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Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.21 n.3 Brasília set. 2001

 

ARTIGOS

 

O mito individual como estrutura subjetiva básica

 

 

Alessandra Fernandes Carreira*

Universidade de Ribeirão Preto - UNAERP

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Adotando a noção de mito individual, que foi estabelecida por Lévi-Strauss e adotada por Lacan para falar sobre a estrutura subjetiva básica do neurótico este trabalho procura apresentar a noção de mito, enfatizando a sua abertura à interpretação e à recombinação constante de seus elementos. Tal noção é deslocada para o plano individual com base em uma pequena análise de um caso clínico intitulado por Freud como “O Homem dos Ratos”. Mostra-se que a repetição da estrutura mítica individual reedita o mito familiar e que ela constitui a subjetividade, na qual estão inclusos os sintomas.

Palavras-chave: Mito, Individual, Estrutura, Subjetividade.


ABSTRACT

Adopting the notion of individual myth, that was established by Lévi-Strauss and adopted by Lacan to talk about the basic subjective structure of the neurotic, this work aims to present the notion of myth, emphasizing its overture to the interpretation and the constant recombination of its elements. This notion is dislocated to the individual plan, based on a little analyses of a clinic case entitled by Freud as “The Rat Man”. It is showed that the repetition of the individual mythic structure reedits the familial myth and constitutes the subjective structure, within are included the symptoms.

Keywords: Myth, Individual, Structure, Subjectivity.


 

 

A noção de mito individual surge a partir de uma expressão cunhada por Lévi-Strauss (1949) e adotada por Lacan (1953/1987), e aponta para a formação de uma estrutura subjetiva básica que confere ao sujeito uma matriz para tentar explicar quem ele é e para quê ele serve no mundo. É esta matriz explicativa que retorna em todas as produções do sujeito, sendo que a sua identificação possibilita elaborações porque aponta para uma singularidade que leva o sujeito a implicar-se em seu desejo e descolar-se do desejo do outro. A seguir, abordarei a estrutura do mito tal como tratada pela Antropologia e alguns outros segmentos das Ciências Humanas e Sociais para poder, então, adentrar à concepção lacaniana do mito em sua faceta individual.

 

O Mito: o Nada Que é Tudo

Lévi-Strauss (1955) define o mito como um sistema temporal que se relaciona concomitantemente ao passado, ao presente e ao futuro, pois diz respeito a acontecimentos que, apesar de decorrerem em um dado momento, formam uma estrutura permanente no tempo. Para ele, então, o mito tem uma estrutura que é tanto sincrônica (não-histórica, momentânea), quanto diacrônica (histórica, permanente). Esta permanência da estrutura ao longo do tempo, como é apontada em todo o movimento estruturalista (por exemplo: Piaget, 1974), traz a possibilidade de mudança dentro da própria estrutura.

Esta mudança ocorre porque há uma repetição da estrutura. No caso dos mitos, há uma repetição de seqüências, as quais recebem o nome de ‘mitemas’. Lacan (1956-1957) diz que estas unidades ou elementos do mito tem um funcionamento estrutural que pode ser comparado ao funcionamento da estrutura da linguagem apontado pela taxionomia na gramática estrutural, ou seja, um funcionamento caracterizado pela existência de elementos com uma relação combinatória constante que determina a construção das frases. No português, por exemplo, temos a construção sujeito-verbo-objeto como básica.

Apesar destas relações constantes entre os mitemas, a sua combinação nunca se dá da mesma maneira, assim como a combinação dos elementos lingüísticos resulta em uma grande variedade de frases possíveis. A combinação dos mitemas sofre alterações, ainda que mínimas, quando um mito é narrado, o que caracteriza o pensamento mítico como um “bricoleur” em pleno trabalho e que funciona através de retomadas interpretativas (Pannof, 1971) que desdobram os temas tratados até o infinito. Todas estas retomadas fazem parte do mito, não havendo nenhuma que goze de maior prestígio do que as outras (Lévi-Strauss, 1955).

Diante disto, Rocha (1991) coloca que o mito atrai interpretações, isto é, o mito não só pode, mas deve ser interpretado. Ele é difuso, tem uma estrutura mínima que precisa ser articulada como uma história ou narrativa para poder significar, isto é, é na combinação das seqüências que o mito significa, não em seus elementos isolados. Este clamor por interpretação do mito caracteriza-o como algo que “(...) se deixa eternamente interpretar, e esta interpretação torna-se, ela mesma, um novo mito. Em outras palavras, as interpretações não esgotam o mito. Antes, de outra maneira, a ele se agregam como novas formas de o mito expor suas mensagens. Numa cápsula, poderia ser dito: novas interpretações, outros mitos. Isto é, talvez, aquilo que de mais sedutor se encontra no mito ” (Rocha, 1991, p. 48, grifo meu).

Sempre sendo (re)significado por causa desta exigência de interpretação, o mito deve ser considerado como uma “estrutura folheada”, isto é, o sentido não se encontra em seus elementos isolados, mas sim em sua composição que varia e permite que o sentido sempre possa ser outro: “A substância do mito não se encontra nem no estilo, nem no modo de narração, nem em sintaxe, mas na história que é relatada. O mito é linguagem, mas uma linguagem que tem lugar em um nível muito elevado, e onde o sentido chega, se é lícito dizer, a decolar do fundamento lingüístico sobre o qual começou rolando” (Lévi-Strauss, 1955, p. 230). isto é, não é o conteúdo da narrativa que define o mito, mas sim a estrutura mítica que a precede e possibilita.

Cunha (1980) atribui às seqüências míticas, à estrutura do mito, o estatuto de significantes, ou seja, formas vazias que, apesar de manterem uma relação constante entre si, são preenchidas de maneira extremamente variável em virtude da variação de sua combinação nas narrativas. Esta combinação remete ao conceito lacaniano de imaginário: aquilo que une “pedaços” significantes e, assim, constrói a significação. Portanto, o mito existe na narrativa porque nela significa imaginariamente. Ela o organiza, permite que seus elementos possam significar porque estão relacionados em cadeia, o que caracteriza o ponto-de-estofo típico da estrutura neurótica. Mas, a narrativa não é o mito, pois cada narrativa é apenas uma de suas possibilidades de organização, é apenas um paradigma. O mito é justamente este horizonte de possibilidades, não sendo acessível enquanto tal, mas sim por partes, ou seja, nas narrativas que aludem a ele e lhe dão uma forma.

Salientando estes aspectos estruturais do mito, Lacan (1956-1957) o considera como uma organização do imaginário: “O que se chama um mito, seja ele religioso ou folclórico, em qualquer etapa de seu legado que se o considere, apresenta-se como uma narrativa. (...) o mito é, ao mesmo tempo, muito distinto desta, no sentido que demonstra certas constâncias que não estão absolutamente submetidas à invenção subjetiva. (...) o mito tem, no conjunto, um caráter de ficção” (p. 258, grifo meu).

Por ser uma estrutura sobre a qual o sentido desliza, o mito possui uma função importante. A técnica narrativa mítica parte de uma estrutura simbólica que pode reconstruir uma multiplicidade de experiências reais e, mais ainda, passar para a expressão verbal algo caótico e contraditório que, por ser da ordem do real, não pode ser resolvido sem o simbólico (Lévi-Strauss, 1949, 1955). Autores como Luccione (1971) e Calvino (1971) apontam para esta função do mito considerando-o como o que permite dizer o indizível e, assim, fornecer-lhe um pouco de organização. Podemos dizer que o mito fala de uma verdade impossível de ser dita de outra maneira que não por esta alusão: como estrutura simbólica, ele permite vestir o real com o imaginário.

Quanto a isto, Ramnoux (1971) afirma que mito significa narrativa e não veicula o sentido de narrativa mentirosa que normalmente lhe é atribuído. Como coloca Rabant (1971), o mito relata um acontecimento que não aconteceu, mas que tem um estatuto de verdade. Ele mente a verdade e tem esta última como causa (Boyer, 1971).

Estes autores, especialmente Boyer (1971), partem das colocações de Lacan sobre a verdade, sendo que, em relação ao mito, este último nos diz: “(...) essa ficção mantém uma relação singular com alguma coisa que está sempre implicada por trás dela, e da qual ela porta, realmente, a mensagem formalmente indicada, a saber, a verdade. Aí está uma coisa que não pode ser separada do mito. (...) A necessidade estrutural que é carregada por toda expressão da verdade é justamente uma estrutura que é a mesma da ficção. A verdade tem uma estrutura, se podemos dizer, de ficção (Lacan, 1956-1957, p. 258-259, grifos meus). Salienta, ainda, que a verdade de que o mito trata repete temas básicos ligados à existência do sujeito: a vida e a morte, o aparecimento do que não existe e o desaparecimento do que existe e o fato de ele ser sujeito de um sexo. O retorno desta verdade não cessa de não se escrever, tem um caráter fixo que permite o trocadilho entre ficção e “fixão” (Lacan, 1973).

Esta possibilidade de uma mesma estrutura mítica ser diferentemente retomada, instalando ao mesmo tempo uma singularidade (de uma dada organização imaginária na narrativa) e uma universalidade (de estrutura simbólica repetível), relaciona-se diretamente com minha discussão e fornece o embasamento da noção de mito individual.

Segundo Lévi-Strauss (1949), “(...) todo mito é uma procura do tempo perdido. Esta forma moderna da técnica xamanística, que é a psicanálise, tira, pois, seus caracteres particulares do fato de que, na civilização mecânica, não há mais lugar para o tempo mítico, senão no próprio homem.” (p. 224, grifo meu). Aqui percebemos que a psicanálise surge para atender a uma demanda crescente de individualização, ou seja, de uma sociedade que se afasta cada vez mais do coletivo, do que é compartilhado, para se focalizar no que é individual, não compartilhado. O mito, dentro disto, também segue este caminho de individualização crescente e chega a ponto de, em nossos tempos, só encontrar expressão isolada no indivíduo.

Em relação a isto, Cunha (1980) coloca que há razões históricas que levaram ao abafamento dos mitos coletivos e à exaltação de tudo o que é considerado individual. Destaca, com base em comentários de autores de renome, o modo de produção capitalista como o apogeu desta individualização, pois as relações de produção caracterizam-se pela alienação do trabalho: o trabalhador não se reconhece no que produz, isto é, não se reconhece como parte de uma coletividade, mas como uma peça isolada do sistema. Nesta conjuntura individualista, cada sujeito busca em sua história individual (tempo perdido da infância) as raízes de seu sofrimento e de suas dúvidas, não na coletividade como o fazem as “sociedades primitivas”.

Assim, cada um constrói seu mito individual ou complexo a partir de elementos retirados de seu próprio passado, os quais irão compor os mitemas que (re) significarão ao serem combinados em cada narrativa produzida pelo sujeito. A diferença em relação ao mito coletivo é que a estrutura deste último é recebida da tradição coletiva. Desta forma, o mito coletivo é compartilhado em uma dada cultura, sendo isto o que permite que um “xam㔠empreenda a cura, tal como nos é relatado em “A Eficácia Simbólica” (Lévi-Strauss, 1949) em relação à parturiente agonizante. Já o mito individual é extremamente particular a cada sujeito, isto é, apenas ele pode falar a partir deste mito montado a fim de tentar compreender algo caótico e contraditório (a vida, a morte, o sexo) e que ele repetirá como estrutura básica em todas as suas produções, realizando retomadas interpretativas a partir da relação dos mitemas em contigüidade. São estas retomadas que estão no cerne da possibilidade de cura na psicanálise pois, como dito acima, a retomada pode modificar paulatinamente a estrutura. Diante disto, Lévi-Strauss (1949) coloca que o papel do curandeiro é falar, enquanto que o do psicanalista, que irá trabalhar com o mito individual, é escutar.

Sabemos, entretanto, que o analisando não tem um acesso fácil a esta estrutura que ele repete, porque isto se dá a sua revelia e, inclusive, o faz sofrer no plano da consciência, gerando sintomas. Paradoxalmente, há também um contentamento fornecido ao sujeito devido à organização possibilitada. Esta repetição que contenta sem dar prazer, que tem um caráter compulsivo, foi apontada por Freud (1920) em “Além do Princípio do Prazer” e retomada por Lacan (1964) através do conceito de “tiquê”: uma repetição que está além da repetição dos signos (“autômaton”) comandada pelo princípio do prazer, que deve ser tomada a partir do registro do real, da face objeto do sujeito.

O sujeito tem acesso apenas às narrativas que produz, as quais podem ser tomadas como indícios da estrutura de que partem ou como enunciados produzidos a partir da enunciação, que é a combinação dos elementos de seu mito individual. Sair desta repetição inconsciente que faz o sujeito sofrer implicaem uma atuação junto à enunciação, ou seja, sobre a combinação dos mitemas individuais. Esta necessidade de combinar que resulta nos sintomas ainda aponta para a existência de uma desorganização inicial com a qual o sujeito irá se deparar durante o trabalho analítico ao desconstruir as evidências, o que subverterá certezas e apontará para a castração dele e do outro.

Através de um exemplo de mito individual organizado em narrativa e apresentado por Lacan (1953/1987), na próxima seção procurarei discutir um pouco mais esta questão.

 

Releituras do Édipo: o Mito Individual do Neurótico

Freud (1909a) criou a expressão “romance familiar” para designar fantasias fundamentadas no complexo de Édipo e através das quais o sujeito modifica imaginariamente a sua relação ou laços com seus pais. Constatou a presença destas fantasias, tecidas como uma espécie de romance, nos paranóicos e especialmente nos neuróticos, nos quais há diversas variantes.

Neste sentido, abordando a singularidade das formações de cada analisando, sobretudo dos neuróticos, Lacan (1953/1987) nos diz que a experiência mostra que é preciso tomá-las como modificações ou retomadas interpretativas da estrutura do mito edipiano que são particulares a cada sujeito. Representando um conflito fundamental na sociedade ocidental “civilizada”, este mito encontra-se no seio da experiência analítica pois é através da rivalidade com o pai que o sujeito é ligado a um valor simbólico essencial. Esta imagem do pai incide sobre a figura do analista, o qual assume na relação simbólica com o sujeito a posição de mestre, ou seja, daquele que sabe e, por isso, pode conduzir à sabedoria.

A função do mito de fornecer uma expressão imaginada pode ser encontrada no próprio vivido do neurótico, nos diz Lacan (1953/1987). Para mostrar isso, ele escolhe abordar o caso clínico do “homem dos ratos”, um caso de neurose obsessiva atendido por Freud (1909b) no qual, embora possamos encontrar temas imaginários comuns aos casos de neurose obsessiva, encontramos também uma particularidade bastante evidente.

Falando desta particularidade, Lacan (1953/1987) chama a nossa atenção para o fantasma ou argumento imaginário que levou o paciente a procurar análise: a forte impressão nele causada pela narração de um tipo de suplício provocado pela penetração de ratos no reto do supliciado. Este fantasma não “(...) desencadeia a sua neurose, mas actualiza-lhe os temas e suscita a angústia.” (Lacan, 1953/1987, p. 53), além de apontar para algo que pode ser encontrado em vários temas trazidos por este paciente, ou seja, que ele repete em suas narrativas. Abordá-lo é fundamental para teorizar a respeito do determinismo da neurose deste paciente, sem esquecer que “ como Freud sempre o sublinhou, cada caso deve ser estudado na sua particularidade, exactamente como se ignorássemos tudo da teoria” (Lacan, 1953/1987, p. 53). O “Homem dos Ratos” é um caso interessante porque traz um caráter manifesto, uma simplicidade das relações em jogo que permite abordá-lo com maior facilidade.

A constelação familiar que precedeu o nascimento do paciente, ou seja, a sua pré-história ou as relações familiares fundamentais que estruturaram a união de seus pais, tinha uma relação precisa, mas transformada, com o estado imaginário em que ele se encontrava, estado este que funcionava como uma resposta à angústia que desencadeou sua crise.

“A constelação do sujeito é formada na tradição familiar pela narração de um certo número de traços que especificam a união dos pais.” (Lacan, 1953/1987, p. 54). Quanto a isto, este paciente descrevia seu pai como simpático e informou que ele havia sido suboficial do exército, o que lhe fez permanecer com certo tom de autoridade e ostentação, embora fosse desvalorizado entre os seus contemporâneos. Relatou também que seu pai fizera um casamento por conveniência com sua mãe, a qual era mais rica do que ele. Isto coloca o prestígio, na relação conjugal, do lado da mãe.

Esta, por sua vez, costumava brincar com seu marido, referindo-se a uma moça pobre e bela por quem ele parecia ter sido apaixonado antes de se casar. O marido protestava dizendo ter sido algo sem importância. Embora a repetição deste jogo mostre a possibilidade de uma parte de artifício ou fantasia por parte da mãe, isto não importa, pois o importante é que este jogo que referia à mulher pobre amada pelo pai impressionou profundamente o paciente.

Ainda em relação ao pai, é preciso ressaltar um momento de sua vida considerado na família como importante e significativo. Quando era suboficial, ele perdeu no jogo todo o dinheiro do regimento a ele confiado. Um de seus amigos, contudo, emprestou-lhe o dinheiro para o pagamento da dívida, o que manteve sua imagem social, mas não a honra em sua carreira. Este “amigo salvador”, ainda, nunca mais foi encontrado, o que impediu que a dívida para com ele fosse paga. Esta figura do “amigo salvador” que não foi reembolsado também impressionou o paciente sobremaneira.

É muito importante ressaltar que este paciente narra sua constelação familiar mas, não só não a relaciona com a sua atualidade, como afirma que não sabe porque está dizendo aquilo, já que não tem relação nenhuma com o que lhe vinha acontecendo. Lacan (1953/1987) aponta que é precisamente neste momento que podemos, como o fez Freud, ter certeza da relação entre a narrativa sobre a constelação familiar e o que levou este paciente a procurar análise. Esta certeza advém da denegação do paciente que é um movimento egóico que aponta nos enunciados para a enunciação, indiciando o inconsciente, aludindo à verdade do sujeito.

Um fato importante da história clínica do “homem dos ratos” é que o conflito mulher rica/mulher pobre presente em sua constelação familiar reproduziu-se em sua vida no momento em que seu pai impeliu-o a casar com uma mulher rica. Isto aponta para uma correspondência estrita entre os elementos da constelação familiar e o desenvolvimento último da obsessão fantasmática que o levou a procurar Freud. Esta obsessão caracterizava-se sobretudo por um medo de que o suplício dos ratos fosse aplicado às pessoas que lhe eram caras. Estas pessoas eram, especificamente, uma empregada de albergue a quem dedicava um amor idealizado e com quem havia se envolvido pouco antes de o pai impeli-lo a casar com a mulher rica, e o pai que, na época do início da análise, já havia falecido. Observa-se aqui o retorno de dois elementos da constelação familiar do sujeito: a mulher pobre, encarnada na empregada de albergue, e o pai, um pai imaginado no além porque já morto.

Além de sofrer por causa deste perigo fantasmático que ameaçava quem ele amava, o paciente encontrava-se, na época em que procurou Freud, em uma outra situação que o angustiava por demais. Ele havia participado recentemente de manobras militares e foi nesta ocasião que um capitão com gostos cruéis havia lhe contado sobre o suplício dos ratos. Nesta mesma ocasião, ele perdeu seus óculos e os encomendou a seu oculista, o qual os enviou pelo correio. Este mesmo capitão disse-lhe, então, que ele deveria enviar o dinheiro do pagamento dos óculos para reembolsar o tenente “A”, que os havia pago por ele.

Após um impulso inicial de não pagar, a questão do reembolso ao tenente “A” impôs-se de uma forma imperativa para o paciente, como um juramento. Contudo, o paciente notou que o capitão devia ter se enganado porque era o tenente “B” o responsável pelos assuntos de correio, não o tenente “A”. Descobriu, posteriormente, que era a uma senhora que trabalhava no correio que ele deveria reembolsar a soma.

O paciente chegou ao consultório de Freud em um estado de angústia máxima, pois, como jurou inicialmente reembolsar o dinheiro ao tenente “A” (uma defesa ao impulso de não pagar), pensa que, se não o fizesse, algo ruim poderia acontecer às pessoas que ele amava, mais especificamente, o suplício dos ratos seria impelido à mulher pobre e ao pai falecido. Sua obsessão o levou a montar o seguinte esquema para resolver o impasse da devolução do dinheiro: ele deveria enviá-lo ao tenente “A”, que o entregaria para a senhora do correio, a qual, na frente do tenente “A”, o entregaria ao tenente “B”, que, por fim, o devolveria ao tenente “A”.

Lacan chama a nossa atenção para a impossibilidade de o paciente seguir precisamente este cenário fantasmático que montou para a devolução do dinheiro, pois ele sabia que, seguindo este esquema, a senhora do correio perderia dinheiro: “De facto, como é sempre o caso do vivido dos neuróticos, a realidade imperativa do real passa antes de tudo aquilo que infinitamente o atormente (...)” (Lacan, 1953/1987, p. 58). Um conflito entre a realidade percebida e a fantasia elaborada aumenta, assim, ainda mais a angústia do paciente.

“Este cenário fantasmático apresenta-se como um pequeno drama, uma gesta, que é precisamente a manifestação do que chamo o mito individual do neurótico” (Lacan, 1953/1987, p. 59). O esquema fantasmático para a devolução do dinheiro elaborado pelo paciente aponta, então, para seu mito individual. Este esquema é equivalente, com algumas transformações, à situação originária do mito familiar do paciente que envolve, basicamente, a mulher rica/mulher pobre e o pai devedor/amigo salvador. Este quarteto determinará as relações do paciente com as outras pessoas, pois estas ocuparão de maneira transformada uma destas quatro posições possíveis. É isto que caracteriza o neurótico: ele retoma em suas relações e/ou produções esta estrutura básica que advém da constelação familiar e é por ele transformada. O que dá o caráter mítico a este cenário fantasmático é o fato de esta apreensão modificar, no sentido de uma certa tendência, a relação inaugural.

Para entender esta modificação, é preciso retomar a dívida do pai do paciente. Lacan (1953/1987) qualifica esta dívida como ambígua, pois incide ao mesmo tempo sobre dois planos: não há apenas a dívida real para com o amigo salvador, mas também há uma dívida imaginada pelo paciente em relação à mulher pobre e amada, que foi substituída pela mulher rica (mãe do paciente). Isto tudo implicou, sob o ponto de vista do paciente, em uma frustração do pai, por não ficar com a amada, e em uma espécie de castração do pai, por precisar do dinheiro da mãe e do amigo salvador, dinheiro este que parece remeter ao falo.

É interessante observar que a situação original deste paciente, caracterizada por esta dívida dupla, é diferente da situação triangular edípica considerada como típica do desenvolvimento neurotizante, ou seja, há particularidades. É a tentativa de coincidir os dois planos nos quais a dívida incide que o leva a um drama circular, que dá um tom singular a seu complexo de Édipo, que configura o seu mito edípico individual.

No mito individual do paciente, “tudo se passa como se os impasses próprios da situação original se deslocassem para um outro ponto da organização mítica, como se o que num sítio não está resolvido se reproduzisse sempre noutro ” (Lacan, 1953/1987, p. 60). Desta forma, a historinha fantasmática desenvolvida pelo paciente fundamenta-se em seu mito individual e é uma tentativa de resolver os impasses de seu mito familiar. Tal tentativa marca a singularidade ao trazer uma espécie de troca nos termos finais das relações originais, pois a dívida real do paciente é para com a senhora do correio - que representa a mulher rica por ter dado o dinheiro, mas que também está no lugar da mulher pobre porque deve ser paga -, não para com o tenente “A”, que está no lugar do amigo salvador. Há, ainda, o tenente “B”, que é o responsável pelo assunto dos correios, o mediador que receberá o dinheiro da senhora e o entregará ao tenente “A”. O grande problema é que, como é preciso pagar o amigo salvador para resolver o impasse familiar original, o paciente monta este esquema para saldar uma dívida imaginária com o tenente “A”. Caso não faça isso, será castigado porque quem mais ama será torturado: a mulher pobre e o pai. Isto faz com que ele fique dando voltas em círculos, pois pagar um significa não pagar o outro e, com isso, ele sofre vítima desta repetição.

Lacan (1953/1987) faz uma série de comentários importantes e esclarecedores sobre a relação transferencial entre o “homem dos ratos” e Freud que permitem ao primeiro resolver uma série de problemas. Não abordarei isto aqui por fugir ao objetivo mais imediato de minha reflexão.

Para finalizar, é importante mostrar que este caso de neurose obsessiva ilustra que o neurótico traz em seu mito individual um sistema edípico quaternário diferente do triangular tradicionalmente apontado pela psicanálise. Antes da instalação da tríade criança-mãe-pai, Lacan (1956-1957) considera a instalação da tríade criança-mãe-falo que caracteriza um primeiro momento do Édipo (Dor, 1989) ainda extremamente especular. É com o falo, aquilo que a mãe procura fora da relação com o bebê, que este último rivaliza a princípio. O bebê tenta ser o falo da mãe para vencer esta batalha, colocando-se a serviço do gozo do outro.

Mas, na maior parte das vezes, o bebê não basta, nada bastará ao desejo da mãe porque ela própria está na incompletude da linguagem. O bebê, então, não consegue obturar a falta materna. A insistência da mãe em procurar fora da relação com o bebê o que lhe falta o obriga a reconhecer o pai como aquele que tem o que a mãe deseja, ou seja, o falo. Trata-se de um pai simbólico, o nome-do-pai, que é tomado pelo bebê como alguém ou algo que pode tudo e que interdita o seu desejo incestuoso pela mãe.

A este reconhecimento do pai seguirá a sexuação que, geralmente, se dá basicamente assim: a menina se estruturará como aquela que busca o falo além da mãe, no pai; e o menino como aquele que busca ser como aquele que tem o falo, ou seja, o pai. Isso caracteriza os fundamentos das estruturas neuróticas tipicamente feminina e masculina.

A estrutura predominantemente feminina é a histeria, na qual a questão inconsciente central relaciona-se ao sexo: “Sou homem ou mulher?” ou “O que é uma mulher?”. A sintomatologia é ruidosa e até mesmo teatral, sobretudo somática, e está enraizada no recalcamento edípico. A demanda endereçada ao Outro configura-se a partir de uma queixa e há um grande medo de perder seu amor (o seio materno). Este medo faz da histérica alguém que se doa ao Outro, coloca-se a seu serviço. Ao mesmo tempo, constata-se nesta estrutura uma constante insatisfação do desejo que se materializa no slogan “Ser mulher é se sacrificar”. A histeria, ainda, não conota apenas uma neurose mas, acima de tudo, um discurso em que a questão da subjetividade é central: “O que a histérica quer que se saiba é, indo a um extremo, que a linguagem derrapa na amplidão daquilo que ela, como mulher, pode abrir para o gozo. Mas não é isto que importa à histérica. O que lhe importa é que o outro chamado homem saiba que objeto precioso ela se torna nesse contexto de discurso“ (Lacan, 1969-1970, p. 32), ou seja, a histérica aspira ser o “objeto a” que obture a falta do outro.

Em relação à estrutura masculina, Chemama (1995) ressalta a predominância ainda maior da neurose obsessiva entre os homens do que da histeria entre as mulheres. A dívida simbólica impagável e formulada nos temas da existência e da morte é a marca desta estrutura, configurando uma sintomatologia puramente mental que leva o obsessivo a adotar mecanismos de defesa como o isolamento e a anulação retroativa e a demandar ao Outro sempre oferecendo-lhe algo em troca (as fezes). Uma luta por abolir a subjetividade dissimula os sintomas obsessivos e configura um desejo tomado como impossível de ser realizado. Nesta conjuntura estrutural, Lacan (1969-1970) salienta que somente o discurso da histérica, que tem a busca de saber como causa, “(...) possibilita que haja um homem motivado pelo desejo de saber.” (p. 32). Assim, um homem pode tomar emprestado o discurso da histérica, o que explica a presença de tantos traços histéricos em neuróticos obsessivos.

Por fim, é importante comentar que Lacan (1953/1987) coloca, além destes três elementos (criança-mãe-pai portador do falo), um quarto elemento no conflito edipiano. Para compreendê-lo, é preciso remeter à noção de relação narcísica. Ao abordar o estádio de espelho, já salientei que a constituição do sujeito se dá através de uma relação narcísica com o semelhante. Trata-se de uma relação especular, imaginária com uma outra pessoa de quem o sujeito depende para se reconhecer e que testemunha a sua profunda insuficiência, a sua castração. Mas, este Outro de quem ele depende também não é auto-suficiente, também é castrado, o que aterroriza ainda mais. “É por este facto que em todas as relações imaginárias, o que se manifesta é uma experiência da morte. Experiência sem dúvida constitutiva de todas as manifestações da condição humana, mas que surge muito especialmente no vivido do neurótico.” (Lacan, 1953/1987, p. 74, grifo meu). Portanto, o quarto elemento do complexo de Édipo é a morte, a qual vem juntar-se ao desejo incestuoso pela mãe, à interdição deste pelo pai suposto portador do falo e aos sintomas do sujeito, dentre os quais o seu “eu”, que se monta a partir da relação especular, é o sintoma por excelência.

Diante deste confronto com a morte que se dá no estádio de espelho, ao contrário do que se costuma considerar, o complexo de Édipo não tem uma função apenas normalizante para o sujeito, pelo contrário, é frequentemente patogênico (Lacan, 1953/1987). O que irá marcar o neurótico é o fato de que, embora o pai seja de fato um representante que encarna a função simbólica, a sua assunção não estabelece uma relação simples onde o simbólico recobre plenamente o real. Para que isso fosse possível “Seria necessário que o pai não fosse somente o nome-do-pai, mas representasse em toda a sua plenitude o valor simbólico cristalizado na sua função. Ora, é claro que esta sobreposição do simbólico e do real é absolutamente inapreensível. (...) Existe sempre uma discordância extremamente nítida entre o que é apercebido pelo sujeito no plano do real e a função simbólica.” (Lacan, 1953/1987, p. 72-73).

Esta não sobreposição faz com que o pai seja desdobrado pelos neuróticos em um pai simbólico e um pai imaginário, o que se dá geralmente devido a algum incidente da vida real. Assim, a interdição que o pai simbólico instala entra em choque com a figura real do pai que falha, burla ele próprio a lei que encarna em sua faceta simbólica e fica em dívida. Esta infração mostra que o pai idealizado imaginariamente, o mestre, não coincide com o que ele é de fato porque ele próprio é castrado. Lacan (1953/1987) aponta que, para a cura, é muito importante reconhecer este desdobramento e reintegrá-lo na história do sujeito, o que possibilitará tomar o falo não como algo que alguns têm e outros não, mas como algo que é “(...) tomado no jogo simbólico, que pode ser combinado, que é fixo quando se o instala, mas que é mobilizável, que circula, que é um elemento de mediação.” (Lacan, 1956-1957, p. 272).

Há muito a dizer a respeito de toda esta trama edípica singular a cada sujeito a partir da montagem de seu mito individual, mas acredito que o fundamental foi abordado. A questão central é perceber que há uma estrutura edípica quaternária comum a todos os neuróticos e com algumas particularidades na histeria e na obsessão. Além disso, toda esta saga edípica não resolve as coisas para o sujeito, mas sim o deixa em suspenso ao reconhecer a morte e perceber sua eminência sem, contudo, saber o quê fazer para evitá-la. Resta-lhe imaginar uma saída em seu mito individual, a qual sempre será fundamentada na tentativa de apagar a castração, a mortalidade do Outro e dele próprio. Todo mito individual poderia, a meu ver, ser resumido na tentativa de responder: O que o Outro quer de mim para que minha sobrevivência seja garantida? É, então, tentando responder à demanda que ele supõe ser a demanda do Outro, e resolver em seu mito individual o que ficou sem resolução no mito familiar, que o sujeito irá estruturar sua subjetividade.

 

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Alessandra Fernandes Carreira
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* Psicóloga. Mestre e doutora em Psicologia pela FFCLRP-USP Professora titular BD, pesquisadora e responsável pelo atendimento em “Ludoterapia” do “Núcleo Multiprofissional” da Universidade de Ribeirão Preto - UNAERP.