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Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.7 n.2 Brasília  1987

 

DEPOIMENTO

 

Presídio: uma nova possibilidade de atuação

 

 

 

Embora um dos objetivos explícitos dos presídios seja o de recuperar o presidiário para a vida lá fora, surgem muitas barreiras e dificuldades ao trabalho de profissionais que têm a função de justamente cumprir este objetivo. Apesar de fazer tal constatação, a psicóloga Clarisse Duro Goldberg, que foi técnica num presídio gaúcho, conseguiu desenvolver um trabalho com alguns resultados que beneficiaram os presidiários e a vida no presídio. Mais ainda, Clarisse relatou como o processo de organização dos presidiários procurou tornar-se uma aprendizagem para a volta à liberdade.

Antes de me formar, já estava querendo trabalhar com instituições da rede pública. Meu estágio de graduação foi feito com creches e escolas públicas. No ano que antecedeu a minha formatura, comecei a manter contatos com a Secretaria da Justiça do Estado. Como o número de vagas para técnicos é limitado e durante os últimos anos não houve concurso para tais cargos, fiquei mais de um ano esperando alguma resposta. Nessa época, houve uma greve de fome de presidiários, no Presídio Municipal de Rio Grande, uma cidade de porto, no Rio Grande do Sul, com população de 250 mil habitantes. Este presídio tinha capacidade prevista de 50 presos, mas continha, em 1985, cerca de 90. Lá havia uma série de irregularidades: o administrador foi afastado e um outro foi designado para assumir o cargo. Nessa circunstância, tornou-se urgente o trabalho de um psicólogo ali dentro e, então, houve a indicação do meu nome, por parte do Secretário da Justiça. Não fui contratada, mas admitida como cargo em comissão, com remuneração muito aquém do salário mínimo profissional.

Como era a primeira vez que iria trabalhar num presídio, fui procurar o professor Minasi e pedi orientação. Ele afirmou que a melhor estratégia era começar o contato fazendo entrevistas individuais com os presos.

Procurei coletar dados como nome, data de nascimento, escolaridade etc. Na verdade, eu poderia obter estes dados na ficha deles, mas o meu interesse maior não era o dado de fato e sim o contato direto com os presos para ver o que surgia nessa interação, para além dos dados. Notei que, no início, eles vinham falar comigo com muito medo. Na medida que passou o tempo, começaram a mudar as reações deles comigo. Eles passaram a dizer que "subiam" com medo porque antes quando "subiam" era para apanhar, sofrer violência física. Quando "desciam" da entrevista comigo, os outros perguntavam o que tinha acontecido. Respondiam que só tinham ido conversar com a psicóloga. Isso foi abaixando a ansiedade deles.

Convoquei uma reunião de devolução para que eles soubessem o que estava sendo feito com os dados obtidos. Disse que, por exemplo, em relação ao grau de escolaridade, seria feito uma espécie de supletivo de 5ª à 8ª série. Nessa reunião, um dos presos começou a falar do problema de alimentação, de superpopulação, de falta de colchão de dormir etc. Daí eles sugeriram que, ao invés de fazer só uma reunião, começasse a fazer reuniões quinzenais.

 

Criando as condições de trabalho

É importante marcar como foi se estruturando o meu espaço como profissional lá dentro. Havia uma rejeição muito grande, principalmente por parte dos agentes penitenciários (carcereiros) e dos administradores em relação ao psicólogo. Segundo estes, na história de outros presídios, o assistente social, ou psicólogo, acabava tomando partido dos presos quando se formavam grupos divergentes e,por isso, tinham rejeição prévia com relação a técnicos. No Presídio de Rio Grande, eu era a única pessoa com cargo técnico, além de ser do sexo feminino, num presídio masculino.

De um lado, tive que criar espaço entre os presos que me viam como alguém do poder e não se sentiam à vontade comigo. De outro lado, os agentes que me viam como alguém propensa a ir para o lado dos presos.

Comecei a fazer um trabalho junto ao administrador que havia tomado posse recentemente, naquelapenitenciários época. Procurei demonstrar sempre que o meu trabalho era de assessorá-lo, em função de constatações que estávamos começando a descobrir juntos. Sempre procurei fazer reunião com ele e discutir sobre o que estava acontecendo no momento.

Com relação aos agentes , o chimarrão foi o intermediário entre nós. Antes do almoço, eles tomavam chimarrão e eu ia tomar com eles, até porque eu gosto muito. Depois de um certo tempo, montei um projeto de trabalho e solicitei uma reunião para apresentá-lo, com a expectativa de que eles criticassem e dessem sugestões. O projeto foi totalmente modificado e isso começou a criar uma abertura em relação a mim, pois os agentes perceberam que eu não estava chegando com um projeto pronto e acabado e estava disposta a construir um projeto junto com eles. Isso realmente funcionou. Nem todos se envolveram com o trabalho em si, mas criaram condições para que ocorresse lá dentro.

 

O processo de organização

Depois da primeira reunião com os presos, fizemos diversas outras que já foram realizadas por iniciativa deles mesmos. No começo, eles explicitavam quais eram os problemas e queriam que eu os resolvesse porque acreditavam que tinha o poder para isso. Da minha parte, comecei a perceber que eu não poderia ser a mãe superprotetora que estava mediando a relação extremamente autoritária entre o pai, que era o administrador, e os filhos renegados, que eram os presos. Concluí realmente que nenhum psicólogo e nenhum outro técnico deve assumir esse papel numa instituição.

Os presos conseguiram assumir que não adiantava esperar de mim a resolução dos problemas deles. Na época, tinha um preso, com uns 30 anos dentro de prisão, que vivia entrando e saindo dali. Ele foi uma pessoa fundamental no processo todo. Sugeriu que tirássemos representantes dos presos para que junto comigo fizéssemos o contato constante com o administrador.

Fiz um trabalho de grupo com eles, no qual participaram uns 60 presos, usando a técnica de psicodrama. Comecei conduzindo a dramatização da "vassouragem" pedindo para procederem como costumam fazer durante todas as manhãs, no pátio do presídio. Numa certa hora, sumiu alguma coisa numa das celas. Alguém identificou que sumiu o rádio dele e começou a falar para o grupo como estava se sentindo por ter perdido o rádio. Um outro perguntou: "Quem é que roubou?". Alguém respondeu: "Fui eu". Perguntamos: "O que o grupo faria com quem roubou?". As punições previstas pelo grupo eram enormes.

Fiquei surpresa porque não imaginei que eles fossem envolver-se tanto com a dramatização. Esta desencadeou uma crise muito grande entre dois presos. Se isso acontecesse em outro presídio, até acabaria dando em morte. Na dramatização, os presos se comprometeram a ajudar a resolver o problema, principalmente os presos da cela dos principais envolvidos no caso. Embora eu tenha propiciado a possibilidade de lidar com os assuntos mais pessoais, no final das contas quem fez todo o processo de ajuda dos presos envolvidos foram os próprios colegas de cela.

Entre uma reunião e outra, num intervalo de duas semanas, eles discutiram por cela duas perguntas: como deveria ser a pessoa candidata a representante; o que deveria fazer um representante. Chegaram à conclusão que o representante deveria ser uma pessoa com bom vínculo com os presos, com a guarda e com o administrador. O papel do representante era: explicitar as preocupações e reivindicações dos presos; levá-las para o administrador; e fazer a devolução de resultados para os colegas.

Decidiram que seriam dois representantes, sem tempo definido de representação, com a escolha feita por eleição direta. O critério de destituição seria a pessoa sair do presídio ou eles julgarem que os representantes não estavam cumprindo os requisitos do cargo.

 

A contribuição de psicólogo

Depois de um certo tempo de trabalho, começou-se a sentir a necessidade de se discutirem certos assuntos que não cabiam nas reuniões com todos os presos e que eram próprios de cada cela. Por exemplo, era o caso de "vassouragem", como eles dizem, referente a furto dentro do presídio. Como eles ficavam no pátio durante certo tempo, quando as celas estavam abertas, começou a haver problemas de furto.

É importante destacar que só se discute em geral o abuso de autoridade do policial e do militar, mas nunca se discute o do psiquiatra ou do psicólogo. Isso foi fundamental no meu trabalho porque eu tive a preocupação de atuar com crítica e autocrítica junto com os presos.

No início, o trabalho dependia só de mim; depois, começou a andar sozinho, com a minha participação. Nestes termos, o papel do psicólogo é semelhante ao de outros técnicos: criar condições para que o processo na instituição se desenvolva. Quando começou a se desenvolver no Presídio de Rio Grande, eles próprios pegaram nas mãos o processo de trabalho. Aí começou a se estabelecer mais a especificidade da atuação do psicólogo, porque começaram a fazer solicitações de reunião por cela, que era o momento mais pessoal do preso.

É importante citar que os presos passaram a fazer também reuniões só entre eles para abordarem assuntos de interesse particular.

Um aspecto importante e central no trabalho era a organização e a reunião dos presos entendidas não apenas como um momento no qual poderiam falar e trocar vivências, mas como uma preocupação mais política para que eles percebessem a importância da participação na discussão e ação de seus problemas. Naquele momento, estavam dentro do presídio, mas esse aprendizado servia para a volta à liberdade. O ponto chave neste processo foi a quebra da intermediação do técnico (no caso, o meu papel de psicóloga).

 

O surgimento de barreiras

Com a mudança de governo, em 1986, busquei apoio junto à nova Superintendência dos Serviços Penitenciários do Estado, para dar a continuidade ao meu trabalho. Responderam para mim que, devido ao corte de verbas, todos os cargos em comissão que não fossem estritamente necessários seriam desligados. Além disso, deixei claro que estava me transferindo para São Paulo a fim de desenvolver estudos sobre a questão carcerária, na UNICAMP. A superintendência entendeu que eu era dispensável ao quadro, mas que poderia continuar desenvolvendo as atividades que quisesse, sem remuneração, o que tornou inviável a continuidade do trabalho.

O trabalho com instituições totais é tremendamente angustiante, porque se trata de uma micro-sociedade com leis muito estabelecidas e difíceis de serem mexidas. No Presídio de Rio Grande, surgiram dificuldades próprias de instituições totais, que são as de o trabalho chegar até um certo ponto e parar porque não se atende às condições materiais básicas como, por exemplo, falta de colchão de dormir. Isso atrapalha e emperra o trabalho, constituindo assim a realidade com a qual lidamos. Tinha dias que saía de lá com uma angústia tremenda. Tive supervisão com a psicóloga Bebeth Fassa para que essa angústia não interferisse no meu trabalho a ponto de me imobilizar, até mesmo a nível do que era possível fazer naquela circunstância. Tive todas as dificuldades de trabalho numa instituição total, com a diferença de que lá foi possível desenvolver algum trabalho, tendo contribuído para isso, tanto os presos quanto o administrador e os agentes penitenciários.