do Estado, mas há um respeito pelo tratado selado pela irmandade em torno da centralidade do Nome do Comando. O sujeito é um fora-da-lei do Estado, mas não é um fora-da-lei de sua irmandade. Há um apaziguamento da violência contra os irmãos e uma declaração de guerra contra o estrangeiro. Dessa forma, defendemos a hipótese de que há maior probabilidade de entrada no tráfico a partir da fragilização dos laços sociais e da figura social do pai, mas não se trata de afirmar a declinação da Lei Paterna. É possível dizer da desagregação do pai social, mas não da desagregação do Nome-do-Pai, o que permit e distinguirmos o caráter neurótico da estrutura da neurose. Resta, porém, questionarmos se se trata efetivamente da neurose como estrutura operadora para os filhos descendentes do tráfico.

 

A reviravolta na relação com o objeto

No tópico anterior, demonstrou-se que o PCC se inscreve como possibilidade de produzir a irmandade para o crime. É o que Feltran (2018) aborda ao relatar que os índices de homicídios caem ou se mantêm constantes, mesmo frente ao avanço do tráfico nas regiões periféricas. Todavia, ainda que exista a interdição dos homicídios entre os jovens da facção, é imprescindível observar que a atuação frente ao estrangeiro e o inimigo é extremamente mortífera, inclusive, para os próprios membros da irmandade. Nessa perspectiva, cabe questionar o que leva o jovem traficante a realizar um pacto com o intuito de prosperar no crime e, ao mesmo tempo, colocar-se numa relação de tudo ou nada na guerra do tráfico. Afinal, com a irmandade, vem a possibilidade de interditar a morte entre irmãos, mas a guerra com o estrangeiro acaba por produzir um movimento contrário ao intuito do pacto.

De imediato, pode-se inferir que se trata de um pacto para propagar o crime e os negócios, tendo acesso aos objetos e a uma posição na irmandade, independentemente do tipo de sacrifício exigido. Outro viés explicativo decorre do entendimento de que houve uma mudança de valor para os jovens, de modo que o ideal do tráfico se mostrou mais potente que o ideal da família. Essas, porém, não parecem ser respostas que solucionem a questão.

Feltran (2008) demonstra que a entrada do indivíduo no crime se mostra, absolutamente distinta daquela observada após algum tempo no tráfico. Num primeiro momento, o etnólogo descreve que a "primeira imagem é a da sedução dos objetos de consumo e de poder da arma de fogo nas hierarquias adolescentes e na comunidade. ‘Carro, coisas bonitas, dinheiro, brinquedo de criança, um monte de coisa'" (FELTRAN, 2008, p. 83). Esses são todos objetos que, aparentemente, capturam o desejo do jovem infrator, intercambiando a relação entre a família e o mundo do crime.

Nesse sentido, é possível estabelecer uma relação análoga àquela explicitada por Lévi-Strauss, no livro As estruturas elementares de parentesco. O pacto de interdição do incesto e a formalização da irmandade têm como objetivo evitar a coincidência entre as relações de parentesco e as relações de aliança. Assim, a interdição do incesto permite que a mulher possa ser permutada entre as tribos, habilitando novas parcerias na caça, na pesca e na guerra. A união com o genro, com o cunhado ou com o sogro permite obter vantagens nas atividades mais elementares destas comunidades. Percebe-se que com a irmandade ocorre a prosperidade dos povos. Há, em tal explicitação, um saber sobre as causas que conduzem os indivíduos das tribos a operarem conforme o pacto da irmandade.

A questão, porém, é que, após algum tempo no crime, os objetos e a ideia de uma prosperidade não se mantêm capazes de alienar o desejo. Feltran (2008) relata que, num segundo momento, ocorre a perda e a diluição radical dos laços familiares, evidenciando a queda de objetos antes valorizados pelo traficante. Este é o momento em que o etnólogo descreve a desagregação dos vínculos tidos como socialmente legítimos, sendo a morte a confirmação dessa desagregação. A perda de laço com pessoas, instituições e valores considerados legítimos socialmente se traduz, concretamente, a partir desta etapa, na exacerbação da coragem e na possibilidade real de eliminação física.

A fragilidade dos laços de pertencimento social cria uma espécie de inexistência do indivíduo no mundo legítimo que, em última instância, faz sentir que a morte seria apenas a confirmação desta ausência. "(...) Os que morrem, quase sempre, já haviam atravessado esse limiar. Se não há o que perder, também não há mais o que temer" (FELTRAN, 2008, p. 92). Vemos que esse efeito de fragilização dos laços com a família trabalhadora é apenas secundário e não se refere à fragilização dos laços com o mundo do crime. O que se perde aqui não é a Lei (asseguradora da irmandade no PCC), mas o objeto que intercambiava a relação entre os dois mundos.

Percebamos que, com a queda dos valores e a perda dos laços familiares, o jovem assiste ao esvaziamento de sentido de objetos que antes intermediavam a relação entre a casa trabalhadora e o mundo do tráfico. Num primeiro momento, o vetor de entrada no crime mantinha tentáculos que circunscreviam a relação com a família e com os objetos, o que foi descrito como uma relação não tão dicotômica entre os dois mundos. Na cena inaugural relatada pelos jovens, os objetos ainda mediavam a relação com o outro da família e com o outro do crime.

É somente num a posteriori,a partir do esvaziamento do sentido, que a dicotomia entre a família e o crime ganha, efetivamente, os contornos de uma fronteira bem demarcada. Nesse momento, não há mais objeto que possa produzir o enlaçamento entre a casa da família e o mundo do crime, o que há é um esvaziamento radical dos objetos e das causas que produzem esse intercâmbio. Trata-se de inferir que é mais a entrada no crime a partir da irmandade, que causa a posteriori a dicotomia entre o ideal da família e o jovem traficante, do que, propriamente, a constatação da desagregação da família ideal que propicia, como seu efeito, a entrada no tráfico.

Propor que o sujeito se reúna à irmandade, com intuito de prosperar no crime e de assegurar o pacto de vida com os irmãos, quando o mesmo indivíduo acredita não haver nada a perder, sendo a morte a confirmação de sua ausência em vida, torna-se uma proposição, no mínimo, ambígua. A morte se torna a constatação imediata de que não restam mais objetos que intermedeiem a relação com o outro socialmente "legítimo". Ocorre o esvaziamento do sentido que antes operava na união dos irmãos no crime. Afinal, para que prosperar se os objetos não mais intermedeiam a relação com o outro e não há nada a perder?

Há uma espécie de deficiência no saber que atribui ao pacto da irmandade a razão única de prosperidade no mundo do crime. Acredita-se que "algo permanece velado" ao saber, próximo do que Lacan nomeou, no seminário A ética da psicanálise, como uma espécie de "inspeção metafísica", isto é, uma espécie de pura negatividade ou deficiência do saber. Notemos a crítica de Lacan a Lévi-Strauss:

Mas mesmo quando ele faz isso e dá muitas voltas em torno da questão do incesto para nos explicar o que torna necessária sua interdição, ele não vai mais além de nos indicar por que o pai não esposa sua filha - é preciso que as filhas sejam trocadas. Mas por que o filho não dorme com a mãe? Aí, algo permanece velado (LACAN, 1959-1960/2008, p. 85).

Nada impede que ocorra a permuta das mulheres e que o filho, ao mesmo tempo, durma com sua mãe. Não há qualquer interferência no acordo regido pelas tribos. Lacan ressalta uma espécie de deficiência do saber na compreensão da ordenação das linhagens e permuta das mulheres. Eis que o psicanalista destaca a "verdade" como não sendo "outra coisa senão o que o saber só pode aprender que sabe ao pôr em ação sua ignorância" (LACAN, 1960/1998, p. 812). É a mesma verdade (ao saber) que propomos como impossibilidade de responder à ambiguidade da entrada do jovem na irmandade.

Frente ao paradoxo imposto pelo vazio da lei (nossa verdade), devemos melhor investigar como sua inscrição propicia formas tão distintas de relação com o objeto de desejo. Demonstraremos que não se trata de propor a queda do Nome-do-Pai como causa do declínio do desejo. Pelo contrário, mesmo nos casos em que parece ocorrer o esvaziamento do sentido e da valoração sobre os objetos, prevalecem o Nome e o pacto da irmandade como função. Veremos a seguir que, na realidade, o Nome-do-Pai se mostra uma Lei insuficiente para garantir a relação do sujeito com os objetos no mundo. Trata-se de descrever sua própria incapacidade como Lei capaz de distinguir a neurose da perversão. Aqui, compreenderemos melhor por que a Lei do Nome-do-Pai manifesta-se de maneira ambígua, ora conduzindo o sujeito ao enlaçamento, ora ao mortífero com o Outro.

 

O Nome-do-Pai em Kant e Sade: da neurose à perversão

No tópico anterior foi demonstrado que, mesmo diante da queda da alienação do desejo pelos objetos empíricos, deve-se considerar a inscrição do Nome-do-Pai. O pacto com os irmãos aparece como uma dimensão de preservação e prosperidade no crime e representa, ao mesmo tempo, a desagregação radical dos laços com a realidade. Mas em que medida é possível conservar esse paradoxo pelo Nome da irmandade? Tal ambivalência é possível tendo em vista que o Nome-do-Pai age, por um lado, permitindo o pacto de todos os irmãos da horda, mas, por outro lado, representa, na condição desta união, a propagação do mortífero. Então, do que decorre esse mortífero?

O mortífero é dado por Lacan (2005) na medida em que o autor evidencia um pai do gozo, diferentemente de Freud, que teria parado sua pluma sobre o pai do desejo.

Não menos claro é o fato de que, se toda a teoria e práxis da psicanálise nos parecem atualmente em pane, é por não terem ousado, nessa questão, ir mais longe que Freud. Eis de fato por que um daqueles que formei como pude, falou em um trabalho, que não deixa de ter mérito da questão do pai (LACAN, 2005, p. 72).

Assim, cabe questionarmos do que se trata o pai do gozo para Lacan. Nada mais nada menos que a partir da aproximação da Lei paterna com a lei de Kant com Sade. Tomemos primeiro a relação com o filósofo prussiano. O psicanalista percebe que a opacidade do Nome-do-Pai se mostra, estruturalmente, idêntica ao imperativo categórico kantiano - age de tal modo que a máxima de tua vontade possa sempre valer, ao mesmo tempo, como princípio de legislação universal. Assim, há a prescrição de uma máxima que funcione como legislação universal, mas não se predica à ação, isto é, não diz como realizar o feito que conduziria à ação ética.

No livro, Fundamentação da metafísica dos costumes, Kant (2009) explicita que a lei categórica não pode ser cumprida por inclinações ou pelo amor patológico, isto é, por aquele amor interessado nos efeitos empíricos ou recompensações de prazer. Nesse caso, haveria uma lei conforme o dever, mas não uma lei por dever. O imperativo categórico é uma lei que representa a depuração máxima diante de todas as causas empíricas e compensatórias, dependendo apenas da razão pura como sua fonte. Vemos que, para Kant, há uma espécie de amor a priori à Lei, uma consciência da obrigação de dever, sem que qualquer expectativa de compensação futura possa ser observada.

Enquanto para Kant o sujeito transcendental age conforme a prática incondicional da razão, não é possível inferir o mesmo com relação a Lacan. No entender do psicanalista, a criança só abre mão do objeto na condição de obter uma satisfação futura. É o que o autor observa no seminário A transferência, quando menciona que a criança se deixa castrar à medida que recebe uma promissória de gozo, no qual possa dizer: "Eu transarei mais tarde (...). E é no futuro que se conjuga esta dívida (...)" (LACAN, 1960-1961/2010, p. 273). A questão é que, no aqui e agora do desejo, quando se abre mão do objeto, a criança se depara com a pura opacidade de uma lei ainda sem uma compensação.

Assim, Lacan interpreta que o sujeito neurótico, ao se deparar com a opacidade da Lei do pai, substitua o desejo pelo objeto de demanda. "A neurose é inseparável, aos nossos olhos, de uma fuga diante do desejo do pai, o qual o sujeito substitui por sua demanda" (LACAN, 2005, p. 76). Substituir o desejo do pai pelo objeto da demanda representa a tentativa de saturar a opacidade do significante por um objeto prometido. É a forma neurótica de negar a castração. Consiste na escolha de objetos empíricos que possam tamponar a própria falta e a falta do Outro. Essa substituição corresponde ao que se observa na cena inaugural de entrada do jovem no tráfico, onde há a mobilização do desejo pelos objetos sociais.

Porém, conforme observado, após algum tempo de entrada no crime, ocorre a desvalorização radical dos objetos que antes intermediavam a família e a criminalidade. A nosso ver, este momento corresponde à passagem de um modo de operação neurótico para uma forma perversa de lidar com os objetos no mundo. Isso é, perde-se o objeto que poderia funcionar como aquele que liga o sujeito ao mundo fenomênico, ainda que pela via da demanda tenhamos uma sutura do vazio da Lei. No caso do sujeito do tráfico, ao invés de substituir o desejo puro do pai pelo objeto da demanda, realizando assim uma operação neurótica, o sujeito passa a sustentar a ordenação do mundo por uma lei que representa o rebaixamento do sensível em prol da ação moral.

É no momento em que se perde qualquer elo com os objetos, que antes intercambiavam a relação entre a família e o tráfico, que o sujeito do tráfico passa a colocar-se em risco como se nada mais lhe importasse. Nesse momento, ele se faz desejo de morte sem que nada na realidade possa frear o desejo pela aniquilação radical de sua vida e de todos os objetos da realidade. Aqui, veremos o desnudamento do Nome-do-Pai como modo de funcionamento perverso. Um desnudamento muito próximo ao que Lacan abordou, no escrito Funções da psicanálise em criminologia, ao retomar a máxima kantiana como um supereu do dever puro, lei que deflagraria a "desagregação molecular integral da sociedade" (LACAN, 1950/1998, p. 138) para os psicopatas.

Evidentemente, ninguém duvidaria das boas intenções de Kant (2009) ao propor a universalização da ação ética como meio de organização da realidade empírica. A questão, porém, é que em Kant com Sade, Lacan demonstra que não apenas o imperativo de Kant, mas também a filosofia de Sade, prescreve uma lei ordenadora que representa a rejeição radical do mundo sensível. Essa problematização, interpretam Cabral & França Neto (2018), é central para que se observe que a lei kantiana resguarda, em seu interior, uma lógica similar à lei de Sade, o que permite entender por que, para o Marquês, sempre se está do mesmo lado, o bom e o mau. Lacan, interpretando Sade (2015), permite compreender que, na realidade, toda lei categórica sustenta, em si, um "fundo mortífero", de modo que o "Ser supremo seja restaurado no malefício" (LACAN, 1963/1998, p. 802).

Na obra Os infortúnios da virtude, Sade (2015) retoma os deveres morais, as leis sociais e as leis jurídicas como causas dos infortúnios daqueles que as praticam. Virtuoso é aquele que não cede aos sentimentos de compaixão e de benevolência para com o outro, destinando suas ações e energias à realização de crimes e atos disruptivos contra a civilização. Sade, porém, não descreve o simples rebaixamento do mundo sensível em prol do caos, ele o faz em Nome da Natureza, para ele a única fonte a ser respeitada na humanidade. Eis que Lacan demonstra a ordenação do mundo na estrutura perversa quando afirma que "o Deus eterno tomado ao pé da letra, não de seu gozo, sempre velado e insondável, mas de seu desejo como interessado na ordem do mundo, eis o princípio no qual, petrificando sua angústia, o perverso se instala como tal" (LACAN, 2005, p. 75).

A literatura de Sade permite compreender que ao transgredir a lei social e jurídica, ultrapassa-se a lei do pai contingente e do patriarca, mas não se transgride a Lei da Natureza. Vê-se, com Sade, que a irmandade estabelece uma relação mortífera para o sujeito, semelhante à desagregação radical sofrida pelo indivíduo no tráfico, pois o sujeito sadiano não tem o que perder, ele é a incorporação da perda radical do mundo, não havendo qualquer objeto que possa capturar o seu desejo.

Vemos, por fim, que o Nome-do-Pai possui essa espécie de ambiguidade nos permitindo transitar entre Kant e Sade. Isso é o que permite que tenhamos a presença de duas cenas relatadas no crime: a primeira, relativa à entrada do jovem no tráfico, quando existe uma relação de intermediação entre a casa da família e a família do tráfico (na medida em que a demanda toma o lugar de intermediadora para o neurótico), e a segunda, relativa à sua permanência no crime, quando se perde o objeto da demanda, capaz de intermediar os dois "lares". Assim, é perceptível a aparente dicotomia captada no discurso de jovens, assistentes sociais e psicólogos. Portanto, a Lei paterna resguarda em sua função a indistinção entre o sujeito neurótico e o sujeito perverso.

 

Uma breve conclusão

Em O mal-estar na civilização, Freud (1930/1996) salienta que temos três fontes de mal-estar para o homem: (1) Ameaças externas, como terremotos, maremotos e fenômenos naturais correspondem à fonte de angústia e medo para a humanidade; (2) Ameaças que seriam oriundas de patologias do corpo, a exemplo do câncer e da Covid-19; e, por último, aquela dentre as três ameaças que Freud teria descrito como a mais incisiva - (3) o mal-estar advindo das relações com o outro na cultura. Esta última parece ser, de fato, aquela que mais se apresenta como uma ameaça para a civilização. Basta notarmos os altos índices de homicídios por todo o território nacional, sendo o tráfico uma das maiores causas de mortes violentas no Brasil.

Na introdução, questionamos se a adesão ao tráfico adviria da desagregação da casa trabalhadora ou do enfraquecimento do Nome-do-Pai. Frente à análise realizada neste escrito, é falacioso compreender que o PCC e o tráfico se apresentam onde não se inscreve o significante paterno. Quando Lacan menciona que a verdadeira função do pai é mais unir que opor a Lei ao desejo puro, torna-se possível dizer que o Nome se torna um significante capaz de subjetivar e inscrever, no vazio da matriz simbólica, aquilo que é puramente disruptivo e mortífero. Ele é, por assim dizer, o significante que subjetiva o pulsional, dando contornos ao que paradoxalmente é incontornável. Afinal, o PCC se inscreve como um nome que interdita e faz aliança nas comunidades e facções, ainda que produza o irruptivo além de seus contornos, ou seja, a guerra direcionada ao inimigo.

O desamparo causado pelo pulsional é, nesse sentido, reconhecido pelo Nome, mas não causado pela decadência deste Nome. A nosso ver, descrever a violência e o crime a partir do enfraquecimento do Nome-do-Pai se mostra idealista e imaginário. Isso porque todo significante paterno representa a própria internalização da precariedade do pai empírico e contingente frente ao real da pulsão. A questão, porém, consiste em questionar se o significante paterno se mostra suficiente para inscrever uma saída ética para o sujeito. Não uma saída que imaginariamente busque elidir o mortífero pelo objeto da demanda, ou que erradique o mal-estar pela tentativa radical de suprimir todo e qualquer objeto que mobilize o desejo, irrompendo como a Natureza de Sade (ou mesmo o Nirvana para Freud), mas uma saída que permita laços além dos contornos do grupo e do Nome da facção.

Aqui, será imprescindível pensarmos na função objeto a como conceito que se inscreve ultrapassando as paredes da identificação (demonstrando a inconsistência do Outro do gozo) ao mesmo tempo em que demonstra a divisão entre o saber (nos objetos) e a verdade. Nós, todavia, deixamos essa discussão para uma próxima oportunidade.

 

 

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Artigo recebido em: 27/05/2020
Aprovado para publicação em: 14/11/2020

Endereço para correspondência
André Fernando Gil Alcon Cabral
E-mail: cabral.afga@gmail.com
Aline Accioly Sieiro
E-mail: alinesieiro@gmail.com

 

 

*Psicanalista. Doutorando em Estudos Psicanalíticos no programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Mestrado em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Especialização em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Graduado no Centro Universitário Newton Paiva. Uberlândia, MG, Brasil.
**Psicanalista. Doutoranda em Estudos Psicanalíticos no programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Mestrado na Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Professora no Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Membro fundadora da Haeresis Associação de Psicanálise. Uberlândia, MG, Brasil.

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