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Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.24 n.2 Brasília jun. 2004

 

ARTIGOS

 

Produção acadêmica em gestalt-terapia no Brasil: análise de mestrados e doutorados

 

Brazilian academic production in Gestalt Therapy

 

 

Adriano Furtado HolandaI, *; Silvério Lucio KarwowskiII, **

I Universidade de Brasília. Departamento de Psicologia Clínica
II Centro Alethéia de Gestalt-terapia

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo deste trabalho é apresentar um panorama preliminar da produção acadêmica realizada sob a ótica da Gestalt-terapia e da abordagem gestáltica, no âmbito dos programas de pós-graduação (mestrado e doutorado), realizados em instituições de formação e pesquisa do Brasil. Trata-se de um projeto que visa a catalogar toda a produção referente à Gestalt-terapia e à abordagem gestáltica. Nesta primeira etapa, foram catalogadas e analisadas 35 dissertações de mestrado e teses de doutorado, defendidas no Brasil, entre 1982 e 2002. Foi realizada uma análise qualitativa dos resumos dessas produções, procurando-se observar os direcionamentos desses trabalhos com a abordagem de três “eixos temáticos”, definidos como “fundamentos”, “teoria” e “técnica”. Observou-se uma ênfase em trabalhos com temática epistemológica, principalmente em produções mais recentes, demonstrando uma preocupação dos profissionais com a fundamentação da Gestalt-terapia. Aliado a isso, observa-se, ainda, uma diversificação nas temáticas desenvolvidas, demonstrando uma ampliação dos eixos de ação da Gestalt-terapia para além do campo clínico.

Palavras-chave: Gestalt-terapia, Produção acadêmica, Mestrado, Doutorado.


ABSTRACT

The objective of this work is to present a preliminary panorama of the academic production on the Gestaltic-Therapy and on the gestaltic approach in graduation programs (Master Degrees and Doctorates), developed in graduation and research institutions in Brazil. It is part of a project that aims to catalog all production regarding the Gestalt-Therapy and the Gestaltic Approach. In the first stage, 35 Master’s Degree papers and Doctorates’ theses, developed in Brasil from 1982 to 2002, were cataloged and analysed. A quality analysis was done from the abstracts of these productions, as an attempt to observe their direction, along three “tematic axis” defined as “foundations”, “theory” and “techniques”. It was noticed an emphasis on the epistemological thematic theses, particularly in recent productions, what shows a concern with the foundations of the Gestalt-Therapy. Besides, it was observed a variation in the subjects developed, exposing an enlargement in the axis of action of the Gestalt-Therapy that goes beyond the clinical field.

Keywords: Gestalt-Therapy, Academic production, Master degrees, Doctorates.


 

 

A Gestalt-terapia é uma das abordagens que mais cresce e se desenvolve no Brasil. Esse fato pode ser constatado através da participação cada vez mais ativa e presente de profissionais dessa abordagem no cenário psicológico nacional, bem como a partir da intensa penetração que esse pensamento vem tendo no seio do mundo acadêmico.

Neste trabalho, pretendemos lançar um “olhar” sobre esse desenvolvimento, tomando como ponto de referência um dos elementos cruciais da produção acadêmica, que é a elaboração e a defesa de dissertações de mestrado e teses de doutorado.

Este trabalho está inserido num projeto maior, que visa a compilar o máximo de informações possíveis acerca da Gestalt-terapia no Brasil e de suas produções, tendo surgido da confluência de dois esforços independentes que estavam sendo realizados pelos autores, o que permitiu a elaboração de um projeto de maior monta, relativo a um procedimento que objetiva descrever a formação, a construção e o desenvolvimento da Gestalt-terapia e abordagem gestáltica no Brasil.

Nesta primeira etapa, nossos esforços concentraram-se na compilação de trabalhos, como forma de traçarmos um perfil preliminar da produção científica da Gestalt-terapia brasileira. Com isso, poderíamos ter um panorama fidedigno da inserção da Gestalt-terapia na academia, bem como servir de apoio aos novos profissionais interessados em desenvolver projetos nessa abordagem, em termos de mestrado e doutorado, dado que este levantamento também se constituiu num quadro revelador das possibilidades de programas de pesquisa.

Durante a elaboração do trabalho, deparamo-nos com uma série de dificuldades e escolhas. Uma das maiores dificuldades encontradas foi a de reunir os dados referentes a esta produção, visto que nenhum órgão e/ou instituição nacional concentra, em suas instâncias, esses dados de forma completa. Em alguns casos, nem mesmo as próprias instituições onde as referidas produções foram realizadas colocavam as informações à disposição.

Com isso, o trabalho que ora apresentamos acabou por tornar-se uma fonte de importantes informações acadêmicas, não só para aqueles que trabalham direta e/ou indiretamente com a abordagem em questão, bem como para qualquer interessado em teoria e epistemologia da Psicologia.

A opção pelo levantamento de dissertações de mestrado e teses de doutorado em Gestalt-terapia e abordagem gestáltica deu-se por três motivos: em primeiro lugar, devido a uma preocupação epistemológica. Compartilhamos um anseio por discussões que sejam direcionadas aos fundamentos da Gestalt-terapia, como forma de solidificar uma prática já reconhecida e bastante divulgada. Além disso, esse nível de discussões reconduz a Gestalt-terapia ao seu lugar na história da Psicologia, desmitificando algumas idéias e superando mal-entendidos, principalmente no tocante à idéia de haver pouca produção na referida abordagem.

Em segundo lugar, pela necessidade de conhecermos o que já havia sido produzido e o que estava em produção acerca desse tema, no Brasil, e, terceiro, pela necessidade de se constituir um panorama da formação em Gestalt-terapia no Brasil, o que auxiliou na conclusão da dissertação de mestrado de um dos autores (Karwowski, 2002). Aquelas produções realizadas por gestaltistas, mesmo sendo atravessadas por um “olhar” gestáltico, para efeitos deste levantamento, não foram incluídas na primeira etapa de nosso estudo, exatamente por terem a Gestalt-terapia como substrato, e não como indicador primordial, como encontramos – a título de ilustração – em trabalhos como os de Holanda (2002), Ênio Brito (2002) ou Célia Moraes (2002).

Do mesmo modo, mas por razões diversas, também não foram incluídas, nesta primeira etapa do estudo, as produções realizadas fora do nosso país, dado que a intenção primordial deste levantamento é estabelecer um panorama da produção acadêmica realizada em solo nacional, ou seja, especificar o quadro histórico e atual dos trabalhos desenvolvidos por instituições nacionais, com o claro intuito de destacar os locais e as linhas de pesquisa desenvolvidas por nossas universidades e profissionais. Quiçá isto sirva de indicador e de estimulador para novos trabalhos1.

Ressaltamos que, por “produção acadêmica realizada em solo nacional”, referimo- nos a trabalhos que tenham sido efetivamente não somente realizados no Brasil em sua etapa de pesquisa, como também defendidos em instituições nacionais de ensino superior.

Assim, nosso trabalho abrange um espectro inicialmente delimitado por categorias: cada trabalho compilado, para compor este quadro, deveria ter claramente especificado em seu resumo e/ou nas suas palavras-chave, questões relativas à Gestalt-terapia e/ou à abordagem gestáltica.

Ainda aqui, essa distinção merece destaque. Como apontado no início deste trabalho, a Gestalt-terapia conheceu – e conhece na sua atualidade – uma expansão significativa há algum tempo. Dessa expansão, podemos ressaltar alguns aspectos mportantes, tais como o crescimento da produção teórica, o desenvolvimento de trabalhos em torno de seus fundamentos e o delineamento de novos campos de ação, onde os princípios da Gestalt-terapia passaram a ser aplicados para além do campo clínico tradicional, comumente confundido com a psicoterapia. Com esse novo delineamento, as premissas da Gestalt-terapia passaram a ser aplicadas a áreas tais como a Educação (com a Gestaltpedagogia), às organizações, aos grupos, às comunidades, à área hospitalar etc. A progressão dos princípios fundamentais da Gestalt-terapia a novos campos, definimos, aqui, como “abordagem gestáltica”.

Antes de apresentarmos o quadro compilado e sua análise, consideramos necessário repensar um pouco o sentido da historicidade da Gestalt-terapia no Brasil, como forma de constituição de um contexto e de delimitação de um saber.

 

Um Olhar Sobre a Gestalt-Terapia no Brasil

O histórico da Gestalt-terapia no Brasil possui alguns marcos e datas, mas remonta à década de 1960, à luz da influência do pensamento de Carl Rogers, do psicodrama, da pedagogia de Summerhill (na Inglaterra) e da famosa revolta estudantil de 1968, em Paris (Coimbra, 1992; Ribeiro, 1993; Ciornai, 1998; Prestelo, 2001).

Embora se tenha registro de que houvesse profissionais trabalhando com o referencial da Gestalt-terapia – como Claudete C. de Freitas, em Curitiba, e Margaret de Joode, no Rio de Janeiro – a Gestalt-terapia é reconhecida como tendo sido efetivamente introduzida no Brasil a partir das figuras de Thérèse Tellegen – uma holandesa que conheceu a nova abordagem em Londres e que fez treinamento com os Polster, em San Diego (Ciornai, 1998) – e de Jean Clark Juliano, que, em idos de 1970, realizaram trabalhos no Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo.2

Foi de Thérèse Tellegen o primeiro artigo sobre Gestalt-terapia do Brasil, intitulado “Elementos de Psicoterapia Gestáltica”, publicado no Boletim de Psicologia (Tellegen, 1972) da Sociedade de Psicologia de São Paulo. Esse artigo foi produto de uma apresentação sobre o tema no “Ciclo de Estudos Sobre Temas Atuais em Psicoterapia”, realizado entre maio e junho do mesmo ano, em São Paulo (promovido pela mesma Sociedade).

Thérèse Tellegen, Jean Clark Juliano, Walter da Rosa Ribeiro e Tessy Hantzschel passaram a desenvolver um grupo de estudos sobre a Gestalt-terapia (a partir do Gestalt-Therapy) em idos de 1973.3

A partir dessa data, a Gestalt-terapia passou a disseminar-se pelo País. Em 1976, um grupo, formado por Walter Ribeiro, Paulo Barros, Lílian Frazão e Abel Guedes (dentre outros), passou a reunir-se, enquanto grupo de estudos em Gestalt-terapia ou grupo de “formação” informal. Ainda no ano 1976, deve-se acrescentar o curso de especialização “Gestalt-Reich”, coordenado por Thérèse Tellegen e Tessy Hantzschel (Gestalt) e Ana Verônica Mautner e Antônio Carlos Godoy (Reich). A primeira formação propriamente dita surgiu com Walter Ribeiro, em 1977, em Brasília, contudo, o primeiro núcleo formal de Gestalt somente veio a ser formado em 1981, em São Paulo.

Com o crescimento dessa abordagem no País, surgiu, em 1986, organizado pelo grupo do Rio e coordenado por Teresinha Mello, o I Encontro de Gestalt-terapeutas do Rio de Janeiro que, embora com um nome regional, contou com a presença de gestalt-terapeutas de todo o País. Tendo assumido essa magnitude, o segundo encontro foi, então, organizado pelo grupo de São Paulo, intitulado por seus organizadores II Encontro Nacional de Gestalt-terapia, realizado em Caxambu (1989). Conferiu-se, assim, um status de encontro nacional ao primeiro encontro realizado no Rio de Janeiro. Passou-se, então, a repetir o encontro a cada dois anos: em Brasília (DF), em 1991; em Recife (PE), 1993; em Vitória (ES), em 1995; em Florianópolis (SC), em 1997; em Goiânia (GO), em 1999; em Fortaleza (CE), em 2001, e em Gramado (RS), em 2003.

Dessa listagem, é importante destacarmos o fato de que, a partir de 1993, no encontro de Recife, houve um acréscimo na nomenclatura do encontro que transcende a mera questão linguística ou estética e reflete uma realidade de crescimento. A partir dessa data, ao “Encontro Nacional de Gestalt-terapia”, passou a ser associado o “Congresso Brasileiro da Abordagem Gestáltica”. Esse fato é relevante, primordialmente, por delimitar a expansão do campo de atuação da Gestalt-terapia a outras áreas, para além da clínica.

Epistemologicamente, algumas datas são importantes de serem lembradas, pois possuem relação direta com a intenção deste trabalho. Uma dessas datas é o ano 1984, que marcou a primeira publicação de um livro de Gestalt-terapia – produzido no País – que foi “Gestalt e Grupos”, de autoria de Thérèse Tellegen, e que estava associado diretamente à sua dissertação de mestrado (também a primeira de nosso levantamento). Antes, em 1982, Thérèse publica um capítulo no livro organizado pela Dra. Ieda Porchat, intitulado “Atualidades em Gestalt-terapia”, um texto importante da introdutora da Gestalt-terapia no Brasil, onde a autora, com base em sua ampla experiência clínica e docente, faz uma reflexão sobre o estado da arte da Gestalt-terapia. Seu principal mérito é guardar uma postura crítica e, ao mesmo tempo, aberta, da Gestalt-terapia (Tellegen, 1982a).

No ano seguinte, é lançado o livro “Gestalt-terapia. Refazendo um Caminho”, de Jorge Ponciano Ribeiro, que foi o primeiro livro brasileiro a tratar dos fundamentos teórico-conceituais e filosóficos da nova abordagem. Além de ser pioneiro nesse tipo de reflexão no País, o autor também é pioneiro no desenvolvimento e na abertura de novos campos da Gestalt-terapia, tais como o trabalho com grupos, com psicoterapia de curta duração, dentre outros (Ribeiro, 1985, 1994).

Ainda transitando nessa direção, é curioso assinalarmos que o “marco” da criação da Gestalt-terapia – a publicação, em 1951, do Gestalt Therapy: Excitement and Growth in the Human Personality, de autoria de Fritz Perls, Ralph Hefferline e Paul Goodman – e considerado por muitos como a “bíblia” da Gestalt, por ser o primeiro livro que desenvolve essa nova abordagem – somente conheceu sua tradução para o português em 1997. Além disso, o primeiro livro de Fritz Perls, Ego, Hunger and Aggression, que, em si, representa a ruptura do autor com a Psicanálise clássica e se constitui, portanto, no verdadeiro “embrião” da Gestalt-terapia, teve sua publicação brasileira em 2002.

Os poucos dados históricos são relevantes, pois têm um reflexo direto na própria constituição da Gestalt-terapia brasileira, em torno de conceptualizações e de interpretações – por vezes enviesadas e errôneas – do espectro da proposição gestáltica. Tal fato pode ser exemplificado através da publicação, no Brasil, do livro de John Stevens, intitulado Tornar-se Presente (cuja publicação data de 1976), onde o autor descreve um conjunto de experimentos utilizados em Gestalt-terapia. Essa publicação – com uma ênfase primordialmente técnica – antecedeu uma série de reflexões teóricas, filosóficas e epistemológicas relacionadas à Gestalt-terapia e concorreu para a delimitação de uma imagem de abordagem “ateórica”, ou frágil, no meio acadêmico da Psicologia brasileira..

Esse pré-conceito – que a Gestalt brasileira ainda carrega – vem sendo paulatinamente modificado ao longo dos anos, como já assinalamos anteriormente, e pretendemos comprová-lo aqui, através deste trabalho.

 

A Delimitação do Campo

O espectro do nosso levantamento abrange 20 (vinte) anos, desde a primeira defesa de mestrado realizada no Brasil, em 1982, na Universidade de São Paulo (Tellegen, 1982b). Nas referências bibliográficas, estão relacionadas todas as dissertações e teses deste levantamento , até o ano de 2002. Foram catalogados 35 trabalhos, sendo quatro deles de doutorado e 31 de mestrado. Destes, apenas um não versa diretamente sobre a Gestalt-terapia, mas contém preciosas informações sobre a construção da abordagem no Brasil, particularmente nos anos 1970 (Coimbra, 1992). Por esse motivo, e por considerarmos sua importância histórica, essa tese foi incluída neste estudo.

Agrupamos os trabalhos em três “categorias”, ou eixos temáticos, que representam as ênfases dadas a determinados temas. Os eixos temáticos aos quais nos referimos são: “fundamentos”, “teoria” e “técnica”.

Na categoria fundamentos, agrupamos aqueles trabalhos que englobam textos referentes à fundamentação teórica e/ou filosófica da Gestalt, com ênfase nas questões históricas, filosóficas e epistemológicas. Nesse eixo temático, observamos uma preocupação com a solidez da abordagem, o que nos remete à constatação da necessidade de pensá-la progressivamente, em contínuo processo de desenvolvimento.

Há destaque para temas que – tradicionalmente – não são associados à Gestalt-terapia, tais como bases filosóficas, campo teórico, clínica gestáltica, construção do pensamento gestaltista, fundamentação, fenomenologia, formação do gestalt-terapeuta, dentre outros.

Observa-se uma preocupação com o solo epistemológico da Gestalt-terapia, com discussões variadas, que vão desde a construção histórica e a fundamentação filosófica até a discussão de temas geralmente considerados “alheios” à abordagem (como a questão do inconsciente ou a da transferência, por exemplo).

Esse destaque é importante, na medida em que vai na “contra-mão” de uma concepção freqüentemente associada à Gestalt-terapia, que é a de vinculá-la – além de boa parte das abordagens humanistas – a um modelo de pensamento limitado e estigmatizante, com ênfase na prática, e, portanto, na técnica, e não a de associá-la a possíveis produções de conhecimento ou a um repensar da condição humana.

O que observamos é que, paulatinamente, os gestaltistas vêm diversificando sua reflexão, tanto na questão dos campos (como a epistemologia, por exemplo) como na forma de sua expressão. Acreditamos que o escopo teórico-filosófico da Gestalt seja suficientemente amplo para ser limitado a uma resposta técnica. Além disso, observamos que a mudança no perfil da reflexão na Gestalt-terapia pode vir a ser uma alternativa à reflexão tanto na Psicologia quanto nas demais áreas do conhecimento.

No eixo teoria, agrupamos aqueles trabalhos cujos temas englobavam discussões sobre as bases teóricas em geral ou elaborações de conceitos (tais como teoria de desenvolvimento, teoria da personalidade, psicopatologia). Nos temas relativos à teoria, observamos uma tentativa de re-construção de um saber instituído a partir de aplicações da prática gestáltica em campos diversos da clínica. Nessa categoria, observamos a ampliação do espectro da teoria gestáltica, especialmente – como se destaca – no campo da Gestaltpedagogia.

Também nesse item, observamos o desenvolvimento de temas diversos (tais como gênero ou hiperatividade), que representam uma ampliação do espectro da teoria gestaltista, fato que reflete uma abertura dos profissionais a novas teorias e/ou campos de ação, e está de acordo com uma perspectiva de apreensão da realidade como um todo.

Na categoria técnica, alocamos questões referentes à análise de casos clínicos, apresentação de experiências pessoais e/ou institucionais, discussões em torno de temas da ação técnica da prática clínica e/ou instrumentais (como diagnóstico, entrevista, condução de terapia etc). No que tange à técnica, também observamos uma preocupação com a sua fundamentação e com sua diversificação. Destacou-se o trabalho com grupos, que ganhou espaço significativo nos últimos anos, e a aplicação da Gestalt-terapia a casais.

Um detalhe importante a ser ressaltado é o fato de que, mesmo havendo um direcionamento tradicional dos programas de mestrado e doutorado para a formação de pesquisadores, podemos observar que a maior parte dos trabalhos aqui apresentados estão inseridos numa perspectiva de construção do conhecimento, seja através da crítica do conhecimento instituído (ou seja, uma crítica sobre os próprios fundamentos delineados pela cultura gestaltista), seja a partir de revisões desse conhecimento.

Assim, além de primar pela qualificação do profissional, os trabalhos servem de indicadores de uma possível superação da dicotomia entre o saber teórico e o saber prático, apontando para a necessidade de melhor integrá-los.

A seguir, faremos uma análise mais acurada dos referidos trabalhos, levando em consideração o ano de defesa, as relativas instituições e os orientadores.

 

Ano de Defesa

A primeira dissertação de mestrado relacionada à Gestalt-terapia, no Brasil, foi defendida em 1982. Ainda nessa década, a Gestalt-terapia conheceu mais três produções dessa natureza, sendo todas dissertações de mestrado em Psicologia.

A primeira tese de doutorado especificamente relacionada à Gestalt-terapia no País foi defendida em 1992, na Universidade de São Paulo (Loffredo, 1992). No mesmo ano, relacionamos o único trabalho dessa listagem cuja temática central não se refere especificamente à Gestalt-terapia, mas contém importantes informações a respeito da construção do movimento gestaltista no País.

Nos anos 90, a Gestalt brasileira conhece seu maior impulso, com 20 trabalhos de mestrado e doutorado – com destaque para os anos 1992 e 1997, que tiveram cinco trabalhos apresentados – tendência essa que se amplifica nos últimos anos desta nova década, quando se observa um incremento significativo na média de trabalhos apresentados em relação ao demais anos. Observe-se que, apenas nos três últimos anos, já houve um incremento de cerca de 55% em relação à década passada.

Os dados denotam o crescimento que essa abordagem vem conhecendo ao longo dos anos, como se observa no quadro a seguir:

A procura cada vez maior, nos últimos três anos, pelos profissionais, da qualificação acadêmica de seus trabalhos, é uma tendência que seguramente responde a duas demandas distintas, mas que se complementam: por um lado, a necessidade de os profissionais docentes submeterem-se às novas prerrogativas sugeridas pelo MEC; por outro lado, uma preocupação cada vez mais presente no sentido de se discutir e questionar os fundamentos de nossa prática.

A seguir, temos o quadro das produções, ano a ano:

Observe-se que as teses de doutorado se agrupam num ciclo de dez anos. Esse fato pode ser entendido sob dois aspectos: em primeiro lugar, por um quadro que vem sendo revertido nos últimos anos e pelo fato de, até o momento, ser pequena a inserção de profissionais gestaltistas no meio acadêmico, em especial nas universidades4, ou mesmo o pouco aparecimento desses profissionais, podendo isso ocorrer devido à hegemonia de abordagens psicodinâmicas no meio acadêmico. Em segundo lugar, pela baixa procura, por parte dos clínicos, de titulação acadêmica. Contudo, acreditamos que as novas demandas por especializações venham contribuir para mudar tal panorama.

Atualmente, já podemos observar um contingente maior de profissionais gestaltistas inseridos nas mais diversas instituições de ensino superior do Brasil. Com isso, cresce a demanda por titulações, o que nos leva a supor que teremos, nos próximos anos, um aumento no número de produções acadêmicas, tanto em termos de mestrado quanto no que se refere ao doutorado. Isso já pode ser constatado se observarmos, na tabela 2, o significativo aumento dos trabalhos entre os anos 2001 e 2002.

 

As Instituições

O levantamento dos programas de pós-graduação onde os projetos de mestrado e doutorado foram desenvolvidos leva-nos a traçar um panorama que revela, entre outras coisas, os locais em que esses trabalhos vêm conhecendo sua consecução, o que pode ser um indicador interessante na medida em que apresenta as possibilidades e a diversidade de programas aos quais um profissional pode se filiar. Além disso, serve também de indicativo das possíveis lacunas dos programas.

Uma das constatações mais óbvias é a tradicional concentração nos grandes centros, tais como São Paulo e Rio de Janeiro. Por outro lado, observamos, também, uma paulatina migração – ou diversificação – para outros locais, o que pode ser indicador de uma abertura de novos campos de ação e de interesse.

O Estado de São Paulo continua sendo o espaço de maior produção acadêmica, com 15 trabalhos no total – com destaque para a Universidade de São Paulo, com nove trabalhos – sendo seguido pelo Estado do Rio de Janeiro, com 09 trabalhos no total. Vale ressaltar que o Distrito Federal – e, em particular, a Universidade de Brasília – vem obtendo cada vez mais destaque pela sua produção em Gestalt no País, como podemos observar na tabela a seguir:

Historicamente, os Estados de São Paulo e Rio de Janeiro, mais o Distrito Federal, respondem por grande parte das melhores instituições de ensino superior do País (o que pode ser facilmente constatado pelas avaliações da Capes). Assim, seria de se esperar que aqui também houvesse uma resposta nessa direção. Todavia, vale a pena assinalar dois fatos importantes: em primeiro lugar, observamos uma produção similar tanto na Região Sul ( Estados do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina) quanto na Região Nordeste (Estados do Ceará e de Pernambuco), e, em segundo lugar, não foram encontrados registros de produções em Estados importantes – tanto academicamente quanto pela própria inserção da Gestalt – tais como nos Estados da Bahia, do Paraná e de Minas Gerais.

No que se refere à caracterização das instituições, temos que as instituições públicas continuam sendo as mais procuradas, com 25 trabalhos, enquanto as instituições privadas contribuem com 10 trabalhos. Sem dúvida, isso reflete o fato de que os programas de pós-graduação dessas entidades serem menos desenvolvidos do que os mesmos nas instituições públicas, e ainda o fato de que – em geral – existe uma concentração maior de profissionais com qualificação para a pesquisa nas instituições públicas do que nas privadas.

Ao todo, foram listadas 18 (dezoito) instituições de ensino nas quais se desenvolveram os trabalhos. Dado que o número total de trabalhos (35) não é igualmente grande, podemos deduzir disso que há uma significativa diversificação de espaços para a produção acadêmica no Brasil, o que compensa a tradicional concentração nos grandes centros.

Segue-se a listagem completa das instituições que acolheram trabalhos relacionados à Gestalt-terapia e à abordagem gestáltica no País.

Alguns pequenos detalhes podem ser agregados à observação. No Estado do Ceará, temos dois trabalhos desenvolvidos num programa de mestrado em Educação, o que é devido tanto ao fato de os programas de pós-graduação em Psicologia da cidade terem começado recentemente, quanto ao fato de o mestrado em Educação da UFC ser reconhecido nacionalmente por suas produções e reflexões.

O único trabalho defendido num programa de Filosofia encontra-se no Estado do Rio de Janeiro, e, a maior diversificação de temas, encontramos nos trabalhos desenvolvidos em São Paulo e no Distrito Federal.

 

Área da Defesa e Orientação

Desde os primórdios da história da Gestalt, tem-se associado a ela uma concepção de clínica. Invariavelmente, essa concepção encontra-se vinculada unicamente à questão da psicoterapia (em suas diversas aplicações). Encontramos a mesma ênfase nos trabalhos listados.

Observa-se que, no início das produções de Gestalt-terapia, havia uma grande concentração na área da Psicologia, e, mais especificamente, na clínica, ou permeados por questionamentos que tocam a psicoterapia, como na questão da psicoterapia de grupo, da transferência, dos sonhos ou do diagnóstico, por exemplo.

Somente em 1992, temos uma produção associada à Educação – embora ainda atrelada à questão da clínica – mas que representa uma primeira abertura do campo de pensamento da Gestalt-terapia. Podemos deduzir que é a partir da Educação que as mudanças na perspectiva unicamente clínica da Gestalt passam a ocorrer. Temos quatro trabalhos associados à Educação, que se revelam igualmente diversos em seus temas: processo de cooperação em psicoterapia de grupo (Boris, 1992), incorporação do conhecimento e a formação do gestalt-terapeuta (Cardella, 1998), construção da identidade do gênero masculino (Oliveira, 2001) e a relação professor-aluno a partir da Gestaltpedagogia (Costa, 2002).

O fato é interessante, pois caminha na mesma direção da diversificação da Gestalt-terapia enquanto perspectiva independente de pensamento, que conhece – também a partir da Educação, com a Gestaltpedagogia – sua primeira ampliação de campo.

Além desses trabalhos – especificamente defendidos em programas vinculados à Educação – temos ainda outros trabalhos (vinculados à Psicologia), que, no entanto, possuem uma reflexão que toca a questão da Educação, como podemos citar: trabalhos de grupos em psicoterapia e Educação (Tellegen, 1982b); modelo de aprendizagem experiencial (Frazão, 1983); Gestaltpedagogia e educadores de rua (Lilienthal, 1997); oficina criativa e formação de educadores (Carvalho, 2000) e gestaltpedagogia e inteligências múltiplas (Bonmann, 2001) – este último trabalho defendido em Ergonomia.

Caminhando na direção dessa diversificação e ampliação dos campos de ação da Gestalt-terapia, podemos, ainda, destacar trabalhos defendidos em programas de Filosofia (Cavanellas, 1998) e em Comunicação Social (Galli, 2000). Semelhante ao comentário relacionado à Educação, também encontramos importantes reflexões filosóficas associadas a programas de Psicologia, tais como bases filosóficas e implicações técnicas da Gestalt (Porto, 1989); limites e possibilidades para um projeto de clínica no discurso da Gestalt-terapia (Távora, 1994); repensando o campo teórico da Gestalt-terapia (Lima, 1997); método fenomenológico e Gestalt-terapia (Karwowski, 2002), e teoria da personalidade e teoria das estranhezas (Ferreira, 2002).

Acreditamos que esses trabalhos – que já representam um número significativo – demonstram claramente uma mudança na perspectiva epistemológica da Gestalt-terapia, antes não assumida, e que se encontra diante de um caminho de desenvolvimento.

Um último destaque importante refere-se à questão dos orientadores. Bem pouco tempo atrás, havia apenas um profissional gestaltista com funções de orientação acadêmica de trabalhos de pós-graduação, o Dr. Jorge Ponciano Ribeiro, da Universidade de Brasília. Atualmente, alguns novos doutores já estão em vias de desenvolver trabalhos de orientação de mestrado e doutorado relacionados à Gestalt-terapia.

Outro dado relevante diz respeito a alguns nomes de grande importância na Psicologia brasileira que contribuíram, com suas orientações e reflexões. para estabelecer o quadro que ora apresentamos, e que, portanto, merecem destaque6. O Dr. Jorge Ponciano Ribeiro (UnB), ao lado da Dra. Élida Sigelmann (UFRJ), foram os que mais orientaram trabalhos listados neste levantamento, num total de quatro, cada um. O Dr. Norberto Abreu e Silva (USP)7, com três trabalhos orientados, e as doutoras Therezinha Moreira Leite (USP) e Henriette Tognetti Penha Morato (USP), com duas orientações. A destacar, ainda, os demais orientadores: Nilce Pinheiro Mejías, Ana Maria Loffredo, Maria Luiza Sandoval Schmidt (USP), Franco Lo Presti Seminério (FGV), Eda Marconi Custodio e Marília Martins Vizotto (UMES)8, Susana Vasconcelos Jimenez e Silvia Helena Vieira Cruz (UFC), Luiz Felipe Baeta Neves Flores e Ued Martins M.Maluf (UFRJ), Lea da Cruz Fagundes (UFRGS), Mitsuko A. Makino Antunes (Unimarco), Terezinha Féres Carneiro (PUC-RJ), Telma Donzelli (UERJ), Christina M.B.Cupertino (Unip), Roberto Porto Simões (PUC-RS), Vânia Ribas Ulbricht (UFSC), Elisa Medici P. Yoshida (PUC-Campinas), Marília Gouveia (UCG) e Marília Ancona-Lopez (PUC-SP).

 

Aproximações

Este levantamento preliminar não se propõe a conclusões fechadas, mas aponta para algumas direções importantes no que se refere ao movimento gestaltista brasileiro:

• Em primeiro lugar, os dados indicam um crescimento acentuado na procura por qualificação profissional, o que corrobora o crescimento do número de Institutos de Gestalt no País e seus respectivos cursos de especialização;

• Um segundo dado importante refere-se ao fato de que também vem sendo observado um incremento, nos últimos anos, no que tange a uma preocupação com as discussões de caráter epistemológico a respeito das filosofias de base e da teoria da Gestalt-terapia, o que reflete um câmbio na perspectiva tradicionalmente associada a essa abordagem, como sendo eminentemente prática e apenas vivencial;

• Também nos demais eixos temáticos, observamos essa preocupação com a solidez conceitual e prática, o que reitera nossa conclusão na direção de um fortalecimento e de uma revivescência da abordagem;

• Outro aspecto que convém destacar é relativo à necessidade de ampliarmos a divulgação desses trabalhos, de modo a podermos construir um quadro mais fidedigno da realidade atual da Gestalt brasileira.

Conseguimos perceber que, ao longo dos anos, foi-se criando um espaço específico para o desenvolvimento das idéias gestálticas na academia brasileira. Podemos vislumbrar uma nova posição da Gestalt-terapia na academia.

Outro dado importante: os gestaltistas brasileiros (seja por necessidade, seja por desejo próprio) desenvolveram e desenvolvem trabalhos que ampliam não somente suas bases intelectuais, mas que servem como importantes interlocuções para a própria teoria e prática da Gestalt-terapia no Brasil. Isso delimita um campo de abertura para a interdisciplinaridade e para o desenvolvimento de uma Gestalt não-dogmática e, principalmente, holística e dialógica – aberta a diálogos diversos com as demais disciplinas.

Pudemos observar uma significativa ampliação nas discussões epistemológicas, o que delimita um espaço maior da Gestalt no contexto da Psicologia e da ciência como um todo, bem como um avanço nas contextualizações de sua teoria, abrindo espaço para novos campos de ação.

Acreditamos que, com isso, estejamos demonstrando que a Gestalt-terapia brasileira cresce e se desenvolve numa direção respeitável, e que seja necessário lançarmos um olhar mais acurado para as contribuições e discussões que a abordagem possa vir a trazer à reflexão sobre o humano.

 

Referências

ALVIM, M.B. Ensaio Para um Modelo Psicológico de Análise Organizacional na Perspectiva da Abordagem Gestáltica. Dissertação de Mestrado em Psicologia. Brasília: Universidade de Brasília, 2000.        [ Links ]

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Endereço para correspondência
Adriano Furtado Holanda e Silvério Lucio Karwowski
SHIS QL-14, Conjunto 06, Casa 17 - Lago Sul
71640-065 – Brasília-DF
E-mail: aholanda@yahoo.com

Recebido em 06/11/02
Aprovado em 02/01/04

 

 

* Mestre em Psicologia Clínica pela Universidade de Brasília (UnB). Doutor em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas. Professor do Departamento de Psicologia Clínica da Universidade de Brasília (Bolsista -Doutor CNPq).
** Mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas). Coordenador do Centro Alethéia de Gestalt-terapia (Uberlândia/MG).Editor do Boletim de Gestalt-Terapia; docente da Unit / Uberlândia.
1 Contudo, vale ressaltar, aqui, duas produções, em especial, por haverem sido realizadas com fomento nacional no exterior, e por terem sido desenvolvidas pela mesma profissional. Trata-se da dissertação de mestrado em Arte-terapia, intitulada “Rhyne’s Gestalt Art Therapy and Naumburg’s Psychoanalytical Art Therapy: A Comparison”, defendida na California State University em 1980, e da tese de doutorado intitulada “Women Who Participated in the Counter-Culture Movements Reach Climacteric: Reflections on the Feminine Experience of this Passage”, defendida em 1997, no Saybrook Graduate School and Research Center. Ambas as produções são de autoria da Dra. Selma Ciornai.
2 Importante destacar, ainda, as figuras de Maureen Miller O´Hara, Silvia Curtis e Robert Martin na construção da Gestalt brasileira.
3 Comunicação pessoal de Walter Ribeiro.
4 Esse destaque deve-se ao fato de que, após a nova regulamentação do ensino superior nacional (Decreto do Ministério da Educação, No 3.860, de 9 de julho de 2001), foi estabelecida uma nova classificação das instituições de ensino superior (IES) como sendo: universidades (que se caracterizam pela oferta regular de atividades de ensino, pesquisa e extensão), centros universitários (que enfatizam basicamente o ensino) e as faculdades integradas, faculdades, institutos ou escolas superiores (instituições com propostas curriculares em mais de uma área ou conhecimento). No que tange especificamente à pesquisa (e que, geralmente, mas não necessariamente, está vinculada a programas de pós-graduação), um dos critérios básicos para o desenvolvimento dessas atividades é a titulação do seu corpo docente, o que demanda das universidades uma qualificação mais rigorosa do que a dos centros universitários (que são, na sua imensa maioria, instituições privadas de ensino).
5 Atualmente, Universidade Metodista de São Paulo (UMESP).
6 Entre parênteses, a instituição na qual o referido orientador estava lotado, na época da defesa do trabalho.
7 Atualmente, lotado no Departamento de Psicologia Clínica da Universidade de Brasília.
8 Instituto Metodista de Ensino Superior (São Bernardo do Campo), atual Universidade Metodista de São Paulo (Umesp).