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Imaginário

versão impressa ISSN 1413-666X

Imaginario v.13 n.14 São Paulo jun. 2007

 

 

 

Freud e Nietzsche: tragicidade e poesia

 

Freud and Nietzsche: tragicity and poetry

 

Freud y Nietzsche: tragicidad y poesía

 

 

Ana Maria Loffredo*

Instituto de Psicologia – USP

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este texto apresenta uma perspectiva de interlocução entre Freud e Nietzsche a partir da criação poética, examinando a relação entre os estilos de escrita freudiano e nietzschiano, que poderiam ser considerados expressões de suas concepções metodológicas relativas à produção de conhecimento.

Palavras-chave: Freud, Nietzsche, Poesia, Estilo, Método de produção de conhecimento, Transferência e tragicidade.


ABSTRACT

This text presents a perspective of interlocution between Freud and Nietzsche from the poetic creation, dealing with the relationship between the Freudian and Nietzschian writing styles, which could be considered as expressions of their methodological conceptions related to the knowledge production.

Keywords: Freud, Nietzsche, Poetry, Style, Knowledge production method, Transference and tragicity.


RESUMEN

Este texto presenta una perspectiva de inter-locución entre Freud y Nietzsche a partir de la creación poética, examinando la relación entre los estilos de escritura freudiano y nietzschiano, que podrían ser considerados expresiones de sus concepciones metodológicas relativas a la producción de conocimiento.

Palabras clave: Freud, Nietzsche, Poesía, Estilo, M étodo de producción de conocimiento, Transferencia y tragicidad.


 

 

Escreve Nietzsche, no prefácio de Genealogia da Moral: Verdade seja que, para elevar assim a leitura à dignidade de “Arte” é mister, antes de mais nada, possuir uma faculdade hoje muito esquecida (por isso há de passar muito tempo antes dos meus escritos serem “legíveis”), uma faculdade que exige qualidades bovinas, e não as de um homem fim-de-século. Falo da faculdade de ruminar (NIETZSCHE, 1976, p. 16).

Mas quais seriam as condições necessárias para essa ruminação? O primeiro embate parece começar pelo próprio tempo: – “Ah! quão felizes somos os que procuramos o conhecimento, quando o sabemos calar por algum tempo...” (1976, p. 10) –, levando-se em conta a advertência do autor quanto às dificuldades para ser entendido, ou melhor, “interpretado”, desde que “um aforismo vendado não pode ‘decifrar-se’ à primeira leitura” (1976, p. 16). E considerem-se os obstáculos que se colocam a seus leitores, como bem esclarece Paulo César Souza, em seu posfácio a Além do Bem e do Mal (SOUZA, 1992, p. 254).

Há um recado, anunciado logo de início, que tem o estatuto de uma modalidade de princípio metodológico a ser decifrado: “ruminar” e “calar”. A referência ao método é enigmática, embora fértil na produção de imagens.

Caberia a analogia com o deixar-se impressionar, à semelhança de uma composição fotográfica, na qual o momento mais emocionante do trabalho está na emergência da configuração de formas, no fundo do papel em branco? Embora essa imagem emergente não consiga ser fiel à provocação do texto, ao criar uma impressão de desvio, em sua infidelidade e erro, recorta paradoxalmente uma espécie de janela para a contemplação do texto do filósofo. Mas nem a imagem de janela, muito menos a de contemplar, fazem jus à experiência do texto. Parece que se concretizam, a cada passo, corpos mais palpáveis de tiras de verdades encobertas, de quaseverdades ou de imprecisões para expressar a turbulência do texto. As impressões primeiras evocam dissonâncias ou sons díspares, soados simultaneamente, que se impõem como figura de ordenação da leitura.

Não está dito que “Verdade seja que, para elevar assim a leitura à dignidade de ‘Arte’...”? Ambas, a palavra “arte” e as aspas que a protegem, insistem em piscar como um sinal de alerta nesse convite ao ruminar e ao calar, necessários à produção do conhecimento e à compreensão da obra do filósofo. Trata-se de ruminar com os dentes dianteiros, com o estômago ou com o coração?

A metáfora fisiológica do ruminar nos remete à questão do corpo na perspectiva nietzschiana, recordando-nos que, no período da transvaloração dos valores1, é ao se reportar à história e à fisiologia que Nietzsche leva às últimas conseqüências a pergunta kantiana pelas condições de possibilidade do conhecimento (MARTON, 1991). E é ao traduzir as faculdades do espírito numa linguagem biológica que acaba de vez qualquer possibilidade de oposição entre corpo e alma. Se foi em função da sobrevivência que se desenvolveram as habilidades do intelecto, não teria sentido que o intelecto pudesse criticar a si próprio. É nesse quadro que não cabem referências às faculdades do espírito, linguagem que denotaria um plano de operação distinto do corpo, em termos de natureza e de atividades. Escreve o filósofo:

Esse imperioso algo a que o povo chama “espírito” quer ser e quer se sentir senhor, dentro e em torno de si tem a vontade de conduzir da multiplicidade à simplicidade, uma vontade restritiva, conjuntiva, sequiosa de domínio e realmente dominadora. Suas necessidades e faculdades são aqui as mesmas que os fisiólogos apresentam para tudo que vive, cresce e se multiplica (NIETZSCHE, 1992, p. 136).

O corpo humano nietzschiano é composto por inúmeros seres vivos microscópicos que se situam como adversários, animados por uma luta permanente, pela qual uns são vencedores, outros perecem. Essa tensão ocorreria tanto no plano celular como no de tecidos e órgãos, sendo o corpo definido, portanto, por um combate incessante. Este não só é a garantia de um estado dinâmico de mudança permanente, com o desaparecimento de uns e a proliferação de outros, como do estabelecimento de um funcionamento por meio de hierarquias. Vencedores e vencidos são o modo pelo qual a vida se realiza, sendo possível afirmar, nesse sentido, que “nossa vida, como toda vida, é ao mesmo tempo uma morte perpétua” (NIETZSCHE citado por MARTON, 1991, p. 33). A hierarquização não supõe paz, porque nunca é definitiva – dominador e dominado mudam de posições de tal forma que é a luta o traço que define a vida.

Importa destacar que a fisiologia é o paradigma para entender como se processa o conhecimento: assim como o corpo se alimenta ao incorporar o estranho, o espírito digere as novas experiências, o que significa dizer que o conhecimento é, fundamentalmente, apropriação. O espírito, escreve o filósofo, “se assemelha mais que tudo a um estômago” (NIETZSCHE, 1992, p.137), não havendo, portanto, dicotomia entre corpo e espírito: “todos os nossos órgãos de conhecimento e sentidos desenvolveram-se apenas em relação às condições de conservação e crescimento” (NIETZSCHE citado por MARTON, 1991, p. 31).

A perspectiva do conhecimento, segundo um contexto naturalista, é ampliada, desde que ele é inscrito também num quadro histórico de forma que um tipo de homem superior ocorreria quando o homem não visasse unicamente à sua conservação. Autoconservação e adaptação são uma atividade de segunda ordem, são reativas e derivam-se da vontade de potência, que é a verdadeira animadora da vida. A vontade de potência, vontade de vida, exerce-se sobre o meio criando formas do interior, “utilizando, explorando as ‘circunstâncias exteriores’” (NIETZSCHE citado por MARTON, 1990, p. 55). Nas palavras de Marton, é força eficiente, plástica, criadora (1990, p.45). A vontade de potência é exuberância, excesso, esbanjamento. A luta pela existência é apenas exceção (aqui se situa na contramão do pensamento darwiniano, em sua ênfase no combate pela vida). No mais, “combate-se por potência” (1990, p. 42). Como tudo o que existe está em movimento de combate, fica claro que Nietzsche não falará em forças – expressão da vontade de potência – senão no plural.

Em seu conjunto, o conceito de vontade de potência, elaborado via biologia, e a teoria das forças, amparada nos subsídios fornecidos pela física da época – articulados, respectivamente, aos aspectos dinâmico/quantitativo e qualitativo –, demarcam a impossibilidade de se estabelecerem traços distintivos significativos entre o orgânico e o inorgânico, entre o físico e o psíquico, entre o material e o espiritual. O conceito de vontade de potência “constitui um dos principais pontos de ruptura em relação à tradição filosófica” (1990, p. 57) e, aliado à concepção relativa à pluralidade das forças, constitui as bases da cosmologia não metafísica, apoiada em dados científicos, que o filósofo se propõe a construir no terceiro período de sua obra. A vontade de potência abriga o apolíneo e o dionisíaco; de um lado, o que dá forma e é ponderação; de outro, o que quebra e dissolve, é ruptura e excesso.

Voltemos ao prefácio da Genealogia. Lá está escrito:

O meu Zaratustra não o pode compreender senão o leitor a quem tenha impressionado ou entusiasmado cada uma das suas palavras: só então gozará o privilégio alegórico donde esta obra nasceu e sentirá veneração pela sua resplandecente claridade, pela sua amplitude, pelas suas perspectivas longínquas e pela sua certeza (NIETZSCHE, 1976, p. 16, grifos meus).

Zaratustra acerta no alvo com certeza certeira ao rasgar horizontes. Acertar no alvo é abrir. A insuficiência das metáforas anunciadas no início do texto, relativas à composição fotográfica e a janela para se contemplar, ilumina- se pela ênfase na “impressão” e no “entusiasmo” como componentes do processo de captação de sentidos. O que um negativo fornece para uma ampliação – mesmo que se criem variações por meio de estratégias técnicas – está previamente delimitado, bem como no contemplar pela janela se aloja uma espécie de passividade indolente. Ambos não se coadunam ao se elevar a leitura “à dignidade de ‘Arte’” e “à faculdade de ruminar”. O autor parece considerar imprescindível uma participação ativa por parte do leitor, bem como um conhecimento de seu trajeto de produção filosófica: “o que digo é bastante claro na suposição que hajam lido minhas obras anteriores”.

Se é necessária uma apropriação pelos “órgãos do conhecimento” através da história e, simultaneamente, é preciso deixar-se mergulhar em “cada uma das palavras de Zaratustra”, a questão que nos interessa se remete às peculiaridades do tipo de presença que é esperada do leitor nessa atividade de deciframento.

As duas metáforas, por sua imprecisão, conduzem à suspeita de que o autor espera mobilizar um processo criativo no próprio ato de leitura como condição de produção de conhecimento (garantia de que não seja refém de dogmatismos fechados em si próprios, pratosfeitos prontos para serem consumidos. Comer é, simultaneamente, cozinhar). Parece que o leitor é estimulado, quase pressionado, a um tipo de atitude mestiça no movimento em direção ao entendimento e à compreensão do texto.

Reportando-nos a Bachelard, algumas idéias podem ser arriscadas. Embora o filósofo tenha afastado qualquer possibilidade de compromisso entre as duas vertentes de sua filosofia – a epistemológica e a poética –, sendo mesmo enfático ao afirmar que não se confunda ciência e poesia (JAPIASSU, 1976), justamente é essa duplicidade que pode nos servir de auxílio neste momento.

Se para Bachelard devemos nos definir pela tendência à transformação e à ultrapassagem em relação a nossos limites, é por meio da ciência e da técnica, de um lado, e da poesia e da imaginação, de outro, que esse empreendimento libertador poderá se concretizar. Embora ambas sejam concebidas como tentativas do humano em seu embate com a tragicidade imersa na solidão do instante, que é motor de luta, “para vencer a solidão do instante a poesia vai até mais longe do que a ciência, pois ela aceita o que ele tem de trágico” (JAPIASSU, 1977, p. 75). Assim o filósofo explicita, em A poética do espaço, uma verdadeira fenomenologia do poético:

É preciso então que o saber se acompanhe de um igual esquecimento do saber. O não-saber não é uma ignorância, mas um ato difícil de superação do conhecimento. É a esse preço que uma obra é a cada instante essa espécie de começo puro que faz de sua criação um exercício de liberdade (BACHELARD, 1974, p. 352).

Se o não-saber é pré-condição da poesia, a tarefa do poeta é associar imagens, mas “a vida da imagem está toda em sua fulgurância, no fato de que a imagem é uma superação de todos os dados da sensibilidade” (1974, p.352). A imaginação, “um poder maior da natureza humana”, expressa sua vitalidade desligando-nos ao mesmo tempo do passado e da realidade, apontando para o futuro. À função do real, instruída pelo passado, como é destacada pela psicologia clássica, escreve Bachelard, é preciso articular uma função do irreal, crucial para o exercício do psiquismo verdadeiramente criador. Na busca de uma metapsicologia da imaginação, pretende debruçar-se sobre o nascimento da palavra, na tentativa de apreender a vontade de falar. Essa vontade de falar é desejo de querer viver, desde que o homem quer dizer a si aquilo em que quer tornar-se. É assim que a poesia

é palavra querida antes de ser palavra falada, (...) a poesia pura se forma no reino da vontade antes de aparecer na ordem da sensibilidade, (...) está longe de ser uma arte da representação. Nascendo no silêncio e na solidão do ser, desligada da audição e da visão, a poesia aparece, pois, como o primeiro fenômeno da vontade estética humana (BACHELARD, 1965, p. 276, citado por JAPIASSU, 1976, p. 105).

Creio que esse pano de fundo desenhado pelo pensamento de Bachelard nos instrumentaliza para tematizar a dificuldade e a turbulência provocadas pelo texto nietzschiano, que parece jogar o leitor num trânsito/transe pelo espaço de convivência entre o “homem diurno da ciência” e o “homem noturno da poesia”. Pois terá sido nesse sítio, delimitado pela perspectiva do diálogo entre as bordas porosas dessas duas vertentes, inspirado por questões de natureza filosófica, que o filósofo poderia ter produzido “cada uma das palavras de Zaratustra”. E, para gozar “o privilégio alegórico donde esta obra nasceu”, ao leitor caberá também ser passível de ser atravessado por uma experiência poética, pois quando o leitor revive o poema na ressonância de sua leitura atinge um estado, nas palavras de Octavio Paz

que podemos, na verdade, chamar de poético. A experiência pode adotar esta ou aquela forma, mas é sempre um ir além de si, um romper os muros temporais, para ser outro. Tal como a criação poética, a experiência do poema se dá na história, é história e, ao mesmo tempo, nega a história (...). A leitura do poema mostra grande semelhança com a criação poética. O poeta cria imagens, poemas; o poema faz do leitor imagem, poesia” (PAZ, 1982, p. 30).

Entretanto, não há garantias de que se possa ser tocado e capturado pela poesia, no atravessamento de uma experiência poética. Daí esse “livro inesgotável”, como escreve Paulo Cesar Souza, no posfácio a Além do Bem e do Mal:

Já houve quem atribuísse a riqueza de interpretação de que Nietzsche é objeto à “ambigüidade da grande poesia”. Mais correto seria, talvez, atribuí-la à amplitude de uma alma capaz de abrigar os impulsos mais contraditórios e de, portanto, atingir os espíritos mais diversos. Tal amplitude aproxima esse pensadorartista dos artistas-pensadores (aos quais, à diferença dos filósofos, ele sempre reserva elogios) (SOUZA, 1992, p. 257).

Essa proximidade aos artistas-pensadores autenticaria “elevar assim a leitura à dignidade de arte” e, talvez, nos autorize a afirmar que ler Nietzsche deverá ser, também, abrir-se à possibilidade de uma experiência estética, dada a pluralidade de sentidos que sua obra pode provocar, pois uma obra de arte é sempre, no diálogo com o outro, por princípio, uma obra aberta.

É nesse contexto que o estilo da obra pode ser entendido como expressão das concepções que dele se servem como seu veículo, pois, no instante apaixonado do poeta, “espantoso e familiar”, escreve Bachelard:

existe sempre um pouco de razão; na recusa racional permanece sempre um pouco de paixão, (...) para o êxtase, é preciso que as antíteses se contrariem em ambivalência. Surge então o instante poético (...). No mínimo, o instante poético é a consciência de uma ambivalência. Porém é mais: é uma ambivalência excitada, ativa, dinâmica” (BACHELARD, 1985, p. 184).

Na linguagem de forças em tensão, caberia utilizar os termos potência ou expressão de uma vontade de potência na escrita, de modo que, em termos dos conceitos de luta e de agonia que atravessam o texto nietzschiano, à luz das concepções sobre poesia brevemente anunciadas aqui, é possível conceber tanto seu estilo como o impacto que provoca no leitor como um exercício do método que o filósofo pretende propor para se ter acesso à produção de conhecimento.

 

Freud e Nietzsche

A idéia recortada anteriormente pode anunciar um caminho interessante de investigação numa interlocução entre o pensamento nietzschiano e a inovação instaurada pelo discurso freudiano.

Neste momento, vale a pena apontar, mesmo que brevemente, o alcance da inovação freudiana, inscrita definitivamente no corte epistemológico efetuado em A interpretação dos sonhos (Freud, 1900/1989). A primeira proposta teórica de Freud, em Projeto de Psicologia (FREUD, 1895/1995), apresentava-se no formato hipotético- dedutivo, e a inversão que ocorreu na obra matriz, conforme argumenta Bento Prado, é que essa teoria do aparelho psicológico “estaria fundada na prática da interpretação, em lugar de fundar essa prática original” (PRADO JR., 1985, p. 10). É nesse caráter originário da situação interpretativa que repousa uma nova concepção da própria idéia de teoria, marcando radicalmente a originalidade dessa obra – a teoria deixa de ser uma axiomática, a partir da qual se deduz a psicopatologia e os mecanismos do sonho e, inversamente, é produzida a partir da prática original de interpretação do sentido dos sonhos.

Está assim legitimada uma ruptura com a concepção usual da relação entre teoria e prática, entre conhecimento puro e aplicação técnica: “a interpretação dos sonhos precede e fundamenta a arquitetura da teoria”, enfatiza o autor, o que tem como conseqüência enunciar que “a teoria não tem fundamento objetivo”. Estaria nessa “surpreendente decisão” a marca da originalidade do discurso psicanalítico.

É nesse contexto que se inscreve esse apontamento de Fédida, tão preciso em sua explicitação de um “pensar metapsicológico” e tão prenhe de conseqüências metodológicas: “a transformabilidade metapsicológica do teórico devia ter como referência o jogo: o jogo da criança e a infância – brincando nas análises de adultos não são outra coisa do que um ‘pensar teórico’ em transformação” (FÉDIDA, 1989, p.100).

Essa inversão, inédita para o contexto científico da época, se expressa diretamente no alcance teórico-metodológico das especificidades da escrita freudiana, desde que o estilo de Freud estava estreitamente articulado a seu objeto de investigação. Na ruptura com o saber psiquiátrico de sua época, na qual se inscreve a novidade epistemológica instaurada pela psicanálise, Freud procurou inspiração no tratamento da subjetividade efetuado pela literatura e pela poesia durante todo o seu longo trajeto de investigação, de modo que esse “retorno freudiano à tradição mito-poética” (BIRMAN, 1991, p. 13) está operante na própria economia das ficções metapsicológicas, desde que os referenciais literários, em seu pensamento, estão subjacentes a verdadeiros conceitos fundamentais (haja vista a construção teórica nuclear pertinente à metáfora edípica).

Os poetas aparecem nas redes de argumentação de seus textos com muito mais freqüência do que os autores do campo científico. Essa diferença de participação das tradições médico-psiquiátrica e literária em sua obra não é nada trivial. A síntese efetuada por Birman é absolutamente eficiente para nossos propósitos:

Esta particularidade estilística seria indicadora de uma particularidade epistemológica do discurso psicanalítico, destacando que a relação deste com a tradição literária não tem nada de acidental. Remete a uma problemática de fundamentos, que colocaria novamente em questão à principalidade epistêmica conferida à categoria de sentido face à categoria de explicação (BIRMAN, 1991, p. 13).

Portanto, a originalidade de Freud também repousa na sua maneira nova de articular o discurso científico, desde que, como sintetiza Mezan, “a prosa científica usual expõe os resultados de uma atividade que começa e termina antes da redação do texto, enquanto a exposição psicanalítica é parte integrante da experiência que ele descreve” (1991, p. 63). Essa peculiaridade é ilustrada de modo eloqüente no conhecido comentário feito por Freud ao amigo Fliess, quando escrevia A interpretação dos sonhos:

[ O texto] segue completamente os ditames do inconsciente, segundo o célebre princípio de Itzig, o viajante dominical; “Itzig, para onde você vai?”, “E eu sei? Pergunte ao cavalo”. Não iniciei um só parágrafo sabendo onde ele iria terminar (FREUD citado por MASSON, 1986, p. 320).

Se a prosa de Freud pode ser considerada, ao mesmo tempo, uma exposição sobre o inconsciente e uma exposição do inconsciente (MAHONY, 1989, citado por MEZAN, 1991, p. 63), é absolutamente consistente com essa peculiaridade epistemológica que seus relatos clínicos apresentem um estilo de romance, característica já apontada por Freud, nas origens da psicanálise, quando apresentou o relato do atendimento de Elizabeth von R. em Estudos sobre a histeria (FREUD; BREUER, 1895/1990).2

Quanto ao estado psíquico que a situação de análise pretende favorecer, por meio da regra técnica da disposição ao livre associar, seu parentesco com a criação produção poética é legitimado pelo próprio Freud, reportando-se ao poeta-filósofo Friedrich Schiller, que sustenta estar presente uma disponibilidade desse tipo como condição da criação poética3.

Desse modo, seria possível, inspirando-nos no pensamento de Bachelard, considerar a situação analítica como uma interseção de duas vertentes de produção de conhecimento: uma formal, teórica e técnica e outra, apoiada nesta, mas que a ultrapassa, que seria sua vertente poética ou de potencialidade poética. Neste caso, a vertente poética se delimita como verdadeira condição de checagem da teoria, sendo que ambas as vertentes se realizam através do método fundante da situação analítica, no qual encontram seu espaço de convivência. Cabe, portanto, ao método criar as condições para que a função criativa do setting se expresse, ao favorecer a possibilidade de diálogo entre o “pensamento disciplinado” e a “imaginação criadora”.4

 

Unheimliche

Os apontamentos efetuados anteriormente nos levam a considerar que há parentescos entre aspectos do texto de Nietzsche e certas especificidades pertinentes ao escrito psicanalítico, na medida em que este “permitiria realizar em ato a crítica de uma forma totalizante e exaustiva de narrativa, centrada numa argumentação pretensamente insofismável” (BIRMAN, 1995, p.14), de tal forma que nas brechas da escritura o leitor é convocado a pensar pelo que falta, pelo que se faz enigma. Esse tipo de escritura propicia a criação de algo no registro do unheimliche, quer dizer, do estranho e do sinistro, que, ao nos remeter ao mesmo tempo ao familiar e ao não-familiar nos abre a possibilidade de produção do insólito e do surpreendente. É assim, escreve Birman, que somos convocados a um modo de pensar que nos impulsiona a nos apropriarmos do texto de modo que fale nossa linguagem, numa espécie de canibalização do texto, que produz autoria no leitor pela atividade a que é pressionado propiciando uma experiência de inconsciente. Mais que isso, a postura que o texto parece querer convocar no leitor também se assemelha às peculiaridades do tipo de produção de conhecimento que se espera criar na situação analítica. De modo que a temática do estilo, em ambos, nos remete a questões de fundamentos e de método. De que se trata esse unheimlich?

Desde os primórdios da constituição do campo psicanalítico, foi enfatizada por Freud a importância teórica do sonho como referência capital da técnica analítica. O sonho, considerado o estranho infantil da linguagem, que em sua estranheza peculiar remete, nas palavras de Fédida, à

mais secreta intimidade da fala. Na medida em que funda negativamente o infantil, o estranho configura o único sítio dos lugares possíveis de construção e, assim sendo, da linguagem desse infantil. O estranho é a língua fundamental da intimidade do sonho e da fala da qual ele é a fonte (FÉDIDA, 1988, p. 81).

O analista deve colocar-se como estranho-íntimo para fornecer as condições que o sinistro do espantosamente familiar possa se manifestar. Escreve Freud no belíssimo texto O estranho: “o estranho (sinistro) é aquela variedade do terrorífico que se remonta ao conhecido antigo, ao familiar desde há muito tempo” (FREUD, 1919/1990, p. 220). No início do texto, apresenta o sentido de heimlich (íntimo) e heimisch (doméstico), a partir dos quais se entenderia que algo é terrorífico por não ser nem conhecido nem familiar. Tecerá todo o texto para demonstrar que o unheimlich é uma variedade da heimlich, unindo essa constatação ao enunciado de Schelling, para quem o sinistro (estranho) “é tudo o que estando destinado a permanecer em segredo, no oculto, saiu à luz” (1919/ 1990, p. 225). O intuito é finalmente nomear claramente que a angústia do unheimlich corresponde a algo reprimido que retorna, de modo que o prefixo “un” da palavra unheimlich é a marca da repressão.

Se o sonho é a fonte mais exuberante de acesso ao infantil e a referência fundamental da técnica, a situação de análise, ao promover a neurose de transferência, espera sustentar um processo alucinatório à semelhança do sonho, cena proeminente de emergência do unheimlich, pois neste se aloja o heimlich.

 

Poética psicanalítica

Não só o instante poético é “espantoso e familiar” (BACHELARD, 1970, p. 184), mas, mais que isso, se “o ato pelo qual o homem se funda e se revela a si mesmo é a poesia”, só o é, acrescenta Octavio Paz, na medida em que essa revelação é criação, de tal forma que a análise da experiência poética é inseparável da análise de sua expressão (PAZ, 1956, p. 191) Como vimos, essa peculiaridade pode ser destacada em meio às turbulências do texto nietzschiano e também está subjacente às condições pertinentes não só à situação psicanalítica como às narrativas que a ela se reportam. E não foi o trabalho psicanalítico batizado em seus antecedentes como uma talking cure, tendo marcado definitivamente Freud, nos primórdios da constituição da psicanálise, que dizia que “as palavras são o instrumento essencial do tratamento anímico” (FREUD, 1890/1991, p. 115)?

As palavras de Fédida tocam o ponto central da questão e esclarecem a tese5 segundo a qual a experiência poética poderia ser considerada o limite para o qual tende a função criativa do espaço analítico: “é assim que o ato poético é exatamente o ato de fundação por tradução, o ato de apropriação do próprio a partir desse sítio instaurado como estrangeiro” (FÉDIDA, 1991, p. 53).

É nesse momento que as idéias desenvolvidas por Harold Bloom, em seu instigante A angústia da influência, fornecem uma amarração conceitual muito estimulante na perspectiva da interlocução entre Freud e Nietzsche, fornecido pela criação poética (BLOOM, 1991). É possível recortar um ponto de interseção demarcado pela atitude mestiça, que se destaca como proeminente, como condição de produção de conhecimento, delineando, nesse caso, uma espécie de perspectiva metodológica.

Nessa obra aparece, com freqüência, a expressão poeta forte, como se essa potência definisse a grande poesia. Escreve Bloom: “os poetas, à medida que se tornam fortes, não lêem mais a poesia de X, porque os poetas realmente fortes só são capazes de se lerem a si mesmos” (BLOOM, 1991, p. 49). Esse aparente solipsismo radical ampara-se, entretanto, em influências que o poeta, ao se tornar um forte, conseguirá exorcizar de tal forma que a história da poesia, que não se distingue da história da influência poética, se faz com os poetas deslendo-se uns aos outros na abertura do espaço para a originalidade. Assim, “os poetas de todas as eras contribuem para um único Grande Poema, perpetuamente in progress. Borges comenta que o poeta cria seu precursor” (1991, p. 49).

Se a língua é gregária, repetitiva e monstruosa em seus estereótipos, como diz Barthes (1982), entretanto “as línguas amam seus poetas como se fossem seus filhos mais atrevidos”, escreve Leminski, em tom veemente e amoroso, que faz jus à transgressão de que a poesia é a ilustração exemplar no exercício de passagem da opressão/alienação para a libertação (LEMINSKI, 1987, p. 289). É assim que, ácido com seus precursores, escreve Nietzsche, no âmbito desse inevitável jogo sutil de apropriações a avanços:

Há boas razões para esperar que toda dogmatização em filosofia, não importando o ar solene e definitivo que tenha apresentado, não tenha sido mais que uma nobre infantilidade e coisa de iniciantes; e talvez esteja próximo o tempo em que se perceberá quão pouco bastava para constituir o alicerce das sublimes e absolutas construções filosofais que os dogmáticos ergueram – alguma superstição popular de um tempo imemorial (como a superstição da alma, que, como superstição do sujeito e do Eu, ainda hoje causa danos) (...). Parece que todas as coisas grandes, para se inscrever no coração da humanidade com suas eternas exigências, tiveram primeiro que vagar pela terra como figuras monstruosas (NIETZSCHE, 1992, p. 7-8).

Entretanto, acrescenta, num movimento complementar:

Não sejamos ingratos para com eles (...) somos nós, cuja tarefa é precisamente a vigília, os herdeiros de toda força engendrada no combate a esse erro. (...) com um arco assim teso pode-se agora mirar nos alvos mais distantes. (1992, p. 8)

A luta contra a pressão cristã-eclesiástica produziu uma “magnífica tensão do espírito”, um “arco assim teso”, isto é, os problemas e questões filosóficas inseridos no movimento da história permitem que o precursor arme o arco de sua própria agonia. Assim, Nietzsche, herdeiro de Shopenhauer, é, ao mesmo tempo, seu algoz. Se este revela o absurdo da existência, o que o leva à extrema renúncia, a uma melancolia da perda, em Nietzsche a ameaça da perda é o motor da vida. O absurdo é o obstáculo alimentador da vontade de potência. Se o sentido da existência depende da vontade, trata-se de aproveitar cada minuto; o trágico, impulsionando a luta, é o sangue que faz a vitalidade da vida.

É nesse cenário que, na clave fornecida pelos parâmetros que definem as polaridades vencidos ou vencedores, fortes ou fracos, o tipohomem- poeta pode ser alçado à categoria de herói verdadeiro, em sua posição de modelo no embate com a língua. Pois na mitologia o herói, portador do areté6 – dádiva gratuita dos deuses, que lhe concedem uma faísca de eternidade –, não pode ultrapassar o métron (medida de cada um) na pretensão de se apropriar de atributos divinos. É o castigo por essa transgressão que habita o cerne da tragédia.

O trágico é só poder fazer história na e pela ruptura, justamente e por princípio, por nela estar inserido irremediavelmente. Freud (1930/ 1990) teorizou de modo radical, como sabemos, em Mal estar na civilização, o que há de trágico como constituinte do sujeito, ao enunciar um mal-estar que é estrutural, e não conjuntural, pois é no contexto da cultura que se acirram os conflitos entre suas demandas e as da pulsão, sendo delimitado ao conceito de desamparo um papel estratégico na metapsicologia freudiana.

Assim, o eterno retorno não é nem uma volta do mesmo, nem uma volta ao mesmo. Ao contrário, é uma aceitação da “crueldade” do tempo, da duração, dessa “dura” realidade. Assim, da hostilidade contra o tempo, passa-se a enaltecer o viver cada instante como se fosse a eternidade, pois o que retorna é o próprio retorno, isto é, a transitoriedade.

Nessa perspectiva, o infantil subjacente à existência neurótica, como o demonstrou exaustivamente Freud no decorrer de toda a sua obra, não se reportaria ao medo de crescer e de ficar adulto mas sim ao que a isso remete: aproximar-se da morte, impregnando-se da temporalidade na qual se inscreve a vida humana. A repetição que se expressa na sintomatologia neurótica, independentemente da variedade de formas de que se travista, é um retorno do mesmo e ao mesmo, pois a mesmice produz a ilusão de um tempo parado, isto é, de um não-tempo.

Também a analogia estabelecida por Freud (1927/1990), em O futuro de uma ilusão, entre a religião e a neurose obsessiva não se fundamentaria apenas na referência ao fortalecimento do infantil, na medida em que a figura de Deus é a criação de uma figura parental que responde ao desamparo da existência. A fé religiosa pode parar o tempo ou dissolvê-lo, desde que acena para o amparo da eternidade, vida além do tempo. Seguindo esses parâmetros ao avesso, à imortalidade da alma se articularia a própria morte da vida, desde que o viver seja concebido radicalmente como fulguração do instante.

O sintoma, como sabemos, é o reinado da atemporalidade. É assim que, paradoxalmente, a tragicidade propiciada pela psicanálise se instaura na própria encenação do campo transferencial, porque

A transferência tem valor menos na medição do passado e mais porque o campo transferencial constitui o imediato da análise – o instante do encontro (...). Trágico e psicanálise se curvam ali naquele território existencial que favoreceu o acolhimento de todo “estranho em nós” (GRAÇA, 1995, p. 19).

Pois o campo transferencial “reproduz a doença” como condição de acesso ao que até então carece propriamente de existência. Permanecemos estranhos a nós mesmos, diz Nietzsche, e é no sítio delimitado pelo aparecimento desse “estranho” – o desejo que o campo transferencial espera favorecer – que se centra a tragicidade que estaria no âmago do exercício da psicanálise.

Ao tratar dos padrões de apropriação, melhor dito, de desapropriação entre poemas, Bloom apresenta seis estágios da relação entre um poeta e seu precursor, que são elucidativos da dinâmica acirrada de dívida e ruptura que fundamentam o movimento da produção de conhecimento e da busca da originalidade e da libertação – mas não é disso que se trata no processo de constituição da subjetividade e que o setting analítico espera favorecer? Pois, nas palavras de Birman,

o pressuposto é de que o processo psicanalítico seja uma prática de subjetivação, com as implicações ética e estética que admitem esta proposição axial. Vale dizer, a experiência analítica pretende realizar a produção de novas modalidades de existência de uma individualidade dada, na medida em que a suposta verdade do desejo possa ser reconhecida e apropriada pela individualidade (BIRMAN, 1997, p. 16).

Os estágios descritos por Bloom (1991) – que bem poderiam se articular ao processo em que a “suposta verdade do desejo possa ser reconhecida e apropriada pelo sujeito” –, numa linguagem de força, seriam traduzidos na seguinte seqüência: busca, queda, giro, progressão, mascaramento e combate.

São eles: clinamen, a desleitura propriamente dita, a descrição mais geral do desvio de um poeta em relação à obra de seu antecessor; tessera, palavra ancestral que Bloom reencontra em Lacan, a complementação do precursor na obra do poeta novo; kenosis, o esvaziamento do poeta, um mecanismo de ruptura semelhante às defesas contra as compulsões de repetição; demonização, um deslocamento na direção do contra-sublime, isto é, de um sublime contrário ao do precursor; askesis, o truncamento de certas qualidades do poeta mais novo, uma ascese que permite ao poeta, afinal, interpretar seu precursor; e apophrades, o retorno dos mortos, a apropriação do poeta mais velho, o retorno do precursor como se fosse, ele mesmo, obra do poeta mais novo (BLOOM, 1991, p. 19).

Esse percurso explicitaria perfeitamente a aventura a que é convocado o sujeito, expressa nesta máxima de Goethe7, retomada por Freud em mais de uma ocasião e que traz para o centro o embate implicado na angústia da influência: “aquilo que herdaste de teus pais, apropria-te dele e faze-o teu” (FREUD, 1913/1988, p. 159; 1940/1989, p. 209).

 

Tragicidade e poesia: por uma estilística da existência

No âmbito do discurso freudiano, sabemos que com a enunciação da pulsão de morte a construção teórica freudiana sofre um abalo constrangedor em um de seus pilares básicos – a noção de representação (FREUD, 1920/1990). A irrupção do campo do irrepresentável traz para o âmago do trabalho analítico a nomeação de um espaço de indeterminação e incerteza, e é nesse campo de jogo que se tecem os “jogos de linguagem” privilegiados da produção do sujeito psicanalítico.

Nesse momento, como bem desenvolve Birman (1997) em seu excelente Estilo e modernidade em psicanálise, quando a investigação freudiana reconhece os limites intransponíveis da rememoração – isto é, a interpretação jamais chegará a um referente último, pontual e definitivo –, o trabalho analítico se movimenta no sentido de um processo interminável que é, ele próprio, a construção e direção de uma história, em que se trata de possibilitar aberturas no funcionamento do sujeito. Desde que a pulsão, esse conceito nuclear da metapsicologia freudiana (FREUD, 1915/1990), se remete a uma força constante e a uma exigência de trabalho, constitutivas e mantenedoras do aparelho psíquico, não só há pressão no sentido da construção de novas simbolizações por parte do sujeito como também são desarticuladas e colocadas em tensão simbolizações e certezas já estabelecidas. A definição de desamparo foi justamente circunscrita por Freud (1926/1990) no intervalo compreendido entre a exigências incontornáveis da pulsão e as insuficiências nos instrumentos de simbolização de que dispõe o sujeito. É essa condição estrutural de desamparo “que funda a ética trágica do discurso freudiano” (BIRMAN, 1997, p. 67), em que se aloja, em toda sua radicalidade, o “mal-estar da civilização”.

É assim que, num sentido rigorosamente freudiano, a força pulsional funcionaria como o agenciador para a produção das diferenças no sujeito, base da conquista de um estilo. Nesse contexto, cabe ao exercício do trabalho analítico, inserido no campo da ética e da estética, favorecer uma estilística da existência, na medida em que “o que está em pauta para o sujeito, além da revelação da verdade do seu desejo, é a inflexão crucial que pode realizar na construção do seu destino” (BIRMAN, 1997, p. 67). A tese do desamparo, sendo radical, não admite terapêutica. Não há cura ou salvação, mas resta como única saída o confronto com essa crueza da existência, que faz o sujeito embeber-se nesse labirinto de apropriações e desapropriações, que está no cerne da produção da singularidade.

Desse modo, na perspectiva dos ingredientes míticos dessa cenografia, a dor, o exílio e a traição são os componentes fundamentais do drama envolvendo a tragicidade da superação de si, implicado no processo de constituição da subjetividade. A possibilidade de viver a agonia do trágico torna-se medida de humanização, desenhando o tipo do tipo-homem, que ou será um pecador no rebanho (remetendo-se ao desejo do Outro) ou se elevará, como diz Nietzsche “ao mais alto grau do poder e do esplendor” (NIETZSCHE, 1976, p. 14), se entender que o pecado – superar-se a si, transgredir-se – é a marca original que o autentica como humano8. O pecado, faísca de graça – e não de desgraça –, dom recebido que garante que a vida, uma vez fora do paraíso, possa ter graça, possa ser gozada.

Se o tipo homem ascético engendrado pela metafísica platônica deverá ser superado para que se atinja o Übermensch, será então o poeta nosso herói que, voltando das grandes viagens, nos comunicaria uma possibilidade de salvação, transformando-se em referência exemplar? Bem, o processo de subjetivação é uma luta ferrenha de libertação e ruptura em relação a quem seremos sempre endividados: nossos precursores. A influência é solidária da domesticação pertinente à cultura e ao processo civilizatório, do “ser-um-homem-em-sociedade”. Mas sem a agonia da angústia da influência parece não ser possível “ser-um-homem-entre-outros-homens”. Estaria na brecha desse “entre”, ao que tudo indica, o germe da potencialidade criativa.

 

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Endereço para correspondência
E-mail: anamloff@usp.br

Recebido em 28/08/2006
Aceito em 30/08/2006

 

 

* Docente do Instituto de Psicologia – USP. Psicanalista, Instituto de Psicanálise “Durval Marcondes”, Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo-SBPSP
1 Nele se inscreve toda a produção do filósofo desde 1883, iniciando-se com Assim falou Zaratustra, abrangendo os textos publicados em vida e todos os fragmentos publicados postumamente, que foram escritos nesse período. Também inclui os prefácios ao primeiro e segundo volumes de Humano, demasiado humano; O nascimento da tragédia; Aurora e A gaia ciência e a quinta parte deste último (MARTON, 1989, p. 29)
2 Escreve Freud: “a mim mesmo me parece estranho que as histórias clínicas que escrevo se lêem como contos e delas está ausente, como se diz, o selo da seriedade científica. Devo-me consolar por isto, considerando que a responsável por este resultado é a própria natureza do tema e não qualquer preferência pessoal; é que o diagnóstico local e as reações elétricas não cumprem um papel importante no estudo da histeria, ao passo que uma exposição em profundidade dos processos anímicos como a que estamos habituados a receber do poeta me permite, através da aplicação de um pequeno número de fórmulas psicológicas, obter alguma forma de intelecção sobre o curso de uma histeria” (FREUD; BREUER, 1895/1990, p. 174, grifos meus)
3 Trata-se de uma resposta do poeta a um amigo, que se lamentava, pois sua criatividade parecia-lhe bloqueada. Eis, aqui, o trecho citado por Freud, que bem poderia ser colocado em diálogo com o “ruminar” e “calar“, nomeados por Nietzsche e destacados no início deste texto: “a explicação de tua queixa está, parece-me, na restrição que tua razão impõe à tua imaginação. Devo esboçar aqui um pensamento e ilustrá-lo com uma metáfora. Não parece bom, sendo mesmo prejudicial para o trabalho criativo da mente, que a razão examine com demasiado rigor as idéias que vão brotando, e o faça na própria porta de entrada, digamos assim. Se considerada de forma isolada, uma idéia pode ser muito insignificante e ousada, mas talvez, em uma certa união com outras, que talvez também pareçam desdenháveis, pode nos dar um conjunto muito bem integrado: nada disso a razão pode julgar se não a retém o tempo suficiente para contemplá-la em sua união com essas outras. E em uma mente criativa, parece-me, a razão retirou sua guarda das portas; assim as idéias se precipitam (...) e então – só então – ela pode dominar com a vista o grande conjunto e modelá-lo. Vós, senhores críticos, (...) sentis vergonha ou temor frente a esse delírio momentâneo, passageiro, que sobrevém a todos os criadores genuínos e cuja duração maior ou menor distingue o artista pensante do sonhador. Daí vossas queixas de esterili-dade, porque desprezais as idéias muito rapidamente e as selecionais com excessivo rigor” (SCHILLER. Trecho de seu epistolário com Körner, 1/12/1788, citado por FREUD, 1900/1989, p. 124)
4 Essa hipótese é formulada em Loffredo (2002)
5 Essa tese é desenvolvida em Loffredo (1994)
6 “Areté” significa a excelência, a superioridade, expressas particularmente no campo de batalha e nas assembléias através da arte da palavra (BRANDÃO, 1986, p. 143)
7 GOETHE, F. Parte I, cena 1
8 Sobre isso, ver Loffredo (1994).

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