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Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.24 n.2 Brasília jun. 2004

 

ARTIGOS

 

A construção da identidade profissional docente

 

The construction of the teacher’s professional identity

 

 

Wedna Cristina Marinho Galindo*

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo apresenta síntese da monografia do Curso de Bacharelado em Psicologia da UFPE. Consta de discussão teórica sobre o conceito de identidade e propõe elementos para a pesquisa sobre identidade profissional, que é considerada como inserida no jogo do reconhecimento constituído por dois pólos, o do auto-reconhecimento e o do alter-reconhecimento. Participaram do estudo, docentes do ensino fundamental de Recife. Os dados constam de entrevistas individuais com os docentes e material jornalístico. Sugere-se que os docentes vivenciam momento de conflito na identidade profissional, não comprometendo suas relações pessoais com o trabalho, mas dificultando uma vivência da identidade coletiva.

Palavras-chave: Identidade profissional, Identidade docente, Ensino fundamental.


ABSTRACT

The article presents a summary of a monografy presented in the undergraduation program in Psychology at the UFPE (Federal University of Pernambuco). It contains a theoretical discussion on the concept of identity and proposes elements for a survey on professional identity, considered as inserted in the recognition game, constituted of two poles, that of self-knowlegde and that of alter-recognition. Teachers of elementary schools in Recife participated in the study. The data are gathered based on interviews carried out individually among the teachers and on journalistic material. It is suggested that the teachers experience moments of professional identity conflict that do not compromise their personal relations with work, but make it difficult to establish collective identities.

Keywords: Professional identity, Teachers’ identity, Elementary school.


 

 

O conceito de Identidade Profissional

A identidade é tratada no artigo como um processo de construção de sujeitos enquanto profissionais. Tal processo é marcado pela contingência que imprime a abertura que lhe é característica. A dinâmica desse processo, como teremos oportunidade de esclarecer, explicita a concepção segundo a qual orientamos o estudo, a saber, a de que a identidade se inscreve no jogo do reconhecimento.

Se bem que a pesquisa que deu origem ao artigo1 tenha sido realizada com docentes do ensino fundamental, consideramos que as reflexões aqui apresentadas podem ser úteis para se considerar outros grupos de profissionais, já que o conceito de identidade profissional2 trabalhado no artigo distancia-se da noção de papéis e focaliza o docente em sua relação consigo mesmo e com os outros, dinâmica essa que é referência para a investigação da identidade profissional.

Tap, citado por Santos (1990), destaca, como aspecto principal do conceito de identidade, o reconhecimento que emana das relações sociais. Para Tap, o indivíduo define-se a partir de como se reconhece no desempenho de papéis sociais e de como é reconhecido pelos outros no meio social.

Penna (1992), também apoiada na idéia de reconhecimento como fundamental para se tratar a questão da identidade, postula que esta é constituída no jogo do reconhecimento, formado por dois pólos – o do auto-reconhecimento (como o sujeito se reconhece) e o do alter-reconhecimento (como é reconhecido pelos outros).

Considerar a identidade inserida nesse jogo pressupõe uma concepção do sujeito humano como portador da capacidade de simbolizar, de representar, de criar e compartilhar significados em relação aos objetos com os quais convive.

Tomamos como processo precursor da construção da identidade a identificação, por sugerir um vínculo ou atração, por parte do indivíduo, para algum objeto que esteja “lᔠonde ele deseja estar.

Gouveia (1993, p.100) destaca o processo de identificação como fundamental e até imprescindível para se falar em identidade. Apoiada na perspectiva psicanalítica, ela afirma que “a identificação como um processo em que se toma um outro como modelo implica necessariamente a formação do Ideal do Ego, e também do Superego, enquanto instâncias que internalizam normalizações e regulações culturais”.

Além da identificação como fundamental na construção da identidade, Gouveia (1993) reúne outros elementos:

Aspecto consciente: mesmo estando a identidade envolvida com movimentos inconscientes, que tendem a estar em conflito, há uma tentativa do sujeito de apresentar uma unicidade naquilo que o define. É nesse sentido que a identidade é vivenciada como aspecto consciente, inclusive com coerência e unicidade, quando verbalizada pelo sujeito.

Constância: dos elementos que representam o sujeito, a lógica que os envolve.

Continuidade: refere-se ao “dinamismo temporal na elaboração da identidade como algo que se estrutura no passado, se atualiza no presente e se projeta no futuro” (Gouveia, 1993, p. 103). É nesse sentido que se fala na presença da noção de Ideal do Ego e do Superego, já que a compatibilidade com um modelo pressupõe um projeto para alcançar esse modelo.

Semelhanças e diferenças: as semelhanças são percebidas entre os parceiros com os quais se compartilha a mesma identidade, e as diferenças são dirigidas aos outros, que não compartilham essa identidade.

Além de definir identidade, é necessário circunscrever o campo no qual trataremos a identidade profissional. Enquanto o debate sobre identidade convida-nos a considerar aspectos ligados ao individual, a idéia de profissional leva-nos a pensar em aspectos do social.

Algumas tentativas de diferenciação entre identidade pessoal e identidade social estão postas na literatura sobre o tema. Berger e Luckmann (1976), por exemplo, associam a construção da identidade pessoal ao processo de socialização primária e a construção da identidade social, ao processo de socialização secundária. Os autores destacam a internalização de papéis ao tratar a questão da identidade, caracterizando-a como um fenômeno de aprendizagem. Já a diferenciação defendida por Moita (1992), a partir de estudos de Lipianski, utiliza como critério a percepção de características do sujeito. A identidade pessoal é construída pela autopercepção, enquanto a identidade social é construída pela percepção que os outros têm do sujeito. Essa postura restringe os diferentes/diversos espaços nos quais o sujeito vive e deixa de lado a relação identidade-papel.

Consideramos mais adequada a distinção que Penna (1992) faz entre a identidade pessoal e a social. Segundo ela, a identidade pessoal diz respeito à própria construção pessoal do sujeito, objeto de estudo da Psicologia e da Psicanálise. A identidade social, por sua vez, refere-se a pessoas consideradas membros da mesma categoria, por características comuns, o que caracteriza o campo da identidade comum, independentemente de conviverem juntos. É nesse sentido, pois, que estamos tomando a identidade profissional como um tipo de identidade social.

A concepção de identidade social defendida por Penna, ao reunir indivíduos diferentes num mesmo grupo, compartilhando a mesma identidade social, não pode, portanto, ser fundamentada no princípio de igualdade lógica, onde A = A. Ao invés dessa relação que não admite diferença, ela sugere uma relação de semelhança, pela qual os “pares” que compartilham algumas semelhanças não necessariamente precisam estar diante de iguais.

 

A Pesquisa Sobre Docentes

Na pesquisa com docentes de ensino fundamental da cidade do Recife, trabalhamos com duas fontes de dados. A primeira consistia em entrevistas individuais, a partir das quais foi investigado o pólo do “auto-reconhecimento”; a segunda fonte consta de material jornalístico, representante do pólo do alter-reconhecimento.

Entrevistas individuais

Participaram, a partir de sorteio, 44 docentes dos dois gêneros, lecionando em escolas públicas ou particulares de Recife, e representantes de três gerações pedagógicas diferentes.

Por geração pedagógica, entende-se o período no qual cada profissional fez seu último curso – seja magistério ou superior – visto que foi exposto à literatura e ao debate pedagógico característico do momento. Foram definidas três gerações pedagógicas. A primeira reuniu os docentes que concluíram o curso até 1970; a segunda, aqueles que o haviam concluído entre 1975 e 1980, e a terceira, os que concluíram o curso entre 1985 e 1990.

As entrevistas foram realizadas no ambiente da escola; tiveram duração média de 60 minutos, sendo gravadas em áudio e, posteriormente, transcritas. Foram realizadas com base em roteiro previamente usado em estudo-piloto, com questões abertas que solicitavam do entrevistado a exposição de concepções sobre a sua atividade profissional.

Material jornalístico

Fizeram parte do material jornalístico matérias sobre educação, professor e escola, veiculadas por jornais de circulação local (Jornal do Commercio e Diário de Pernambuco) durante o ano que antecedeu a realização das entrevistas.

Esse período foi tomado como momento de cristalização de concepções e interpretações sobre o que é ser docente, que construiu significados sociais considerados, na pesquisa, como elementos presentes no alter-reconhecimento.

No período que correspondeu à pesquisa jornalística, selecionamos, ainda, aqueles nos quais possivelmente haveria maior debate sobre educação, professor e escola. Tais períodos correspondiam ao início e final do ano letivo, dia do professor e períodos de greve dos docentes. As matérias sobre professor, educação e escola, veiculadas nesse período, foram copiadas com a respectiva data, nº da página, nome da sessão e nome do jornal.

A coleta de material jornalístico totalizou 359 matérias no Jornal do Commercio e 518 no Diário de Pernambuco.

 

A Representação Social como Recurso Metodológico

Na pesquisa sobre os docentes, tomamos a representação social como recurso metodológico por excelência. A representação aponta para um movimento do ser humano enquanto ser social, isto é, simbolizar objetos, manter vivos seus significados e expressá-los pela linguagem são atividades características do ser humano. As representações perpassam as relações sociais, coordenando comportamentos e fundamentando crenças.

A representação social, por sua vez, constitui um modo de apreender o mundo social pela construção de um conceito para um dado objeto, a partir de sua percepção. Esse processo envolve, além da atividade cognitiva, crenças, valores e sentimentos (Moscovici, 1978).

Apreender um objeto, nesses termos, implica necessariamente destruí-lo enquanto objeto concreto, real. A representação imprime significados aos objetos que, quando representados, ganham nova realidade – uma realidade simbólica (Perrusi, 1992).

Assim, segundo Moscovici (1978, p.65), a “estrutura de cada representação apresenta-se-nos desdobrada, tem duas faces pouco dissociáveis”: a face figurativa e a face simbólica. Cada representação, de certa forma, cristaliza-se numa figura e carrega um significado próprio.

A representação social é composta de dois processos: objetivação – que diz respeito à “seleção” de atributos do objeto a ser representado- e ancoragem – que funda a representação, cristalizando-a em um núcleo figurativo. Esses fenômenos não são dissociáveis, mas mantêm-se numa relação dinâmica no processo.

Segundo Moscovici (1978), a construção das representações sociais envolve interlocutores que, numa relação de reciprocidade na comunicação entre eles, mantêm e (re) constroem as suas realidades subjetivas.

Lembra-nos Moscovici (1978, p.101) que “o saber não existe para ser simplesmente transmitido; ele é transmitido com uma finalidade, segundo convicção unânime”, e, quando são os jornais, os livros, que passam informações, estabelece-se uma relação não-recíproca (entre indivíduo e imprensa, por exemplo), na qual o indivíduo é convidado a posicionar-se diante do saber apresentado. De acordo com esse autor, diante de uma relação não-recíproca, “cada um sente-se, então, na presença de um empreendimento organizado que quer fazer saber, pede uma resposta e exige que se tome partido”.

Aceitar “um saber”, então, implica a participação do indivíduo no grupo que o apresenta, bem como a sua dependência diante de tal grupo. Esse movimento está, segundo Moscovici, estreitamente vinculado à identificação do indivíduo para com determinado grupo.

 

Olhando para os dados

Partindo do pressuposto que as concepções sobre o que é ser docente estão presentes no mundo das relações sociais que envolvem os professores, assim como fundamentam as práticas desses profissionais, dirigimo-nos ao material oriundo das entrevistas individuais e ao material jornalístico com o objetivo de apreender aquelas concepções.

Entrevistas (auto-reconhecimento)

A partir das entrevistas, buscamos apreender o que significa “ser docente”, contando com a investigação sobre representação social, isto é, a partir do discurso dos entrevistados, foi possível saber como eles se reconhecem enquanto docentes, quais significados eles se auto-atribuem.

Para investigarmos sobre auto-reconhecimento, destacamos no material das entrevistas os aspectos relacionados à profissão que consideramos como indicadores de construção da identidade profissional. Assim, atenção foi dada aos seguintes temas:

Motivo da escolha pelo trabalho docente, tentando remontar como se caracteriza a identificação para com a profissão docente, primordial para a construção da identidade. Além disso, o motivo da escolha pelo trabalho docente fornece-nos indicações da constância dos elementos que compõem a identidade, da lógica subjacente aos atributos da identificação.

Participação em capacitação, a fim de percebermos qual o nível de importância atribuída às capacitações pelos entrevistados, buscando, com isso, captar a representação da continuidade na identidade, já que os momentos de capacitação expõem o professorado a questões educacionais inerentes ao exercício docente e facilitam a atualização de conhecimentos sobre a prática educacional.

Projeto profissional, também para investigar sobre a continuidade, já que a idéia de projeto profissional pressupõe a manutenção do Ideal do ego e, em conseqüência, da identidade docente.

Relação com pares, ou seja, representação das semelhanças e diferenças de seus pares, que os entrevistados destacam. Concebendo como pares os colegas de trabalho, buscamos os temas compartilhados nessa relação como indicativo de características específicas dos profissionais docentes.

Material jornalístico (alter-reconhecimento)

Antes de esclarecermos o modo como nos dirigimos ao material jornalístico, é conveniente estruturarmos mais especificamente o nosso argumento a favor dessa riquíssima fonte de dados.

Como já comentamos, é sabido que, diante da matéria jornalística, o indivíduo é solicitado a posicionar-se frente à informação apresentada. Mais que possibilitar a circulação de informações entre as pessoas, notemos que a imprensa tem a função de formar opiniões. Ressalte-se que a aparente neutralidade da imprensa na transmissão de informações tem sido objeto de críticas.

Arnt (1991, p.170), por exemplo, sustenta que a mídia é uma instituição recente: “trata-se de um instrumento de ordem capaz de ajudar a gerir e regular a vida social e econômica, um instrumento vital para a governabilidade”. A mídia fornece esquemas de interpretação e de relação com a realidade; aliás, cria nova realidade segundo seu modo de discorrer sobre ela.

É nesse sentido que a mídia fomenta a construção de opiniões sobre as informações que veicula, não, simplesmente, apresentando os fatos com neutralidade.

Fausto Neto (1992) aponta algumas críticas à visão de que o jornalismo é apenas mediador, instrumento, suporte de algo externo a ele. Para esse autor, tal visão desconhece a dimensão do trabalho simbólico do jornalismo. O trabalho jornalístico, segundo ele, tanto dá conta das regras de redação como também funciona como construtor de discursos. Assim, o jornal não apresenta simplesmente a informação, a realidade, mas, sim, constrói uma realidade baseando-se no acontecimento, ao qual imprime significados, valores.

Diante do exposto, esclarecemos que pesquisar sobre o alter-reconhecimento, em nosso estudo sobre identidade docente, a partir de material jornalístico, possibilita-nos apreender quais são os significados e representações veiculados pela imprensa em torno do que é ser docente. Além disso, conceber o leitor como “alguém que é construído na própria economia enunciativa” (Fausto Neto, 1992, p.37), parece-nos adequado, já que consideramos a construção da identidade inserida no jogo do reconhecimento, no qual o indivíduo conta também com o reconhecimento dos outros em relação a ele.

Compartilhando a idéia de que a produção da imprensa não é neutra, Marcuschi (1991) estuda a ação dos verbos utilizados na imprensa para introduzir opiniões. Segundo ele, os verbos agem seletivamente sobre os conteúdos e, assim, além de função expositiva, a imprensa possui função analítica e interpretativa.

Para Marcuschi, é mais comum que a informação venha acompanhada de uma interpretação. Nessa interpretação, ele destaca os verbos que introduzem opiniões, que muitas vezes caracterizam o que ele chama de interpretação implícita, apresentando, assim, novos fatos ao que inicialmente foi dito.

Com inspiração nesses trabalhos, construímos uma espécie de crivo de análise das matérias de jornais. Para cada matéria copiada, foi analisado: a) Tema: idéia central de que trata a matéria; b) Emissor: quem assina a matéria; c) Mensagem: resumo do que é dito na matéria; d) Como fala: sentido interpretativo que o jornal dá à matéria; e) Verbos construtores de opinião: verbos que se destacam como os que sintetizam a interpretação sugerida pela matéria. Esses verbos podem ser introdutores de opinião ou não.

Para o estudo sobre identidade docente, foi dada ênfase à interpretação implícita feita pelos jornais sobre as matérias copiadas. Para tanto, demos atenção aos verbos construtores de opinião e ao que diz o jornal em cada matéria.

 

Alguns Resultados

Análise dos dados do auto-reconhecimento

Numa análise geral dos dados de entrevistas, relacionamo-los com os indicadores do auto-reconhecimento tomados como construtores da identidade (ver tabela 1).

Quanto à investigação sobre a identificação para com a profissão docente, encontramos duas posições diferentes. A grande maioria dos entrevistados (61%) identifica sua escolha profissional pautada em aspectos do trabalho docente em si, seja o gosto por trabalhar com crianças, seja a opção por determinada área de estudo. Entendemos que, para esse grupo, a relação inicial de identificação para com o objeto – trabalho docente – foi calcada em características específicas da docência. Um grupo menor de entrevistados (39%) caracteriza sua escolha pela docência como algo imposto pela família ou por outras circunstâncias, como: possibilidades maiores de conseguir emprego, falta de opções etc. Para esse grupo, percebemos que a identificação se dá em nível de características do “emprego”, entendido pela possibilidade de realizar alguma tarefa e ser remunerado por isso.

A partir dos dados sobre participação em capacitação, cursos, por nós considerados como indicadores de manutenção ou transformação do processo identificatório, observamos que a maioria dos entrevistados (58%) considera importante a participação em cursos e capacitações. Um grupo menor de entrevistados (42%) não percebe importância alguma nas capacitações, ou até nunca participou delas.

Quanto ao aspecto do estabelecimento de semelhanças e diferenças, aqui considerado a partir dos temas discutidos com colegas, obtivemos a informação que a grande maioria dos entrevistados (66%) estabelece diálogos sobre questões pedagógicas, abrangendo, sobretudo, questões de aprendizagem e disciplina dos alunos, métodos de ensino, cursos que acontecem etc. Um grupo muito reduzido (13%) apresentou como temas em discussão entre colegas assuntos de ordem pessoal e, ainda nesse grupo, reunimos aqueles que dizem não conversar nada com os colegas.

Essa apresentação geral dos dados não nos mostra, no entanto, a dinâmica do que significa ser docente para os nossos entrevistados. Privilegiando agora a dimensão temporal, dirigimo-nos outra vez aos dados articulando os indicadores de construção de identidade entre si, procurando, assim, elementos que esclareçam como presente, passado e futuro organizam a identidade profissional. Nesse ponto, discutiremos os dados que se mostram mais significativos para essa análise.

Verificamos um primeiro grupo, que é o de maior freqüência (32%), constituído por aqueles que se identificaram com características da profissão docente em si, que destacam as capacitações como importantes e que pretendem continuar como docentes. Nesse grupo, é mais freqüente a presença de docentes da 2a e 3a gerações. Além disso, esses docentes, na grande maioria, trabalham em escolas particulares.

Percebemos, ainda, que muitos entrevistados (21%) constituem o grupo daqueles que privilegiaram benefícios materiais do trabalho na escolha da docência, reconhecem as capacitações como importantes e têm o projeto de continuar como docentes. Podemos supor que, para esses entrevistados, o processo de identificação para com a profissão docente tenha-se dado durante a experiência profissional.

Nesse sentido, supomos que a continuação da identidade, aqui expressa pelos cursos a que foram expostos esses entrevistados e pelas relações com os outros docentes, tenha contribuído para a reconstrução de sua identidade, daquilo que o faz se reconhecer docente. Foi possível, então, para eles, redimensionar a questão da imposição familiar e a busca de benefícios materiais e construir novos significados para o que é ser docente, de modo coerente com os aspectos dessa profissão.

Nesse grupo, percebemos que a maioria dos entrevistados teve a sua última formatura na 2a ou 3a geração, e que os docentes de 2a geração são todos trabalhadores de escolas públicas, enquanto que os de 3a geração estão trabalhando em escolas particulares, na sua maioria.

Um terceiro grupo é constituído pelos entrevistados que justificam a sua escolha profissional pelas características do trabalho docente, que não vêem importância nas capacitações e que pretendem continuar desenvolvendo trabalho como docentes. Estes estão representados, em sua maioria, por profissionais da 1a geração e têm como formação o magistério. É interessante observar que, mesmo estando prestes a aposentar, esses docentes desejam continuar na profissão. Isso aponta, talvez, para a presença da antiga concepção de que o professor deve se dedicar aos alunos, sinônimo de magistério em décadas passadas.

Outra parte dos entrevistados identifica-se com questões da profissão docente, não vê valor nas capacitações e pretende deixar a profissão. Todos têm curso superior, concluído, na maioria, na 2a ou na 3a geração. Mesmo identificando-se com a atividade docente, esses entrevistados pretendem deixar o trabalho. Eles fizeram seu último curso, de nível superior, nos últimos anos considerados na amostra. Talvez esse aspecto tenha contribuído para o abandono do Ideal de professor, já que a participação em cursos universitários pode ter desenvolvido uma nova concepção do seu sentir-se docente.

Análise dos dados do alter-reconhecimento

De todas as matérias copiadas em ambos os jornais, foram selecionados assuntos mais diretamente relacionados com o estudo e feita uma apresentação quantitativa de tais matérias, além de uma análise do sentido interpretativo que o jornal lhes deu (ver tabela 2).

Para além dos números obtidos, é importante discutir o que é ser docente para a imprensa. Para tanto, consideramos dois temas que, pelo volume de matérias e pelo modo como foram tratados, avaliamos serem significativos para esse debate: capacitação e greve.

Já vimos que a greve é o tema preferido pelo J.C. em detrimento dos outros temas. O DP parece “discutir” mais proporcionalmente os temas entre as matérias, apesar de também veicular grande quantidade de matérias sobre greve. Se considerarmos, em ambos os jornais, o resumo do conteúdo das matérias sobre greve, temos uma semelhança entre eles. Fala-se da deflagração da greve, das reivindicações dos docentes, das negociações entre as partes do conflito, do fim da greve etc. No entanto, se considerarmos “como fala” o jornal e “os verbos construtores de opinião”, veremos significativas diferenças entre os jornais.

O JC, embora apresente número grande de matérias sobre greve, informa sobre o movimento destacando a posição dos docentes na situação e utilizando verbos (“exigem”, “decidiram suspender”, “avaliam”) em relação à opinião/posicionamento dos docentes. As interpretações que emanam desse tipo de matéria atribuem aos docentes características como: decisão, segurança, empenho.

Analisando outras matérias, percebemos que o jornal focaliza muito mais os “outros” envolvidos na greve (pais, alunos, autoridades). Essas matérias destacam a posição das autoridades ou da comunidade em geral, que de algum modo perdem com a greve. Os verbos utilizados (“reclama”, “corre o risco”, “faço apelo”), por sua vez, reforçam essa interpretação.

Consideramos esses dois tipos de matéria semelhantes, uma vez que focalizam ou os docentes ou os “outros”.

Observando a posição do DP ao veicular matérias sobre greve docente, percebemos um número reduzido do tipo de matéria que aborda um dos lados envolvidos na greve. Nesse jornal, encontram-se, sobretudo, interpretações que destacam o embate entre os docentes e os outros. Tais matérias caracterizam-se por sugerir quase um “campo de guerra” entre os dois grupos. Apresenta-se, por exemplo, de um lado, a postura decidida dos docentes de deflagrarem/continuarem a greve, e, na mesma matéria, ressalta-se o risco que os alunos correm de perder o ano letivo ou as propostas do governo ou dos proprietários de estabelecimento de ensino visando a evitar/resolver o problema que é a greve.

Esse tipo de interpretação parece atribuir ao docente uma responsabilidade pelas perdas sofridas pelos alunos, pelos danos causados a donos de colégios e escolas, reduzindo, assim, na figura do docente, uma questão social mais ampla, que envolve diversos atores e contextos.

Consideramos que esse tipo de interpretação apresenta-se com muito mais força na construção de opinião do público do que aquele que faz a interpretação fundada em apenas um dos lados envolvidos na greve. Ser docente, então, caracteriza-se por ser responsável pelos problemas.

Sobre as matérias de capacitação, observamos que, em ambos os jornais, o destaque é dado para quem promove a capacitação. Focaliza-se, por exemplo, que se vai “promover” uma capacitação, mas não se fala que os professores “participarão” dela.

A análise do alter-reconhecimento, por nós indicadora de como os docentes são percebidos, sugerindo concepções sobre o que é ser docente, mostra-nos que o docente é visto como ameaça quando trata de questões que reivindica, e é reconhecido como quase inexistente no que diz respeito ao seu aperfeiçoamento profissional.

Então, por um lado, o docente é “convidado” a não atrapalhar a rotina de seu próprio trabalho, a evitar greves, a manter-se em dia com suas funções no que diz respeito ao ensino. Por outro lado, é excluído do programa de capacitação, que possibilitaria o aprimoramento de sua função de ensinar.

 

Vivenciando a Identidade Profissional

Os significados que emergem do auto-reconhecimento estão, sobretudo, relacionados a questões pedagógicas: o dia-a-dia com os alunos, o trabalho docente de promoção do aprendizado dos alunos e o aperfeiçoamento para melhor desempenho profissional.

Quanto ao alter-reconhecimento, o destaque é dado às questões coletivas que envolvem a categoria em defesa de interesses comuns. Se bem que o jornal inclua, nas reivindicações que a greve traz, a questão pedagógica, ganham mais relevo as outras – reivindicações salariais, mais freqüentemente. O significado que emerge desse recorte feito pelos jornais enfatiza o docente como uma ameaça ao ano letivo das crianças, gerando problemas para os pais; enfim, quando se reúne para defender “suas” questões, o docente traz dificuldades.

Se, por um lado, no auto-reconhecimento, os docentes se reconhecem como professores, profissionais, e identificam valores positivos em seu trabalho de “formar criaturas”, por outro lado, convivem com os significados negativos de sua profissão, do ser docente, como aquele que prejudica o ano letivo de alunos, traz problemas para os pais etc. Consideramos, portanto, que os entrevistados vivenciam um conflito profissional expresso na contradição entre como se reconhecem e como são reconhecidos pelos outros.

Apesar de não ter sido objeto de nosso estudo a análise da relação dos docentes com o sindicato, diante da constatação do conflito, não podemos deixar de estabelecer algumas reflexões.

De forma geral, os entrevistados referem-se ao sindicato como o que “só atua em tempo de greve”, só “fala em salário”, um lugar onde não se discute sobre o ensino em si. Percebe-se uma reação de aversão para com o sindicato.

Supomos, então, que os entrevistados se utilizam dessas concepções sobre sindicato, como mediação do conflito, na tentativa de manutenção do auto-reconhecimento, que é calcado em aspectos pedagógicos da profissão docente.

Associar o que os outros dizem de si – que, como vimos, é sempre carregado de significados negativos - ao modo como consideram seus pares participantes ativos do sindicato parece dar aos entrevistados uma reorganização da identidade. O conflito é mediatizado a partir da atribuição aos docentes do sindicato, aquelas características que os jornais atribuem aos docentes de forma geral.

Assim, parece-nos que os docentes, diante da contradição que envolve a vivência da identidade profissional, buscam apoio no pólo do auto-reconhecimento, garantindo referenciais com os quais é possível se identificar. O outro recurso utilizado - o de atribuir características negativas aos docentes do sindicato - também representa a tentativa de manter a seu favor elementos de valor positivo. Esse recurso, entretanto, além de negar a dinâmica das relações sociais que necessariamente implica considerar os outros, fragiliza a organização profissional enquanto categoria, tornando-se impossível, de acordo com esse quadro, a vivência da identidade coletiva, que, segundo Gouveia (1993), passa, necessariamente, pela constituição de um projeto coletivo.

Acreditamos que lidar com a contradição mesma na rotina de trabalho, expondo-a como realidade transitória, possibilite uma transformação desse quadro a partir do uso de mediações mais complexas que permitam aos docentes escapar da lógica maniqueísta a que estão submetidos. Resta-nos indagar: como é possível que isso aconteça? Como a Psicologia pode contribuir para essa mudança? Como profissionais que trabalham com profissionais, o que podemos fazer, em nossa prática, para mudar esse quadro? Eis um agradável desafio!

 

Referencias

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Endereço para correspondência
Rua Dr. Virgínio Marques, 285, Bloco C, apto 302 - Iputinga
50731-330 - Recife - PE
E-mail:wednagalindo@uol.com.br

Recebido em 06/11/02
Aprovado 02/01/04

 

 

* Psicóloga (UFPE); Especialista em Psicologia Clínica Psicanalítica (UNICAP); Mestra em Sociologia (UFPE)
1 O desenvolvimento desse estudo ocorreu dentro da pesquisa “O Professor e o Papel da Educação na Sociedade”, da professora Silke Weber, na Universidade Federal de Pernambuco, que contou com o apoio do CNPq, FACEPE e Ford-Anpocs, e resultou na monografia “Um Estudo Sobre Identidade Docente”, apresentada como conclusão do Bacharelado em Psicologia.
2 Conferir o conceito de identidade: Ciampa, A. C. Identidade. In Lane, S. T. M. e Codo, W (orgs.) Psicologia Social: o Homem em Movimento. 8a ed. São Paulo: Brasiliense, 1989, e Ciampa, A. C. A. A Estória do Severino e a História da Severina. São Paulo: Brasiliense, 1987.