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Psicologia da Educação
versão impressa ISSN 1414-6975
Psicol. educ. no.31 São Paulo ago. 2010
A realidade social e os desafios para a pesquisa em educação*
Social reality and research challenges in education
La realidad social y los desafíos para la investigación en educación
Sandra Aparecida Riscal
Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de São Carlos - UFSCar. E-mail: riscal@ufscar.br
RESUMO
O tema deste artigo é a realidade social e os desafios para a pesquisa em Educação e seu objetivo são as implicações que a cada vez maior tecnicização e racionalização das atividades educativas. A crescente inserção de uma prática social racionalizada, voltada para a eficiência e eficácia vem se institucionalizando, formando, informando e reformando toda a esfera social. O resultado disso são instituições escolares, desde o nível da educação infantil à universitária, normatizadas, reguladas, institucionalizadas que tornam mais difíceis as possibilidades de constituição de novas práticas educativas.
Palavras-chave: Racionalização das práticas educativas; tecnicização da educação; institucionalização da esfera educacional.
ABSTRACT
This article's theme is social reality and its challenges for research in Education and their objectives are the implications that technicization and rationalization that are more and more implied on educational activities. The over-growing insertion of a rationalized social practice is being institutionalized an has been forming, informing and refurbishing the entire social sphere. As a result of this process, we can perceive educational institution - from Kindergarten to Universities - now normatized, regulated and institutionalized that make even harder every possibility for building new educational practices.
Keywords: Rationalization of educational practices; educational technicization; educational sphere institutionalization.
RESUMEN
El tema de este artículo es la realidad social y los desafíos para la investigación educativa y su objetivo son las implicaciones de la creciente tecnificación y racionalización de las actividades educativas. La inserción de una práctica social, focalizada en la eficiencia y en la eficacia se ha institucionalizado, formando, informando y reformulando la esfera social en su conjunto. El resultado son instituciones escolares, desde el nivel preescolar hasta la universidad, regladas, reglamentadas e institucionalizadas, lo que hace más difícil la posibilidad de formación de nuevas prácticas educativas.
Palabras clave: Racionalización de las prácticas educativas; tecnificación de la educación; institucionalización de la esfera educativa.
O tema desta mostra é a realidade social e os desafios para a pesquisa em educação. Tema tão oportuno quanto complexo e multifacetado. São muitos os desafios que se impõem nos dias de hoje, aos pesquisadores da educação. Não pretendo aqui dar conta da totalidade deste tema. Humildemente, pretendo apenas levantar alguns aspectos com os quais tenho me deparado em minha pesquisa e que lanço aqui porque os considero instigantes.
Talvez o primeiro desafio do qual se possa falar é o que se encontra na primeira parte da frase que apresenta o nosso tema, a realidade social. Inicialmente, creio que é necessário explicitar o que se pode entender por realidade. De uma forma geral, quando se fala em realidade, pensa-se dizer que se pretende tratar daquilo que de fato existe. Isto implicaria uma realidade única, igualmente apreensível para todos aqueles que nela existem de forma imediata. Da forma como eu a concebo, a realidade não é aquilo que se apresenta imediatamente aos nossos sentidos, nem é constituída por dados objetivos facilmente apreensíveis. Por este motivo, não é facilmente apreensível, e sempre que pensamos compreendê-la, nos dados e percepções que se apresentam para impor uma nova síntese. Isto decorre do fato de a realidade ser o resultado de múltiplas relações que se constituem por meio de um intrincado jogo de poderes e de agentes. E para cada agente ela se apresentará por meio de uma visão própria. Por isso, quando se afirma a existência de uma realidade, que pretende ser a mesma para todos, se elege uma possibilidade que imediatamente exclui as demais. O campo científico, que é o nosso campo, no qual nós, pesquisadores, atuamos, se constitui como um campo de lutas, em meio ao qual concepções como realidade e verdade são instrumentos de disputa e luta pelo poder. Em uma tentativa de racionalizar, isto é usar as faculdades da razão para distinguir o que é real do que não, Descartes desenvolveu um conjunto metódico de regras de análise que se tornaram as premissas para a apreensão da realidade reduzindo o real multiforme e multifacetado a uma forma racional, sintética e abstrata. Do que foi até aqui exposto, podemos chegar a uma conclusão preliminar: - que mesmo o método científico moderno parte do princípio que a realidade não é imediatamente apreensível, uma vez que interpõe um método, como mediação para o seu conhecimento.
Aquilo que se denomina a realidade social apresenta ainda maiores dificuldades porque dificilmente pode ser apreendida sem profunda análise de sua complexidade. Isto é tão verdadeiro para a concepção positivista quanto para a marxista, para quem a realidade é a síntese de múltiplas determinações, resultado do movimento dialético que opõe o particular ao geral. O que pretendo afirmar aqui é o fato de que, nas ciências humanas, a apreensão da realidade se constitui por meio de um processo complexo, histórico e determinado pelas percepções culturais nas quais estamos imersos. A realidade objetiva é apenas um dado exterior à consciência e a sua percepção estará condicionada ao processo de significações que antepõe à realidade exterior expectativas, preconceitos, valores e desejos.
Nesta perspectiva, a realidade social é um processo dinâmico e descontínuo e sua apreensão exige estratégias em constante elaboração, para se compreender ou tentar explicar as implicações que as relações de forças exercem na produção do conhecimento.
O método científico tradicional tem como fundamento uma racionalidade do tipo instrumental e baseia-se na possibilidade de um único sistema de valores universal-racional. No caso das ciências naturais, pretende-se, a partir da observação das homogeneidades dos eventos, estabelecer leis que expliquem sua recorrência. Para isto, elimina-se tudo o que é individual, particular e contingente, para se criar regras gerais passiveis de serem aplicadas em todos os casos, como as leis da física. Ocorre que, no caso das ciências humanas, em geral o que nos interessa é exatamente o particular, o individual, aquilo que não se submete às normas e que acreditamos se encontrar velado, escondido, disfarçado. E o que é pior, desprezar o contingente pode ser fatal, como demonstrou Weber. O problema é que as ciências humanas, e em particular a educação, vêm sofrendo um furioso ataque das concepções de ciências tradicionais, na tentativa de se impor uma concepção técnica à educação. Desde o período do ensino programado, não se verificava tal investimento na tecnologia educacional. E não estou me referindo aqui, apenas, à educação a distância ou à cada vez maior presença de ferramentas tecnológicas e de informação nos currículos escolares. O que pretendo aqui apontar é para a gradual inserção de um modelo de conhecimento e uma prática social que vem se institucionalizando e dando a forma a toda a esfera social.
Assim creio que, para mim, o desafio a que refere o nosso tema é a crescente tecnicização e burocratização da educação. Não se trata de um fenômeno restrito à educação. Nossa sociedade se apresenta cada vez mais burocratizada e técnica, pautada por processos impessoais de controle e disciplina.
É neste processo que se insere a atual expansão dos sistemas públicos de ensino. Não se trata mais de discutir educação, ensino ou aprendizagem, mas de expandir o processo de escolarização, de trazer todos para a escola. A escola, quer seja publica ou privada, é normatizada, regulada, institucionalizada e estabelecida pelo Estado, e a possibilidade de constituição de novas práticas educativas fora deste contexto parecem ser impossíveis. Basta se observar que os esforços, tanto dos órgãos públicos como privados e de organizações sociais, estão voltados para a gestão, que é a disciplina que introduz técnicas de regulamentação e institucionalização de procedimentos, que passam a ser os mesmos para todas as escolas. Há um esforço, que se pode depreender dos diversos projetos existentes, que vão do MEC à Fundação Ayrton Senna, de modelar a gestão da escola segundo um modelo único. A gestão passou a ser o principal aspecto a ser atacado nas escolas, porque se acredita que por meio da introdução de modelos de procedimentos (que podem ser democráticos ou não) se solucionarão os problemas da educação. Assim, os problemas de ensino-aprendizagem, de conteúdos, de disciplina, de violência, tornaram-se, todos, problemas de gestão. Segundo esta concepção, se o diretor for um líder capaz de mobilizar e incentivar a comunidade escolar e souber utilizar bem os materiais e treinamentos oferecidos pelos órgãos de ensino superiores, um bom resultado será necessariamente alcançado. E isto igualmente em todas as escolas.
Mas esse não é um processo que se iniciou agora. Na verdade, pode-se remontar à própria criação da escola moderna. Desde o início deste processo, a escolarização estatal vem sendo imposta e se propagando para toda a população, atingindo crianças em idade cada vez mais novas. Para deixar mais claro o que estou falando, permito-me aqui retomar a passagem de Thomas Bernhard, no livro Maîtres anciens, citada por Bourdieu em seu texto "O espírito do Estado":
A escola é a escola do Estado, na qual transformamos jovens em criaturas do Estado, isto é, nada mais do que em cúmplices do Estado. Quando entro na escola, entro no Estado e como o Estado destrói os seres, entro na instituição de destruição dos seres. [...] O Estado me fez entrar nele obrigatoriamente, como fez com todos os outros, e me tornou dócil em relação a ele, Estado, e fez de mim um homem estatizado, um homem regulamentado, e registrado e vestido e diplomado e pervertido e deprimido, como todos os outros. (BOURDIEU, 2007, p. 92)
A escola moderna é uma instituição disciplinar e normatizadora, que promove o processo de subjetivação das normas, impedindo a constituição de um sujeito que se produza a si mesmo. Este outro processo, nas palavras de Foucault, de constituição do sujeito sobre si mesmo, ou "educação de si" não pode ser realizado na atual escola, precisamente porque ela é um processo da heteroformação, uma formação que é feita do exterior e que exclui qualquer possibilidade de autoformação. Por isso, eu acredito que um dos maiores desafios para a pesquisa em educação é conseguir escapar dos laços que naturalizaram a atual estrutura escolar, que se impõem como o único processo de educação. Parece-me urgente a necessidade de se pensar em outros processos educativos que possibilitem a superação da escola homogeneizante.
A escola é uma organização e, como tal, tem como centro mobilizador de suas forças a administração ou, sob o nome seu mais moderno, a gestão. Esta escola encontra-se cada vez mais submetida a um processo de burocratização que se impõe por meio dos dispositivos de controle, cujos efeitos são aferidos pelos indicadores e medidos pelos processos avaliativos. Na atual fase do capitalismo, nada e ninguém escapam ao processo de institucionalização e todos devem ser incorporados ao sistema. Nesta lógica, o processo de inclusão nada mais é que um procedimento de normatização, de trazer para a norma e para o controle social da escola aqueles que se encontram fora de seu alcance. Excluídos e marginalizados devem ser incorporados ao sistema para que desapareçam suas diferenças, que devem ser absorvidas na massa homogênea produzida pela escola. A escola é necessária porque o controle social, para ser efetivo, deve se realizar sob dois aspectos complementares: de forma ontogenética e filogenética. Ontologicamente, realiza-se na constituição de cada indivíduo, por meio de um investimento individual constante e incessantemente sobre seu corpo e pensamento. Filogeneticamente, por haver um investimento que se estende por todo o gênero humano, na criação de uma concepção de que por meio do processo escolar os homens conseguirão alcançar a excelência da espécie. Segundo esta concepção, o que está em jogo é o próprio processo civilizador, porque, sem a escola, toda a cultura humana desapareceria. Na verdade, é durante o capitalismo que a escola se torna uma instituição do Estado, porque é por meio dela que se podem constituir os trabalhadores necessários à acumulação de capital.
Atualmente, o discurso pragmático, sustentado pelas necessidades produtivas e econômicas, se afirmou como visão modernizadora e se converteu no fundamento da escolarização, que passou a ser concebida como fundamental para que o país acerte o passo com o primeiro mundo globalizado e tecnicamente desenvolvido.
A implantação de uma política educacional modernizante tem seguido uma concepção tecno-burocrática, que passou a constituir uma instância de poder decisório junto aos órgãos superiores da administração pública. A atividade de planejamento e de cumprimento de metas tem dominado e reduzido à homogeneidade, toda a diversidade da vida social. Para além de todas as diferenças, o Estado moderno se constituiu como um Estado planejador e administrador, por cima de todas as diferenças de classes, partidos ou posições políticas, étnicas ou de gênero. Tudo deve ser incorporado e homogeneizado pelo Estado e mesmo as diferenças políticas tendem a desaparecer na luta pelo controle de seu poder.
A crescente tecnicização da esfera social e a adoção da engenharia social como dispositivo de poder seguem o princípio do planejar para prover e garantem a eficiência de um sistema baseado na capacidade racional de mobilizar todas as áreas sociais. Bem governar é bem administrar, isto é racionalizar, reduzir toda a diversidade à inteligibilidade, isto é, ao domínio da razão: tarefa da principal ciência do Estado, a estatística, cujo escopo é transformar a diversidade e multiplicidade da realidade em unidades mensuráveis, observáveis e controláveis.
Na medida em que o processo de racionalização da sociedade se constituiu como dispositivo de dominação, a capacidade de mobilizar o conteúdo emancipatório da razão foi convertido em instrumento de poder, que visa analisar, disciplinar, ordenar, organizar, conceituar, reduzir à esfera inteligível e conceituável toda a multiplicidade disforme, inominável e desordenada do real. O exercício do poder exige que se conheçam os pontos que devem ser seu objeto de ação. Só há poder onde há inteligibilidade, racionalidade, ordem, norma e lei. Não se pode dominar o que não se conhece ou sequer se sabe a existência. A razão assim concebida, como operacionalidade técnica e agente dos meios, possibilitou a planificação dos espaços reduzindo a esfera da ação humana às suas condições materiais de existência. Sob a razão técnica, as relações sociais passaram a ser concebidas, em sua totalidade, como relações de natureza econômica. Deste modo, dissipada na generalidade material produtiva, a individualidade se subjetivou nas sociedades burocráticas burguesas, nas quais triunfou a dominação legal-racional.
Também no espaço escolar a diversidade foi reduzida à unidade abstrata da sala de aula e dos sistemas de ensino. As individualidades são números que compõem uma massa de alunos cada vez maior e o professor é antes de tudo um planejador, que deve, antes de conhecer seus alunos, estabelecer qual e quanto conteúdo este aluno abstrato deve aprender e em quanto tempo (as famosas reuniões de planejamento que antecedem o período letivo). Na escola de hoje, os alunos são reduzidos da diversidade à unidade, têm que agir e pensar como se fossem apenas um. A avaliação nada mais é do que a comparação entre o que cada aluno concreto pode realizar e um aluno abstrato, idealizado pelo professor no momento de seu planejamento. E as notas ou conceitos nada mais são do que um "rankeamento", que permite a cada um, gradualmente, durante o período de sua vida escolar, reconhecer o lugar que deve ocupar no mundo. Desde cedo se deve aprender que o esforço é premiado. Não importa que na progressão continuada se eliminem as séries, porque permanecem estabelecidas as expectativas de ação e de produção para cada idade nas tarefas escolares. Não é necessária a série porque, para a disciplina, é mais importante que o ranking das notas. A escola atual surgiu com a distribuição dos alunos em classes seriadas, instituída a pouco mais de um século em um processo que permitiu a planificação eficiente das escolas, por meio de uma progressão sistemática. Naturalizada na população, a crença na necessidade de certificação do Estado, para a vida e para o mundo do trabalho, pouco importa o que se aprenda na escola. O que importa é que se saiba que sem a escola não se é ninguém.
As últimas reformas na educação tiveram como objetivo aprofundar o grau de planejamento e eficiência do sistema. Relatórios, estatísticas, indicadores, todo um exército de instrumentos cuja finalidade é garantir que todos passem a freqüentar a escola e que nela fiquem até o final do ciclo escolar. O esforço dirigido para atrair e manter as crianças na escola permanece como a preocupação principal dos órgãos governamentais. O quê ensinar, como ensinar, para quê ensinar já não é a prioridade.
A universalização da escolarização vem sendo uma das tarefas fundamentais do Estado Moderno desde o Código Napoleônico, quando o Estado francês tomou em suas mãos a tarefa de educar, encampando o ideal iluminista da universalização da cidadania e dos direitos humanos. Ir à escola foi transformado em direito, e a condição de cidadania passou a ser um processo de identificação, nomeação, organização, ordenamento, padronização e, finalmente, sistematização e controle. Classificar, nomear, sistematizar, são tarefas necessárias para que os planejadores conheçam sua matéria, permitindo a perfeita administração da res publica.
Esta condição de passividade corporal e intelecto ativo, herdada da concepção clássica, produziu, nas escolas de massa, um processo educacional desencarnado, de uma educação em que apenas a razão e as atividades intelectuais são objeto de atenção e o corpo é reduzido ao processo de subjugação da razão.
Nesta sociedade, onde a grande maioria deve garantir sua sobrevivência por meio do trabalho cotidiano, uma grande massa de seres constitui o pesadelo de uma sociedade que se pretende plenamente planificada: - os meninos de rua, privados dos modelos sociais e excluídos dos processos de socialização permanecem como um espaço impenetrável, porque não são facilmente conceituáveis ou apreensíveis pelo entendimento. Sua ininteligibilidade atenta contra uma razão que pretende abarcar tudo. Fora do campo da razão, esses excluídos, que recusam modelos, permanecem como o grande desafio da educação escolar. Sua permanência nas ruas significa a impossibilidade da planificação, controle e, portanto, governabilidade. Diante deste fato que a todos aturde, os pesquisadores de educação poderiam, usando o antigo método da adaga de Ockam, se perguntar: - Não significaria isso que talvez o problema não esteja nas crianças que preferem viver na rua, mas na estrutura escolar? Não se estaria diante de um problema que nos parece insolúvel porque não conseguimos pensar em outra forma de educação, que não seja por meio desta instituição estática com princípios iluministas e civilizadores? Não seria a tarefa do pesquisador em educação se perguntar se ele também já não foi de tal forma conformado ao sistema que passou a acreditar que a instituição escolar, tal como a conhecemos, seja algo natural?
Referência
Bourdieu, P. (2008). Razões práticas. Trad. Mariza Corrêa. Campinas, Papirus. [ Links ]
* VI Mostra de Pesquisa e Produção em Psicologia da Educação. Conferência de Abertura. 9 de novembro de 2010.