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Imaginário
versão impressa ISSN 1413-666X
Imaginario v.13 n.14 São Paulo jun. 2007
A integração dos imigrantes italianos à política sul-rio-grandense na ex-colônia Silveira Martins
The integration of the Italian immigrants to the politics of Rio Grande do Sul in the former-Colony Silveira Martins
La integración de los inmigrantes italianos a la política de Rio Grande do Sul en la ex-colonia Silveira Martins
Jérri Roberto Marin*
UFGD – Universidade Federal da Grande Dourados
RESUMO
O artigo analisa a difícil integração dos imigrantes italianos da ex-colônia Silveira Martins, no Rio Grande do Sul, à política e à nacionalidade no final do século XIX e primeiras décadas do século XX. Nosso olhar privilegiou as ações do Estado e da Igreja Católica. As reflexões que permeiam o texto são interdisciplinares e priorizam a problemática étnica e das identidades nacionais e sociais. Os imigrantes tiveram de negociar com a cultura brasileira, sem a assimilar completamente. Permaneceram dispersos, dialogando com várias culturas, aspecto que revela a atual pluralização da cultura nacional e das identidades.
Palavras-chave: Imigração, Poderes, Identidade.
ABSTRACT
The article analyzes the difficult integration of the Italian immigrants of the former colony Silveira Martins, in Rio Grande do Sul, to the politics and nationality in the end of the XIX century and first decades of the XX century. Our glance privileged the State’s and the Catholic Church’s actions. The reflections that permeate the text are interdisciplinary and prioritize the ethnic and the national and social identities issues. The immigrants had to negotiate with the Brazilian culture, without assimilating it completely. They remained dispersed, dialoguing with several cultures, an aspect that reveals the current pluralization of the national culture and identities.
Keywords: Immigration, Powers, Identity.
RESUMEN
El artículo analiza la difícil integración de los inmigrantes italianos de la ex-colonia Silveira Martins, en Rio Grande do Sul, a la política y a la nacionalidad a fines del siglo XIX y primeras décadas del siglo XX. Nuestro punto de vista privilegió las acciones del Estado y de la Iglesia Católica. Las reflexiones que atraviesan el texto son interdisciplinares y priorizan la problemática étnica y las identidades nacionales y sociales. Los inmigrantes tuvieron que negociar con la cultura brasileña, sin asimilarla completamente. Permanecieron dispersos, dialogando con varias culturas, aspecto que revela la actual pluralización de la cultura nacional y de las identidades.
Palabras clave: Inmigración, Poderes, Identidad.
Introdução
O artigo analisa a integração dos imigrantes italianos da ex-colônia Silveira Martins, no Rio Grande do Sul, à política, sobretudo à participação eleitoral, e à nacionalidade no fim do século XIX e primeiras décadas do século XX. As primeiras colônias italianas foram Dona Isabel (atual Bento Gonçalves), Conde d’Eu (atual Garibaldi) e Fundos de Dona Palmira (atual Caxias do Sul). Próximo a Santa Maria, na região central, foi fundado o Núcleo Colonial de Santa Maria da Boca do Monte, que posteriormente foi elevado à categoria de Colônia Silveira Martins.1 Seu povoamento foi com imigrantes alemães, a partir de 1877. Devido ao desamparo do poder público, os alemães, em sua maioria, abandonaram a colônia, que passou a receber sucessivas levas de imigrantes de várias regiões da Itália. A região abrangia vários núcleos de povoamento (Vale Vêneto, Ivorá, Nova Palma, Novo Treviso) e tinha como sede Silveira Martins.
A vida política dos imigrantes italianos, na ex-colônia Silveira Martins, permaneceu ligada às convicções trazidas da Itália, ou seja, às idéias que haviam motivado a Unificação Italiana. Giron, ao analisar a região colonial do Rio Grande do Sul, identificou três grupos principais: os católicos, os maçons e os austríacos (GIRON, 1989, p. 75). Os católicos eram maioria absoluta e colocavam-se contrários à Unificação Italiana, que havia ocorrido de forma anticatólica, e defendiam a devolução dos territórios pontifícios ao Papa. Eles não aceitavam o anticlericalismo do positivismo, filosofia que embasava a política no Rio Grande do Sul. Para eles, a Igreja Católica era a instituição mais presente e importante. Os maçons eram um grupo pouco numeroso, porém ativo. Em sua maioria, eram provenientes das zonas urbanas da Itália e apoiavam a Unificação Italiana e a forma como ela havia ocorrido. Eram contrários ao Papa e à Igreja Católica e entravam em conflito com os padres e os católicos. Este último grupo adaptou-se rapidamente à política regional, tanto municipal quanto estadual, e reorganizou-se em torno das lojas maçônicas (GIRON, 1989, p. 75). No Rio Grande do Sul, tinham como referência José Garibaldi, herói da Revolução Farroupilha e da Unificação Italiana. A escolha do nome Silveira Martins para nomear a colônia foi dos comerciantes, em geral maçons, embora o topônimo fosse submetido à apreciação popular. O nome homenageava Gaspar Silveira Martins, por ser um defensor da imigração européia, em particular da italiana, e pelo fato de o político lembrar fisicamente José Garibaldi. Os austríacos eram minoritários e defendiam a soberania do Império Austro-Húngaro. Sua atuação política foi esporádica, em oposição aos defensores da Unificação Italiana (GIRON, 1989, p. 75). Enfim, inexistia uma comunhão política e cultural. Cada grupo falava seu dialeto, tinha suas convicções políticas e religiosas.
Segundo Félix, foi a partir da relação entre a cultura política trazida da Itália e a situação política encontrada no Rio Grande do Sul que se definiu a integração à política regional. Houve uma maior participação do grupo maçom e o afastamento do grupo católico do poder político partidário local e estadual (FÉLIX, 1992, p. 56). Os comerciantes exerciam uma liderança pelo seu poder econômico e como interlocutores com as autoridades. Eles não tinham receio de apresentar-se às autoridades para solicitar favores, reivindicar serviços ou para reclamar. Os comerciantes intermediavam a compra do excedente agrícola dos colonos2 e a venda de mercadorias manufaturadas. Esse processo permitiu uma acumulação de capital, configurando-se como um segmento que exercia grande supremacia econômica e social. Segundo Marin, “embora o capital comercial tenha deixado certa margem de iniciativa e responsabilidade aos pequenos proprietários, passou a determinar a quantidade e a qualidade dos produtos agrícolas” (MARIN, 1991, p. 132-133). Os comerciantes interferiam diretamente sobre os colonos ao imporem a especialização em determinados produtos agrícolas, sobretudo os que tivessem mercado consumidor. Quando não eram católicos entravam em conflito, com freqüência, com os padres, que também exerciam uma liderança política e gozavam de grande prestígio.
Os diversos núcleos assumiram rapidamente uma identidade política. Nos núcleos interioranos, mais isolados (Vale Vêneto, Ivorá, Nova Palma, Novo Treviso), estabeleceram-se, em sua maioria, colonos, comerciantes e artesãos católicos. Na sede, Silveira Martins, a maioria dos imigrantes que exerciam atividades urbanas, como comerciantes, artistas, professores, caixeiros-viajantes, artesãos e os funcionários públicos, eram, quase todos, maçons e anticlericais. Assim, a sede recebeu, desde a fundação, uma identidade, associada à maçonaria e ao anticlericalismo. Os habitantes dos núcleos interioranos, identificados com a Igreja Católica, rivalizam com os moradores da sede Silveira Martins, pois não comungavam dos mesmos valores e posicionamentos ideológicos e políticos e não aceitavam ser subordinados a Silveira Martins em nível político, administrativo e religioso.
A montagem dos núcleos coloniais, divididos em linhas e travessões, isolou os colonos que residiam no interior, voltados às atividades agrícolas, daqueles que residiam nos núcleos urbanos e se dedicavam ao comércio ou às profissões liberais. Em sua maioria, não demonstravam interesse em participar da política local. Estavam preocupados em reconstruir suas vidas em torno da Igreja Católica, constituir um patrimônio e garantir sua sobrevivência material. Esse comportamento justificava-se no isolamento que procuravam manter das autoridades brasileiras e no temor em envolver- se em conflitos e animosidades. Reconheciam-se como estrangeiros que residiam no Brasil. Agravava a situação o fato de as autoridades locais serem, em sua maioria, maçons e anticlericais. Na petição enviada ao Presidente da Província, em 1884, os habitantes de Vale Vêneto afirmavam que eram provenientes de um país católico e que esperavam, no Brasil, professar a fé católica, obedecer às autoridades civis e religiosas e reconstituir suas vidas sob os princípios e normas católicas.3
Para os imigrantes católicos, o regime republicano era apoiado pelos maçons, ao contrário do regime imperial. A Monarquia católica contrapunha-se à República agnóstica, que separou o Estado da Igreja e permitiu a liberdade de culto. A República levaria o Brasil à ruína, pois, afastados de Deus e da Igreja, os governantes e os brasileiros mergulhariam numa crise moral que conduziria o país ao caos e à degeneração social. Os colonos afirmavam que a queda da Monarquia teria sido causada pela maçonaria. D. Pedro II era muito popular e respeitado, sendo representado como um rei idoso, católico, caridoso e paternal. O imperador teria ido receber, no porto do Rio de Janeiro, um grupo de imigrantes, que posteriormente se dirigiu à colônia Silveira Martins, e, na oportunidade, ter-lhe-ia oferecido bananas.4
As ações do Estado e a política na ex-colônia Silveira Martins
A participação política dos imigrantes no período imperial foi praticamente nula. Piorava a situação, na ex-colônia de Silveira Martins, a distância a que estava de Porto Alegre e seu isolamento da área tradicional de imigração italiana do Rio Grande do Sul. Inicialmente, as relações com o governo provincial foram administrativas e se deram por meio da Comissão de Terras, localizada na sede Silveira Martins. Com a mudança do regime político, advindo com a Proclamação da República, houve a ascensão do Partido Republicano Rio-grandense (PRR). Para Pesavento, o PRR, para manter-se hegemônico, procurou ampliar sua base política incorporando aos quadros do partido os setores médios urbanos e elementos do complexo colonial, como funcionários públicos, industriais, bancários e pequenos comerciantes (PESAVENTO, 1980, p. 169-170). A autora afirma que o interesse de cooptação ocorreu com o imigrante comerciante e industrialista como base de apoio político e econômico do partido. Com relação aos colonos, existia a preocupação com o controle do voto e da produção. Apesar de atender às reivindicações de outros setores sociais, o PRR não deixou de atender aos interesses dos pecuaristas, considerados prioritários, mas o fez ao lado dos demais setores não agrários do capital, principalmente de origem imigrante (idem, p. 170-171).
As relações do poder estadual com as áreas coloniais, durante a República Velha, eram singulares e diferenciavam-se daquelas estabelecidas com as áreas latifundiárias e pastoris. Júlio de Castilhos e, posteriormente, Borges de Medeiros, ao objetivar a hegemonia do PRR, estabeleceram “diferentes modelos de intermediações” a partir da especificidade da formação histórica e política das microrregiões do Rio Grande do Sul (FÉLIX, 1992, p. 41). A ocupação do solo (pequena propriedade), o modelo econômico-social (policultura, com mão-de-obra familiar e associativista) e o universo valorativo (conservadorismo agrário) explicam, segundo Félix, a diferenciação das relações políticas (idem, p. 35, 45). Os imigrantes, ao chegarem ao Brasil, estavam perdidos no meio das florestas, isolados da sociedade gaúcha e desamparados pelos poderes público e espiritual. Na luta pela sobrevivência, apren-deram a confiar em si próprios e na organização coletiva. Outros passaram a esperar “mais de Deus do que dos homens do governo” (SANTIN, 1986, p. 18), ou seja, apenas a providência divina os prote-gia dos perigos, calamidades e doenças. O ideal de autonomia e a menor dependência econômica condicionaram as relações do poder estadual com a região, após a Proclamação da República. Segundo Félix, na região colonial italiana havia uma pulverização dos poderes, isto é, eles circulavam “entre diversos indivíduos e instituições que atingiam uma proeminência política maior ou menor, dependendo das diferentes conjunturas”. As relações de poderes “não se desenvolveram predominantemente através de canais político-institucionais formais de poder” (intendência, conselhos municipais, comissões executivas dos diretórios partidários locais) mas também por outras instituições, tais como Igreja Católica e Evangélica, maçonaria, sociedades recreativas, cooperativas e indivíduos que exerciam alguma liderança (FÉLIX, 1992, p. 47). Essas conclusões aplicam-se também à ex-colônia Silveira Martins. Observou-se, porém, a atuação do Consulado Italiano de Santa Maria e região5, do Banco do Brasil e das Sociedades de Tiro de Guerra nas campanhas eleitorais do PRR, no alistamento dos eleitores e no direcionamento do voto.6 Muitos colonos e lideranças políticas locais tinham dívidas no Banco do Brasil e votavam de acordo com as indicações de seus gerentes.
Outro aspecto a ser considerado foi a emancipação da colônia. Em 21 de abril de 1886, o decreto provincial número 1570 extinguiu a colônia e a região voltou a pertencer aos municípios de cujo território fizera parte anteriormente (Silveira Martins, Cachoeira do Sul e Júlio de Castilhos). Os núcleos urbanos mais populosos foram elevados a distritos e foi alterada a divisão policial. A sede Silveira Martins tornou-se o quarto distrito de Santa Maria e compreendia também Arroio Grande e Vale de Serra. Os núcleos de Vale Vêneto, Ribeirão Aquiles e Dona Francisca e parte de Vale Veronese foram anexados, como quinto distrito, ao município de Cachoeira do Sul. Núcleo Soturno (atual Nova Palma), Novo Treviso e Núcleo Norte (atual Novo Treviso) pertenceram, até 1891, ao município de São Martinho, quando foram anexados ao município de Villa Rica (atual Júlio de Castilhos). O agente do Consulado Italiano para Santa Maria e região, Umberto Ancarini, testemunhou os esforços dos comerciantes de Silveira Martins para reverter o processo de divisão. Júlio Lorenzoni sintetizou, em suas memórias, a divisão e o descontentamento criados com a frase: “Diviserunt sibi vestimenta sua”, ou seja, “dividiram entre si sua veste” (LORENZONI, 1975, p. 103-104).
A incorporação da região colonial pelos poderes municipais foi diferenciada. Na área pertencente a Cachoeira do Sul, foi nomeado um subintendente de nacionalidade brasileira. No quarto distrito do município de Santa Maria, Silveira Martins, foi criada uma comissão administradora, formada por comerciantes, artesãos, funcionários públicos e profissionais liberais de nacionalidade italiana e brasileira. A comissão tinha poderes equivalentes a uma subintendência e deveria prestar contas, trimestralmente, à intendência de Santa Maria dos atos de sua administração e da arrecadação e aplicação dos impostos.7 Esse modelo serviria como ensaio de prática administrativa autônoma e provisória, pois acreditava-se que a região seria elevada, em breve, a município. A comissão adminis-trativa deveria inspirar-se nos princípios democráticos e nas aspirações altruístas e seria mantida enquanto seus membros soubessem respeitar esses valores.8 A autonomia do quarto distrito de Santa Maria durou pouco. A comissão foi dissolvida e, em seu lugar, nomeado um subintendente de nacionalidade brasileira. Para as autoridades de Santa Maria era necessário, naquele momento, uma “autoridade enérgica e republicana”, constituída por indivíduos que não fossem estrangeiros.9 O partido republicano foi organizado no distrito de Silveira Martins em 15 de setembro de 1895 e, na comissão executiva do partido, predominavam nomes de brasileiros, em geral funcionários públicos municipais.10
No plano municipal, a administração estava centralizada no intendente municipal, responsável pela direção administrativa e policial, e no subintendente, que exercia sua autoridade nos distritos. O subintendente era responsável por supervisionar e fiscalizar as obras municipais, administrar e conservar o patrimônio municipal, exercer as funções de autoridade policial, fazer cumprir e executar as leis e as posturas municipais, impor multas aos que infringissem o Código de Posturas Municipais e conservar as estradas, pontes, jardins, cemitérios e praças.11 Nos distritos, a Guarda Municipal estava subordinada ao subintendente.
Os chefes de distrito, ou seja, subintendentes, subdelegados de polícia (podiam estar centralizados), juízes distritais e escrivões eram indicados pelo intendente municipal, porém seus nomes eram apreciados por Borges de Medeiros. Eles também eram responsáveis pela propaganda eleitoral do PRR, pela qualificação de eleitores, pela manutenção da coesão partidária, por apaziguar os conflitos entre as facções políticas locais. Para conservarem a liderança política eles tinham como aliados as influências distritais, indivíduos que apoiavam o governo e tinham prestígio na comu-nidade. O subintendente, como chefe político local, deveria garantir, em nível distrital, a ordem, o respeito às leis e autoridades e a dominação do PRR, traduzida em votações unânimes para os candidatos da situação.
Os governos municipais procuravam colocar obstáculos à nomeação de imigrantes para ocuparem cargos na administração. O cargo mais elevado teria sido a primeira ou segunda suplência nas disputas para as câmaras municipais. Alguns indivíduos, por serem filiados ao PRR, ascenderam a cargos políticos e tinham seus pedidos de favores a correligionários atendidos pelo governo municipal e estadual. Ou seja, a maioria dos subintendentes não eram representantes da sociedade colonial e tinham, em geral, ascendência luso-brasileira. Eles eram, em sua maioria, autoritários e intimidavam os colonos, os quais, por receio de represálias, davam-lhes produtos agrícolas. Muitos tinham má conduta moral e envolviamse em conflitos. Por esse motivo, não eram reconhecidos como autoridades legítimas e os colonos acreditavam que estariam agindo independentemente dos seus superiores hierárquicos.12
Na maioria das vezes, os nomeados não correspondiam às expectativas governamentais, pois, em vez de resolver os desentendimentos entre as facções políticas locais, envolviam-se em disputas com os correligionários, com a oposição, com as influências distritais, com os eleitores e com o clero. O distrito de Silveira Martins estava dividido em três mesas eleitorais, com mais de oitocentos eleitores. 13 Nas eleições, compareciam, em média, trezentos eleitores, porém, devido à forma como o subintendente “tratava aquela gente” o número de eleitores no pleito de 1915 foi de apenas 133 votos.14 Em 1925, dois candidatos do PRR disputaram as eleições à Intendência Municipal de Santa Maria. O subintendente e o subdelegado de Silveira Martins apoiavam um candidato e criaram obstáculos à campanha eleitoral do concorrente, o coronel Seixas. Esse, ao iniciar seu comício, em Silveira Martins, após a missa dominical, foi ameaçado pelo subintendente e os ouvintes, aterrorizados, fugiram correndo para todas as direções.15 Nessas situações, o mau desempenho político prejudicava o PRR por incompatibilizar-se com o eleitorado, que ficava retraído.16
Muitas críticas dirigidas aos intendentes municipais, aos subintendentes e aos subdelegados eram realizadas pelos próprios membros do PRR, por Borges de Medeiros e pelos governos municipais. Em geral, eles denunciavam a corrupção, a inexistência de um trabalho eleitoral, o desgoverno, as desinteligências entre o Executivo e o intendente municipal e entre esse e os subintendentes, os abusos do poder, os escândalos morais e as perseguições ao clero, comerciantes e colonos.17 Nesses casos, eram transferidos para outro distrito ou exonerados do cargo que ocupavam por prejudicarem a imagem do governo estadual e municipal e por reduzirem o número de votos para o PRR. O subintendente de Silveira Martins, por exemplo, foi afastado, em 1917, ao ser denunciado por alcoolismo, por incompetência para administrar os conflitos locais e, sobretudo, por não se interessar pela qualificação de eleitores.18 Muitos subintendentes e subdelegados do quarto distrito Silveira Martins foram processados e afastados do posto por má administração ou abuso do poder.19 Porém, nem todos os subintendentes de outra nacionalidade foram autoritários e perseguidores. O capitão Virgílio Brazil era brasileiro e, ao assumir o posto de subintendente em Silveira Martins, foi visto como um “libertador”.
Borges de Medeiros, como governador, procurava informar-se das necessidades dos imigrantes e acolhia favoravelmente os pedidos dos correligionários políticos como forma de angariar simpatias ao PRR. Por exemplo, após o ataque de gafanhotos, ocorrido em 1906 e 1907 e agravado pela seca, foram distribuídas batatas e as propriedades atingidas foram isentadas dos impostos territoriais.20 Outra política clientelista de Borges de Medeiros foi a de acatar as demandas locais, como reparos nas estradas, construir ou reformar pontes e escolas, distribuir instrumentos agrícolas e atender aos pedidos de favores e privilégios dos correligionários.21 Quando a barganha iria favorecer um imigrante, o pedido enviado a Borges de Medeiros era reforçado com os seguintes adjetivos: ele seria experto, bem educado, bem quisto e ardoroso republicano. Muitos imigrantes, por falarem a língua portuguesa e por serem partidários do PRR, conquistavam favores, privilégios e empregos do executivo estadual.22 Quando excluídas do jogo de favores, muitas influências distritais podiam colocar obstáculos ao PRR realizando campanhas eleitorais para a oposição e ao difundir o temor nos colonos: de que teriam de pagar pelos títulos eleitorais, que seriam obrigados a prestar o serviço militar e iriam votar nos “alemães”.23 Como resultado, muitos eleitores ficavam retraídos e recusavam-se a votar ou votavam na oposição.24
Numa denúncia ao Consulado Italiano, em Cachoeira do Sul, os habitantes de Vale Vêneto mencionam que o subintendente e os inspetores de quarteirão infligiam as leis e os obrigavam a pagar multas avultadas por motivos que consideravam fúteis, além de extorquir dinheiro por meio da violência e ameaças. Em Núcleo Soturno, município de Júlio de Castilhos, em 1904, os eleitores foram reunidos e conduzidos às urnas por um grupo armado que defendia uma determinada candidatura.25 Eram freqüentes a compra de votos e o suborno dos eleitores e dos fiscais.26 Para os colonos, esses procedimentos eram contrários, pois as autoridades distritais, aos desrespeitar as leis, agiriam independentemente das autoridades municipais e estaduais. Como decorrência, passavam a desacreditar nas autoridades brasileiras e na política do Brasil. Os subintendentes e demais autoridades não eram reconhecidos como líderes pelo seu anticlericalismo e por valerem-se da repressão e do autoritarismo. Outro problema era de comunicação, pois os imigrantes não compreendiam a língua portuguesa e os brasileiros, os dialetos italianos. Portanto, baseava-se na tentativa, nem sempre eficaz, de compreender o que o outro falava. Enfim, sua atuação política tornava-se pouco eficaz.
Quando havia descontentamento com as autoridades e chefias locais do PRR (subintendente, subdelegado de polícia, escrivão), muitos eleitores votavam no Partido Federalista ou abstinham-se. Nessas conjunturas, as campanhas eleitorais e as excursões com fins eleitorais eram reforçadas, para estimular os homens a votar, alistar novos eleitores, enaltecer as qualidades de Borges de Medeiros como estadista e, sobretudo, para difundir os ideais republicanos.27 O Partido Federalista também recorria à repressão policial e às pressões para persuadir o eleitorado.28 Eles indicavam os nomes dos candidatos do partido e afirmavam que pertenciam à chapa do governo.29 As fraudes eleitorais, sempre freqüentes, a anulação das urnas e a utilização de capangas possibilitavam ao PRR reverter a conjuntura desfavorável e obter votações unânimes.30
Os meios autoritários para incorporar os imigrantes, principalmente os colonos, à nacionalidade, sobretudo com relação à participação eleitoral, condicionaram seus posicionamentos políticos. Chegados há poucos anos, eles sentiam-se mais italianos ou estrangeiros do que brasileiros, temiam as autoridades nacionais, não falavam a língua portuguesa e, como decorrência, não desejavam envolver-se em questões políticas. Os contatos com os brasileiros e com as autoridades eram sempre tensos, seja para recenseamento, registros civis, naturalização compulsória, cobrança de impostos e recrutamento eleitoral e militar. Os imigrantes desconfiavam de qualquer medida do Governo que implicasse em registros. Na medida em que o Estado desenvolvia ações reguladoras (censos, registros civis, cobranças de impostos, recrutamento militar) com a intenção de gerenciar de forma mais racional e com maior eficácia administrativa a sociedade, o cotidiano e as relações com o Governo eram modificadas. As resistências foram variadas, configurando- se numa “cidadania em negativo”, pois a participação política ocorria não a partir de uma organização coletiva para reivindicar do Estado demandas surgidas na sociedade, mas como reação as mudanças impostas, de cima para baixo (CARVALHO, 1996, p.352-356). As desconfianças e os boatos contribuíam para exaltar os ânimos.31 Em 1890, por exemplo, no município de Cachoeira do Sul, houve um recenseamento da população colonial para fins eleitorais, militares e de naturalização. Os imigrantes não entendiam os fins do recenseamento e seus resultados e por temerem alterações em suas vidas, resistiam e recusavam-se a fornecer as informações solicitadas, escondiam-se temporariamente nas matas e não recebiam os técnicos, dificultando a execução do censo. Os recenseadores passaram a utilizar meios coercitivos, o que gerou um retraimento ainda maior. O recrutamento militar obrigatório era temido; causava a saída dos membros jovens do sexo masculino e, conseqüentemente, a redução da mão-de-obra familiar, pois, em sua maioria, os homens convocados eram casados.32 O pânico coletivo era motivado pela crença de que prestar o serviço militar seria como “andar perto da morte”. Muitos homens recusavam-se, outros fugiam ou escondiam-se. Em Ivorá, as instruções eram quinzenais e realizadas durante dois dias consecutivos. O recrutamento incluía, também, o deslocamento até Júlio de Castilhos, para unirem- se aos demais Tiros de Guerra. Nas festas religiosas, o Tiro de Guerra apresentava as armas e realizava várias exibições, para familiarizar os imigrantes com o serviço militar.33 A imagem dos imigrantes e descendentes associava-se a um “outro”, estrangeiro, não integrado à nacionalidade, que desconhecia os princípios democráticos e republicanos que regiam a sociedade gaúcha. As lutas para criar o município que compreendia todo o território colonial são aqui reveladas para se compreender as relações de poderes que permeavam a política local. Em 1895 e 1897, as lideranças de Silveira Martins, tendo à frente os comer-ciantes, requereram ao Presidente, Júlio de Castilhos, por meio de abaixoassinados e de comissões que se dirigiram a Porto Alegre, a emancipação político-administrativa da ex-colônia Silveira Martins. Para as autoridades municipais de Cachoeira do Sul, Santa Maria e Júlio de Castilhos, o ideal de emancipação deveria ser negado, pois eram estrangeiros e não tinham as convicções republicanas. Portanto, deveriam ser tutelados pelo Estado. Para esvaziar a reivindicação, procuraram atender as demandas locais, como fazer melhoramentos nas estradas, construir pontes e diminuir os impostos.34
Os pedidos também foram inviabilizados porque havia interesses divergentes, em relação à emancipação política, entre os moradores dos vários núcleos da ex-colônia. Esse aspecto pode ser observado na oposição dos habitantes do quinto distrito de Cachoeira do Sul (Vale Vêneto) à criação do novo município. Consideravam-no uma “extravagante pretensão” e, por meio de abaixo-assinado, recorreram ao intendente de Cachoeira do Sul para que interviesse junto ao governador Júlio de Castilhos, receosos de que fosse criado o novo município. Por serem católicos não aceitavam o fato de pertencerem e de ficarem subordinados a um município administrado por maçons e anticlericais.
O topônimo, Silveira Martins, também contribuiu negativamente. A homenagem ao tribuno do Império e ao líder da oposição, Gaspar Silveira Martins, não só inviabilizou a emancipação como também o não atendimento das demandas locais pelo governo estadual. Como decorrência, tanto Júlio de Castilhos como Borges de Medeiros eram vistos, pelos comerciantes, como perseguidores.
Em 1898, um novo pedido foi encaminhado a Borges de Medeiros, por meio de uma Comissão que organizou um abaixo-assinado e dirigiu-se a Porto Alegre. Justificava-se que os três municípios não atendiam as reivindicações locais, desviavam os impostos e procuravam aniquilar a região, pois suas “estradas [eram] quase intransitáveis”. 35 Em 25 de novembro de 1898, o Conselho Municipal de Santa Maria posicionou-se desfavoravelmente à representação dos moradores da ex-colônia.36 A emancipação desequilibraria as relações de poder em nível regional, além de prejudicar os interesses materiais daqueles municípios com a diminuição de impostos. O distrito era o que propiciava maior arrecadação, e suas autoridades municipais procuravam inviabilizar as pretensões de emancipação. Alegavam que um município com “uma população estrangeira, ignorante e sem ideal político” seria um “incômodo”. Argumentavam que a emancipação das demais colônias do Rio Grande do Sul fora uma experiência negativa, que não deveria ser repetida.37 O Conselho de Cachoeira pretextou problemas de escassez de recursos para o futuro município e, sobretudo, a não incorporação dos imigrantes e descendentes à nacionalidade brasileira.38 Sobre a região, pairava um alerta e uma ameaça permanentes, pois a presença de uma população estrangeira impedia a formação de uma verdadeira identidade nacional. Por não falarem a língua portuguesa e por serem “dirigidos em absoluto pelo elemento clerical que ahi impera” não podiam “dignamente fazer predominar os salutares princípios da democracia moderna”.39 Ou seja, não teriam condições mínimas de entendimento e independência para exercer o direito de voto. O prestígio dos padres pode ser acompanhado no relatório enviado a Borges de Medeiros pela intendência de Santa Maria:
Colônia Silveira Martins: Zona de colonização italiana. Eleitorado numeroso e compacto, mas sem ardor e nem convicção republicana. Ahi tudo depende do subintendente e sub-delegado. Os maiores prestígios são sempre do padre catholico, a aquem os colonos ouvem cegamente e as autoridades locaes, a quem obedecem humildemente.40
Em 1899, novo pedido foi encaminhado ao presidente Campos Sales, por acreditarem numa intervenção do governo federal. No documento, os imigrantes alegavam que a ex-colônia tinha sido fundada há 22 anos, teria uma população estimada em 15.000 habitantes com grande desenvolvimento econômico, porém estava dividida em três municípios que não empregavam os impostos nos atendimentos das necessidades básicas, como estradas e pontes. Ressaltavam que outras colônias, recém-criadas e com população menor, já haviam sido elevadas a município.41 Em 1900, um artigo foi publicado na imprensa rio-grandense reivindicando do governo estadual a emancipação da região, que foi negada novamente.42
As autoridades municipais consideravam o eleitorado da ex-colônia Silveira Martins, flutuante, instável, apartidário, ignorante, perigoso, controlado pelo clero e sem convicção republicana. Seus habitantes eram considerados “muito ignorantes e muito sujeitos a exploração de qualquer espertalhão que lá apareça” ou eram vistos como um “eleitorado instável e perigosíssimo”, pois “o último que chega é o que domina a situação”, por serem “rudes e ignorantes” e facilmente manipulados “por lançarem suas assinaturas inconscientemente”. 43 Embora manifestassem um pendor para o governo, não podiam ser considerados nem brasileiros nem sul-rio-grandenses, pois seus valores eram impulsionados mais pelos sentimentos de amizade, gratidão e dedicação do que partidarismo.44 Seriam estrangeiros a serem assimilados.
Para o PRR, a incapacidade política dos imigrantes obrigava-os a serem dirigidos e conduzidos por brasileiros.45 Para contornar essa flutuação do eleitorado, as intendências de Santa Maria, Júlio de Castilhos e Cachoeira do Sul realizavam, em época de eleições, excursões festivas às sedes dos distritos. As excursões eram caravanas de carros, realizadas aos domingos, as quais, ao entrarem num povoado, procuravam impressionar pelo colorido das bandeiras e pelo arsenal de fogos de artifício. Outros expedientes eram os bailes e as visitas às residências. Em geral, participavam os candidatos, membros do PRR e as lideranças políticas municipais e locais. Caso ocorressem conflitos, os eleitores fica-vam retraídos e recusavam-se a votar. As caravanas tinham por fim divulgar os candidatos, engajar as lideranças locais no alistamento dos eleitores e na campanha política. As excursões objetivavam, em última instância, manter a coesão e a disciplina das lideranças, autoridades e, principalmente, do eleitorado. Para aumentar o número de pessoas nos comícios, era comum o pagamento de determinada quantia de dinheiro. O grande número de expectadores era importante para criar a idéia de que a maioria estava solidarizada com os candidatos do governo.46
Os candidatos, nos discursos, para conquistar o eleitorado prometiam abaixar ou reduzir o valor dos impostos, construir pontes e estradas, distribuir empregos e o atender às reivindicações locais. Os horários das excursões eram planejados para coincidir com o término da missa, quando a concentração de pessoas era maior. Eram distribuídos panfletos e cédulas já preenchidas em italiano, português e alemão. Nesses, os candidatos do governo eram apresentados como sendo os únicos aprovados por Borges de Medeiros e incluíam críticas à oposição. Em geral, ressaltavam a trajetória do candidato, ou seja, sua defesa da agricultura e da imigração italiana, a necessidade de reduzir os impostos como meio de alcançar o progresso do Rio Grande do Sul. Em 1904, o Coronel Francisco Lemos de Farias, que concorreu ao cargo de intendente municipal em Júlio de Castilhos, prometeu não cobrar mais impostos, extinguir o imposto territorial, construir pontes em todos os rios do município, criar empregos públicos e fundar duas brigadas da Guarda Municipal.47
Os comerciantes, em sua maioria, eram filiados no PRR, participavam das campanhas políticas e reivindicavam das autoridades os atendimentos de suas demandas. Eles atrelavam seu voto ao atendimento de reivindicações, favores e privilégios. Os colonos, por sua vez, ao atendimento das suas demandas, todas associadas à melhoria das suas condições de vida, em particular a ampliação das estradas, a redução dos impostos, a construção de escolas e o auxílio e a solidariedade governamental nos períodos em que a produção era ameaçada por chuvas, insetos, secas ou geadas.48 Quando ocorriam impasses e conflitos com as autoridades locais, eles se retraíam, recusavam-se a participar das eleições e desequilibravam os resultados eleitorais em nível municipal. Nesse sentido, seu comportamento político não se reduzia à passividade.
Para as autoridades municipais e estaduais, os imigrantes representavam uma reserva de eleitores que deveria ser cooptada, pois poderiam influir nos resultados finais das eleições. As fontes permitem concluir que, em sua maioria, votavam no PRR motivados não pelo posicionamento político-partidário, exceto os maçons, profissionais liberais e comerciantes, mas por medo, gratidão (devido aos auxílios e benefícios que recebiam em conjunturas desfavoráveis), por pressões políticas, indicações do clero ou de indivíduos que exerciam liderança política e para não serem perturbados pelas autoridades brasileiras.49 Apesar disso, encontravam espaços para participar politicamente, seja ao reivindicar, ao resistir, ao denunciar, ao votar, seja ao abster-se dos pleitos, entre outros.50 Sua participação no processo eleitoral era obstaculizada pelas distâncias geográficas, pela inexistência de estradas e pelo número reduzido de sessões eleitorais, agravado pelo fato de elas não funcionarem nos locais previstos. Nos locais de difícil acesso, a qualificação nem sempre era realizada, e os colonos, quando desejavam votar, podiam demorar dois ou mais dias para regressar à sua residência, o que implicava protelar os trabalhos agrícolas e prejudicar a economia familiar.51
Enfim, as autoridades municipais dos três municípios (Santa Maria, Cachoeira do Sul e Júlio de Castilhos) sempre encontraram dificuldades em integrar os imigrantes ao poder municipal.52 O PRR obtinha votações quase unânimes, seja pelo cooptação, pela coerção, compra de votos e pelas fraudes na contagem dos votos ou na confecção das atas eleitorais. A oposição obtinha, na maioria das vezes, apenas os votos dos fiscais.53 Os federalistas obtinham votações expressivas nas conjunturas de disputas internas entre os correligionários do PRR.54
Em 1927, foi fundada, em Silveira Martins, a Liga Cívica Republicana, com o fim de pugnar pelos interesses políticos, administrativos e sociais dos seus associados, obedientes à direção do município. A Liga reunia eleitores domiciliados na sede do distrito e objetivava reivindicar os melhoramentos necessários, de acordo com as possibilidades financeiras do município, e interessava-se por tudo que dizia respeito à economia administrativa do distrito, dentro de seus limites e atribuições.55 Os estatutos da Liga não deixavam dúvidas sobre as relações de poderes que permeavam a política local e o papel reservado aos imigrantes e descendentes. Era um público que deveria ser educado nos princípios republicanos e dirigido e controlado por brasileiros, ou seja, emergiam como estrangeiros potencialmente perigosos e que deveriam ser integrados à nacionalidade.
A Igreja Católica e a política na ex-colônia Silveira Martins
A Igreja Católica enquadrava os indivíduos na ação do Estado e disciplinava o comportamento político dos imigrantes, ou seja, intervinha na vida política das comunidades em que atuavam e empenhava- se em integrá-los à nacionalidade brasileira. Ou seja, transformá- los em brasileiros, ordeiros e obedientes às autoridades e às leis da nova pátria. Para a Igreja, todo o poder na sociedade provinha de Deus, por isso todos deveriam prestar obediência às autoridades, pois teriam sido instituídas por ordenação divina. Os indivíduos que resistiam às autoridades resistiam às ordenações de Deus. O abandono da ética cristã como princípio ordenador da sociedade e legitimador do poder civil seria a causa da ruína dos indivíduos, da sociedade, do Estado e a origem das revoluções e das desarmonias sociais. Enfim, sem obediência não haveria família, sociedade e Estado. O controle político da Igreja podia ser observado nas campanhas pelo respeito ao Papa, às leis e autoridades, pelo cumprimento dos deveres dos cidadãos para com a Nação (serviço militar, voto obrigatório), no controle do eleitorado e no nacionalismo que difundiam.
Todos os católicos do sexo masculino, ao chegarem à maioridade, deveriam qualificar-se como eleitores e votar. Nenhum eleitor poderia deixar de votar, por maior sacrifício ou incômodo que fosse. A abstenção, sem causa justa, era considerada pecado e, mais grave ainda, quando outros eleitores fossem influenciados. O pecado advinha de favorecer a ascensão ao poder de candidatos com princípios acatólicos.56 Os leigos “como membros do Estado e filhos da Igreja” deveriam votar e propugnar com seu voto “e sua influência pela derrota dos candidatos que não coadunassem com a Igreja” e não votar em partidos condenados pela Igreja. Os católicos que conscientemente votassem em candidatos que não professavam o catolicismo cometiam pecado e seriam responsáveis pelas obras de iniqüidade que os políticos eleitos praticassem contra a sociedade e a Igreja Católica.57 O critério de seleção dos candidatos não poderia ser justificado na amizade e na competência e o eleitor não deveria orientar-se pelas siglas partidárias. Para a Igreja, os católicos tinham de priorizar os interesses religiosos sobre os políticos ou partidários e sobrepor o espiritual sobre o temporal. O eleitor, ao decidir sobre o futuro da Nação, deveria permanecer fiel às heranças culturais católicas para evitar que o país fosse administrado por ateus, que ameaçavam a liberdade e a fé católica.
Os candidatos considerados ímpios pela Igreja Católica não mereceriam o voto, pois, quanto mais competentes, mais nocivos poderiam ser para o Brasil e para a religião. Somente era lícito votar em candidatos reprovados quando dois deles concorriam, por exemplo, um liberal e um socialista. Nesse caso, os católicos deveriam votar no menos indigno. Daí o porquê da hierarquia eclesiástica achar conveniente criar uma instituição que indicasse os nomes dos candidatos que fossem merecedores do apoio eleitoral dos católicos (futura Liga Eleitoral Católica).58 Os católicos deveriam obedecer às autoridades constituídas, desde que agissem de acordo com as leis divinas.
As instruções episcopais, dirigidas aos párocos, recomendavam que as obrigações dos católicos em relação à participação política fossem lidas e explicadas nas missas (em todas as matrizes e capelas), nas comunidades religiosas, no catecismo e nas associações devocionais constituídas exclusivamente de homens. Eram realizadas campanhas para instruir os fiéis sobre o processo eleitoral e para arregimentar o maior número possível de novos eleitores. Quanto mais eleitores a Igreja conseguisse alistar e orientar, mais força política para intervir nas eleições, respaldar suas reivindicações e reconquistar os privilégios que havia perdido com o regime republicano. Entre os principais deveres dos católicos estavam o respeito aos depositários da autoridade, em todos os âmbitos, e o cumprimento dos deveres para com o Estado.59 Em suma, para a Igreja, o povo não estava preparado para exercer o poder e a cidadania, devendo apoiar-se nos direcionamentos fornecidos pelas elites na condução da sociedade. O eleitor consciencioso deveria obter informações a respeito das qualidades dos candidatos junto a pessoas sérias, criteriosas e desapaixonadas. O padre fazia-se considerar, pela formação eclesiástica, pelo intelecto e pela orientação que recebia dos superiores hierárquicos, como o mais indicado para orientar os eleitores.
Para a hierarquia eclesiástica, o clero não deveria calar-se, mas orientar, agir, condenar ou aprovar, pois os interesses da Igreja e da Nação o exigiam. Era freqüente aconselharem os eleitores a votar em determinados candidatos; redigiam e distribuíam cédulas e panfletos em italiano, alemão e português. O prestígio dos padres junto ao eleitorado era reconhecido e disputado. Os padres podiam provocar o retraimento do eleitorado ou conquistar votações unânimes para determinados candidatos. Muitos católicos aconselhavamse no confessionário para decidir em quem iriam votar nas eleições ou seguiam os conselhos que o padre dava nos sermões. Em Núcleo Norte, atual Ivorá, o Monsenhor Humberto Busato “exercia forte influência política (eleitoral) sobre os paroquianos. Seu aval era disputado pelos candidatos a cargos políticos. Os mais destacados políticos estaduais da época visitavam Ivorá atendendo convite do Monsenhor” (RUBERT, 1882, p. 62). João Zanella, em Nova Palma, exercia grande liderança política na paróquia. Tanto Busato quanto Zanela eram acusados pelas autoridades municipais de Júlio de Castilhos de serem estrangeiros, de manipuladores do eleitorado, de colocar obstáculos ao governo republicano para obter favores e privilégios à Igreja Católica.60 Em Vale Vêneto, o padre João Iop “era considerado como um pai supremo, homem de grande autoridade e era respeitado até pelas autoridades distritais, porque, ao menor apelo seu, as forças se reuniam, os braços se movimentavam e as estradas eram abertas ou restabelecidas.” Muitos paroquianos o procuravam, mesmo de paróquias vizinhas, a fim de ouvir seus conselhos, pois o tinham “como juiz nas questões que desuniam famílias e pessoas. Mediante sentença que ele proferisse todos se calavam e voltavam conformados” (GERARDI, 1978, p. 16).
Eram freqüentes os conflitos entre os representantes do executivo municipal e os religiosos e religiosas, pelo fato de eles se imiscuírem em assuntos políticos. Em 1906, o pároco de Silveira Martins, Mathias Schoenauer, após ser ameaçado de morte e de ser perseguido por dois pistoleiros, teve de se refugiar na torre da igreja para abrigar-se dos tiros de revólver e teve de retirar-se às pressas da paróquia por “fazer política”.61 Seu sucessor, o padre Frederico Schwinn, apesar da habilidade diplomática, foi alvo de inúmeras críticas e intrigas pelos mesmos motivos. Em 1907, o médico Nicola Turri, em discurso público, criticou o papa, o clero e insinuou que as obras da torre da igreja matriz serviriam para vigiar a sociedade local. Em 1921, o padre Antônio Bombassaro foi ameaçado de prisão pelo subintendente, que acumulava a função de subdelegado, por fazer propaganda política e por recusar-se a realizar uma missa campal, seguida de baile, para comemorar o aniversário do falecimento de José Garibaldi. Nesse episódio, por comprometer as relações da intendência com as autoridades eclesiásticas, o subintendente foi destituído do cargo de subdelegado.62 Devido às críticas dirigidas pela população ao clero, por este se envolver em política, a União dos Moços Católicos, de Vale Vêneto, realizava discursos sobre o respeito devido aos ministros do culto.
Durante a Primeira Guerra Mundial, D. Miguel de Lima Valverde, bispo da diocese de Santa Maria, em carta pastoral, procurou transmitir tranqüilidade aos diocesanos, ao demonstrar sua confiança no governo brasileiro para assegurar a ordem, a soberania nacional, a integridade territorial, a independência política, a civilização cristã, a coesão entre os brasileiros e, por fim, a prosperidade da Nação. As decisões governamentais não deveriam ser discutidas ou contestadas e não era considerado lícito sequer hesitar em obedecêlas. Nessa conjuntura, era dever dos católicos prestar o serviço militar; pagar os impostos e tributos; ceder a propriedade particular, ou parte dela, mediante indenização, se o bem comum o exigisse; acatar as decisões das autoridades; respeitar as leis; praticar as virtudes cívicas; votar nas eleições e intensificar a produção agrícola. Isso incluía, também, preservar valores, como moralidade, docilidade, disciplina, fidelidade à pátria, respeito aos valores católicos e à sobreposição dos interesses coletivos sobre os particulares. Assim, prestigiar as autoridades constituídas era considerado um preceito sagrado e bíblico. O bispo recomendava que os sacerdotes não hesitassem em utilizar o prestígio do clero a serviço dos ideais nacionais, seja no púlpito, nas escolas seja em qualquer outro local considerado próprio, a fim de robustecer valores patrióticos e nacionalistas, principalmente os deveres, de forma a garantir a ordem e a defesa dos interesses da Nação. A carta pastoral de D. Miguel de Lima Valverde afirmava que era:
(...) incontestável a influência da palavra sacerdotal, e não hesitamos em collocal-a ao serviço da Patria, agora mais do que nunca tem precisado do apoio de todos os brasileiros. No pulpito, nas escolas, onde seja conveniente o compatível com o caracter sagrado, dentro dos moldes tradicionaes da disciplina eclesiástica, sem desafogos imprudentes, mas com a conecção e dignidade que nos‚ própria, fortaleçamos, entre o povo, a consciencia do dever nacional, ali mantemos o seu patriotismo com sabios e avisados conselhos, preguemos a obediencia às autoridades constituídas.63
Em outra ocasião, D. Miguel defendeu a participação do clero em campanhas em favor da obrigatoriedade de prestar o serviço militar, a fim de combater o temor dos colonos. Cogitava-se, inclusive, o treinamento militar nas escolas católicas, ministrado por militares.64 Refere-se D. Miguel:
Os padres deveriam, com jeito e insistência, combater a aversão e os temores que os colonos tinham à obrigatoriedade de prestar o serviço militar. Era necessário despertar o cidadão brasileiro. Uma iniciação à instrução militar (aulas de tiro ao alvo, manejo de armas) foi feita nos estabelecimentos de ensino da Igreja e nas associações devocionais. Não seria bastante propellir a mocidade as fileiras do exercito, ao chamamento da Patria. Nem a todos se ha de pedir tributo de sangue, mas de todos se exige sacrifício e devotamento.65
Defender a pátria tornava-se uma obrigação de todos. A pátria era o lar, a escola, a terra em que jaziam os antepassados, a religião e o passado comum. Como bons cristãos, todos deveriam tornarse soldados e estar de prontidão permanente. Prestar o serviço militar deveria ser uma honra e um dever, pois estar-se-ia defendendo os patrícios, as famílias, os valores católicos e os bens patrimoniais. Cabia aos contemporâneos preservar os valores, a independência, a liberdade e o bem estar já conquistados pelos antepassados. A morte pela pátria tornava o soldado um mártir, ato de comprovação da fé e merecedor de todas as recompensas divinas.
D. Miguel procurava forjar sujeitos católicos plenos ao criar uma identificação coletiva entre “ser brasileiro” e catolicidade. Ao difundir uma identidade católica, criava uma idéia de coesão, homogeneidade e laços de reconhecimento mútuo, um “nós” brasileiro e católico, em oposição a um “outro” estrangeiro e acatólico. Nessa perspectiva, ser brasileiro era uma identidade política coletiva nacional e ser estrangeiro era a expressão da alteridade. Igreja e Estado objetivavam, em última instância, disciplinar os indivíduos e a sociedade para criar brasileiros e católicos que fossem probos, ordeiros e adaptados à ordem social e à política vigentes.
A preocupação da Igreja Católica era a de incorporar à vida política nacional os imigrantes e descendentes a fim de constituir uma nação coesa e forte. As soluções propostas incluíam desde a intervenção autoritária do Estado até medidas disciplinares e coercitivas para eliminar as diferenças e reafirmar o sentido nacional. Sabese que uma identidade nacional é o resultado de uma construção em que o discursivo soma-se a uma infinidade de sinais (símbolos, imagens, mitos, rituais e alegorias) reconhecidos com mais facilidade pela população com baixo nível de educação formal (CARVALHO, 1990, p.10-11). Além da manipulação do imaginário social, a Igreja utilizou-se de outros dispositivos disciplinares com o fim de manter a ordem e segurança interna e fortalecer a unidade nacional. Produzia, dessa forma, homogeneidades e, ao mesmo tempo, construía projetos para o futuro, nos quais era definida a missão reservada aos imigrantes no corpo da Nação.
D. Miguel proibiu, em todas as igrejas e capelas da diocese, que os sermões fossem em alemão e italiano e determinou que fosse utilizada apenas a língua portuguesa. A inovação enfrentou resistências por parte dos mais idosos. Para contorná-las, os padres continuaram a rezar apenas uma missa semanal em italiano ou alemão. O catecismo também teve de ser ministrado em português. Objetivava- se, além da nacionalizar a língua, criar sentimentos de pertença ao Brasil. O ensino do português, da história e geografia do Brasil tornou-se obrigatório nas escolas católicas e as datas nacionais deveriam ser comemoradas com esplendor e pompa a fim de forjar cidadãos católicos “úteis à família, à Pátria e à Igreja Católica”. 66 A cooperação do clero com o governo também se efetivou com o estímulo, junto aos colonos, do incremento da produção agrícola e pecuária, evitando imprevistos que porventura surgissem. Ao ser instituído o Dia de Ação de Graças, em 1918, com o lema “Tudo pela Pátria e nada sem Deus”, a hierarquia reivindicava do Estado o reconhecimento legal e a prestação de culto à Igreja Católica. O catolicismo era apresentado como um fator de coesão da Nação ao unificar e homogeneizar a população.67
Muitas vezes, a Igreja fazia coincidir o calendário religioso com as principais datas nacionais. No altar-mor das igrejas, conservavamse, em caráter permanente, as bandeiras nacional e pontifícia para ensinar “perenemente aos fiéis dois nobres sentimentos: o amor à Deus e à Pátria”.68 Eram freqüentes as solenidades com hasteamento da bandeira nacional, passeata cívica, sermões com temas patrióticos, solenidades com hinos, discursos e poesias patrióticas. 69 O centenário da independência, por exemplo, foi solenizado em toda a ex-colônia, com placas comemorativas, nomes de ruas que homenageavam as datas e os heróis nacionais, inauguração de torres de igrejas e com procissões cívicas e religiosas. Em Ivorá, por
(...) ocasião das comemorações do centenário da Independência do Brasil, foi colocada uma lápide de mármore na frente da matriz, comemorativa da grande data e, a pedido do vigário, o Coronel Álvaro Hipólito Pinto M. D. Prefeito de Júlio de Castilhos mudou o nome da rua da Matriz, que passou a ser denominada Avenida Independência.70
Em Vale Vêneto, o centenário da independência do Brasil foi comemorado com a inauguração da torre da Igreja Matriz. Seria um
(...) monumento de fé e de patriotismo e nessa torre e nessa lápide argamassadas com a terra do solo deste vale e o suor de vossas frontes, os prósperos encontrarão o testamento de nossa fé‚ e do nosso patriotismo; Deus e Pátria.71
A missão patriótica dos imigrantes era consolidar a independência política conquistada por D. Pedro I com a independência financeira. Esta seria conquistada pelo “fio das ... enxadas”, ou seja, por meio do incremento da produção agrícola e pecuária. Esse seria o dever cívico de cidadãos brasileiros. Associava-se, dessa forma, a imagem de D. Pedro I, como herói da Independência, com os novos heróis, os colonos, agora redentores da nação brasileira ao consolidar um ato ainda inconcluso. O apelo da hierarquia dirigia-se, sobretudo, ao aumento da produção para evitar uma crise de abastecimento interno e para reforçar as exportações brasileiras.72
Em 1928, por ocasião das comemorações do cinqüentenário da imigração italiana, ocorreram várias manifestações religiosas e cívicas. Estavam presentes o bispo diocesano, D. Ático Eusébio da Rocha, autoridades civis e militares.73 Nos festejos foram realizadas missas campais, discursos e passeatas cívicas e hasteadas as bandeiras da Itália e do Brasil ao som do hino nacional brasileiro.74 Nos discursos, eram evocados o passado, os heróis nacionais, as qualidades e distinções do povo brasileiro, a grandeza territorial do país e suas potencialidades. Ressaltava-se, principalmente, seu futuro glorioso.
O cinqüentenário da chegada dos padres Palotinos, no Brasil, foi comemorado juntamente com o centenário da Revolução Farroupilha. As datas, ao coincidirem, evocavam um passado heróico comum, do qual todos tinham de se orgulhar e nele se espelhar. O heroísmo dos antepassados criava fulcros de identificação coletiva e forjava novas identidades: nasciam sul-rio-grandenses e brasileiros. Ser italiano e estrangeiro pertencia ao passado e motivo de orgulho apenas pela catolicidade do seu povo.
O discurso católico, ao instituir uma identidade para os imigrantes e descendentes, procurava atribuir-lhe uma essência na qual todos deveriam reconhecer-se. O catolicismo era a religião dos antepassados, o melhor legado às novas gerações, elemento mantenedor da ordem, do progresso, porque disciplinava e moralizava o homem e a sociedade. O Brasil, como nação católica, deveria respeitar e defender as prerrogativas da Igreja Católica. Desse modo, criava-se uma identificação entre brasilidade e catolicidade. O sujeito católico e a identidade nacional eram chamados a existir pelo discurso. E, ao mesmo tempo, ocorria o estabelecimento de práticas divisoras entre os católicos e os não católicos, dividindo e classificando os sujeitos. As religiões concorrentes eram vistas como inimigas e subversoras da ordem social, ameaça à segurança nacional e ao lugar de destaque que a Igreja Católica reivindicava na sociedade. Para a Igreja, opor-se aos ensinamentos e às reivindicações católicas equivalia a transgredir, a negar o caráter nacional e constituíase numa ameaça à ordem social. Nessa perspectiva, a Igreja negava a representação de uma identidade nacional que valorizasse as diferenças culturais existentes no Brasil. Procurava, sobretudo, estabelecer e valorizar elementos comuns, relevantes para a definição da Nação. Assim, nacionalismo e catolicismo uniam-se no discurso da hierarquia católica na construção da história do Brasil.
A ofensiva da Igreja procurava reconquistar o papel central na construção do ideal nacional. Aqueles que não professavam o catolicismo opunham-se à nacionalidade, ao progresso e à civilização; era necessário incorporá-los ao processo civilizatório e à Nação. Essa transgressão conduzia ao caos, ao laicismo, à demagogia, à anomia e à subversão. O catolicismo seria o alicerce da sociedade. Entre um “nós” católico e um “outro” que o negava, estabelecia-se uma linha divisória que demarcava e diferenciava. Renegar o catolicismo significava negar os fundamentos da Nação brasileira, seu caráter e identidade.
A hierarquia católica reconhecia o caráter heterogêneo da cultura brasileira e defendia sua homogeneização e padronização cultural como condição para constituir uma sociedade civilizada. A Igreja atribuía a si o papel missionário, salvador, civilizador e libertário. Esse ideal civilizatório estendia-se a toda a população. O Rio Grande do Sul, para a Igreja, tinha de ser evangelizado, convertido e salvo, e os imigrantes e descendentes, pela catolicidade, tinham o dever patriótico de auxiliar a instituição nessa missão. Além de associar catolicidade e brasilidade, difundia-se uma imagem distintiva do ser sul-rio-grandense como religioso, moralizado, cônscio dos seus deveres para com a pátria e a Igreja Católica. Procurava-se, dessa forma, arregimentar e mobilizar os católicos e dispô-los, como soldados, a serviço da Igreja.
A ex-colônia Silveira Martins distanciava-se, por vários fatores, do modelo idealizado de uma comunidade nacional. A presença de comunidades étnicas isoladas era considerada preocupante pela Igreja, que se empenhava em integrá-las à vida política e à cultura nacional. Tratava-se de construir um conjunto de valores sociais e políticos, com vistas a mobilizar o imaginário social e criar sentimentos de pertença coletiva ao Brasil. Isso consistia em forjar, nos elementos díspares, aspectos comuns que possibilitassem agregar e constituir uma comunidade nacional, ou seja, transformar a população estrangeira em brasileiros. Cada indivíduo deveria reconhecer a si e seus compatriotas como uma coletividade, pertencendo à nacionalidade brasileira, a qual excluía aqueles que dela não participassem.
Nas campanhas em prol das migrações internas, realizadas pela Igreja, também perpassavam meandros nacionalistas. Os imigrantes e descendentes eram sensibilizados e mobilizados para costurar a Nação, ao colonizar regiões não ocupadas, integrando-as. Ocupar as fronteiras, diversificar o mercado interno, reforçar a segurança interna e manter a unidade política do país aliavam-se à expansão do catolicismo no Brasil. Ou seja, despertar e cultivar o espírito bandeirante significava despertar esses indivíduos para a redescoberta do Brasil e inseri-los definitivamente à nacionalidade brasileira.
A Igreja Católica procurava difundir valores identitários e nacionalistas ao impor o reconhecimento de passado, língua, religião e identidade nacional comuns. Esses elementos distintivos permitiam anular as diferenças e construir uma comunidade nacional homogênea. A difusão da língua oficial e literária e a defesa do vernáculo opunham-se à diversidade lingüística e às variações faladas. A difusão da história oficial criava tradições compartilhadas, aspirações e interesses comuns, sedimentando a coesão social.
Saída: sonhos desfeitos e outras histórias
O papel da Igreja Católica e do governo estadual durante a República Velha, na ex-colônia Silveira Martins, foi o de integrar os imigrantes e descendentes à estrutura oligárquica de mando vigente no Rio Grande do Sul, à vida política nacional e procurar difundir sentimentos de pertença à Nação. Todavia, eles eram contabilizados como sócios menores por parte do grupo hegemônico, apenas como reserva de eleitores que deveria ser cooptada e como força de trabalho. A integração à vida política e à nacionalidade foi reforçada no governo de Getúlio Vargas. A política cultural varguista negava a heterogenei-dade, o pluralismo, as manifestações culturais populares e procura-va recriar uma cultura brasileira que fosse homogênea e uniforme, que seria alcançada por meio da elevação cultural do povo brasileiro. Para tal, o Estado e a Igreja intervieram para erradicar as diferenças, o pluralismo e o que não era considerado representativo ou que se distanciava da cultura nacional, a saber: cultura afro-brasileira e das minorias étnicas, lingüísticas e culturais, como indígenas e imigrantes. A repressão foi intensa e ser italiano ou descendente de imigrante tornou-se um crime passível de punição (CORSETTI, 1987, p. 303).
A imigração da Europa para o Brasil separou para sempre essas pessoas de sua terra natal. Elas retinham em sua bagagem cultural fortes vínculos com a Itália e suas tradições, embora estivessem desiludidas quanto a um retorno. Os imigrantes tiveram de negociar com a cultura brasileira, sem a assimilar completamente, e sem perderem suas identidades italianas. Permaneceram dispersos, dialogando com várias culturas, sem que elas viessem a se unificar. Essa cultura híbrida, nova, os tornava “homens traduzidos”, entendido no sentido de “transportar entre fronteiras” (BHABHA, 1998). Eles tinham de aprender a habitar com várias identidades, a falar duas ou mais linguagens culturais, a traduzir e negociar entre elas. Como cultura híbrida, revela a pluralização da cultura e da identidade nacional brasileira. A homogeneidade pretendida era apenas um sonho que nunca se configurou no real.
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Cartas pastorais
PASTORAL COLETIVA dos Senhores Arcebispos das Províncias Eclesiásticas de São Sebastião do Rio de Janeiro, Mariana, São Paulo, Cuyabá e Porto Alegre. Rio de Janeiro: Martins de Araújo & Cia., 1915.
PELA Pátria, Dom Miguel de Lima Valverde, por mercê de Deus e da Santa Sé Apostólica, Bispo de Santa Maria. Boletim Mensal da Diocese de Santa Maria, Porto Alegre, v. 5, n. 11-12, p. 161-166, nov./ dez. 1917.
Entrevistas
Entrevista com o Pe. Luiz Sponchiado, Nova Palma, 30 de mar. 1991.
Publicações periódicas
Boletim mensal da Diocese de Santa Maria, Santa Maria (1912-1930).
Diário do Interior Santa Maria (1914- 1928).
Endereço para correspondência
E-mail: jerrimarin@bol.com.br
Recebido em 04/08/2006
Aceito em 25/09/2006
* UFGD – Universidade Federal da Grande Dourados
1 Atualmente a região compreende os seguintes municípios: Silveira Martins, Ivorá, Nova Palma, Dona Francisca, Faxinal do Soturno e São João do Polêsine
2 Refere-se aos imigrantes dedicados às atividades agrícolas
3 CPG-NP, doc. 2 do dezembro de 1884
4 Depoimento de Luis Sponchiado. Nova Palma, 30 março de 1991
5 ABM-IHG-RS, doc. 2933, 7 de dezembro de 1945 de 1991
6 ABM-IHG-RS, doc. 07945, 10 de setembro de 1913
7 CPG-NP, doc. 9 de março de 1890
8 CPG-NP, doc. 9 de março de 1890
9 CPG-NP, doc. 13 de março de 1890
10 ABM-IHG-RS, doc. 08106, Anexo 3, 15 de setembro de 1895
11 O subintendente tinha como auxiliares os chefes de seção e os agentes de segurança
12 ABM-IHG-RS, doc. 02860, 12 de fevereiro de 1905
13 ABM-IHG-RS, doc. 8022, 23 de março de 1915
14 ABM-IHG-RS, doc. 8011, 2 de fevereiro de 1915
15 ABM-IHG-RS, doc. 08123, 16 de fevereiro de 1925
16 ABM-IHG-RS, doc. 7806- 3, 2 de agosto de 1905, doc. 7998, 3 de janeiro de 1915; doc. 0981, 6 de agosto de 1915
17 ABM-IHG-RS, doc. 8139, 25 de junho de 1927
18 ABM-IHG-RS, doc. 8106, 15 de outubro de 1919
19 Foram substituídos, devido ao envolvimento em conflitos e irregularidades administrativas, entre 1905 e 1919, os seguintes funcionários: Pimenta do Carmo, Pimenta do Carmo Pinto, Arnaldo Silva, Manuel Marques da Rocha. Foram processados, nesse mesmo período, Virgílio Brazil, João Inácio de Souza, Felipe Mena Barreto e Otávio Ribeiro. ABM-IHGRS, doc. 8106, 15 de outubro de 1919
20 ABM-IHG-RS, doc. 02896, 25 de setembro de 1906
21 ABM-IHG-RS, doc. 07863, 9 de novembro de 1906; doc. 7974, 29 de abril de 1914
22 ABM-IHG-RS, doc. 0647, 23 de agosto de 1903, doc. 07998, 31 de janeiro de 1915
23 O serviço militar tornou-se obrigatório a partir de 23 de fevereiro de 1915
24 ABM-IHG-RS, doc. 8061, 12 de maio de 1917
25 ABM-IHG-RS, doc. 02844, 1 de julho de 1904
26 ABM-IHG-RS, doc. 02841, 10 de junho de 1904
27 ABM-IHG-RS, doc. 0039, 4 de dezembro de 1915
28 ABM-IHG-RS, doc. 0679, 20 de agosto de 1904
29 ABM-IHG-RS, doc. 0869, 27 de agosto de 1913
30 ABM-IHG-RS, doc. 08130, 19 de fevereiro de 1926
31 ABM-IHG-RS, códice 50 RS, 17 de setembro de 1890
32 Os Tiros de Guerra e as Escolas de Instrução Militar foram criados pelo Ministério da Guerra em todo o território nacional em 1918 e extintos pela portaria 8747, de 31 de outubro de 1945
33 CPG-NP, documentação referente ao ano de 1918
34 ABM-IHG-RS, doc. 0635, 7 de novembro de 1895
35 CPG-NP, doc. 16 de outubro de 1899
36 CPG-NP, doc. 25 de novembro de 1898
37 ABM-IHG-RS, doc. 0635, 7 de novembro de 1898
38 CPG-NP, doc. 25 de novembro de 1898
39 CPG-NP, doc. 7 de novem- bro de 1898
40 ABM-IHG-RS, doc. 08136, 9 de março de 1926
41 CPG-NP, doc. 16 de outubro de 1899
42 Refiro-me ao artigo de Pietro Azzi, publicado em 23 de novembro de 1900, com o título “Justas Aspirações”
43 ABM-IHG-RS, doc. 2880, 10 de junho de 1906; doc. 0672, de 21 de julho de 1904, doc. 2926, 27 de janeiro de 1922
44 ABM-IHG-RS, doc. 08007, 27 de janeiro de 1915
45 ABM-IHG-RS, doc. 08037, 23 de novembro de 1915
46 ABM-IHG-RS, doc. 02867, 2 de junho de 1905
47 ABM-IHG-RS, doc. 02840, 1 de junho de 1904
48 CPG-NP, doc. 27 de janeiro de 1927
49 Eram auxílios nas épocas de seca, ataque de insetos. Em 1904, Borges de Medeiros doou à Igreja o direito de propriedade de vários lotes para construção de igrejas e de casas paroquiais
50 ABM-IHG-RS, doc. 07862- 6, 7 de novembro de 1922 e doc. 0647, de 23 de agosto de 1903
51 ABM-IHG-RS, doc. 2926, 27 de janeiro de 1922
52 CPG-NP, doc. 17 de setembro de 1890
53 ABM-IHG-RS, Anexo 8011, 31 de janeiro de 1915
54 ABM-IHG-RS, Anexo 8011, 31 de janeiro de 1915
55 Estatutos da Liga Cívica Republicana de Silveira Martins, s/p.
56 Pastoral Coletiva dos Senhores Arcebispos das Províncias Eclesiásticas de São Sebastião do Rio de Janeiro, Mariana, São Paulo, Cuyabá e Porto Alegre. Título V - Costumes do povo, Cap. I - Vida Cristão em Geral, Art. 1468, p. 367
57 Idem, Art. 1591-1592, p. 404
58 Iem, Art. 1593, p. 404
59 Pastoral Coletiva de 1915. Título V - Costumes do povo, Cap. X - Associações Catholicas etc., Art. 1596, p. 405- 406
60 ABM-IHG-RS, doc. 2933, 7 de dezembro de 1945
61 CPG-NP, doc. 9 de janeiro de 1926
62 CPG-NP, doc. 9 de janeiro de 1921
63 Pela Pátria. Carta Pastoral de D. Miguel de Lima Valverde. Boletim Mensal da Diocese de Santa Maria, 5 (11- 12), p. 165
64 ABM–IGH-RS, doc. 8062, 17 de maio de 1917
65 Pela Pátria. Carta Pastoral de D. Miguel de Lima Valverde. Boletim Mensal da Diocese de Santa Maria, 5 (11-12), p. 165
66 PELA Pátria, Dom Miguel de Lima Valverde, por mercê de Deus e da Santa Sé Apostólica, Bispo de Santa Maria. Boletim Mensal da Diocese de Santa Maria, p. 161-166
67 Palavras episcopais. Boletim Mensal da Diocese de Santa Maria, n. 3, março, 1918, p. 47
68 Idem, p. 67
69 Idem, p. 66
70 A PARÓQUIA de Ivorá no seu jubileu de prata: 1918- 1943, p. 67
71 CPG-NP, doc. 7 de setembro de 1922
72 Idem.
73 De Silveira Martins. Diário do Interior. Santa Maria, 24 de maio de 1928
74 CPG-NP, doc. 19 de maio de 1928