SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número20Subjetividad: the interpretation of radical behaviorismEntrevista com Yves Clot índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

artigo

Indicadores

Compartilhar


Psicologia da Educação

versão impressa ISSN 1414-6975versão On-line ISSN 2175-3520

Psicologia da educação  n.20 São Paulo jun. 2005

 

AMPLIANDO

 

Pós-modernidade, educação e pesquisa: confrontos e dilemas no início de um novo século

 

Post-modernity, education and research: conflicts and dilemmas at the beginning of a new century

 

Posmodernidad, educación e investigación: confrontos y dilemas en el comienzo de un nuevo siglo

 

 

Bernardete Angelina Gatti

Fundação Carlos Chagas
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


A compreensão dos processos educacionais, seja em sistemas, seja nas escolas ou nas salas de aula, representa um desafio aos estudiosos da educação, e isso tem demandado que se saia das dispersas e padronizadas representações cotidianas sobre esses processos e se adentre em um movimento investigativo questionador desse objeto em seu contexto. Para essa compreensão, não há como se furtar ao confronto com as críticas emanadas do movimento histórico-cultural que se interroga sobre a modernidade e sua possível superação: a constituição do espaço que viria a ser o da pós-modernidade. Aqui, muitos dilemas se colocam à reflexão do educador e do pesquisador.

O emprego dos termos pós-modernidade e pós-moderno não encontra consenso entre os que se preocupam com a compreensão do momento histórico contemporâneo, em suas diferentes manifestações. A discussão sobre essa questão intensificou-se a partir da segunda metade do século passado. O século XX construiu caminhos históricos da sociedade e de seus conhecimentos que acabaram por problematizar as grandes utopias e os modelos de análise produzidos nos séculos anteriores - na chamada era da modernidade. Os caminhos das ciências também foram revolucionados nesse século por novas formas de lidar com as teorizações e as linguagens. A evidência dos novos fatos socioculturais levou alguns estudiosos a caracterizá-los como pós-modernos, instalando-se uma polêmica sobre o fim da modernidade. Além disso, argumenta-se que esses eventos tratados como novos não o são em essência, estando eles ainda sob a regência da modernidade, colocando-se esta como um período histórico-cultural e científico que ainda não acabou. De qualquer modo, não se pode falar em pós-modernidade sem fazer um contraponto com a modernidade. A modernidade veio no bojo de uma cultura na qual se quebram os vínculos metafísicos que explicavam o homem e o mundo, tornando-se a razão a fonte da produção dos saberes, da ciência, ancorada Psic. da Ed., São Paulo, 20, 1º sem. de 2005, pp. 139-151

De qualquer modo, não se pode falar em pós-modernidade sem fazer um contraponto com a modernidade. A modernidade veio no bojo de uma cultura na qual se quebram os vínculos metafísicos que explicavam o homem e o mundo, tornando-se a razão a fonte da produção dos saberes, da ciência, ancorada em critérios de objetividade, distanciando-se dos objetos ou dos poderes transcendentais, religiosos ou metafísicos. Também, o sujeito, o eu, passa a ser considerado como um sujeito empírico, objeto entre outros objetos do mundo real, mas que se constitui simultaneamente como condição fundamental de qualquer experiência possível e da sua análise (Goergen, 1996, p. 16). O realce da subjetividade traz a liberação para que o homem se sirva de seu próprio entendimento - a sua razão - para, conscientemente, criar normas de pensar e agir livres de fundamentos em argumentos transcendentes. Com isto, a moder- nidade abre-se para o futuro e gera a condição de se pensar e produzir "progresso". Essas características da modernidade não se põem apenas nos ambientes científicos ou filosóficos, elas pervasam toda a sociedade. A modernidade caracteriza-se como a era da racionalidade, a qual fundamenta não só o conhecimento científico como as relações sociais, as relações de trabalho, a vida social, a própria arte, a ética, a moral. Além disso, cria condições de verdade que enclau- suram a própria razão e que geram formas de poder e homogeneizam contextos e pessoas, impondo-se como instrumento de controle (Habermas, 1990). Críticas abrem-se contra essa razão que se põe como absoluta e objetivada, razão que, nas palavras de Goergen (1996, p. 22),

(...) se anunciara como caminho seguro para a autonomia e liberdade do homem, revelar-se-ia, ao final, o mais radical e insensível inimigo do homem por transformá-lo em objeto a serviço dos ditames da performatividade científico-tecnológica. A eficiência alçada ao nível de norma suprema da razão impôs o abandono dos ideais e fins humanos.

As técnicas e a tecnologia assumem papel de destaque. Busca-se o que funciona bem, sendo a ciência positivada sua base. A homogeneidade é o ideal de referência, e com isso aplainam-se as diferenças, em favor de um geral e um universal abstratos. Porém, instala-se na modernidade uma crise, uma contradição histórica que se traduz nas rupturas trazidas, quer pelas formas cotidianas do existir, fazendo emergir a necessidade de consideração das heterogeneidades, das diferenças, das desigualdades gritantes, quer pelas fissuras lógicas nas ciências. Sem dúvida, há uma inquietação instalada, que, para os analistas, tomam sentidos diferentes e para a qual se propõem respostas diferentes.

Habermas (1990), partindo do pressuposto de que a modernidade não foi superada, argumenta que dentro das próprias condições instauradas pela modernidade é possível avançar, sair dessa camisa de força de uma racionalidade fechada, por meio do uso do que chama de "razão comunicacional", uma razão dialógica, no lugar da razão auto-referente, trazendo a idéia de uma teoria da ação comunicativa. Segundo ele, se entendermos o saber "como transmitido de forma comunicacional, a racionalidade limita-se à capacidade de participantes responsáveis em interações de se orientarem em relação a exigências de validade que assentam sobre o reconhecimento intersubjetivo" (p. 289). Muda o centro de referência, instaurando-se uma racionalidade que implica uma consciência reflexiva das expressões humanas, uma racionalidade dialógica, criando no diálogo os pontos de apoio de sua validade. Isto pressuporia a diferenciação clara do mundo dos fatos objetivos, do mundo das normas sociais e do mundo da experiência interior. A noção habermasiana de racionalidade comunicativa, segundo Wellmer (1991, p. 92), refletiria a condição cognitiva e moral dos humanos num mundo "desencantado". É por isso, ainda segundo esse autor, que Habermas pode pensar a ação comunicativa como portadora potencial de uma racionalidade diferenciada que só pode se manifestar depois que se tenha destruído o dogmatismo implícito das concepções de mundo tradicionais, e na qual os requisitos de validade possam ser construídos pela argumentação, pelo confronto de diferentes posições, na procura de consensos aceitáveis. A argumentação como meio de se obter consenso intersubjetivo assume um papel fundamental, quando ela e as formas de ação comunicativa substituem outros meios de coordenação de ações, de integração social e de reprodução simbólica, constituindo o que Habermas denomina "racionalização comunicativa".

Como se põe, então, a discussão do pós-moderno? Assim como os que postulam a continuidade da modernidade nos tempos atuais, a posição dos que postulam o contrário - seu fim - emerge da crise nos estatutos da própria modernidade. O termo pós-modernidade tem se mostrado polissêmico, sendo utilizado no mais das vezes de modo genérico. De qualquer forma, denota o que vem depois da modernidade, sendo problemático seu sentido, justamente por tentar traduzir um movimento da cultura em sociedades em rápida mutação, movimento que ainda está se produzindo, não se distinguindo consolidações que ajudem a qualificá-lo melhor. Pós-moderno designaria uma ruptura com as características do período moderno, o que, como já colocamos, para muitos analistas ainda não aconteceu de modo claro. Pode-se adotar a posição de que estamos vivendo a transição para a pós-modernidade e que os sinais, as ten- dências verificáveis, traduzem caminhos mais do que posições consolidadas.

Na expressão de Rouanet (1987, p. 230) a polissemia desse conceito é devida ao fato de que ele reflete "um estado de espírito, mais do que uma realidade já cristalizada."

No entanto, o termo tem sido usado cada vez com maior freqüência e vem sendo empregado para traduzir a posição do saber nas sociedades mais desenvolvidas, posição que se delineia nos cenários atuais, cibernético- informáticos, informacionais e comunicacionais. Conforme Lyotard (1993, p. XV), designa-se com essa expressão "o estado da cultura após as transformações que afetaram as regras dos jogos da ciência, da literatura e das artes". Ou seja, a expressão tenta traduzir as mudanças de estatuto dos saberes que se processam ao mesmo tempo que as sociedades entram na idade dita pós-industrial. Aqui já se coloca uma perspectiva que está deixando a era da modernidade no passado. Para Lyotard (ibid., p. 3), essas mudanças fizeram-se mais presentes e intensas a partir do final dos anos 1950, quando a Europa completou sua reconstrução, tendo sido mais ou menos rápidas conforme o país, e, mesmo dentro dos países, variou conforme o setor de atividade. Isto se traduz em uma assincronia geral, que torna complexo o quadro desse conjunto.

Alguns pontos característicos da pós-modernidade foram sintetizados por Azevedo (1993). O primeiro ponto é que a pós-modernidade surge, como já colocamos, pela invalidação histórica e cultural das grandes análises e seus decorrentes relatos de emancipação. As amplas visões filosóficas, políticas ou religiosas típicas da modernidade, que pretendiam tornar aceitáveis normas unicistas, pelas quais deveriam se reger as coletividades, a ciência, o progresso, dando uma visão integrada, explicativa de eventos e fatos, passam a ser consideradas apenas como narrações estilizadas e não como visões objetivas da realidade. A uniformização que impõem, a sua pretensão a uma objetividade universal, e suas decorrentes promessas de salvação para indivíduos e grupos, foram desqualificadas pelos eventos históricos, pelos totalitarismos, pela dizimação de populações, pelas coletivizações agressivas, restritivas e pauperizantes. Os sonhos de alcance universal foram abalados e as posturas pós-modernas desqualificam essas narrativas, essas visões amplas, colocando os contextos locais, com suas singularidades e particularidades próprias "como fontes de resistência a toda pretensão moderna e hegemônica de uma cultura universal" (Azevedo, 1993, p. 29). Instala-se uma grande suspeita quanto às idéias da modernidade, pela falência das utopias criadas _ seja como explicações científicas do real, seja como proposições salvadoras _ e não realizadas no cotidiano da cultura e da sociedade modernas. O desejo de escapar a um mundo duro e de cuja transformação não se tem esperança, exacerba a individuação, a fuga da realidade, a falta de ideais partilháveis, a afirmação da falta de sentido da vida. Há um "esvaziamento cético de palavras emblemáticas como liberdade, justiça, solidariedade" (id., ibid., p. 30). Na pós-modernidade, só permanecem no horizonte como passíveis de melhoria as relações interpessoais próximas.

Outro aspecto é que, na pós-modernidade, emerge a ruptura dos grandes modelos epistemológicos, com suas pretensões de verdade, objetividade e universalidade, ruptura essa que se faz pela via da idéia "da indeterminação, da descontinuidade, do pluralismo teórico e ético, da proliferação de modelos e projetos" (id., ibid., p. 31). Os caminhos buscados pelas ciências afirmam esse posicionamento. O determinismo das leis da natureza, como coloca Prigogine (1996, pp. 26-27), foi posto em questão. Esse modelo, em suas palavras,

(...) teve um imenso sucesso. A explicação de qualquer fenômeno natural, em termos de leis deterministas, parecia estar à disposição e, uma vez que contássemos com essas leis básicas, daí derivaria todo o resto (a vida, nossa consciência humana) por simples dedução. Com isso, as leis é que existem, não os eventos.

A descoberta das instabilidades em vários sistemas, o uso do conceito de caos, de probabilidade, a consideração da irreversibilidade do tempo, entre tantas mutações em conceitos antes formulados como certezas, colocam uma nova perspectiva da natureza. As diferenciações sócio-humanas também emergem como fatos e, assim, a variabilidade humana, as heterogeneidades e não as unicidades são enfatizadas. Morin (1996, pp. 46-47), considerando as proposições da modernidade, da cientificidade clássica, que penetraram nas ciências sociais e humanas, lembra, por exemplo, que na psicologia o sujeito foi substituído por estímulos, respostas, comportamentos; na história também retirou-se o sujeito, "eliminaram-se as decisões, as personalidade, para só ver determinismos sociais. Expulsou-se o sujeito da antropologia, para só ver estruturas, e ele também foi expulso da sociologia". A consideração da existência do sujeito, sua reposição nas ciências humano-sociais que vem se processando sob variadas formas, trouxe a implicação necessária de se considerar o princípio da incerteza nas vidas e na história humanas.

Uma última característica seria que a era pós-moderna "minimiza o sentido emancipador da história que o moderno dá ao homem, através dos mitos do progresso, da salvação e da construção da própria história. Não é negado este sentido, mas sua unicidade" (Azevedo, 1993, p. 91). Com a intensificação da fragmentação da realidade social e cultural desencadeada pelas tecnologias, pela comunicação de massa, pela informação intensa, instantânea e rasa, sem reflexão, resvala-se para uma multiplicidade de sentidos sem sentido e para a perda de referências mais sólidas, estas se substituindo em avalanches marqueteiras ou midiáticas. Conforme Moraes (2000, p. 212), estamos passando "por uma nova era quando a produção da cultura tornou-se integrada à produção de mercadorias em geral: a frenética urgência de produzir bens com aparência cada vez mais nova". O impacto instantâneo prevalece sobre os significados e a falta de profundidade de grande parte da produção cultural atual é posta em evidência (Jameson, 1996).

Azevedo (1993, p. 32) conclui suas colocações sobre a pós-modernidade afirmando que, num sentido negativo, ela traz "um estilo de pensamento desencantado da razão moderna e dos conceitos a ela vinculados", vendo na modernidade os "riscos de coerção, totalitarismo, desenvolvimento competitivo e funcionalista"; de outro lado, num sentido positivo, a pós-modernidade traz uma nova forma de racionalidade, "pluralista e fruitiva", longe de pretensões universalistas. Santos (1991), com um olhar em fatos sociais, arrola pontos de oposição na vida social entre o modernismo e o pós-modernismo, sinalizando alterações significativas e alguns indícios. No modernismo, aponta: o motor a explosão, a fábrica, objetos, sociedade de consumo, notícia, luta política, subje- tivismo, unidade. No pós-modernismo: o chip, signos, shopping, espetáculo, simulacros do real, atuação na micrologia cotidiana, ecletismo, pluralidade, egocentrismo narcisista.

Pontuadas essas questões em torno da modernidade/pós-modernidade, a posição que assumimos na discussão do tema proposto para este texto é a da transição: não saímos totalmente das asas da modernidade e nem estamos integralmente em outra era. Ou, como pondera Goergen (1997, p. 63): "Moder- nidade e pós-modernidade não se encontram numa relação de superação de uma pela outra, mas numa relação dialética". Mas isto, como aponta Terrén (1999, p. 12), não elimina a ocorrência de fato da deslegitimação das instituições da modernidade e a transição instalada traz questões sobre a legitimidade dos símbolos, das identidades e das interpretações construídas ao longo da modernidade e, conseqüentemente, de seu discurso educacional. Esse evento cria vazios culturais, éticos e representacionais, nas relações de trabalho, que podem/são ocupados por doutrinas econômico-sociais ou religiosas cujos impactos são incertos e causam tensões. As incertezas e as ambivalências sócio-econômico- culturais e institucionais deixam margem a um non sense. Assinalamos, também, que, para o conhecimento nas ciências, o que resta como fato é que existe uma crise no conceito de razão e nas formas de abordagem da natureza, do homem e da cultura.

Na reflexão educacional, algumas perplexidades se colocam diante de uma história social que se vem construindo nas condições colocadas acima. Moraes (2000, p. 215), considerando esse mundo socioeconômico e cultural peculiar, indaga:

(...) que espécie de currículo deveremos ter na escola para enfrentar esse desafio? De quais características da modernidade, e do currículo moderno, deveremos livrar-nos a fim de fazer com que a escola consiga se alinhar aos novos tempos? O que conservar? Quais modismos evitar?... Quais valores, práticas e identidades são, em princípio, dignos de respeito e porquê?

A multiplicação e a fragmentação dos conhecimentos rebate na educação, mas os currículos encontram ainda boa sustentação no discurso científico da modernidade, com seus conhecimentos tomados como um saber objetivo, indiscutível. Além disso, o volume e a constante mudança em conhecimentos e áreas de saber traz para os currículos escolares uma obsolescência que os expõe à crítica de vários setores sociais. Conforme sinaliza Subirats (2000, p. 201), a resposta do sistema educacional tem sido a de multiplicar as matérias, o que é "uma aposta perdida de antemão, já que o crescimento exponencial dos saberes torna totalmente impossível sua aquisição em uma determinada etapa da vida". Esta situação cria, segundo essa autora, a distinção espontânea entre

(...) aquilo que é preciso saber para ser aprovado, que se aprende na escola e não se usa para mais nada, e aquilo que é preciso saber para viver, que, em geral, aprende-se pela televisão, cada dia menos controlável pela população e mais inclinada ao despropósito como meio de chamar a atenção.

É preciso considerar então que, se o discurso científico é uma referência fixa para as matérias curriculares,

 

(...) ao contrário, não existem referências fixas no que se refere aos valores e aos comportamentos morais, que hoje entendemos basicamente como fatos opináveis, contingentes e discutíveis, pouco aptos, portanto, para uma transmissão sistemática e apoiada em um saber profissional. (Id., ibid., p. 203)

Essas assincronias aguardam melhor problematização. O debate acha-se colocado, as dissonâncias entre escola-comunidades-instituições-sociedade também. Como investigar essas questões? Uma nova gestalt é necessária para novos modos de questionar a realidade, os processos sócio-educativos, e para a condução de pesquisas que nos aproximem de compreensões mais adequadas desses processos, das decalagens e disrupturas.

A corrida mundial em busca de novos currículos educacionais e de uma formação ao mesmo tempo polivalente e diversificada de professores, as propostas de transversalidade de conhecimento em temas polêmicos mostram que a área educacional encontra-se no meio desse movimento em busca de alternativas formativas.

A passagem de uma sociedade industrial para uma sociedade da informação, de uma sociedade segura para uma sociedade plural e instável gerou crises. No capitalismo informacional instaurado, "as desigualdades não se configuram em simples estrutura de um centro e de uma periferia, mas como múltiplos centros e diversas periferias, tanto em nível mundial como local" (Moraes, 2000, p. 212). Nesta sociedade informático-cibernética, a educação é chamada a priorizar o domínio de certas habilidades a ela relacionadas e os que não pos- suem as habilidades para tratar a informação ou não têm os conhecimentos que a rede valoriza ficam totalmente excluídos. Fossos e diferenciações entre grupos humanos estão abertos. Então, "A crise surge pela inexistência de uma única forma de vida e pensamento, porque as tradições têm que se explicar e porque a informação não é um terreno restrito aos especialistas" (Flecha e Tortajada, 2000, pp. 24-25). Crise designa um período de dificuldades, sinaliza uma ruptura de equilíbrio em um contexto, seja ele social, individual, cultural, econômico. Ela incorpora aspectos positivos e negativos que nos movimentos so- ciais-históricos se entrechocam. As ações educacionais estão entre propiciar a transformação ou exacerbar a exclusão.

Cabe observar, no entanto, que, nos sistemas mais institucionalizados, a razão da modernidade continua a marcar presença, dentre eles os sistemas educacionais. Nos sistemas educacionais, de um lado, temos um conjunto de conhecimentos estruturados em verdades que são propostos como necessários às novas gerações, ao lado de normas e hábitos institucionalizados, formatados na modernidade, e, de outro, o cotidiano das escolas com seu burburinho interno, pessoas com pessoas buscando formas de entendimento mútuo e alternativas de comportamentos, gestando linguagens, ajustando lógicas diferentes. A um observador não atento às diferenças ou às trincas, rupturas e buscas que se processam nesse cotidiano, o que aparece _ e isso se observa na maioria dos relatos da pesquisa em educação _ é uma espécie de unicidade técnica abstrata com uma rotina massacrante. Isto está posto também na realidade escolar, porém sua apresentação como face única das salas de aula pela descrição das atividades dos professores como apenas uma atividade instrumental, de ensino de soluções e dicas, de algoritmos e técnicas, não deixa entrever a multiplicidade de ocorrências próprias dos cotidianos de pessoas em relação _ no caso, uma relação pedagógica com determinadas intencionalidades, em ambientes culturais heterogêneos. A vôo de águia pode parecer que essas descrições do caráter instrumental das ações dos docentes explica plenamente a relação educativa hoje _ esta é uma visão da modernidade _, mas a pesquisa educacional recente vem se debruçando com outros olhares no espaço escolar, vem mergulhando aí com outras posturas, disposições e valores, trazendo maiores nuances sobre a lida cotidiana de professores e alunos, questionando se este "instrumental" é tão instrumental assim, tão técnico ou tão cientificamente referenciado. Com isto se faz emergirem idiossincrasias, humores, linguagens e códigos, símbolos novos, trocas inusitadas. Rotina e rupturas, normas externas e consensos intra- grupos, imposição e negociação, lição e interpretação, código culto geral e códigos locais marcam presença nas relações escolares, construindo-se alternativas de convivência e aprendizagens não tão padronizadas. Está-se falando aqui de milhões de pessoas _ crianças, jovens, adultos _, em milhares de escolas e salas de aula, criando modos de ser e entender o seu mundo e o mundo em geral de modos diversificados. Entendimentos, compreensões, construídos na impondera- bilidade. Controles e cercas, balizas normativas e currículos atuam até certo ponto nesses espaços. O que nele se gesta? É esse tipo de questão que vem sendo colocada nos estudos em educação, mais recentemente. Rompendo com determinismos e grandes modelos explicativos, buscam-se novas formas de compreensão do real, onde o diferente e o divergente se instalam. Por mais que tentemos homogeneizar as escolas e a vida escolar, a ela são levados hábitos sociais diferenciados, múltiplas etnias, culturas específicas, representações parcelares, situações sociais díspares, pronúncias diferentes, linguajares grupais, valores heterogêneos, etc. Será que a escola, com seus ritos tão bem descritos pelas pesquisas, sob a égide da compreensão moderna, sufoca tudo isso, homogeneizando crianças e jovens como produtos industriais, ou nelas se passam outras mediações não tão acomodadoras e padronizadoras assim? Quais movimentos podemos distinguir nas escolas? Há metamorfoses a procurar para além dos ritos e das explicações já dadas em abstratos modelos interpretativos do processo educacional? Como estão se constituindo os sujeitos, como cidadãos, que nesse processo estão envolvidos? As respostas estão mesmo dadas pelas grandes teorias vigentes? A visão determinista que se encontra em muitos estudos quer nos fazer crer em relações e resultados fixados por categorias bem definidas, segundo princípios lógicos pré-definidos. Até onde essas análises mantêm sua validade?

Lingard et alii (1998, p. 85), discutindo, por exemplo, a pesquisa em avaliação educacional, argumentam que os novos tempos demandam uma reconceitualização dos efeitos, produtos e funções da escolarização, lembrando que estes termos mesmos são artefatos de uma era industrial. Afirmam que, para compreender a significação sociopolítica da escola e mudar a redundância das pesquisas sobre a eficiência da escola, a própria pesquisa educacional precisa ser reconectada à real função da escola na produção de igualdades/desigualdades em vários contextos, pondo-se em questão o "valor" dos indicadores tradicionais, problematizando-os em cortes sócio-demográficos-culturais. Com isso, poderia distanciar-se do modo tautológico utilizado até aqui, o qual só reforça as hipóteses educacionais da era industrial: produtividade/eficiência/uniformidade. Esses autores colocam, ainda, que há muitas mudanças ocorrendo nos espaços escolares em sua conexão com as comunidades em que se situam e com aspectos mais amplos de uma sociedade informático-comunicacional, as quais não podem ser avaliadas simplesmente pela focalização nesses elementos da modernidade, porque "as escolas respondem a outras pressões além daquelas propostas e esperadas pelo estado". Citam Ball (1994, p. 11), dizendo que esse autor focaliza isso quando observa que: "Política enquanto prática é `criada' em uma relação trialética entre dominância, resistência e caos/liberdade". As escolas estão involucradas em outros espaços para além da relação binária dominação/resistência, como é sugerido na literatura sobre políticas educacionais. Há muito mais vida nas escolas e nas salas de aula para além dessa relação binária, como outros interesses, preocupações, necessidades, demandas, pressões, objetivos e desejos. Por isso a emergência da necessidade na pesquisa em avaliação de rever seus conceitos de efeitos e impactos.

As questões que a contemporaneidade coloca à pesquisa educacional, portanto, são muitas. A forma de proposição dessas questões vem mudando, especialmente pelo esgotamento das análises que não acrescentam conhecimento e patinam numa repetição de jargões e padrões já exauridos. Emerge uma ânsia de compreender processos e situações que, para o pesquisador atento e crítico, estão à margem ou para além do usual modelo de explicações e grandes cate- gorias já dadas, as quais não mais dão conta da realidade, dos desencaixes do teorizado e do que sucede, em que despontam as insuficiências de fórmulas aprendidas. Mas essa percepção demanda a libertação de modelos interpretativos erigidos em verdades inquestionáveis e de formas e lógicas tomadas como definitivas e últimas.

A educação está imersa na cultura e não apenas vinculada às ciências, que foram tomadas na modernidade como as únicas fontes válidas de formação e como que podendo oferecer tecnologias de ensino eficientes. A educação coloca-se, no seu modo de existir no social, em ambientes escolares e similares, organizada em torno de processos de construção e utilização dos significados que conectam o homem com a cultura onde se insere e suas imagens, com significados gerais, locais e particulares, ou seja, com significados que se fazem públicos e compartilhados, mas cujo sentido se cria nas relações que medeiam seu modo de estar nos ambientes e com as pessoas. Transversalmente a isto, temos as mídias, as normas, as crenças, os valores extrínsecos. Há surpresas nesses meandros da história vivida, e, como coloca Bruner (1998), essas surpresas são importantes, pois provocam a reflexão sobre aquilo que damos por certo e evidente, ou seja, ela é uma reação impulsionada pela ruptura de uma certeza. O pesquisador precisa colocar-se a possibilidade de surpreender-se, se não, por que pesquisar? Num período transicional, onde estruturações e desestruturações, normatizações e transgressões se imbricam dialeticamente, à pesquisa em educação se colocam desafios consideráveis para a compreensão das tecituras das relações no ensinar e no aprender, na heterogeneidade contextual onde essas tecituras se fazem. Ainda, a própria compreensão da educação como propósito social e seu estatuto institucional requerem interrogações que transcendem sua modelagem por teorias ou filosofias que narram um real cada vez menos real.

 

Referências

Azevedo, M. de C. (1993). Não moderno, moderno e pós-moderno. Revista de Educação AEC, ano 22, n. 89, out./dez., pp. 19-35. Brasília.         [ Links ]

Ball, S. (1994). Education Reform: a critical and post-structural approach. Buckingham, Open University Press.         [ Links ]

Bruner, J. (1991). Actos de significado: más allá de la revolución cognitiva. Madrid, Alianza Editorial.         [ Links ]

Flecha, R. e Tortajada, I. (2000). "Desafios e saídas educativas na entrada do século". In: Imbernon, F. A educação no século XXI: os desafios do futuro imediato. Porto Alegre, Artmed.         [ Links ]

Goergen, P. L. (1996). A crítica da modernidade e Educação. Pro-posições. Revista Quadrimestral da Faculdade de Educação da Unicamp, v. 7, n. 2[20], jul., pp. 5-28.        [ Links ]

______ (1997). A avaliação universitária na perspectiva da pós-modernidade. Avaliação: Revista da Rede de Avaliação Institucional da Educação Superior, v. 2, n. 3, set., pp. 53-65.         [ Links ]

Habermas, J. (1990). Discurso filosófico da modernidade. Lisboa, Dom Quixote.        [ Links ]

Jameson, F. (1996). Pós-Modernismo _ A lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo, Ática.         [ Links ]

Lingard, B. et alii. (1998). "School effects in Postmodern conditions". In: Slee, R.; Weiner, G. e Tomlinson, S. (ed). School Effectiveness for Whom? Challenges to the school effectiveness and school improvement movements. Londres, Falmer Press.         [ Links ]

Lyotard, J.-F. (1993). O pós-moderno. 4 ed. Rio de Janeiro, José Olympio.         [ Links ]

Moraes, S. E. (2000). "Currículo, transversalidade e pós-modernidade". In: Santos Filho, J. C. dos (org). Escola e universidade na pós-modernidade. São Paulo, Mercado das Letras.         [ Links ]

Morin, E. (1996). "A noção de sujeito". In: Schnitman, D. F. (org.). Novos paradigmas, cultura e subjetividade. Porto Alegre, Artes Médicas.         [ Links ]

Prigogine, I. (1996). "O fim da ciência?" In: Schnitman, D. F. (org.). Novos paradigmas, cultura e subjetividade. Porto Alegre, Artes Médicas.         [ Links ]

Rouanet, S. P. (1987). As razões do iluminismo. 5 ed. São Paulo, Companhia das Letras.         [ Links ]

Santos, J. F. dos. (1991). O que é pós-modernismo. São Paulo, Brasiliense.         [ Links ]

Subirats, M. (2000). "A educação do século XXI: a urgência de uma educação moral". In: Imbernon, F. A educação no século XXI: os desafios do futuro imediato. Porto Alegre, Artmed.        [ Links ]

Terrén, E. (1999). Postmodernidad, legitimidad y educación. Educação e Sociedade, v. 20, n. 67, ago., pp. 11-47.         [ Links ]

Wellmer, A. (1991). "Razón, utopia, y la dialéctica de la ilustración". In: Guiddens, A. et alii. Habermas y la modernidad. Madrid, Ediciones Cátedra.         [ Links ]

 

Endereço para correspondência
Bernardete Angelina Gatti
Fundação Carlos Chagas
Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação da PUC-SP
E-mail: gatti@fcc.org.br

 

Recebido em março de 2005
Aprovado em abril de 2005

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons