Serviços Personalizados
Journal
artigo
Indicadores
Compartilhar
Psicologia da Educação
versão impressa ISSN 1414-6975
Psicol. educ. no.32 São Paulo jun. 2011
Relações entre gênero e escola no discurso de professoras do ensino fundamental
Relationship between gender and school on the discourse of teachers of elementary schools
Relación entre el género y la escuela en el discurso de los maestros de escuelas primarias
Ana Claudia Bortolozzi MaiaI; Carolina NavarroII; Ari Fernando MaiaIII
IDocente do Departamento de Psicologia da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - UNESP
e-mail: aclaudia@fc.unesp.br
IIPedagoga. e-mail: caracarol84@yahoo.com.br
IIIDocente do Curso de Psicologia e Pós-Graduação em Educação (FCLar-UNESP)
e-mail: arimaia@fc.unesp.br
RESUMO
A escola e seus professores possuem grande responsabilidade na formação de identidades de gênero. Dez professoras de uma escola pública participaram de uma entrevista semiestruturada, para posterior análise do conteúdo. As professoras percebem relações de gênero entre os alunos a partir de comportamentos na sala de aula, como rapidez nos meninos e capricho nas meninas, a escolha de cores e desempenhos acadêmicos diferenciados. Além disso, preocupam-se com a suposta homossexualidade de alguns meninos. As justificativas sobre as diferenças de gênero percebidas nos alunos foram atribuídas à influência da família e a reprodução de padrões hegemônicos de gênero. A maioria das professoras acredita que a escola tem pouca responsabilidade nas questões de gênero, evidenciando a precária formação que tiveram para atuar na educação sexual de seus alunos.
Palavras-chave: gênero; identidades sexuais; professoras; formação.
ABSTRACT
The school and its teachers have great responsibility in the formation of gender identities. Ten teachers of a public schools participated in a semi-structured interview for the analysis of the content. The teachers perceive gender relations among the students, by their behaviors in the classroom: how quickly are the boys and the whim of the girls, the choice of colors and academic performance distinguished. They also have a concerned about the supposed homosexuality of some boys. The justification on perceived gender differences in students were assigned to the influence of family and to the reproduction of hegemonic standards of gender. Most teachers believe that school has little responsibility in gender issues, highlighting the poor training they had to work with sexual education of their students.
Keywords: gender; gender identities; teachers; formation.
RESUMEN
La escuela y sus profesores tienen una gran responsabilidad en la formación de las identidades de género. Diez maestros de escuelas públicas participaron en una entrevista para su posterior análisis del contenido. Los profesores perciben las relaciones de género entre los estudiantes de los comportamientos en el aula, la rapidez con que los niños y las niñas en la fantasía, la elección de los colores y el rendimiento académico distinguido. Además, la preocupación acerca de la supuesta homosexualidad de algunos niños. La justificación de las diferencias de género en la percepción de los estudiantes fueron asignados a la influencia de la familia y la reproducción de patrones de género hegemónicas. La mayoría de los profesores creen que la escuela tiene poca responsabilidad en cuestiones de género, destacando la escasa formación que tenía que actuar en la educación sexual de sus estudiantes.
Palabras clave: género; identidad sexual; los profesores; la formación.
Introdução
As teorias mais recentes sobre as questões de gênero são concebidas a partir de diversas matrizes filosóficas e psicológicas. Segundo o pensamento pós-estruturalista, a identidade de gênero não é um dado natural, mas sim o resultado de uma série de discursos que permeiam as relações de poder entre as pessoas. Estes discursos hierarquizam grupos e validam o que é considerado normal a partir do que é estabelecido pela ordem dominante. O termo gênero, portanto, diz respeito aos processos culturais que atuam mediante relações de poder, construindo padrões hegemônicos, a partir de corpos sexuados (SCOTT, 1995).
Atualmente vive-se em um tempo marcado pela pluralidade e diversidade cultural. Sendo assim, não é possível compreender a construção das identidades e fazer uma leitura crítica das relações de poder estabelecidas entre as pessoas se não as contextualizarmos histórica e culturalmente. O pensamento pós-estruturalista compreende a identidade cultural como síntese de categorias diversas, entre elas, as identidades étnicas, sociais, econômicas, sexuais, de geração, nacionalidade, religiosidade, gênero etc. (SOUZA, 2005; MEYER, 2003).
A identidade de gênero pode ser compreendida como a autopercepção de cada pessoa em relação às categorias sociais que dizem respeito ao masculino e ao feminino, à parte de uma representação biológica que se constrói pelos fatores sociais e culturais que são predominantes na formação. É um dos elementos constituintes da identidade, mas não a definidora desta. Seu desenvolvimento ocorre desde o nascimento, numa interação constante entre o indivíduo e os outros, não se constituindo nem se apresentando de maneira fixa (LOURO, 2003; RIBEIRO, 2002).
Louro (2000, 2003) e Souza (2005) apontam que a análise da identidade de gênero isolada de outras experiências pessoais é insuficiente para a compreensão das representações de poder ligadas intrinsecamente às construções das identidades; elas se constroem durante a vida do indivíduo desde seu nascimento, nas relações que são estabelecidas entre a criança e as pessoas com quem convive, sejam elas outras crianças, adolescentes ou adultos, e também entre a criança e os diversos objetos culturais aos quais tem acesso.
Essas identidades de gênero são construídas a partir de modelos de normalidade que são adotados por grupos sociais diversos. Na nossa cultura, por exemplo, a representação dominante do ser humano é evidenciada pela figura do homem heterossexual, jovem, branco, cristão e de classe média (BRITZMAN, 1996; FELIPE e GUIZZO, 2004; MEYER e SOARES, 2004; LOURO, 2003; RAGO, 2003; JUNQUEIRA, 2008; SILVA, 2004). Para Meyer (2003), a intenção dos estudos pós-estruturalistas é analisar e questionar os múltiplos processos socioculturais que utilizam a anatomia para justificar diferenças, desigualdades e subordinações entre as pessoas.
Perceber as sutis relações de poder, estabelecidas numa sociedade altamente hierarquizada como a nossa, que em alguns casos impõe modelos a serem seguidos por todos, não constitui um trabalho simples. A naturalização de alguns hábitos, concepções e valores que mantemos pode indicar a existência de procedimentos de repressão sexual muito arraigados presentes na civilização. Vários pesquisadores que se dedicam a essas questões apontam que às crianças têm sido oferecidos modelos de mulheres e homens com bases sexistas, racistas e classistas (BRITZMAN, 1996; LOURO, 2003; MEYER e SOARES, 2004; RAGO, 2003; RIDENTI e VIANNA, 1998; SILVA, 2004; WHITAKER, 1995). A escola, como instituição grandemente responsável pela educação de crianças, também não está imune a esse tratamento discriminatório, e será, portanto, objeto de nosso estudo.
Pesquisas têm apontado que todo nosso sistema educacional colabora com a manutenção de ideias obsoletas em relação às identidades pessoais, baseadas em critérios fixos acerca das possibilidades de ação, pensamento e personalidade de mulheres e homens (ALVES e SOARES, 2001; BRITZMAN, 1996; FELIPE e GUIZZO, 2004; JUNQUEIRA, 2008; MEYER e SOARES, 2004; MORENO, 1999; LOURO, 2000, 2003; RIBEIRO, 2002; SOARES, 2008; WHITAKER, 1995). Como aponta Louro (2003, p. 81), "a escola não apenas reproduz ou reflete as concepções de gênero e sexualidade que circulam na sociedade, mas que ela própria as produz". Com a formação do currículo, a escolha dos conteúdos e materiais a serem trabalhados, o estabelecimento de relações interpessoais entre os membros da escola e os métodos utilizados no ensino, a escola atua em seu papel de instituidora de identidades, ditando não apenas comportamentos, concepções e atitudes a seus alunos, mas também classificando e punindo aqueles desviantes do que é considerado normal (LOURO, 2003; MEYER, 2003).
Os resultados de uma educação que coaduna com valores sexistas podem ser diversos, indo desde o sofrimento pessoal motivado pela não aceitação social das diferenças individuais até o fracasso escolar. Vários autores têm chamado atenção sobre a relação de gênero com o fracasso e sucesso escolar, especialmente no caso de meninos, gerando evasão e repetência no Ensino Básico no sistema educacional brasileiro (ALVES e SOARES, 2001; CARVALHO, 2001; MEYER, 2003; SILVA, BARROS, HALPERN e SILVA, 1999; UNBEHAUM e VIANNA, 2004). Outros pesquisadores reconhecem que a escola impõe sofrimento a muitas crianças e adolescentes e são vários os mecanismos que se prestam a estabelecer padrões comportamentais e hierarquias sociais entre meninos e meninas. Um exemplo seria a não-neutralidade dos materiais de apoio ao processo de ensino-aprendizagem escolar, tais como as mensagens sexistas existentes nos vídeos, livros, revistas e jornais (LOURO, 2003; NOSELLA, 1981; SOARES, 2008; TOSCANO, 2000). Alguns autores ressaltam que há representações estereotipadas de mulheres e homens divulgadas em livros didáticos (NOSELLA, 1981; SOARES, 2008; TOSCANO, 2000; WHITAKER, 1995), nos brinquedos, jogos, programas televisivos, propagandas diversas, (FELIPE, 1999; MEYER, 2003) e também na escolarização.
As relações interpessoais estabelecidas dentro do processo pedagógico entre alunos, professores, funcionários e pais também podem influenciar as questões de gênero, por exemplo, nas atividades de educação física diferenciadas para meninos e meninas, o que reflete uma concepção dos professores de que as meninas são mais incapazes que os meninos na realização de atividades motoras. Além disso, a prática do futebol é uma constante referência à virilidade dos alunos (LOURO, 2003; TOSCANO, 2000). Outras formas de socialização sexista seriam as brincadeiras infantis e as escolhas de brinquedos em que também se manifestam as relações de gênero (FAGUNDES e FRANCO, 2001; FELIPE, 1999; FINCO, 2003; WHITAKER, 1995), por exemplo, quando são oferecidos às meninas brinquedos que simulam atividades domésticas e a vaidade, enquanto são oferecidos aos meninos jogos que envolvem raciocínio lógico, força ou exploração do espaço físico.
Britzman (1996), Louro (2003), Mott (1997) e Silva (2004) denunciam que a escola, especialmente pela pessoa do professor, vigia constantemente a orientação sexual de seu alunado com a intenção de reforçar o comportamento heterossexual. Há ainda quem argumente que esta preocupação é mais severa em relação aos meninos que, além de preferirem a companhia das meninas, se ocupam de atividades consideradas femininas. A preocupação em garantir a masculinidade infantil é baseada numa suposição de que esse vigiar pode preservar a masculinidade heterossexual adulta (FELIPE e GUIZZO, 2004).
Para Britzman (1996), a escola, assim como outras instituições sociais, tenta adequar a criança ao gênero a que ela pertence. Carvalho (2001) comenta que há, inclusive, preferências dos professores em educar os meninos às meninas por os considerarem mais originais, interessantes, estimulantes e inteligentes. No Brasil, as pesquisas mostram que há, entre os professores, a imagem predominante das meninas como pessoas delicadas, responsáveis, organizadas, estudiosas, esforçadas, meigas, prestativas e caprichosas, enquanto os meninos são citados como agitados, corajosos, aventureiros, malandros, independentes, indisciplinados, inteligentes, líderes, racionais, de forte temperamento (CARVALHO, 2001; SILVA, 2004; SILVA e cols., 1999; WHITAKER, 1995).
Apesar de haver ações sexistas e discriminatórias promovidas pela escola, não podemos atribuir a culpa disto somente ao professor. Felipe e Guizzo (2004) e Mott (1997) acreditam que os professores não tiveram uma formação adequada para tratar de vários aspectos da sexualidade, principalmente em questões que envolvam as diferenças individuais na sua vivência. Além disso, sabemos que estes valores que consideramos preconceituosos são extremamente arraigados em nossa cultura e que, devido aos processos de naturalização, passaram a ser inquestionáveis.
Os valores e concepções dos professores acerca das questões de gênero são refletidos em sua práxis educativa, já que norteiam os métodos de ensino escolhidos, as relações interpessoais e os critérios de avaliação do alunado. A fim de aprofundar essa ideia, buscando informações que podem enriquecer a discussão apontada, realizou-se essa investigação de natureza qualitativa com o objetivo de identificar conceitos e opiniões de professores das séries iniciais do Ensino Fundamental sobre a questão do gênero presente em nossa sociedade e sua relação com a educação de crianças no contexto escolar.
Os resultados deste estudo poderão ser utilizados na elaboração de programas de formação de professores que visem instrumentalizá-los para o trabalho escolar com crianças em questões diversificadas sobre gênero e sexualidade contribuindo para a erradicação da discriminação de gênero em nossa sociedade.
Método
Participaram da coleta de dados 10 professoras de uma pequena escola pública de 1ª a 4ª séries do Ensino Fundamental, no interior paulista. Essas professoras tinham idades entre 35 e 54 anos, formação em Curso Normal em nível médio (Magistério) e/ou Pedagogia, e atuavam como professoras entre 11 e 24 anos. Serão chamadas aqui pela letra maiúscula P seguida do número ordinal crescente (P1 até P10). As participantes foram devidamente esclarecidas sobre os objetivos da pesquisa e assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido, respeitando os procedimentos éticos em pesquisas com seres humanos.
A coleta de dados ocorreu por meio de uma entrevista semiestruturada em uma sala reservada com privacidade, na própria escola onde trabalhavam. O roteiro de entrevista continha questões relacionadas ao conceito de gênero, a percepção das relações de gênero na escola e o papel do professor.
Toda a entrevista foi gravada em áudio e, em seguida, transcrita, na íntegra, para posterior análise de conteúdo, segundo Bardin (1977), que se configura nas seguintes etapas de procedimento: (a) leitura flutuante e exaustiva do relato transcrito, (b) seleção de trechos significativos relevantes, (c) identificação das unidades de registro e contexto, (d) construção das categorias temáticas, mutuamente exclusivas, pelo agrupamento de fragmentos de relatos (e) interpretação teórica das categorias temáticas (FLICK, 2009; FRANCO, 2005; MINAYO, 2007).
Resultados e discussão
As categorias temáticas que se apresentam como resultados serão apresentadas e discutidas, a seguir:
1. Concepções sobre o feminino e o masculino
As características associadas ao gênero, lembradas pelas professoras, envolveram questões sociais e físicas. No caso do feminino, elas foram associadas a temperamentos e comportamentos que representavam fragilidade, delicadeza, sensibilidade e maternidade, relacionando a mulher ideal, a maternidade e a feminilidade com a bondade e a afeição. Além disso, o corpo feminino foi percebido como estereotipado, envolvendo anatomias especificas e outros atributos que se tornaram femininos, a partir de padrões culturais.
{...} Deus foi tão bom que deu a maternidade só pra mulher. Quando eu falo sexo feminino, eu lembro de mãe, é tudo, é amor que vem de mulher, carinho, delicadeza, bondade. O sexo feminino passa não só pela vaidade, mas pelo interior, pelo que ela é capaz de fazer, de produzir, de representar o lado espiritual de ser humano, acho que tem mais pela mulher que pelo homem. Ela tem essa capacidade de desenvolver na vida todas essas coisas boas, o lado assim humano do ser humano, eu acho que tá mais com a mulher do que com o homem. (P1)
{...} feminino, a mulher já muda o físico também. Tem o seio, o quadril mais largo, cabelo comprido, mas a fisionomia você percebe que é uma mulher. (P6)
No caso da característica física de usar cabelos compridos, por exemplo, seria um atributo físico que reflete um hábito cultural, como defendem Goellner (2003), Meyer e Soares (2004) e Louro (2003). Essas autoras entendem o corpo como cultural uma vez que ele reúne fatores biológicos e anatômicos, mas também um conjunto de construções discursivas que legitimam os padrões corporais de normalidade. A relação do feminino como algo cultural também é explicito no relato de P1 que parece entender a desvalorização feminina dentro de contextos culturais citando duas situações: a da religião muçulmana e as relações desta com as mulheres, e também as representações das masculinidades feitas por homens na mídia. Entretanto, a professora acaba por dividir a organização social entre mulheres e homens sob a óptica do dominante e do dominado, o que segundo Louro (2003) é insuficiente para que se possa perceber que somos todos sujeitos sociais, e a mulher, como tal, também reage e emprega o poder. Grossi (1992) acrescenta que a mulher é cúmplice muitas vezes, da própria dominação, pois isto, em determinadas situações, lhe é interessante.
Na caracterização de meninos e homens, existem referências aos fatores corporais e anatômicos e também aos comportamentais, que envolvem a impaciência e a ausência do carinho. P4, mesmo acreditando nos fatores biológicos constituintes do masculino, lembra que os comportamentos tidos como masculinos são difíceis de serem generalizados. P1 também se refere ao masculino mediado pela cultura, por meio da educação, tornando algo que seria naturalmente orgânico, como algo que é decorrente do social.
{...} Sexo forte. O homem sempre tem razão, quer mandar na mulher. Desde a criação porque o homem foi criado primeiro e também a sociedade. Tem a sociedade machista, os países em que o homem, como os muçulmanos, é tudo para o homem, a mulher não tem valor, não tem significado, é só procriação. Não tem igualdade com a mulher, mas isso é questão de sociedade, de época, de criação. (P1)
{...} determinadas preferências, comportamentos, atitudes, é diferente no sexo masculino e no sexo feminino, mas tem muita coisa que já não dá pra separar mais. Hoje os dois têm que trabalhar. Futebol tem menino que gosta e tem menino que não gosta. Eu tenho dois filhos e nenhum dos dois gosta de futebol. Eu acho que tá difícil pra definir. (P4)
As concepções do masculino e feminino foram percebidas de modo diferente também nos comportamentos de seus alunos, meninos e meninas, reiterando a literatura consultada (MENÉNDEZ, 2005; SILVA, 2004; WHITAKER, 1995). Neste sentido, os meninos foram apontados como agressivos, agitados, mandões, relaxados, enquanto as meninas foram chamadas de delicadas, quietas, comportadas e obedientes. A naturalização desses padrões de feminilidade e masculinidade pode ser ilustrada com as seguintes falas:
{...} é difícil ver uma menina agressiva, as meninas têm jeitinho de menina. Quando eles entram na primeira série, todos são amigos. Pode sentar junto, você pode fazer grupo de menino e menina. Na segunda, já começam a não querer menina no grupo. Na terceira, aí piora. Porque eles não querem, vira mesmo Clube do Bolinha e Luluzinha. Essa idade de nove anos é idade que eles não se misturam. (P1)
{...} A menina, ela é mais sensível, ela é mais educada. Os meninos já têm os modos mais grosseiros e a gente tem que aceitar isso, porque já é próprio da pessoa, do menino mesmo, do homem. (P5)
Segundo alguns autores (CARVALHO, 2001; JUNQUEIRA, 2008; MENÉNDEZ, 2005; RIBEIRO, 2002), é comum a naturalização de padrões hegemônicos de gênero construídos culturalmente, e os relatos obtidos convergem com essas concepções de masculinidades e feminilidades vigentes.
2. Compreensão sobre a influência da escola na construção de gênero de seus alunos
Há a ideia entre as professoras de que a escola não exerce influência no desenvolvimento de gênero de seus alunos. As justificativas versam sobre o fato de que a escola trataria meninos e meninas igualmente, de que o desenvolvimento de gênero aconteceria em casa, no contato com a família e não na escola quando os alunos já chegariam à primeira série com ideias rígidas do que é feminino e masculino:
{...} Acho que já vem de casa, porque às vezes você vai trabalhar com eles cores: os meninos, se dá uma cor assim, rosa, vermelho eles não aceitam. As meninas já não importam. Mas eles, acho que aí já vem de casa, não é a escola. Eu pego 1ª série e eles já ficam escolhendo as cores, 'isso aí é de menina, de mulher'. (P6)
No entanto, a influência da escola na construção da identidade de gênero dos alunos foi admitida por algumas professoras, a partir de duas vertentes. No primeiro caso, houve a crença de que a escola deveria intervir quando existirem "desvios" no desenvolvimento considerado normal. P4, inclusive, defende que é importante a presença de outros profissionais na escola para ajudar a "resolver" a questão. Outras quatro professoras, ao citarem os comportamentos diferentes de meninos e meninas na sala de aula, evidenciaram preocupação com a orientação afetivo-sexual das crianças, num esforço constante de manter a suposta identidade heterossexual normal (BRITZMAN, 1996; SILVA, 2004). Embora percebam a suposta homossexualidade dos alunos explícita no ambiente escolar, a crença é de que essa orientação sexual é construída na família.
{...} Depois quando vai crescendo, daí já vê que é mais femininado, o menino já parte pra outro sexo e começa ficando muito com as meninas. Às vezes a maneira de conversar com os coleguinhas, já vai dando pra perceber quando o menino parte mais pro lado do sexo feminino, então você vai notando... (P2)
{...} Pelo que eu estudei, até certa idade, não tem nem muito uma definição do sexo. Ele vai desenvolvendo depois da idade. Só que a escola não tá preparada, porque teria que ter um psicólogo fazendo um trabalho junto. Nessa sala de aula que eu tenho bastante meninos que eu vejo que eles são bem diferentes. No começo do ano eu já vi pessoas até dizer: "aquele lá é veadinho", mas eu não vejo ele ter atitudes que me provem que ele é assim, eu respeito o jeito dele, porque, por enquanto, eu não tô vendo nada de anormal. Tá vendo a falta que já faz você ter uma psicóloga ali? Porque quem sabe a pessoa poderia tá mais preparada pra tá observando esses detalhes? O professor não é muito bem preparado pra tudo isso. (P4)
{...} Tem meninas que infelizmente a gente vê que não aceita o sexo que tem e meninos também, mas a gente percebe que é por uma falta de esclarecimento, de acompanhamento. Porque a idade de nove anos é que eles começam a definir o sexo. Existe a menina que não tá satisfeita em ser menina, então ela age como menino, se envolve com os meninos, quer brincadeiras de menino. O mesmo com o menino, que não aceita certas coisas que é imposta no grupo do seu sexo. Ele quer participar no outro grupo. Então se eles não tiverem uma conversa bastante delicada em casa, um acompanhamento dos pais mais próximos. (P9)
{...} Eu acho que a família, por exemplo, pode deixar o menino mais afemi... Assim, mais afeminado e a menina mais masculinizada. Eu acho que a família sim, mas a escola eu acredito que não. A escola tenta às vezes reverter o quadro, mas eu acho que é a família. (P7)
No segundo caso, se reconhece que a figura do professor é importante na formação integral do alunado, pois ele seria responsável por transmitir seus valores pessoais e mostrar as possibilidades de escolha sobre o modo de vida, sem necessariamente se referir diretamente ao gênero. P1 admite transmitir os valores de sua formação que ela considera importantes, mas comenta que não pode definir o que é correto ou não, pois os valores dos alunos podem ser distintos dos seus. P3, por outro lado, atribui à instituição escolar a propagação aos alunos, de valores e hábitos culturais, e não individuais. Ela julga que há valores positivos e negativos, mas não compreende que esse julgamento é também pessoal.
{...} quando as crianças vêm pra escola elas já vêm definidos. Mas a escola pode influenciar; agora, eu não posso falar pra você, o que eu posso dizer que é certo e errado é pro meu aluno, porque o certo e errado é pra mim e para eles pode ser outra coisa. (P1)
{...} Eu acho que a escola não influi só nisso, ela influi em tudo (...) queira ou não, a escola passa a cultura do povo, da sociedade que ela tá inserida. Esses costumes, hábitos, queira ou não, o professor vai passando: ou positivo, ou negativo. Aí a gente tem que tomar cuidado, tá sempre atualizada e se vigiando pra não passar esses conceitos negativos. E às vezes, eu acho até que a gente passa sem querer. (P3)
3. Percepção sobre as diferenças de gênero na dimensão acadêmica e pedagógica
As professoras fizeram várias observações sobre gênero relacionadas ao comportamento dos alunos. Predominantemente, os meninos foram chamados de relaxados e as meninas, de caprichosas e cuidadosas, o que vai ao encontro da pesquisa de Silva e cols (1999), em que as meninas tiveram vantagens na escolarização, principalmente nas primeiras séries do Ensino Fundamental, por apresentarem comportamentos valorizados pelas professoras, como ser boazinhas e comportadas. Carvalho (2001) lembra que, apesar das características tidas como masculinas serem mais valorizadas pelas professoras, como a criticidade e a não-passividade, existe um limite em que elas podem ser exercidas, ou seja, quando essas características são percebidas como inadequadas os alunos são tachados de relaxados e desinteressados.
Para algumas professoras, não existem diferenças no rendimento das crianças em função de gênero, enquanto para outras as diferenças são plausíveis, embora esta ideia, no cotidiano, não se sustente uma vez que elas percebem que existe flexibilidade nos padrões de rendimento dos alunos devido a motivações individuais ou a influências do contexto e não especificamente ao gênero que pertencem. P4 ressalta que não era possível generalizar que os meninos eram 'bons' em matemática porque nem todos conseguiam bons resultados. P7 observou que os meninos obtinham melhores resultados que as meninas na escola, mas acha que, com o avanço do "feminismo", as meninas modificaram sua participação na escola e estão se igualando aos meninos; sua percepção sobre o rendimento é baseada na ideia de que ele é influenciado pela criação familiar:
{...} eu achava que meninos tinham mais facilidade pra matemática, mas foi um equívoco, porque tem meninos também que não vão bem. Quando eu trabalhei muito com 4ª série, eu percebia que eles tinham mais facilidade, e as meninas, era o português. Mas não é. Tem menina muito boa em matemática também, tem menino que escreve muito bem texto. Às vezes pode ter sido coincidência, mas acho que não tem nada a ver o sexo não pra aprendizagem. (P4)
{...} Meninos e meninas hoje não têm diferença. Tem meninas que são criadas pra estudar, uma belezinha e tem meninas que vem e não faz nada. Então o rendimento, hoje é muito difícil. Se fosse falar quando eu estudei, o rendimento dos meninos era melhor. Hoje não. O feminismo entrando. As meninas estão igualando com os meninos. Então elas têm o mesmo rendimento, você tem 10 meninas e 10 meninos, é meio a meio. Cinco vai bem, cinco vai mal. (P7)
Muitas professoras (8) não acreditam que existem diferenças para educar meninos e meninas, seja porque as facilidades e dificuldades na educação deles seriam as mesmas, seja porque os fatores familiares e de contexto ou o próprio interesse da criança é que causariam maior ou menor dificuldade em lidar com as crianças e não o gênero. Entre as duas professoras que percebem alguma diferença na educação, uma aponta que existem dificuldades apenas quando as crianças vêm indisciplinadas de suas casas, o que é um fator que, se trabalhado na escola, pode ser modificado. Outra professora atentou que os meninos são mais agitados e terminam rapidamente as atividades, o que faz com que seja necessário o preparo de mais atividades para ocupá-los enquanto as meninas estão concluindo as atividades:
{...} eles são mais inquietos, você tem que tá dando muito mais atividade pra eles, porque se eles pararem, aí começa a ter problema. A maioria das meninas elas demoram mais, porque elas querem caprichar mais. Os meninos terminam bem antes que as meninas. Por exemplo, a minha sala que tem muito mais meninos... Eu tenho que armar um jeito de tá ocupando eles com uma leitura, com alguma coisa. Porque senão pega fogo. Essa diferença a gente nota bastante. Eles são mais rápidos, terminam rápido, eles não têm paciência de ficar demorando. As meninas já querem mais ficar demorando, enfeitar, não sei que. A maioria é assim. (P4)
A rapidez na hora de realizar as atividades escolares, assim como a indisciplina que é gerada quando os meninos não estão ocupados são comportamentos também apontados na literatura (CARVALHO, 2001; MENÉNDEZ, 2005; SILVA e cols., 1999). P5, apesar de dizer que não têm preferência na educação de meninos ou meninas, se contradiz ao afirmar que as meninas 'realizam' mais as professoras, devido aos seus comportamentos carinhosos e caprichosos: "Como professor, às vezes a gente ia se realizar mais, porque menina é mais caprichosa, menina gosta de enfeitar, menina é mais carinhosa. Também tem menino que tem essas características. Pra mim eu não vejo diferença" (P5).
Menéndez (2005) verificou, entre professoras na Espanha, que a maioria delas se interessava pelas meninas, já que elas eram mais comportadas, detalhistas e obedientes. Esses comportamentos, segundo a autora, chamam mais a atenção das professoras de meninos, que se mostram dispersos, desobedientes e autônomos. Entretanto, os resultados que obtivemos diferem daquele apontado por Carvalho (2001), que verifica, em pesquisas nacionais e internacionais (Inglaterra e Austrália), que as professoras preferem educar meninos às meninas, pois os consideram mais interessantes que as meninas.
Entre as professoras que afirmaram que existia algum tipo de diferença no trato com as meninas, duas se referiram às facilidades na sua educação, acreditando que elas são mais responsáveis e dedicadas, o que as tornam mais propensas à aprendizagem: "normalmente elas são mais dedicadas, então elas estão sempre prontas pra receber aquilo que a gente pretende passar" (P9). Esta característica apontada pelas professoras é descrita por Silva e cols. (1999), que acreditam que as professoras observam um melhor rendimento das meninas devido aos seus comportamentos recorrentes de passividade e dedicação à escola. P8 ressaltou uma educação diferente às meninas, destacando a sexualidade das meninas como uma preocupação.
{...} Eu acho que com a menina você tem que conversar... Claro que com o menino também a respeito daqueles probleminhas que podem aparecer na vida do menino, do adolescente, do rapaz, de sexo, de drogas. Pode surgir na vida das meninas, só que dos rapazes é assim: "Quer fazer sexo? Olha a camisinha, tenha cuidado com as doenças venéreas", assim como drogas. Com as meninas também você vai falar sobre drogas, sobre sexo, só que com elas claro que você não vai falar da camisinha, vai falar da pílula. E que antes de usar a pílula, você vai trabalhar a cabecinha desta menininha mostrando pra ela que não é só "Ah, eu quero transar, vou usar... Começar a usar pílula". Não é assim. Então há todo um preparo por trás disso. "Você quer transar? Mas você gosta do rapaz? Conhece bem este rapaz?" Então há todo um processo com a menina e com o menino. Claro que cada um ao seu modo. (P8)
Este pensamento reflete uma noção de que a sexualidade feminina deve estar, necessariamente, relacionada à experiência de um amor romântico, o que segundo Felipe (2000) e Whitaker (1995) é uma ideia que é reforçada pelas relações sociais e pelos meios de comunicação. Atentamos também para o relato em que a professora limita o acesso das meninas ao conhecimento dos métodos preventivos de gravidez e doenças sexualmente transmissíveis - DSTs - ao dizer que o método que as meninas devem conhecer é a pílula anticoncepcional. Lembramos que atualmente existem diversos tipos de recursos que podem prevenir não somente a gravidez, mas também DSTs, e que cabe a cada casal escolher o método que lhe convier, avaliando suas vantagens e desvantagens.
Para muitas professoras, não existem facilidades ou dificuldades para lidar com crianças em função do gênero, e os cuidados em relação a elas devem existir em todos os casos. No entanto, nas entrelinhas supõe-se que as diferenças de gênero, sobretudo, comportamentais, podem direcionar as expectativas e relações pedagógicas do professor com seus alunos e alunas.
4. Compreensão das professoras sobre sua formação e seu papel como orientadoras em sexualidade
P2 acredita que trabalha a questão de gênero com seus alunos quando se refere às regras gramaticais porque em outra situação, falar sobre sexualidade com crianças seria possível somente se elas perguntassem e, ainda assim, individualmente e reservadamente. Duas professoras afirmaram que trabalham o assunto porque seus alunos estariam no período de transformações ocorridas na puberdade, como exemplifica o relato de P10: "sim, aqui na classe, principalmente agora que eu tô com a 4ª, nós já estamos trabalhando o corpo deles, a maneira que o corpo vai reagir na adolescência, já tem uns que vão entrar nessa fase".
Uma das professoras afirma que trabalha questões polêmicas sobre gênero e inclui também outros assuntos, como a discriminação racial e questões sobre etnias, o que pareceu ser algo pertinente e necessário, tendo em vista que a identidade de gênero está diretamente relacionada a outras identidades, como a identidade étnica, racial, nacional, geracional, etc. (JUNQUEIRA, 2008; LOURO, 2003; MEYER, 2003; SOUZA, 2005). Outro trabalho interessante envolvia a discussão sobre gênero nas diferenças corporais e nas histórias de vida de cada aluno: "Eu começo sempre estudando o "eu", falo da diferença deles tanto no sexo como no comportamento. Eu já inicio explicando isso. Tanto em história, como em ciências; Em Ciências, começo com o corpo e já mostro as diferenças. Em história, a história deles" (P5). As duas professoras que relataram não trabalhar gênero com seus alunos argumentam que é um assunto embaraçoso e complicado de ser tratado no Ensino Fundamental.
P10 acredita que o trabalho é necessário, com a anuência da família: "na 4ª série nós temos que falar, não pode omitir, tá no planejamento trabalhar com eles o corpo humano. E a família tem que saber disso. Porque se a gente não fala, eles aprendem de modo errado". No entanto, ao comentar um trabalho como exemplo do que ocorre na escola - uma palestra com uma médica - evidenciou-se um discurso pouco preparado e também valorativo: "na palestra eles viram realmente a diferença. Ela colocou bem assim: Que nós somos criados por um Deus que fez realmente isso. E a gente não deve explorar nosso corpo de qualquer jeito porque a gente vê os outros explorar" (P10). A presença de outros profissionais pode, de fato, colaborar com o processo de ensino e aprendizagem das crianças, mas os objetivos dessa colaboração devem ser explicitados. Por exemplo, é possível perceber que a médica convidada na escola tratou de sexualidade com os alunos baseada em preceitos normalizantes e dogmáticos, o que foi aceito e defendido pelas professoras. A inclusão da discussão da sexualidade na escola deve acontecer de modo a permitir que toda a diversidade das vivências sexuais seja contemplada, sem que haja a imposição às crianças de um modo específico de viver a sexualidade, tido como 'correto' pelos adultos (BRITZMAN, 1996; JUNQUEIRA, 2008; LOURO, 2000, 2003; MAIA, 2004; MOTT, 1997; RIBEIRO, 2002; SILVA, 2004; SOARES, 2008; TOSCANO, 2000; WHITAKER, 1995).
Nesse sentido, as poucas experiências relatadas pelas professoras sobre sexualidade e gênero com os alunos não aconteceram de forma adequada e preparada, o que ocorreu principalmente pela falta de conhecimento das questões de gênero, em geral, e pela precária formação na área. A literatura atual tem ressaltado que, apesar das dificuldades pessoais e acadêmicas dos professores no trabalho de orientação sexual na escola, a discussão sobre gênero e sexualidade é importante desde a Educação Infantil (ALVES e SOARES, 2001; BRITZMAN, 1996; FELIPE e GUIZZO, 2004; JUNQUEIRA, 2008; LOURO, 2000, 2003; MAIA, 2004; MORENO, 1999; MOTT, 1997; MENÉNDEZ, 2005; FELIPE, 1999; RAGO, 2003; RIBEIRO, 2002; RIDENTI e VIANNA, 1998; SILVA, 2004; SOARES, 2008; TOSCANO, 2000; WHITAKER, 1995).
As professoras mostram que sua formação acadêmica em relação ao tema da sexualidade foi precária e/ou inexistente. Nenhuma delas recebeu aulas formais ou participou de disciplinas específicas sobre o tema e, em alguns casos, o tratamento da sexualidade foi momentâneo e pouco aprofundado: "Só no magistério, na faculdade não" (P1), "Como eu estudei antigamente não se falava muito em sexo na escola" (P2). A formação de professores em assuntos que dizem respeito à sexualidade, ao gênero, à corporeidade é fundamental para o exercício da docência, mas estudos denunciam que essa formação é falha em nosso país (JUNQUEIRA, 2008; FELIPE e GUIZZO, 2004; SILVA e PACHECO, 2005; MOTT, 1997). Hoje, elas consideraram que o trabalho com a sexualidade na formação de educadores é fundamental, já que acreditam que poderiam enfrentar melhor as dificuldades com uma boa formação no assunto.
{...} são coisas que a gente desconhece, não tem nenhum curso a respeito e ninguém sabe como ensinar sexualidade na sala de aula. Porque a gente não teve preparação, não pode ficar dando do jeito que a gente sabe. (P7)
{...} Eu sinto que falhou. Eu precisaria desenvolver mais essa habilidade aí, por isso até que eu nem pego muito 4ª série. Eu acho que eu me identifico mais com os menores, porque é mais fácil. Por exemplo, esses dias, na hora que foi falar da letra 'P'. O menino falou assim: pingola. Eu levei na esportiva, não me chocou, mas na 4ª série é outro tipo de comportamento que eu acho que não sou preparada pra trabalhar. Porque até ele falar pingola, pra mim tudo bem, eu falei que o nome certo seria com P também, pênis. (P4)
A busca solitária por informações pode revelar que há poucas oportunidades de discutir questões da sexualidade humana em cursos de formação ou formação continuada. Além disso, os relatos demonstram um modo improvisado e, embora bem intencionado, arriscado de promover a orientação/educação sexual. O relato de P10 exemplifica os riscos deste tipo de educação na escola, uma vez que, ao escolher o material que seria utilizado como apoio para a formação, a professora escolheu livros que reforçam valores religiosos dogmáticos, que não devem fazer parte de qualquer trabalho científico de orientação sexual, porque esses valores podem ter a ver com os valores morais da professora, mas não devem ser generalizados aos alunos na escola pública que é laica.
{...} Tenho aluno que traz revista pornográfica no meio do caderno com autorização da mãe, na 4ª série. Então, eu pensei "se a mãe autoriza, eu não vou desautorizar'... Mas digo que existem livros bons e livros que só é vendido pra explorar a gente. Pra trabalhar com os alunos eu comprei livro científico, trouxe, mostrei pra eles. Fui numa livraria inclusive católica, cristã e comprei o livro. Porque ali, eu tinha certeza que não ia tá me explorando, que ia tá falando de maneira certa, na linguagem de criança também. (P10)
A ressalva de algumas professoras para o trabalho da orientação sexual na escola referiu-se à participação e à anuência dos pais e responsáveis: "porque às vezes pode acontecer de um pai ou uma mãe não gostar". É imprescindível o conhecimento pelos responsáveis dos trabalhos relacionados à sexualidade, principalmente pelo fato de se tratar de um assunto que provoca resistências de muitas pessoas. No entanto, os professores não devem temer as ameaças e as proibições que eventualmente possam ser feitas por responsáveis pelas crianças, pois a sexualidade é um tema que faz parte de nosso currículo, sendo inclusive recomendado por documentos oficiais de educação, como os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN). Outra observação sobre limites da orientação sexual na escola referiu-se à convicção de que para esta tarefa há pessoas específicas e mais preparadas para tratar temas ligados à sexualidade. Muitas professoras não se sentem à vontade para tratar destes assuntos, mas acreditamos que todos os que lidam com a educação formal têm potencial para fazê-lo e, inclusive, uma formação de professores em que exista abertura para a manifestação de ideias diversas, para o debate de temas polêmicos, podem facilitar, futuramente, o trabalho do/a professor/a como orientador/a sexual e que ele reconheça seu papel nesta tarefa.
Considerações finais
Pode-se considerar que as professoras demonstraram falta de conhecimento sobre o que é a categoria gênero uma vez que parecem compreender a questão como uma construção social, mas não o fazem segundo uma reflexão teórica aprofundada. Os relatos demonstram contradições das concepções de gênero, pois, ao mesmo tempo, elas demonstram acreditar em padrões hegemônicos, como o feminino e o masculino determinados pela influência da educação familiar e da sociedade, e também percebem que esses padrões não se reproduzem de modo fixo no cotidiano de seu trabalho.
Nos relatos das professoras, a percepção de relações de gênero na escola se manifestou de várias formas: pelas diferenças de comportamentos na sala de aula, na escolha diferenciada de cores, na atribuição de diferentes desempenhos acadêmicos dos alunos e também pelo temor sobre uma suposta "homossexualidade", em especial de meninos que se identificam ou permanecem mais entre as meninas. As justificativas para os comportamentos diferentes observados entre meninos e meninas são atribuídas à influência da educação familiar, e a maioria das professoras acredita que a escola tem uma responsabilidade ínfima, quando não inexistente, no desenvolvimento de gênero dos alunos.
Entretanto, as professoras desenvolvem um trabalho com as crianças em relação às diferenças de gênero e à sexualidade em geral, mas esse trabalho, frequentemente, não é preparado: há o predomínio de improviso e ações particulares na sala de aula, por vezes a partir de um princípio moral dogmático e sem referencial teórico, refletindo iniciativas que ocorrem em função de uma preocupação em ajudar os alunos. Diante disto e da constatação da formação deficitária destas professoras em questões sobre o desenvolvimento da sexualidade, acredita-se que elas se encontram despreparadas para exercer um trabalho na escola com o objetivo de enfrentar a discriminação baseada em preconceitos sexuais.
Os dados sugerem que a escola tem negligenciado seu importante papel político de instrumento de modificação social, pois a crença de que as diferenças entre homens e mulheres são universais e imutáveis reforça uma postura omissa ou reprodutivista do professor. Novas pesquisas deveriam aprofundar a questão investigando os projetos políticos pedagógicos das escolas, a posição da família em relação à orientação/educação sexual na escola ou, ainda, como ocorre a formação de professores das séries iniciais do Ensino Fundamental em relação à sexualidade e ao gênero.
As discussões sobre gênero devem permanecer inseridas e ser problematizadas no campo educacional por meio de debates e de divulgação da produção científica, sobretudo para os professores que trabalham diretamente com a formação de crianças, para proporcionar discussões que visem à elaboração de métodos e recursos pedagógicos a serem empregados na prática, para evitar a desigualdade no tratamento de meninos e meninas na escola. Antes, porém, é preciso investir na formação desses professores em sexualidade.
A escola é um espaço ideal para o tratamento de questões polêmicas sobre a diversidade cultural e sexual, pois, além de ser um local onde as diferenças individuais são múltiplas e aparentes, é também um local onde o debate deve acontecer continuamente, com vistas à aprendizagem e à prática do pensamento crítico, promovendo entre todos os agentes escolares o convívio respeitoso e democrático.
Referências
Alves, F. E.; Soares, V. S. (2001). "Meninos e meninas: universos diferenciados na família e na escola". In: Fagundes, T. C. P. C. F. (org.). Ensaios sobre gênero e educação. Salvador, UFBA, pp. 115-128. [ Links ]
Bardin, L. (1977). Análise de Conteúdo. Lisboa, Edições 70. [ Links ]
Britzman, D. P. (1996). O que é esta coisa chamada amor: identidade homossexual, educação e currículo. Educação & Realidade. Rio Grande do Sul, Cidade, vol. 21, n. 1, pp. 71-96. [ Links ]
Carvalho, M. P. (2001). Mau aluno, boa aluna? Como as professoras avaliam meninos e meninas. Estudos Feministas, Florianópolis, vol. 9, n. 2, pp. 554-574. [ Links ]
Cavalcanti, E. L. S; Franco, S. T. C. S. (2001). "Identidade: uma construção psicossocial". In: Fagundes, T. C. P. C. F. (org.). Ensaios sobre gênero e educação. Salvador, UFBA, pp. 51-68. [ Links ]
Fagundes, T. C. P. C.; Franco, S. T. T. C. S. (2001). "O lúdico na construção da identidade e nas representações de gênero". In: Fagundes, T. C. P. C. (org.). Ensaios sobre gênero e educação. Salvador, UFBA, pp. 69-81. [ Links ]
Felipe, J. (1999). "Entre tias e tiazinhas: pedagogias culturais em circulação". In: Silva, L.H. (org.). Século XXI, Qual Conhecimento? Qual currículo? Petrópolis, Vozes, pp.167-171. [ Links ]
______. (2000). "Sexualidade nos livros infantis: relações de gênero e outras implicações". In: Meyer, D. E. E. Saúde e sexualidade na escola. 2. ed. Porto Alegre, Mediação, pp. 111-124. (Cadernos Educação Básica, 4) [ Links ]
______; Guizzo, B. S. (2004). "Entre batons, esmaltes e fantasias". In: Meyer, D.; Soares, R. (orgs.). Corpo, gênero e sexualidade. Porto Alegre, Mediação, pp. 31-40. [ Links ]
Finco, D. (2003). Relações de gênero nas brincadeiras de meninos e meninas na educação infantil. Pró-posições. Campinas, vol. 14, n. 3, pp. 89-101. [ Links ]
Flick, U. (2009). Introdução à pesquisa qualitativa. 3. ed. Porto Alegre, Artmed. [ Links ]
Franco, M. L. P. B. (2005). Análise de Conteúdo. 2. ed. Brasília, Liber Livro. [ Links ]
Franco, S. T. T. C. S.; Lima, D. K. (2001). "Mitos e ritos na construção da identidade feminina". In: Fagundes, T. C. P. C. (org.). Ensaios sobre gênero e educação. Salvador, UFBA, pp. 85-112. [ Links ]
Goellner, S. V. (2003). "A produção cultural do corpo". In: Goellner, S.V.; Louro, G. L. e Neckel, J. F. (orgs.). Corpo, gênero e sexualidade: um debate contemporâneo na educação. Petrópolis, Vozes, pp. 28-40. [ Links ]
Grossi, M. P. (1992). "O masculino e o feminino na educação". In: ______. (org.). Paixão de aprender. Petrópolis, Vozes, pp. 252-258. [ Links ]
Junqueira, R. J. (2008). "Corpos, Gêneros e Sexualidades na escola: por uma educação promotora do reconhecimento da diversidade sexual e de gênero". In: Ribeiro, P.R.C. et al. (orgs.). Educação e Sexualidade: identidades, famílias, diversidade sexual, prazeres, desejos, preconceitos, homofobia. 2. ed. Rio Grande, FURG, pp. 12-26. [ Links ]
Lenarduzzi, Z. V.; Vallejos, A. L.; Yannoulas, S. C. (2000). Feminismo e academia. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. Brasília, vol. 81, n. 199, pp. 425-451. [ Links ]
Louro, G. L. (2000). "Sexualidade: lições da escola". In: Meyer, D. E. E. (org.). Saúde e sexualidade na escola. 2. ed. Porto Alegre, Mediação, pp. 85-96. (Cadernos Educação Básica, 4) [ Links ]
______. (2003). Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista. 5. ed. Petrópolis, Vozes. [ Links ]
Maia, A. C. B. (2004). "Orientação sexual na escola". In: Ribeiro, P. R. M. (org.). Sexualidade e educação: aproximações necessárias. São Paulo, Arte e Ciência, pp. 153-179. [ Links ]
Menéndez, M. C. R (2010). La construcción del género en los primeros años de escuela: una mirada desde la perspectiva del profesorado. Revista Iberoamericana de educación. Recuperado em 10/01/2010, de http://www.campus-oei.org/revista/deloslectores/902Rodriguez.pdf. [ Links ]
Meyer, D. G. (2003). "Escola, currículo e diferença: implicações para a docência". In: Barbosa, R. L. L. Formação de educadores: desafios e perspectivas. São Paulo, UNESP, pp. 257-265. [ Links ]
Meyer, D. E.; Soares, R. F. R. (2004). "Corpo, gênero e sexualidade nas práticas escolares: um início de reflexão". In: Meyer, D. E. (org.). Corpo, gênero e sexualidade. Porto Alegre, Mediação, pp. 5-6. [ Links ]
Minayo, M. C. S.; Deslandes, S. F.; Gomes, R. (2007). Pesquisa Social: teoria, método e criatividade. Petrópolis, Vozes. [ Links ]
Montenegro, T. (2003). Diferenças de gênero e desenvolvimento moral das mulheres. Estudos Feministas. Florianópolis, vol. 11, n. 2, pp. 493-508. [ Links ]
Moreira, R. L. B. D. (1995). Crítica ao modelo interacionista da identidade de gênero. Revista Brasileira de Sexualidade Humana. São Paulo, vol. 6, n. 2, pp. 210-217. [ Links ]
Moreno, M. (1999). Como se ensina a ser menina: o sexismo na escola. Trad. A. V. Fuzatto. São Paulo/Campinas, Moderna/UNICAMP. [ Links ]
Mott, L. (1997). Identidade (homo) sexual e a educação dos diferenciados. Dois Pontos: teoria e prática em educação. Belo Horizonte, vol. 4, n. 31, pp. 53-54. [ Links ]
Nosella, M. L. C. D. (1981). As belas mentiras: a ideologia subjacente aos textos didáticos. São Paulo, Moraes. [ Links ]
Rago, M. (2003). "Por uma educação libertária: o gênero na nova escola". In: Barbosa, R. L. L. Formação de educadores: desafios e perspectivas. São Paulo, UNESP, pp. 479-490. [ Links ]
Rego, T. C. R. (1998). "Educação, cultura e desenvolvimento: o que pensam os professores sobre as diferenças individuais". In: Aquino, J. G. (org.) Diferenças e preconceito na escola: alternativas teóricas e práticas. 3. ed. São Paulo, Summus, pp. 49-71. [ Links ]
Ribeiro, P. R. C. (2002). Inscrevendo a sexualidade: discursos e práticas de professoras das séries iniciais do Ensino Fundamental. Tese (Doutorado no Instituto de Ciências Básicas da Saúde). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. [ Links ]
Ridenti, S.; Vianna, C. (1998). "Relações de gênero e escola: das diferenças ao preconceito". In: Aquino, J. G. (org.). Diferenças e preconceito na escola: alternativas teóricas e práticas. 3. ed. São Paulo, Summus, pp. 93-105. [ Links ]
Scott, J. (1995). Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade. Rio Grande do Sul, vol. 20, n. 2, pp. 71-99. [ Links ]
Silva, R. A. S. (2004). "O ponto fora da curva". In: Meyer, D.; Soares, R. F. R. (orgs.). Corpo, gênero e sexualidade. Porto Alegre, Mediação, pp. 85-94. [ Links ]
Silva, C. D.; Barros, F.; Halpern, S.; Silva, L. A. D. (1999). Meninas bem-comportadas, boas alunas; meninos inteligentes, indisciplinados. Cadernos de Pesquisa. São Paulo, n. 107, pp. 207-225. [ Links ]
Silva, M. P.; Carvalho, W. L. P. (2005). O desenvolvimento do conhecimento pedagógico do conteúdo de sexualidade na vivência das professoras. Rev. Ciência & Educação. Bauru, vol. 11, n. 1, pp. 73-82. [ Links ]
Soares, G. F. (2008). "Mulher e espaço escolar: uma discussão sobre as identidades de gênero". In: Ribeiro, P. R. C. et al. (org.). Educação e Sexualidade: identidades, famílias, diversidade sexual, prazeres, desejos, preconceitos, homofobia. 2. ed. Rio Grande, FURG, pp. 124-134. [ Links ]
Souza, J. F. (2005). Gênero e sexualidade nas pedagogias culturais: implicações para a educação infantil. Recuperado em 4/09/2005, de http://www.ced.ufsc.br/~nee0a6/SOUZA.pdf. [ Links ]
Toscano, M. (2000). Estereótipos sexuais na educação: um manual para o educador. Petrópolis, Vozes. [ Links ]
Unbehaum, S.; Vianna, C. P. (2004). O gênero nas políticas públicas de educação no Brasil: 1988 - 2002. Cadernos de Pesquisa. Fundação Carlos Chagas, São Paulo, vol. 34, n. 121, pp. 53-65. [ Links ]
Whitaker, D. C. A. (1995). "Menino-menina: sexo ou gênero? Alguns aspectos cruciais". In: Serbino, R. V.; Grande, M. A. R. L. (orgs.). A escola e seus alunos: o problema da diversidade cultural. São Paulo, UNESP, pp. 31-52. [ Links ]