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Psicologia da Educação

versão impressa ISSN 1414-6975versão On-line ISSN 2175-3520

Psicol. educ.  no.50 São Paulo jan./jun. 2020

https://doi.org/10.5935/2175-3520.20200004 

ARTIGOS

 

A dimensão subjetiva da aprendizagem do estudante adulto em situação de vulnerabilidade social

 

The subjective dimension of adult student learning in situations of social vulnerability

 

La dimensión subjetiva del aprendizaje del estudiante adulto en situación de vulnerabilidad social

 

 

Raissa Silva PaulinoI; Maristela RossatoII

IUniversidade de Brasília - UNB - Brasília - DF - Brasil; raissasilvap@hotmail.com
IIUniversidade de Brasília - UNB - Brasília - DF - Brasil; maristelarosato@gmail.com

 

 


RESUMO

O objetivo dessa pesquisa foi analisar como a condição de aprendente escolar está constituída na subjetividade de estudantes em situação de vulnerabilidade social, fundamentado na Teoria da Subjetividade desenvolvida por González Rey. As informações foram produzidas a partir de entrevistas semiestruturadas, complemento de frase, diário de campo, linha do tempo (trajetória de vida e escola) e observação. A pesquisa foi realizada em uma escola pública do Distrito Federal, que atende especificamente moradores ou ex-moradores de rua, que vivem em situação de vulnerabilidade social. Identificou-se que, nos três participantes da pesquisa, mesmo tendo passado por experiências bem parecidas, como ter morado nas ruas, serem ex-usuários de drogas e terem abandonado a escola ainda na adolescência, o modo como subjetivam a condição de aprendente escolar é perpassado pela natureza dos sentidos subjetivos que são produzidos no tempo presente, por vezes expressando uma condição de sujeito ou de agente do processo de aprendizagem escolar.

Palavras-chave: Subjetividade; Aprendizagem escolar; Vulnerabilidade social.


ABSTRACT

The aim of this research was to analyze how the condition of school learner is constituted in the subjectivity of students in a situation of social vulnerability, based on the Theory of Subjectivity developed by González Rey. The information was produced from semi-structured interviews, sentence complement, field diary, timeline (life trajectory and school) and observation. The research was carried out in a public school in the Federal District, which specifically serves residents or former homeless people, who live in a situation of social vulnerability. We identified in the three research participants that, even though they had very similar experiences, such as living on the streets, being ex-drug users and having left school while still in their teens, the way they subjectivate the condition of school learner is permeated by the nature of the subjective senses that are produced in the present time, sometimes expressing a condition of subject or agent of the school learning process.

Key words: Subjectivity; School learning; Social vulnerability.


RESUMEN

El objetivo de esta investigación fue analizar cómo se constituye la condición del aprendiz escolar en la subjetividad de los estudiantes en una situación de vulnerabilidad social, basada en la Teoría de la subjetividad desarrollada por González Rey. La información se produjo a partir de entrevistas semiestructuradas, complemento de oraciones, diario de campo, línea de tiempo (trayectoria de vida y escuela) y observación. La investigación se llevó a cabo en una escuela pública en el Distrito Federal, que atiende específicamente a personas sin hogar y que ya fueron sin hogar, que viven en situación de vulnerabilidad social. Identificamos en los tres participantes de la investigación que, a pesar de que tuvieron experiencias muy similares, como vivir en la calle, ser ex drogadictos y haber dejado la escuela cuando aún eran adolescentes, la forma en que subjetivan la condición de un aprendiz escolar está impregnada por la naturaleza de los sentidos subjetivos que se producen en la actualidad, o que expresa una condición de sujeto o de agente del proceso de aprendizaje escolar.

Palabras clave: Subjetividad; Aprendizaje escolar; Vulnerabilidad social.


 

 

INTRODUÇÃO

A desigualdade social é um fenômeno que ocorre na maioria dos países, sejam eles ricos ou pobres. Essa desigualdade social, no Brasil, é gerada por inúmeros fatores e se expressa numa realidade onde a maior parte das riquezas está concentrada numa pequena parcela da população, ficando, a menor parte, para a grande maioria. Esse fenômeno social faz com que muitos vivam em situação de vulnerabilidade social e sua forma extrema se expressa em populações que vivem nas ruas, como sua única forma de sobrevivência.

É por meio do IVS - Índice de Vulnerabilidade Social - que se geram indicadores sobre a vulnerabilidade social no Brasil, levando em conta três aspectos: infraestrutura urbana, capital humano, renda e trabalho. De acordo com o Atlas da Vulnerabilidade Social - ferramenta que disponibiliza informações para consulta em vários formatos de dados sobre a temática da vulnerabilidade social, oferecendo assim, um cenário da exclusão social dos municípios, estados e das regiões metropolitanas do Brasil - o IVS compreende o conceito de vulnerabilidade social como um entrelaçamento entre duas concepções: a elaborada por Castel (1995/1998) que vincula à desfiliação e a elaborada por Moser (1998) sobre a vulnerabilidade ideia de vulnerabilidade social de ativos. Desse modo, sobre a concepção de social adotada pelo IVS:

Parte do reconhecimento de que as vulnerabilidades sociais decorrem de processos sociais mais amplos, contra os quais o indivíduo, por si só, não tem meios para agir; e cujos rumos, só o Estado, através de políticas públicas, tem condições de alterar. Assim, a definição de vulnerabilidade social em que este IVS se ancora diz respeito à ausência ou insuficiência de ativos que podem em grande medida ser providos pelo Estado, em seus três níveis administrativos (União, Estados e Municípios), constituindo-se, assim, num instrumento de identificação das falhas de oferta de bens e serviços públicos no território nacional. O IVS foi pensado para dialogar com o desenho da política social brasileira, uma vez que atesta a ausência ou insuficiência de "ativos" que, pela própria Constituição Federal de 1988, deveriam ser providos aos cidadãos pelo Estado, nas suas diversas instâncias administrativas (IPEA).

A vulnerabilidade social se caracteriza pela ausência ou insuficiência de ativos, ou meios, que poderiam ou deveriam ser providos pelo Estado, uma vez que uma pessoa nessa situação não consegue agir por não ter meios, ou bens, ou serviços públicos para se sustentar na sociedade, vivendo assim, à margem de sua própria dignidade.

Um dos vários âmbitos da sociedade em que as situações de vulnerabilidade social influenciam, é no âmbito da educação escolar. De acordo com a plataforma do IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística uma das causas que define as porcentagens de abandono e atraso escolar dos jovens de 15 a 17 anos é a renda. Em 2018, aproximadamente 11, 8% das pessoas com essa idade, que se encontravam entre os 20% da população de baixa renda, deixaram a escola sem concluir a educação básica. Em todo o Brasil, aproximadamente 737 mil jovens nessa faixa etária se encontravam nessa situação. Desse modo o abandono escolar é cerca de oito vezes maior entre os jovens de famílias mais pobres. Isso se repete de um modo ainda mais grave, na situação escolar dos jovens de 18 a 24 anos, enquanto 63, 2% dos jovens dessa faixa etária que estão entre os 20% da população com maiores rendimentos conseguem frequentar o ensino superior, apenas 7, 4% dos jovens de baixa renda estão nessa modalidade de ensino.

Esses dados ilustram parte da complexa relação que existe entre vulnerabilidade social e educação escolar. É possível compreender, pelo exposto, que uma pessoa em situação de vulnerabilidade social tende a continuar nessa mesma situação, uma vez que não consegue acesso a serviços básicos, como a escola. Parte desses jovens que se evadem da escola sai para trabalhar em prol da manutenção da própria subsistência e, muitas vezes, da família.

Quando os jovens saem da escola para trabalhar, a maioria não regressa, e a situação de vulnerabilidade social em que essa pessoa se encontra acaba se perpetuando e até se agravando pelas dificuldades que passam e enfrentam no mundo do trabalho por não terem escolarização e qualificação. Interromper esse ciclo de abandono escolar para suprir necessidades básicas, mas que também colocam a pessoa em situação de mais vulnerabilidade social é, ainda, um grande desafio que precisa ser enfrentado, não somente pelo Estado, mas também pela sociedade em geral.

Mesmo reconhecendo todas as questões levantadas sobre a exclusão e as condições de vulnerabilidade social, que poderiam ser apontadas como condicionantes da vida nas ruas, há a necessidade de se reconhecer que cada ser humano tem uma produção subjetiva que é singular sobre suas experiências de vida. Isso nos gera um alerta às generalizações, abrindo caminhos para a compreensão da singularidade produzida pelo caráter gerador da subjetividade, como veremos adiante. Com isso, não estamos afirmando tratar-se apenas de uma questão de esforço pessoal, pelo contrário, pois a força que possibilita o enfrentamento das condições de vulnerabilidade social é decorrente do desenvolvimento de recursos diversos, dentre eles, os de natureza subjetiva. Reconhecemos que o ambiente escolar, pela via de processos qualificados de aprendizagem, é um espaço privilegiado para o desenvolvimento de recursos subjetivos que podem se constituir mobilizadores do desenvolvimento da pessoa.

Assim, a presente pesquisa teve o objetivo de analisar como a condição de aprendente escolar está constituída na subjetividade de estudantes em situação de vulnerabilidade social. O reconhecimento dessa condição no processo de aprendizagem implica em superar a ideia do conhecimento como algo despersonalizado, pois "todo conhecimento precisa de uma representação geral do que se aprende, que oriente o posicionamento da pessoa ante ao que está aprendendo" (González Rey, 2014, p. 31).

Destacamos a importância desse trabalho para a compreensão dos fenômenos relacionados ao reconhecimento da condição singular do estudante na aprendizagem escolar. Nas buscas realizadas, com intuito de fornecer um panorama sobre o conhecimento produzido na área, identificamos relatórios, como os do IBGE, que geram dados a respeito da situação educacional e realidade do Brasil e relacionam apenas de modo direto esses dois fenômenos, sempre abordando o grupo social de pessoas que estão em situação de vulnerabilidade social. Embora essa questão também seja importante, principalmente como sustentação para elaboração de políticas públicas, não encontramos referências da relação entre educação e a situação de vulnerabilidade social que abordasse a pessoa que está nessa situação, em sua integralidade, reconhecendo-a em sua condição geradora de subjetividade sobre sua condição de vida e, principalmente, sua condição de aprendente escolar.

Entendemos que o homem é um ser social e vive sempre em relação com o outro, no entanto, o homem também possui sua individualidade, sua compreensão e produção singular e única da sociedade em que vive e das relações em que está inserido. Assim, entendemos que a pessoa em situação de vulnerabilidade social tem uma produção subjetiva sobre sua própria situação, que também é constituída pela subjetividade social dos grupos diversos, dentre eles, a que está inserido.

Apesar disso, para que a pessoa se torne ativa dentro da sociedade em que está, é necessário que haja produção de sentidos subjetivos diferenciada, impulsionando-a a romper com as barreiras sociais e, nesse sentido, a educação escolar pode ser uma fonte de desenvolvimento de novos recursos subjetivos que lhe possibilitem essa emergência. Ou seja, a produção subjetiva da pessoa em situação de vulnerabilidade social pode possibilitar que ela emerja como agente, ou sujeito, enfrentando e até mesmo rompendo com essa situação em que vive.

Dessa forma, o presente estudo se faz importante por colocar em discussão esse olhar para a compreensão não apenas do grupo de pessoas em situação de vulnerabilidade social, mas das pessoas que estão em situação de vulnerabilidade social. Para isso, recorremos à Teoria da Subjetividade desenvolvida por González Rey, que reconhece a produção subjetiva singular das pessoas, reconhecendo que as experiências de vida são mobilizadoras da produção de sentidos subjetivos singulares e colocando em evidência o caráter gerador da subjetividade. Por meio dessa abordagem teórica encontramos sustentação para o reconhecimento dos processos de desenvolvimento para além de condicionantes da vida das pessoas, reconhecendo, também, as possibilidades de emergência da mesma (González Rey, 2005).

O grupo de pessoas que está em situação de vulnerabilidade social pode até estar vivenciando as mesmas experiências, no entanto, cada uma dessas pessoas produz sentidos subjetivos diferentes sobre essas mesmas experiências. Essa singularidade é fruto dos recursos subjetivos construídos em suas histórias de vida, bem como de seus recursos personológicos, que entram em ação nas experiências atuais de vida, produtora de novos recursos subjetivos.

A subjetividade na perspectiva cultural-histórica

A subjetividade, segundo González Rey, para que possa ser tomada como unidade de análise, precisa ser reconhecida em sua dimensão teórica-epistemológica-metodológica. Essa compreensão de subjetividade está apoiada com particular força no conceito de sentido subjetivo, que representa a forma essencial dos processos de subjetivação. Os sentidos subjetivos são geradores das configurações subjetivas, assim como uma expressão do sistema de configurações subjetivas já constituído, que se organizam no percurso das ações e relações humanas. Nas experiências, os sentidos subjetivos emergem como fluxos simbólico-emocionais sempre inéditos. "Essas configurações devem ser compreendidas pela interpretação das formas diversas de expressão da pessoa que configuram o tecido subjetivo das experiências vividas" (González Rey, 2013, p. 29).

A subjetividade, numa perspectiva cultural-histórica, pode ser compreendida como "uma produção qualitativamente diferenciada dos seres humanos dentro das condições sociais, culturais e historicamente situadas em que vivemos, o que implica a rejeição de qualquer conceito ou princípio universal como base da teoria" (González Rey & Martínez, 2017, p. 62). Nesse sentido, a subjetividade não representa um suprassistema acima das ações humanas e dos contextos em que essas ações acontecem, não sendo, assim, um sistema fechado, mas um sistema configuracional que se organiza e reorganiza por configurações subjetivas diversas, em vários momentos e contextos da experiência do homem. Dessa forma, os conceitos desenvolvidos pelo autor para "gerar a visibilidade dos processos e formas da organização da subjetividade são: sentidos subjetivos, configurações subjetivas, sujeito, subjetividade social e subjetividade individual" (González Rey & Martínez, 2017, p. 62).

González Rey, em sua proposta teórica, compreende que a subjetividade se integra em dois níveis diferentes, mas que estão estreitamente inter-relacionados em suas configurações subjetivas: a subjetividade social e a subjetividade individual. Esses dois níveis se relacionam intrinsecamente organizados um no outro, recursivamente.

Outro conceito muito importante na teoria é o de sujeito. Esse conceito foi introduzido nos trabalhos desse autor em 1989, com o intuito de separar seus estudos da forma tradicional que a Psicologia soviética distinguia sujeito e personalidade. Foi nesse momento que o autor articulou a teoria da personalidade com a ação, considerando que o indivíduo, como sujeito da experiência, está sempre envolvido em suas ações que, ao mesmo tempo, são produções subjetivas.

O conceito de sujeito facilitou-nos sair de uma concepção determinista da personalidade, pois o ato humano não resulta dela, mas, sim, do indivíduo ativo imerso na experiência, em cujo curso o ato se configura não a priori, como resultado de uma estrutura psicológica (González Rey & Martínez, 2017, p. 66).

O agente e o sujeito não são a-históricos, nem estáticos e não estão substanciados numa condição subjetiva original, ou seja, o sujeito e o agente estão situados em um tempo histórico e estão sempre em movimento. No entanto, essas duas categorias se diferem:

[O agente é] o indivíduo - ou grupo social - situado no devir dos acontecimentos no campo atual das experiências; uma pessoa ou grupo que toma decisões cotidianas, pensa, gosta ou não do que lhe acontece, o que de fato lhe dá uma participação nesse transcurso. Por sua vez, o conceito de sujeito representa aquele que abre uma via própria de subjetivação, que transcende o espaço social normativo dentro do qual suas experiências acontecem, exercendo opções criativas no decorrer delas, que podem ou não se expressar na ação (González Rey & Martínez, 2017, p.72).

Por fim, destacamos que a construção da subjetividade desenvolvida por González Rey perpassa a compreensão de um sistema complexo que nos permite a superação da taxonomia extensiva de funções, processos e formas de comportamento que têm definido a história dos posicionamentos teóricos dominantes da Psicologia.

Faz-se importante que se compreenda esse estudante em situação de vulnerabilidade social como um sistema complexo, que tem sua própria produção subjetiva sobre as experiências que vivencia. Desse modo, nesse estudo, analisaremos como a condição aprendente escolar está constituída na subjetividade de estudantes em situação de vulnerabilidade social, abrindo possibilidades de novas compreensões e ações com estudantes, independente de viverem ou não nas ruas.

 

MÉTODO

A pesquisa desenvolvida foi de natureza qualitativa, orientada por alguns pressupostos que regem a metodologia construtivo-interpretativa desenvolvida por González Rey (2002, 2005), como a legitimação da contribuição singular dos casos, o valor da dialogicidade na relação entre pesquisador e participantes da pesquisa, assim como o reconhecimento dos instrumentos como recursos mobilizadores da expressão dos participantes (Rossato & Martínez, 2018).

Contexto da pesquisa

A pesquisa foi realizada em uma escola pública do Distrito Federal que atende, especificamente, estudantes em situação de rua, ou estudantes com histórico de rua. Essa escola foi formalizada como instituição escolar pela Secretaria de Educação do Distrito Federal (SEE/DF), no ano de 1995. Anteriormente atendia socialmente crianças e adolescentes em situação de rua, com eventos promovidos por outras secretarias, como a Secretaria da Cultura e a própria Secretaria de Educação do Distrito Federal. A escola, além de oferecer escolarização formal, dispõe de espaço e material para higiene pessoal, além de alimentação para ser consumida no local.

Construção do cenário social da pesquisa

O cenário social da pesquisa não diz respeito ao local físico onde a pesquisa ocorre, mas, segundo Rossato (2009, p. 122) "é um espaço virtual de relações com os sujeitos que integram esse lugar". Essas relações foram se constituindo desde os primeiros momentos da pesquisadora na escola, com a diretora e a coordenadora, que orientaram quanto ao funcionamento e a rotina dos estudantes e, depois, de modo especial, com a professora de artes da escola. A relação com a professora de artes foi importante no decorrer de toda a pesquisa, pois, conversando com ela e explicando sobre o tema da pesquisa, orientou sobre os estudantes que poderiam ser possíveis participantes e apresentou a pesquisadora aos mesmos como alguém que estava ali com o mesmo objetivo dos estudantes: o de aprender.

A relação estabelecida com os professores nos intervalos das aulas contribuiu para a compreensão de alguns fenômenos descritos mais especificamente nos casos analisados. A possibilidade de participar dos intervalos na sala dos professores permitiu a construção de alguns parâmetros relacionados à subjetividade social da escola. Muitos assuntos relacionados à pesquisa surgiam também nesses intervalos. Muitos professores perguntavam sobre o tema que estava sendo desenvolvido, dando suas opiniões sobre a pesquisa. Os professores também demarcaram seus interesses em fazer pós-graduação, embora considerassem muito desafiador voltar a estudar em uma universidade federal, pois exigia uma dedicação quase que exclusiva.

A ida da pesquisadora a escola passou a se constituir num espaço dialógico com os estudantes, fazendo com a pesquisa não ficasse restrita ao olhar de pesquisadora. González Rey & Martínez (2017) pontuam a importância dessa relação dialógica e afirmam que ela vai tomando forma nas várias conversações que se organizam no curso da pesquisa, favorecendo não só a emergência da subjetividade dos participantes, mas também a emergência da subjetividade do pesquisador, que é essencial para a produção teórica. Essa relação dialógica na construção do cenário social da pesquisa foi sendo estabelecida à medida que ocorria a participação da pesquisadora em todas as atividades que os estudantes faziam: se pintavam, a professora dava algo para a pesquisadora pintar também, se faziam atividades com colagem, ela também fazia, participando ativamente do cotidiano das aulas junto com os estudantes. Dessa forma, entre uma atividade e outra, a pesquisadora ia dialogando com eles.

Os participantes da pesquisa

"A legitimidade da produção do conhecimento nunca é um fato populacional, é sempre um processo teórico-metodológico" (González Rey & Martínez, 2017, p. 104). Desse modo, uma vez que todos os estudantes da escola onde a pesquisa foi realizada encontravam-se em situação de rua ou com histórico de situação de rua, o processo de seleção contou com a ajuda da professora que os conhecia há mais tempo. Assim, ao final de algumas semanas indo para a escola regularmente, foram identificados 3 (três) participantes para a pesquisa. Essa escolha foi orientada pela regularidade de frequência na escola e pela possibilidade de expressão oral sobre as próprias histórias vividas.

Os instrumentos da pesquisa

Segundo, González Rey (2005, p. 42), o instrumento seria "toda situação ou recurso que permite ao outro expressar-se no contexto de relação que caracteriza a pesquisa". O instrumento representa um caminho para o pesquisador mobilizar expressões do participante. Os instrumentos não são uma via de produção de resultados, mas uma via de produção de informações, representando meios para envolvê-las emocionalmente. Os instrumentos utilizados na pesquisa foram: complemento de frase, entrevista semiestruturada, diário de campo com registro de situações informais e reflexões da pesquisadora, linha do tempo das trajetórias de vida e escola.

Análise e Discussão das Informações

A seguir, apresentamos a análise e discussão das informações produzidas com três estudantes adultos com histórico de rua. É importante destacar que a subjetividade não aparece de modo direto nas respostas dos participantes, mas é analisada por meio de significados que vão sendo construídos pelo pesquisador no decorrer da pesquisa.

Caso Everton

Everton nasceu na Bahia e lá tem sua família. Veio para Brasília em 2016, para trabalhar, em busca de uma vida melhor, sem saber ao certo o que essa vinda acarretaria em sua vida. No momento da pesquisa, ele estava frequentando as aulas havia 2 (dois) meses. A questão do trabalho foi o principal elemento motivacional para que ele tivesse a necessidade de voltar a estudar.

A compreensão de Everton sobre sua condição de aprendente escolar evidencia a presença de sentidos subjetivos relacionados com a escola e educação como algo importante em sua vida, para aprender a ler e escrever e como resgate de oportunidades perdidas, de modo especial em relação às oportunidades de trabalho: "O que fez eu voltar a estudar foi por eu não ter minha leitura véi, por isso que me fez voltar a estudar. Arrependimento, né. Mas arrependimento, né, porque naquela época parei de ligar e não estudei. crescido e ficando velho, aí preferi estudar, aprender alguma coisa" (Entrevista).

Na sua compreensão a escola deve ensinar os estudantes a ler e a escrever, para que, com isso, possam sair da escola e arrumar um trabalho de acordo com o nível exigido. Ele reafirma isso em outro momento, quando questionado sobre como a escola poderia contribuir para sua vida hoje: "Pra mim é me dando a leitura, educação. Pra mim é educação, só isso que eu quero da escola, não quero mais nada, só a leitura" (Entrevista). Everton se esforça muito para isso, como evidenciado durante a realização do complemento de frase.

Na realização desse instrumento, quando lhe foi dito que poderia dizer o que de mais importante lhe vinha à mente quando a pesquisadora falasse uma frase, ele perguntou se poderia falar de verdade o que mais pensava quando ela fosse dita. O complemento de frase teve uma parte escrita pelo próprio estudante e outra parte teve que ser gravada, pois Everton, no momento da pesquisa, ainda não estava alfabetizado completamente, escrevendo apenas algumas palavras e seu nome, fato que lhe orgulhava muito. No início do complemento de frase, ele pediu para escrever e, com a ajuda da professora de artes, as frases eram estruturadas por ele. A professora escrevia em uma folha e ele copiava, demonstrando, assim, um grande esforço na tentativa de aprender a ler e escrever. Depois de um tempo tocou o sinal para o lanche e, na volta para terminar o complemento de frase, optou-se por gravar o restante das respostas.

Ensinar os estudantes a ler e escrever é uma função social da escola como instituição e é esperado que alguém que está em uma situação de vulnerabilidade vivendo nas ruas, deseje aprender a ler e escrever, uma vez que isso é um requisito básico para que ele possa arrumar trabalho. O desafio a ser enfrentado é a falta de entendimento da função social da própria escola, que reforça essa compreensão limitada, não dimensionando suas ações e relações para além de ensinar estudantes a ler e escrever.

A escola é um espaço de experiências vividas pelos estudantes, podendo se constituir como mobilizadora da produção de sentidos subjetivos que vão se configurar na subjetividade de forma singular, única. É preciso entender que esse espaço, para além de conteúdos curriculares, é também um espaço das redes relacionais vivas onde o estudante, por meio de sua vivência e relações, constitui sua subjetividade (Rossato & Martínez, 2011, 2013).

A escola precisa ser compreendida em sua dimensão social, como um espaço onde ocorrem inúmeras ações e relações sociais. É um espaço dinâmico, em que cada estudante vai desenvolver sua produção subjetiva singular em cada experiência vivida (González Rey, 2006). Everton, em suas manifestações relaciona a escola a um espaço que serve para que ele possa aprender a ler e a escrever, mas é possível perceber que existem outros processos que são vividos nesse espaço que também é de socialização e pertencimento social.

Eu me sinto bem, né. Graças a Deus, sei lê né, voltar a estudar, todo mundo aqui me trata bem, eu trato eles bem. Me sinto ótimo, eu gosto de estudar aqui, eu gosto dessa escola, e vou continuar estudando, com fé em Deus, esse ano, no ano que vem, no outro, estudar aqui uns 5 anos ou mais, meu objetivo é estudar aqui 5 anos, não preciso me formar não, só preciso saber ler e escrever, só isso. E se Deus tocar no meu coração eu vou até se formar né (Entrevista).

O discurso de que a escola é apenas que aprender a ler e a escrever o básico para a sobrevivência, mesmo que outras produções aconteçam nesse espaço social está presente na própria dinâmica da subjetividade social produzida nessa escola, como ilustrado por uma dessas manifestações, destacadas a seguir:

A gente aqui tem que entender que as pessoas que vem estudar aqui já são mais velhas, estão em uma situação de rua, em uma situação de vida precária e muito difícil, então, não dá pra dizer que eles vão sair daqui e entrar em uma faculdade, que eles vão se formar, alguns daqui já se formaram em uma universidade, mas são casos raros (Entrevista - Diretora da Escola).

Essa não foi a única manifestação nesse sentido. Muitas vezes aconteceram comentários dessa natureza na sala dos professores, onde todos se reuniam no intervalo para tomar café e conversar. "Esses estudantes vêm aqui pra comer, não pra aprender" (Registro do Diário de Campo), ou, em outra vez, quando um estudante pediu uma bola para os professores e ninguém achava, uma das professoras disse: "pega alguma bola pra esse menino, melhor do que ele sair daqui e ir fumar ou se drogar, eles estão aqui pra fugir disso" (Trecho do Diário de Campo).

Assim, a escola acaba tendo a função de um lugar de acolhimento para que esses estudantes não estejam nas ruas ou nas drogas, servindo como um refúgio para sua sobrevivência. A escola também acaba sendo um lugar onde esses estudantes podem pensar em um futuro diferente do rótulo de 'pessoa em situação de rua', sendo um lugar mobilizador da produção de novos sentidos subjetivos que auxiliem na percepção desses estudantes na direção de um futuro melhor.

A escola em questão tem um papel muito importante para esses estudantes e podemos perceber isso nas diversas manifestações de Everton, que antes não se interessava em estar na escola, mas hoje ela é uma dimensão importante de sua vida, não só pelas condições e dinâmicas diferenciadas, mas pelos desafios de vida que se constituíram em sua história: "todo mundo aqui me trata bem, eu trato eles bem. Me sinto ótimo, eu gosto de estudar aqui, eu gosto dessa escola, e vou continuar estudando, com fé em Deus" (Entrevista).

Entende-se que os sentidos subjetivos produzidos por outros estudantes que estão nessa mesma escola vão ser completamente diferentes e, assim, cada subjetividade, vai ser configurada de forma diferente. Por isso, é seja possível compreender que realmente nem todos os estudantes irão, talvez, entrar em uma faculdade. No entanto, acredita-se cabe à escola tornar seu espaço um lugar mobilizador de novas produções de sentidos subjetivos nesses estudantes, reconfigurando sua subjetividade de modo a constituir-se em impulso para o seu desenvolvimento (Rossato & Assunção, 2019).

Compreendemos que a condição de aprendente escolar, para Everton, está constituída subjetivamente em torno do resgate do que foi perdido em sua vida, tendo como força mobilizadora o enfrentamento das dificuldades e desafios que decorreram de sua condição de analfabetismo vivendo nas ruas. Ele busca auxílio para aprender ler e escrever e, assim, arrumar um emprego para sair das ruas. Everton ainda não reconhece que a escola também poderia ser uma via de compreensão das dinâmicas da sociedade em que está inserido para, dessa forma, compreender sua própria condição de vida. Essa compreensão é diferente dos casos que apresentaremos na sequência.

Caso Vidgal

Vidgal é uma pessoa com histórico de rua, tem 38 anos e é natural da Paraíba, onde vive sua família, e atualmente mora em uma Região Administrativa de Brasília com sua atual companheira. É um estudante que se mostra sempre muito disposto a aprender o que lhe ensinam. Nas aulas, foi possível observar sua atitude aberta a fazer todas as atividades propostas. Sua professora lhe direcionava elogios e agradecimentos constantes por suas atividades ou pela ajuda em outras tarefas na sala de aula.

Quanto ao reconhecimento de sua condição de aprendente escolar, ele se expressa como alguém que quer realmente aprender o que lhe é ensinado. Vidgal ainda não é completamente alfabetizado, no entanto, durante a realização da pesquisa, sempre manifestou seu desejo de escrever, mesmo quando suas manifestações poderiam ser registradas de outra forma, a exemplo do complemento de frases. Quando o início da frase era pronunciado pela pesquisadora, ele respondia e depois perguntava como se escrevia o que ele respondeu. As palavras eram ditadas para ele letra por letra, e, assim, ele ia escrevendo, formando as palavras do complemento de frase. Essa predisposição de Vidgal querer escrever, mesmo não precisando, se mostra como um indicador de seu esforço para fazer as atividades ou coisas relacionadas aos seus estudos. No início da realização do instrumento foi-lhe dito que, no complemento de frase, geralmente as pessoas liam as frases e escreviam as respostas ao lado, mas que ele poderia falar para ser gravado. Ele prontamente quis tentar escrever, afirmando que "era bom para treinar a escrita" (Trecho do Diário de Campo).

As respostas de Vidgal, nesse instrumento, evidenciaram diversas questões do seu processo de aprendizagem: Eu aprendo quando: "eu venho para a escola"; Meu futuro: "terminar os estudos"; Algumas vezes: "eu leio"; Diariamente me esforço: "Para estudar" e Dedico a maior parte do meu tempo: "Para a escola". A manifestação de esforço pessoal para a aprendizagem e o valor atribuído aos estudos, são indicadores dos sentidos subjetivos sobre sua condição de aprendente no contexto escolar.

Isso se expressa de várias formas, uma delas é na relação com a professora de artes da escola: Eu gosto: "arte"; Amo: "arte". Na maior parte do tempo, Vidgal estava na aula de artes, muito empenhado nas atividades que realizava. A professora sempre o elogiava e dizia "esse Vidgal é um artista" (Diário de Campo), fazendo questão de prontamente mostrar, a fim de ajudar na pesquisa, os desenhos do estudante. Além da professora de artes, Vidgal sempre falou muito bem dos outros professores e, em especial, da professora de alfabetização da escola. "Professora C., né, que é uma professora que vou te contar, né, é fundamental. Eu gosto muito dela, né. Ela ensina bem, ela explica bem também" (Entrevista).

Essa importância dada por Vidgal à relação com seus professores, juntamente ao empenho que ele demonstra ter na realização de suas atividades escolares, é outro indicador da sua condição de aprendente escolar, reconhecendo a escola como um espaço de aprendizado que pode contribuir com a sua formação e possibilitar a mudança de sua situação por meio da educação que recebe na instituição. Não podemos deixar de registrar a presença, em suas manifestações, de uma subjetividade construída socialmente, que contém um conjunto de valores construídos sobre o valor social da escola e o mundo do trabalho. Ingressar no mundo do trabalho e ser reconhecido socialmente é um componente muito presente na subjetividade individual de Vidgal.

Mesmo diante de seu histórico de vida, ele afirma que pretende aprender a ler e escrever, terminar o ensino básico, ingressar no ensino superior e ser advogado no futuro, se expressando como um indicador da sua condição de aprendente escolar, orientada ao seu desenvolvimento, não vendo a escola em que está apenas como um lugar de acolhimento. A função que atribui à escola também é mesclada ao reconhecimento de um lugar que lhe proporciona amparo afetivo.

Ah, enquanto eu não aprender e terminar meus estudos, eu não pretendo sair daqui, não, entendeu? Que a minha diretora e a professora, são todas legais e trata a gente bem, né. É isso que chama nossa atenção aqui, né, que tem canto que quando a gente fala que é ex-morador de rua, às vezes, nós somos um pouco discriminados, né. As pessoas veem e ficam com medo, né. Ah, morador de rua, não sei o que, e aqui, não. Aqui a gente não vê isso, né, que nem assim: eu vendo revista1, né, aí quando eu digo que sou ex-morador de rua a pessoa já segura a bolsa assim com medo (Entrevista).

Percebemos que Vidgal concebe a escola como um lugar de aprendizagem para sua formação e seu futuro profissional, pois a escola atual lhe tem possibilitado um ambiente diferente das demais que frequentou. Ele consegue perceber que é reconhecido como uma pessoa e não apenas como alguém que esteve em situação de rua que apresenta algum problema ou algum risco à sociedade. A forma como essa escola acolhe a situação de vulnerabilidade social de pessoas com histórico de rua, é muito importante, pois possibilitou a Vidgal a mobilização da produção de novos sentidos subjetivos basilares ao desafio de aprender, se formar e 'ser alguém', como um advogado no futuro.

Existem escolas que excluem pessoas como Vidgal, que estão em situação de vulnerabilidade social, pela própria condição de vida que se apresenta naquele momento. No caso de Vidgal, em seus relatos, foi possível identificar em sua história de vida que ele foi negado como estudante para muitas escolas, muitas vezes, por não ter um comprovante de endereço, e por todo significado social construído em torno de uma pessoa ter estado em situação de rua - ser perigosa, roubar, usar drogas, etc. Muitas vezes, essa exclusão acontece, também, pela negação dessas pessoas como produtoras de pensamentos e posicionamentos sociais, uma vez que podem representar críticas aos sistemas de poder. A negação é uma forma de invisibilização dos problemas sociais.

A escola pode ser um contexto gerador de experiências que mobilizem a produção de sentidos subjetivos nas pessoas, que lhes possibilitem tomar posicionamentos por meio das relações sociais diversas que podem acontecer no contexto da escola e também com os conhecimentos científicos. Se na escola os conhecimentos científicos forem vistos como conhecimentos que podem gerar outros conhecimentos e não como dogmas e verdades absolutas imutáveis, isso possibilita também a produção de uma subjetividade que possa desenvolver na pessoa uma condição ativa e reflexiva diante da sociedade. Ademais, isso pode e deve acontecer com qualquer pessoa para que elas possam se posicionar e enfrentar sua situação, sendo possível sair dela, com força reivindicatória dos seus direitos sociais (Rossato, Matos & Paula, 2018).

Caso Keyla

Keyla é uma estudante de 35 anos, com histórico de situação de rua que mora com seu companheiro, que estuda na mesma escola e, como ela, é também alguém com histórico de situação de rua. Keyla vê na escola, um lugar que a auxiliou a não voltar para a vida que tinha antes. Essa escola se tornou um lugar de extrema importância em sua vida e é o lugar que ocupa grande parte do seu tempo. Antes, Keyla não via a escola como um lugar interessante e tinha dificuldades de aprendizagem, no entanto, mesmo ainda tendo essas dificuldades em alguns momentos, luta para superá-las.

Eu percebi, agora, que a escola é tão importante pra mim que agora eu não quero deixar a escola mais porque uma coisa que eu achava que era difícil de aprender, não foi tão difícil assim, porque agora eu sei ler e sei escrever. E eu tô passando por matérias que eu não acreditava de fazer, não acreditava de conseguir fazer, não acreditava de aprender, não tá sendo fácil, mas também não tá sendo difícil. Basta a gente botar na mente, focar no que a gente tá fazendo, que a gente consegue. Foi assim que eu aprendi. Deixar pra lá os pensamentos ruins, botar na mente só os pensamentos bons e eu vou conseguir fazer conta, sim. Quando eu botava na minha mente assim, que eu sei que vou conseguir fazer essa conta, aí às vezes eu fazia e a professora: "Keyla parabéns", "Keyla essa tá certa, mas essa não tá certa" (Entrevista).

Esse trecho mostra que Keyla, mesmo que ainda tenha dificuldades de aprendizagem, tenta fazer o que é necessário para superar essas dificuldades e, com isso, conta com a ajuda das professoras da escola, as quais tentam lhe ajudar, elogiando quando ela faz algo certo e a ajudam quando ela não consegue, como em outro trecho onde Keyla diz:

Eu tentava uma, duas, três, quatro vezes. Na quarta, quando não conseguia, a professora dizia: "não é só você que tá passando por isso, não. Até eu que sou professora já passei por isso, Keyla. Pensei que aquela conta era difícil e eu não ia conseguir fazer ela, mas, não, Keyla, eu virava pra aquela coisa e colocava na minha cabeça que ia conseguir sim. É só tentar. Então, Keyla, é isso que você tem que fazer. Porque você acha que eu sou professora? Eu tive que passar pelo difícil, sim, Keyla, mas eu consegui. E pra você chegar até onde você quer, você também tem que passar pelo difícil" (Entrevista).

Esse trecho mostra que Keyla consegue, mesmo com suas dificuldades, não desistir de fazer um exercício ou resolver uma operação matemática. Entretanto, esses sentidos subjetivos que ajudam Keyla a tentar superar suas dificuldades, são produzidos numa dinâmica proporcionada pelo contexto escolar por meio das suas professoras que mobilizam, em Keyla, uma produção subjetiva diferenciada que contribuem para esses posicionamentos de enfrentamento frente as suas dificuldades.

Desse modo, Keyla é agente de sua aprendizagem, pois mesmo com todas as dificuldades, não só que ainda apresenta na atualidade, mas com todas as outras que teve das experiências que vivenciou no passado, é capaz de se colocar, enfrentando essas dificuldades, se posicionando frente a elas. Isso se mostra também em um trecho muito interessante, no qual Keyla fala sobre fazer um curso superior:

Tem muita gente que fala: "Ah, nóis é qualquer pessoa que não chega na UnB, não. Tem muita gente que já falou, né, não é qualquer um que chega lá na UnB, não é qualquer um que termina o fundamental e pode estudar na UnB". Aí eu falei pra ela assim: "pra que você tá falando essas coisas pra mim? Porque não é qualquer uma pessoa, só porque eu fui uma pessoa de rua não posso chegar até lá na UnB?" Porque muita gente já falou isso pra mim. Eu falei: "eu tenho fé e creio que um dia vou terminar meu fundamental e meu médio e vou chegar até lá na UnB. Vou chegar até lá e vou mostrar pra muita gente que do jeito que eles podem eu também posso. Do jeito que eles têm direito de chegar até onde eles querem eu também tenho direito, também tenho todo meu direito" (Entrevista).

Keyla se posiciona ativamente diante da experiência que está vivendo, ela não se considera inferior às outras pessoas por ter sido alguém que esteve em situação de rua, por ter dificuldades de aprendizagem e nem por viver em situação de vulnerabilidade social e, muito menos, diante da subjetividade social sobre pessoas com histórico de situação de rua. Sua condição ativa e reflexiva se expressa como uma possibilidade de tensionamento com a subjetividade social dominante sobre pessoas que vivem em situação de vulnerabilidade social.

Como visto no início desse estudo, existem muitas pessoas nesse país que estão em situação de vulnerabilidade social e essas pessoas são as que menos têm escolarização. A situação de vulnerabilidade social dessas pessoas passa a ser potencializada por essa baixa escolarização. Desse modo, é importante que a escola tenha um olhar para esses estudantes, não só em escolas como a da pesquisa, mas também em escolas de ensino regular, onde também existem muitos estudantes que vivem em situação de vulnerabilidade e até mesmo em situação de rua.

A escola precisa ser um lugar de novas experiências que considere todos os contextos de vida de seus estudantes, seu contexto familiar, contexto social, mobilizando-os a produzirem novos recursos simbólico-emocionais para gerar novas bases de produção subjetiva em suas vidas. A escola precisa se constituir num lugar que mobilize novas produções subjetivas nos estudantes que possibilite que eles possam emergir como agentes e sujeitos, enfrentando situações que possam ser adversas nos outros contextos de sua vida.

A produção subjetiva de Keyla na escola possibilitou a constituição e a emergência da condição de agente de sua vida e de sua aprendizagem, auxiliando para que ela siga adiante em seus estudos. A escola tornou-se um lugar de amparo, que a ajuda a se manter ocupada e longe de sua vida passada, mas, principalmente, um lugar mobilizador de sonhos e desejos num caminho de novas possibilidades para chegar aonde deseja, independente da sua situação que ainda é de vulnerabilidade social.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os três participantes têm uma expressão da condição de aprendente escolar bastante singular. Em Everton, essa condição se expressa pela presença de sentidos subjetivos relacionados à escola e a educação como algo importante em sua vida, para aprender a ler e escrever e como resgate de oportunidades perdidas. Ele afirma que se a escola puder lhe proporcionar outras coisas, tudo bem. Ele ainda expressa que não tem o objetivo de terminar a escola, mas pretende ficar tempo suficiente para ser alfabetizado, não importando quanto tempo isso dure.

A condição de aprendente escolar, para Vidgal, se mostra muito ligada à questão da conquista do trabalho imediato, que lhe possibilite seguir adiante nos estudos, até a faculdade. Ele percebe que é importante se formar na escola para que, dessa forma, possa ter um emprego de acordo com todos os termos da lei e "ser fichado" para usufruir dos benefícios de ser um trabalhador que tem a carteira assinada e, assim, poder mudar sua situação.

Em Keyla, a condição de aprendente escolar, se configura como um conjunto de possibilidades de alcançar novos desejos, não apenas o de sair imediatamente da situação de vulnerabilidade social. Ademais, ela demonstra sempre querer ultrapassar as suas dificuldades de aprendizagem, entendendo que ela é capaz de aprender mesmo tendo dificuldades, com o auxílio de suas professoras e por ela mesma.

Por fim, os três participantes da pesquisa têm seus pontos de convergência e divergência em sua trajetória de vida e, mesmo tendo passado por experiências bem parecidas, como a de situação de rua, serem ex-usuários de drogas e terem abandonado a escola e estarem voltando a estudar, a produção subjetiva desses três estudantes é distinta em relação a essas experiências que vivenciaram. Cada pessoa é única e a produção subjetiva que faz sobre uma mesma experiência é totalmente singular.

Nos casos analisados, reconhecemos como os recursos subjetivos gerados na atualidade, nas novas experiências de escolarização, possuem força mobilizadora de novas ações e relações na vida desses estudantes com histórico de rua, marcando as possibilidades de reorganização da vida.

 

REFERÊNCIAS

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Recebido: 20 de janeiro de 2018
Aprovado: 21 de abril de 2020

 

 

1 A Revista Traços tem um projeto em que pessoas em situação de rua podem vender cada exemplar da revista, que custa cerca de R$ 5 reais a unidade, ele fica com o lucro de R$ 4 reais e usa R$ 1 real da venda para comprar uma nova publicação. Os vendedores dessa revista são chamados de Porta-voz da Cultura.

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