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Psicologia da Educação

versão impressa ISSN 1414-6975

Psicol. educ.  no.37 São Paulo dez. 2013

 

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Escrita, texto e leitura: questões para o ensino da psicologia

 

Writing, text and reading: issues to the teaching of psychology

 

Escritura, texto y lectura: cuestiones para la enseñanza de psicología

 

 

Eveline Bouteiller

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP. Psicóloga clínica. Profissional da edição. Doutora em Educação: Psicologia da Educação pela PUC-SP. e-mail: evelinek@uol.com.br

 

 


RESUMO

Neste relato de experiência profissional, pretende-se relacionar escrita, texto e leitura e seu papel na produção de conhecimento durante a formação acadêmica do psicólogo e os cursos de pós-graduação. O lugar da escrita tem sido burocrático, pois escrever na maior parte das vezes serve apenas como avaliação, o que significa que o aluno repete o que já é sabido. O entrelaçamento entre leitura e escrita - e é assim que o texto deve ser entendido - também se dá em termos semelhantes: lê-se muito para adquirir o conhecimento e para aprender a escrever como a academia prefere ler. Escrever e ler passarão a ser importantes na formação do psicólogo quando forem entendidos como processos criativos, atribuidores de sentidos novos, quando a escrita deixar de ser apenas forma de avaliação.

Palavras-chave: escrita; leitura; texto; formação do psicólogo.


ABSTRACT

In this professional experience report, the intention is to connect writing, reading and text and their role in knowledge production during the psychologist's academic education and postgraduate programs. The place of writing has been bureaucratic as, most of the times, writing serves merely as evaluation, which means that the student repeats what is already known. The intertwining between reading and writing - and this is the way in which the text should be understood - also occurs in similar terms: the students read a lot to acquire knowledge and to learn how to write like the academia prefers to read. Writing and reading will become important in the psychologist's education when they are understood as creative processes that attribute new meanings, and when writing ceases to be only a form of evaluation.

Keywords: writing; reading; text; psychologist's education.


RESUMEN

En este relato de experiencia profesional, se pretende relacionar escritura, texto y lectura y su papel en la producción de conocimiento durante la formación académica del psicólogo y en los cursos de postgrado. El lugar de la escritura viene siendo burocrático, pues escribir la mayoría de las veces sirve sólo como evaluación, lo cual significa que el alumno repite lo que ya sabe. El entramado entre lectura y escritura - puesto que así se debe entender el texto - también se da en términos semejantes: se lee mucho para adquirir el conocimiento y para aprender a escribir como la academia prefiere leer. Escribir y leer pasarán a ser importantes en la formación del psicólogo cuando se les entienda como procesos creativos que atribuyen nuevos sentidos, cuando la escritura deje de ser solo una forma de evaluación.

Palabras clave: escritura; lectura; texto; formación del psicólogo.


 

 

Não é difícil afirmar que professores universitários não se sentem obrigados e não se veem levados a estudar linguística ou a recuperar da sua formação secundária o que aprenderam sobre produção textual, mesmo que o enfoque tenha sempre tido predominância literária. O distanciamento e o desconhecimento de textos que tratem de criação literária também são previsíveis. Salvo para especialistas e curiosos, no território acadêmico não se fazem necessárias leituras que encantem ou que gerem inquietação sobre a criação literária.

Não são poucos os testemunhos sobre a intimidade que o escritor precisa conquistar diante de um texto que surge como um estranho. Talvez seja essa a experiência esquecida ou totalmente desconhecida para quem escrever significa apenas um meio de apresentar resultados. Perde-se a oportunidade de pensar a conquista da escrita como o primeiro resultado.

É oportuno lembrar que o estudo da literatura pode servir a algo mais do que conhecer o patrimônio cultural de uma nação ou uma forma de aprender uma língua. Cada vez mais, considera-se profícua e enriquecedora a leitura dos depoimentos que autores literários tecem sobre seu ofício. Neles, encontram-se, com grande regularidade, palavras sobre o esforço, o sofrimento e o trabalho árduo que escrever implica. Dificilmente afirmam que escrever seja processo fácil e linear. Escrever é uma conquista que requer tempo, tolerância às inúmeras leituras que levam às constantes alterações, paciência até que se consiga captar em palavras um pensamento, um sonho, uma imagem, paciência até que se consiga encontrar as palavras, para então se libertar do texto "dito" pronto.

Mais do que desalentadoras, tais leituras retiram a ideia de que escrever depende de força sobrenatural, "dom divino", talento. Fortalecem, ao contrário, a necessidade de um preparo para escrita, de um hábito a ser alcançado. Por sua vez, essa formação depende de um profundo conhecimento sobre o próprio modo de pensar, sobre as maneiras de elaborar e de enfrentar o pensamento, sobre as formas que esse pensamento adquire paulatinamente por meio da escrita.

A escrita exige confrontos. Em virtude da atual organização da formação de profissionais em Psicologia, esse confronto dificilmente vem à tona durante os anos de graduação. Só aparece como enfrentamento quando o trabalho é de longa duração como é o caso das monografias de especialização, dissertações e teses. Não se trata de confronto ao qual se tenha tido frequentemente necessidade e hábito de refletir.

***

Antes de mais nada, dou voz a Roland Barthes para falar de literatura.

(...) a literatura, quaisquer que sejam as escolas em nome das quais ela se declara, é absolutamente, categoricamente realista: ela é a realidade, isto é, o próprio fulgor do real. Entretanto, e nisso verdadeiramente enciclopédica, a literatura faz girar os saberes, não fixa, não fetichiza nenhum deles; ela lhes dá um lugar indireto, e esse indireto é precioso. (1979, p. 18-19)

Talvez seja isso que falte por ora: fazer girar os saberes, colocar-se em movimento para ter uma nova perspectiva.

Barthes continua:

A ciência é grosseira, a vida é sutil, e é para corrigir essa distância que a literatura nos importa. Por outro lado, o saber que ela mobiliza nunca é inteiro nem derradeiro; a literatura não diz que sabe alguma coisa, mas que sabe de alguma coisa; ou melhor ela sabe das coisas - que sabe muito dos homens. (...) Porque ela encena a linguagem, em vez de, simplesmente, utilizá-la, a literatura engrena o saber no rolamento da reflexividade infinita: através da escritura, o saber reflete incessantemente o saber, segundo um discurso que não é mais epistemológico mas dramático. (1979, p. 18-19)

É a partir de tal concepção de literatura que procurei Barthes, escritor, crítico literário, semiológo, para entender o que é texto, escrita e leitura. Para entender como se dá a articulação dessas três instâncias. Deixei-me atravessar pelas leituras. Psicóloga, pensando um pouco do lugar da literatura - sem que nenhum paralelo fosse possível -, imagino outros caminhos para a formação em Psicologia.

***

Iniciar a questão das dificuldades de escrita para alunos de pós-graduação em Psicologia pareceu ser uma via para chegar a compreender o que se passa na graduação. Encontrar alunos que (supostamente) não saibam escrever em um curso de pós-graduação parece ser algo inadmissível. O constrangimento se agrava quando os problemas se revelam com alunos que são ou serão docentes de cursos superiores, no tempo em que igualmente se habilitam como futuros orientadores de pesquisas e de publicações de tipos variados. Dessa constatação, pode-se afirmar que alguns professores e/ou futuros orientadores também apresentarão problemas na escrita.

Antes de mais nada seria preciso entender o que significa escrever mal ou não saber escrever. E esse tipo de observação (ou exclamação) vem tanto de professores quanto de alunos. "O aluno não sabe escrever ou escreve mal" passa a ser "Eu não sei escrever ou escrevo mal".

Considerados os critérios de seleção aos cursos de pós-graduação, como poderia ser aprovado um aluno que não soubesse escrever?

Talvez o modo de escrever não apareça no momento da seleção. Ou a prova não exige tanto fôlego quanto a escrita da dissertação ou tese. Ou o comitê de seleção não se depara com textos ao modo acadêmico. Ou a prova é mal aplicada. Quem sabe...

No entanto, enquanto "escrever bem" for tácito requisito, não se saberá definir o que é "escrever mal" e o que esconde essa maneira vaga de descrever o problema. A suposição é de que escrever bem é condição, é parte do métier acadêmico, senão da profissão de psicólogo. Não escrever bem é avaliação de um longo percurso escolar. Assim tem sido, e o despreparo é atribuído ao ensino médio (aqui o limite é proposital para que não se entre numa regressão, que levaria à análise do ensino no "prézinho"!), à graduação, e acaba por estourar na pós-graduação.

Mais do que reiterado: o aluno escreve para ser avaliado e para o professor que avalia. Escreve-se o que foi depreendido daquilo que foi ensinado. Escreve-se aquilo que muitas vezes requer esforço para ser memorizado. Simplificando: o aluno repete, reproduz em outras palavras, "em suas palavras". É quando prevalece uma maneira de ensinar: o aluno aprende o que é determinado pelo currículo, atravessado pela compreensão do professor nos aspectos que elege como os mais importantes.

Mas escrever é muito mais do que atestar conhecimento. Escrever é conhecer. Relembremos o que foi lido logo acima: "através da escritura, o saber reflete incessantemente sobre o saber"... E é isso que aqui nos interessa. E Barthes dá, entre outras, uma razão para ele escrever: "para produzir sentidos novos, ou seja, forças novas, apoderar-me das coisas de um modo novo, abalar e modificar a subjugação dos sentidos" (2004, p. 102).

O mesmo ocorre com a leitura, para a qual alunos invariavelmente ouvem do professor: "O que acharam?". O que deveriam ter achado? Gostaram, apreciaram, discordaram, criticaram? Ou será que esse achar significa encontrar a leitura que o professor gostaria que tivessem feito? Pois não há leitor que não sinta prazer ao ser acompanhado na compreensão de um texto. No entanto, esse prazer misturado à conivência pode ser desastroso para a formação de leitores críticos.

Uma maneira de invocar o leitor criativo, deixando o viés avaliativo, é lembrar que nesses diálogos - que podem ser calorosos confrontos - brotam os avanços do conhecimento para os sujeitos envolvidos nessa relação. Esses diálogos demonstram a possibilidade de outras leituras. Tudo que pode advir de uma leitura se valida nessa relação de ensino. (Sem esquecer que o professor é, ele próprio, "filhote" de um sistema educacional cujas oportunidades são um tanto nebulosas...)

Se essa outra leitura do texto de outrem é possível, parece óbvio que poderia haver, do próprio texto, essa mesma outra leitura. Assim, ler o próprio texto pode ser tão novo, criativo e estimulador de novas leituras, de leituras críticas, autocríticas com certeza, sem que sejam necessariamente ruinosas. Ler gera mais texto. Mas não é isso que acontece. Seria esse o caminho para "convencer" alunos de que um texto não se faz de uma só vez? É onde se pretende chegar mais adiante.

Em qualquer nível de ensino, a possibilidade do processo criativo está, portanto, vinculada a uma relação de ensino. Não depende exclusivamente dela, mas pode se encaminhar por seu intermédio.

No entanto, essa interação - na suposição de que, como escritor e leitor, o professor também seja disseminador - depende da relação que o professor estabelece com sua própria escrita, com sua própria leitura.

A escrita da dissertação de mestrado talvez seja a situação que melhor ilustre o que significa uma relação de ensino a favor da escrita e do conhecimento. É necessário relembrar que na graduação raras são as experiências em que um texto prossiga a partir da leitura de um professor. No mestrado, ocorre uma mudança: vive-se um processo assistido, observado e acompanhado, e muitas vezes cerceado, na intenção de manter um certo discurso acadêmico.

A possibilidade de subverter cânones acadêmicos relacionados à produção de texto - no sentido de a subversão ser entendida como reviravolta - está relacionada à confiança no professor como interlocutor, não avaliador. Escrever e ler fazem "pipocar" diferentes lugares de interlocução, em momentos diferentes. É proposição de diálogo, à espera de réplica, tréplicas... e tantas vozes mais.

Não há por que se espantar com as cristalizações do discurso acadêmico enquanto as relações entre professor e aluno não sofrerem alterações, senão revolução, a serviço do texto, da leitura e do conhecimento. Será preciso ousar.

Um estudante conquista uma posição na academia e na relação com seus instrutores somente se conquistar autoridade - como leitor e escritor - sobre os textos. Para tanto argumenta Bartholomae, o estudante precisa produzir textos ele mesmo, alterando-os e, ao mesmo tempo, rejeitando a implícita ou assumida autoridade. (...) A relação hierárquica entre o estudante e o instrutor não se dissolverá se o estudante ganhar cada vez mais facilidade com o discurso da academia. (Halasek, 1999, p. 173)

No entanto, atentemos: está-se diante de um ponto muito sensível: "ganhar cada vez mais facilidade com o discurso da academia". O intuito dessa reflexão não é adequar o aluno aos códigos acadêmicos. Longe disso.

***

Em meu ofício de editora de dissertações e teses, a pedido dos pós-graduandos ou mesmo de seus orientadores, duas perguntas são sempre feitas: "Está bom?", "Tem muito o que alterar?". Às vezes não está bom, às vezes tem, sim, muito o que alterar. Esse tipo de solicitação revela o inevitável lugar do julgamento, da apreciação, da solicitação por aprovação, em que se acostumou colocar o leitor, exigindo dele uma leitura "professoral".

Assim, as perguntas: - o que não está bom? O que tem que ser alterado? - não são difíceis de responder. O que não está bom é a certeza de que o autor não releu seu texto. Não revisitou seu texto como convidado pronto para se surpreender. O que tem que ser alterado é tudo aquilo que nem ele compreende...! E não foram poucas as vezes em que alunos confessaram: "É, eu não reli o que escrevi...".

O editor de texto tem um lugar diferente do lugar do orientador. É quando o leitor também tem como foco o texto e sua necessária inteligibilidade. Quando aquilo que um autor pretende dizer está ou não presente no texto, escrito de uma determinada maneira. Mas quando também podem ser mostradas outras hipóteses de sentidos. É muito frequente que um aluno se surpreenda com aquilo que escreveu ou, na sua releitura, veja outras ideias surgirem.

A edição de texto inicia uma negociação, ora esperada, ora inesperada pelo aluno. Essa interlocução, a serviço do texto escrito, pode ser uma novidade para um aluno quando escrever ainda se confunde com tarefa, com atividade avaliadora, com término, com prestação de contas. Muitas vezes as perguntas feitas ao texto servem para conhecer a intenção do autor e não para verificar se o que está escrito é certo ou errado. Servem para mostrar a multiplicidade de sentidos que podem aflorar daquilo que está escrito. Ou da explicação de suas intenções (conhecidas) podem surgir outras às quais a atribuição de sentido dá luz. É o momento em que "abalar e modificar a subjugação dos sentidos" se torna possível. E que surpresa isso causa!

Não se trata de correção de conteúdo (o que também acaba por acontecer). Lê-se para conhecer o autor, suas ideias comunicadas por um estilo a ser respeitado. Quando nesse trabalho, extraem-se as respostas às lacunas (que podem ou não ser preenchidas) ou às incompreensões reveladas pela leitura - e cada leitura faz despontar novas indagações, cada leitura será uma nova leitura. Surgem a fala, o diálogo e, portanto, aquilo que ainda pede escrita. Conversas que levam o autor a ampliar ou reduzir o texto até poder dele se ausentar. Libera o texto e libera-se para outra escrita, colocando o sempre provisório ponto final. Não deixarão de ser requisitadas as considerações finais, as solicitações de soluções. Mas deveria haver a consciência do provisório que as acompanha. E porque a vida se moveu após O ponto final, e porque as leituras moverão o texto. Afinal, diz Barthes: "Leitura é aquilo que não para" (2004, p. 171, grifos do autor).

***

No meu trabalho, estou sempre a receber os trabalhos "concluídos" de última hora. É óbvio que aí não há muito o que fazer, se não conformá-los à norma culta - isso há de ser feito - e tornar os pontos obscuros mais claros. Mas sempre acaba surgindo tempo de "aumentá-los" com ideias novas surgidas de um diálogo propiciado pela leitura do editor, pelas novas descobertas do autor.

Na pós-graduação, a escrita torna visível um longo processo de conhecimento e de investigação, e, à diferença da graduação, o resultado final é maior que uma avaliação de conteúdo disciplinar, ao término de um semestre. Isso requer uma dedicação contínua à escrita, que, como se viu, não é habitual. Transformações na forma de estudar são necessárias. Ao escrever com regularidade, não há como o aluno não realizar a transição da postura passiva de receptor à postura ativa de produtor de conhecimento.

Deixar para escrever uma dissertação ou uma tese às vésperas da defesa de um título ocasiona prejuízos severos. Infelizmente, isso tem sido cada vez mais frequente, muitas vezes pelo fato de o candidato continuar a conceber a escrita como um acessório terminal da pesquisa. É grande o tempo desperdiçado nos capítulos introdutórios, teóricos ou de método. Quando isso acontece, os capítulos mais prejudicados costumam ser justamente aqueles nos quais a voz do autor deveria se fazer ouvir, a saber, os capítulos de análise, discussão e conclusão, em que modo de pensar e ideias próprias deveriam florescer. As análises são apressadas. As conclusões se restringem muitas vezes a duas páginas que mais soam como resumo. E é nelas que o maior desejo de escrita deveria aparecer.

A insuficiência de tempo tem sido a justificativa. Que seja então!

Seria este o ideal: fazer com que esse processo se desse logo no ingresso à pós-graduação, ou desde os primeiros trabalhos da graduação. (Aí, sim, poderíamos dar uma trégua à norma culta, para que a escrita fluísse antes das rédeas da ortografia e da gramática!)

***

Aqui, precisamos voltar a dar uma caminhada fora do âmbito da Psicologia e começar a entender o quão proveitoso pode ser esse passeio e de que maneira ele nos interessa.

Como entender o texto? Como entender a escrita? Como entender a leitura? Como entender a articulação dos três?

Diz-se texto para o produto da escrita; é assim que é referido: um texto. Na afirmação "Entreguei um texto para meu orientador", está-se se falando da coisa escrita.

Mas texto é também uma abertura ao plural, a possibilidade de múltipla atribuição de sentidos, o efeito que esses sentidos provocam no leitor, o que é gerado a partir dele, o que o leitor cria a partir DELE. O texto não acaba, assim como a leitura não para.

Texto quer dizer Tecido; mas enquanto até aqui esse tecido foi sempre tomado por um produto, por um véu todo acabado, por detrás do qual se mantém, mais ou menos oculto, o sentido (a verdade), nós acentuamos agora, no tecido, a ideia gerativa de que o texto se faz, se trabalha através de um entrelaçamento perpétuo (...). (Barthes, 1993, p. 82-83)

O texto é plural. Assim como o é a leitura. E nessa pluralidade texto e leitura se entrelaçam.

Essa pluralidade não deveria se esvair na exigência de precisão dos códigos acadêmicos. E o que nos interessa aqui é que a experimentação dessa pluralidade se realize na escrita, à medida que ela acontece em texto e leitura.

O texto é uma produtividade. Isso não quer dizer que é o produto de um trabalho (o que poderia ser exigido pela técnica da narração e pela maestria do estilo), mas sim o teatro de uma produção em que se reúnem o produtor do texto e seu leitor: o texto "trabalha", a cada momento e por qualquer lado pelo qual seja tomado; mesmo escrito (fixado), ele não pára de trabalhar, de manter um processo de produção. (Barthes, 2004, p. 271)

Talvez fosse mais fácil pensar no contrário, numa leitura que promovesse, por exemplo, dissenso, uma leitura inesperada nos caminhos que traçamos para o conhecimento. E é dessas leituras que fugimos tantas vezes. Leituras que nosso próprio texto pode provocar no leitor. Uma possibilidade dentre tantas pode ocorrer na leitura do próprio texto, daquele texto para o qual deveríamos retornar, como desconhecidos, um tempo depois.

(Parênteses: seria possível imaginar tudo isso para textos que fossem apenas repetição do que já foi dito e redito? Essa é uma questão que pressupõe alunos autores.)

***

Autoria não será aqui entendida apenas como o atestado de origem de uma peça escrita. Trata-se da autoridade de réplica, de criação e de atribuição de sentido diante do conhecimento apresentado. Autor é o aluno que deixa de reproduzir, repetir e passa a se pronunciar como alguém que se deixou atravessar pelo conhecimento e se transformou. Torna-se autor aquele que cria conhecimento novo a partir de seu desejo de conhecimento.

Pela etimologia, Benveniste (1994) ilumina a palavra:

Qualifica-se de auctor, em todos os domínios, aquele que "promove", que toma uma iniciativa primeiro, que é o primeiro a produzir uma atividade, aquele que funda, aquele que garante, É finalmente o "autor". A noção de auctor se diversifica em várias acepções particulares, mas ela se liga claramente ao sentido primeiro de augeo "fazer sair, promover".

***

Na academia, impõe-se - sutil (correções de "picuinhas") ou explicitamente - que se escreva da maneira como a academia prefere ler, segundo os modos de arguição ou do tempo disponível para a leitura (não se pode esquecer que a leitura de textos acadêmicos é atividade docente; é improvável que se leiam, por exemplo, dissertações ou teses por diletantismo).

Normalmente, aprende-se a escrever ao modo acadêmico pela leitura de textos que se transformam em modelos: teses, dissertações, monografias, artigos científicos. Pela leitura, aprende-se como se organiza, conduz e expõe um texto, ao mesmo tempo em que se assimilam certos modos de escrever e léxicos especializados. Existe a tarefa escrita, sem que se convoque o desejo de escrever.

O esforço se concentra na tentativa de corresponder às expectativas de um ambiente discursivo específico. A escrita se torna um acessório do conhecimento, burocrático, asséptico, mecânico. No âmbito acadêmico, a escrita facilmente se desvincula do processo criativo, isso quando é vinculada. A insistente burocratização torna o aluno escrivão a serviço da mesmice. Criar conhecimento parece ser secundário. Não é nada raro chegar ao final de uma tese perguntando-se: onde está a tese (que não seja o volume que se tem em mãos)?

***

O cumprimento de modelos estabelece uma relação burocrática entre o autor (o nome) e o texto. No entanto, ainda assim a repetição do modelo tem sua justificativa. Trata-se do desejo de pertencer à academia por meio de uma maneira de escrever que lhe é própria. O esforço se concentra na tentativa de corresponder às expectativas de um ambiente discursivo específico. A escrita se torna um acessório do conhecimento, burocrático, asséptico, mecânico.

No âmbito acadêmico, a escrita facilmente se desvincula do processo criativo. A insistente burocratização torna o aluno escrivão a serviço da mesmice. Criar conhecimento deixa de ser objetivo.

Ferreira (2009, p. 263) afirma:

Não é incomum que os profissionais da pesquisa e da intervenção aceitem e colaborem com a ideia de simplesmente replicar no país o que tenha sido produzido no exterior. Parece clara a ocorrência de um tipo de adesão ao pensamento encontrado pronto. (...) Trata-se de uma simples adesão, porque ela ocorre até mesmo sem que sejam claras as condições de produção desse conhecimento.

Prossegue Ferreira:

O profissional que faz o debate a partir da adesão ao conhecimento encontrado pronto parece se sentir pessoalmente questionado quando ocorre crítica a alguma ideia. Frequentemente esse profissional que se dispôs ao papel de defensor das ideias de outrem adota uma postura de quem ficou magoado e reage com invectivas à proposição de dúvidas e questionamentos. (Idem, ibidem)

Se é a reiteração de um saber que é almejada, é um pulo para que o aluno também se sinta incapaz. Mas se é só reiteração o que o aluno é capaz de realizar (e pela qual é cobrado), tem-se aí um problema bem maior: é uma questão de ensino e, portanto, de perpetuação da mesmice. Grave é se isso não se torna perceptível.

Romper com a replicação também é marcar oposição, exercer ousadia e rebeldia, é criar, é pensar. Foucault (1996) esclarece: "O nome do autor não está situado no estado civil dos homens nem na ficção da obra, mas sim na ruptura que instaura um certo grupo de discursos e o seu modo de dizer singular". Ruptura que se faz na escrita, no texto, na leitura.

Pouco se ouve falar do desejo de escrita. Mas muito se ouve falar sobre os impedimentos de uma escrita em que o desejo se manifeste. Barthes propõe a vivência de uma escritura que convoque um sujeito com sua paixão, com seus desejos, movido por razões muito mais amplas do que o simples pertencimento a uma instituição. Ao falar em escritura, sugere a vivência de desnorteamento, de deriva. Trata-se de uma escritura que leve a territórios nunca antes explorados, muito provavelmente o oposto daquilo que a academia pede ao texto. Lembra Barthes: "as palavras não são simples instrumentos, são lançadas como projeções, explosões, vibrações, maquinarias, sabores: a escritura faz do saber uma festa (Barthes, 1989, p. 97)."

Entre uma escritura de aventura, que se abre ao desconhecido e ao novo, que se deixa levar pelo desejo de escrita, e as exigências acadêmicas - quase sempre conclusivas, terminais, insistentemente assépticas - cria-se um fosso em que o avanço do conhecimento estagna e se vê comprometido. A possibilidade de prazer se esvanece completamente e precisa ser resgatada.

E Barthes (1989, p. 21) diz:

O paradigma que aqui proponho não segue a partilha das funções; não visa a colocar de um lado os cientistas, os pesquisadores, e de outro os escritores, os ensaístas; ele sugere, pelo contrário, que a escritura se encontra em toda parte onde as palavras têm sabor (saber e sabor têm, em latim, a mesma etimologia).

O reconhecimento da autoria é uma decorrência da relação com a escrita. Quanto mais burocrática for essa relação, quanto mais ela impedir o exercício da criação, a manifestação de ideias próprias, a expressão de um estilo próprio, mais comprometido estará o avanço do conhecimento. Quanto mais se permitir que um aluno se desenvolva como autor, mais próximo se estará de um conhecimento genuíno e não apenas reprodutivo.

Para chegar a tudo isso, é preciso entender que a escrita não se encontra fora do sujeito: a escrita o constitui. É preciso entender que o aluno, a quem se quer tanto atingir com o conhecimento, sofre transformações provocadas pelo próprio conhecimento e que a escrita não deveria então refletir nem prontidão, nem conclusão: deveria refletir iniciação, transformação, desenvolvimento e prazer.

 

REFERÊNCIAS

Barthes, R. (1988). O rumor da língua. São Paulo: Brasiliense.         [ Links ]

Barthes, R. (1989). Aula. São Paulo: Cultrix.         [ Links ]

Barthes, R. (1993). O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva.         [ Links ]

Barthes, R. (2004). Inéditos. Vol 1 - Teoria. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Benveniste, E. (1994). Le vocabulaire des institutions indo-européennes. 2. Pouvoir, droit, religion. Paris: Les Editions de Minuit.         [ Links ]

Ferreira, M. R. (2009). "Inventamos ou erramos: sobre a necessidade de combater colonialismo cultural e promover uma Psicologia brasileira e latino-americana". In: Bock, A. M. B. Psicologia e o compromisso social. São Paulo: Cortez.         [ Links ]

Foucault, M. (1996). O que é um autor? Lisboa: Vega/Passagens.         [ Links ]

Halasek, K. (1999). A pedagogy of possibility. Bakhtinian perspective on composition studies. Carbondale: Southern Illinois University Press.         [ Links ]