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Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.29 n.4 Brasília dez. 2009

 

ARTIGOS

 

Ação psicológica em saúde mental: uma abordagem psicossocial

 

Psychological action in mental health: a psychosocial approach

 

Acción psicológica en salud mental: un abordaje psicosocial

 

 

Edvânia dos Santos Alves*; Ana Lúcia Francisco**

Universidade Católica de Pernambuco

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo se propõe refletir sobre aspectos pertinentes à clínica dos transtornos mentais, com base na abordagem psicossocial. Nesse sentido, a prática complexa do saber/fazer, no contexto da referida abordagem, apresenta-se no âmbito de uma clínica ampliada, ratificando a importância de se contemplar a cultura e o cotidiano daqueles que buscam por atenção psicológica, o que implica o fazer clínico voltado para a interlocução e a avaliação contínua de intervenções comprometidas com o sujeito sociohistórico. Assim, tem-se uma clínica voltada para as múltiplas faces do humano – em sua singularidade e coletividade –, problematizando as ações psicológicas em instituições e nas comunidades.

Palavras-chave: Abordagem psicossocial, Saúde mental, Práticas interventivas, Redes sociais.


ABSTRACT

This article has as proposal to reflect about aspects that are related to the mental disorders clinic in a psychosocial approach. In this direction, it presents the complex work in the context of the psychosocial approach, considering the transdisciplinary perspective and ratifying the importance of contemplating the culture and the daily life of those who demand for psychological attention, which means a clinic work that includes dialogue and the continuous assessment of assistance committed to the social and historical subject. Therefore, this is a clinic that takes into account the human being in his multiple aspects – individually and collectively –, examining the psychological actions in institutions and communities.

Keywords: Psychosocial approach, Mental health, Psychological practice, Social nets.


RESUMEN

Este artículo se propone reflexionar sobre aspectos pertinentes a la clínica de los trastornos mentales, con base en el abordaje psicosocial. En ese sentido, la práctica compleja del saber/hacer, en el contexto del referido abordaje, se presenta en el ámbito de una clínica ampliada, ratificando la importancia de contemplar la cultura y el cotidiano de aquéllos que buscan atención psicológica, lo que implica el hacer clínico devotado a la interlocución y la evaluación continuada de intervenciones comprometidas con el sujeto sociohistórico. Así, se tiene una clínica devotada para las múltiples caras del humano – en su singularidad y colectividad –, haciendo problemáticas las acciones psicológicas en instituciones y en las comunidades.

Palabras clave: Abordaje psicosocial, Salud mental, Prácticas interventivas, Redes sociales.


 

 

Pensando o fazer psicossocial

A Psicologia, nas últimas décadas, tem refletido sobre sua postura teórica e metodológica por meio de estudos e pesquisas que demonstram influências das relações sociais, econômicas e políticas nas dimensões intrapsíquicas, construindo um terreno fértil e propício a ser explorado e vivido. Nesse sentido, no campo da Psicologia, as abordagens caracterizadas como psicossociais têm-se mostrado mais atentas às demandas da área social desde o final de 1950, na América Latina, conseguindo um espaço significativo nas discussões e na construção de um corpo teórico próprio.

As intervenções nesse campo, na perspectiva de Enriquez (1997), baseiam-se nos seguintes elementos: as palavras, as representações e as condutas, bem como as relações intersubjetivas, pois esses expressam, no cotidiano, tensões que afetam e confrontam o individual e o coletivo. A abordagem psicossocial contempla, portanto, articulações entre o que está na ordem da sociedade e o que faz parte do psíquico, concebendo o sujeito em suas múltiplas dimensões. Assim, ela considera a multidimensionalidade da clínica, em que estão envolvidos aspectos de interação entre o físico, o psicológico, o meio ambiente natural e o social. Em outras palavras, essa abordagem compreende que a nossa história de vida é marcada pelas relações em rede, cujas estruturas social e familiar, bem como as experiências culturais, se manifestam no dia a dia; concebe, pois, o sujeito como um todo que afeta e é afetado no mundo, enfatizando a interação e a interdependência dos fenômenos biopsicossociais e buscando pesquisar a natureza dos processos dinâmicos subjacentes que compõem o homem em sua vivência.

As relações do sujeito com sua rede familiar e comunitária passam a ocupar um lugar privilegiado, convocando-se os atores sociais envolvidos, em uma dada situação, a participarem da compreensão dos processos que os envolvem e a responsabilizarem-se pela transformação do seu entorno.

No que diz respeito ao transtorno mental, faz parte dessa perspectiva superar a visão que o concebe como unicamente da ordem individual, dissociada das demais instâncias em que vive o indivíduo. Ao contrário, tal perspectiva propõe a criação e a reinvenção de caminhos para contínuas avaliações, a fim de que as ações se reflitam e se fortaleçam com base nas responsabilidades compartilhadas.

O referencial teórico de uma psicologia voltada para o social norteia seus pressupostos para a implicação mútua dos agentes, considerando o universo simbólico presente nos âmbitos de relações intra e interpessoais. Por conseguinte, espera-se que os atores sociais envolvidos em dada situação e/ou contexto construam a própria história, o que implica comprometimento político e consciência cidadã. Isso nos impulsiona a fazer a reavaliação crítica dos processos relacionados à saúde/doença, à formação profissional e aos modelos assistenciais desenvolvidos ao longo da história; pressupõe, ainda, a posição de permanente autocrítica sobre a nossa participação, como profissionais, nesses processos. Tal como afirma Rosa (2003, p. 328): “É preciso assumir espaços coletivos de decisão, de construção, e, para tanto, a palavra precisa circular. Isso significa romper hierarquias, sobretudo a hierarquia médico-paciente sobre a qual está calcada a doença mental”.

As abordagens psicossociais se respaldam em campos teóricos diversificados que consideram o lado empírico, o histórico, o cultural e o científico dos agentes sociais. Elas procuram conhecer a realidade desses agentes em busca de possibilidades para uma escuta mais analítica e atenta, e, ainda, interagem, refletindo e objetivando os saberes da realidade atual, porquanto o mundo interno e suas expressões se constroem nas relações sociais.

Partindo dessa compreensão, o psicólogo procura, para além do intrapsíquico, caminhar – de forma cautelosa e comprometida com o político e o ser sujeito em sua singularidade e coletividade –, alicerçando ações capazes de romper a individualização. Além do mais, tal visão concebe o homem como ser histórico, perpassado e, ao mesmo tempo, porta-voz de sua “época”, um ser autônomo-dependente que reconhece sua cultura e a reconstrói, criando e recriando dispositivos constitutivos das relações humanas e institucionais.

 

A complexidade do ser humano na abordagem psicossocial

A ação clínica, em uma perspectiva psicossocial, tenta compreender a complexidade do ser humano em seus processos de troca e no desenvolvimento de ligações baseadas nas experiências construídas. A adoção dessa estratégia exige a consideração do permanente intercâmbio das áreas social e psíquica na construção da subjetividade. Segundo tal concepção, compreende-se o mundo objetivo não como fator de influência para legitimar a subjetividade, mas como pertinente a sua construção. Assim, acreditase, o ser humano é permanentemente afetado pelas histórias que o constituem como sujeito no mundo, histórias que permeiam suas ações e relações, criando modos de subjetivação e de sofrimentos.

Conforme Safra (2004), “O ser humano é a singularização de toda história da humanidade. Cada pessoa é única e múltipla, pois, ao mesmo tempo em que se individualiza, o faz presentificando seus ancestrais e aqueles com quem compartilha a sua existência” (p. 25).

Nessa perspectiva, o olhar complexo resgata a dimensão ética do psicólogo, promovendo e acolhendo processos permanentes de transformação e inclusão do sujeito sociohistórico. Ademais, leva-o a repensar outras possibilidades de ser e estar no mundo, abrindo espaços para as diferenças, para a desconstrução de conceitos rígidos e para a busca de caminhos alternativos.

Conceber o homem em movimento é uma das metas da abordagem psicossocial, na consideração de que a consciência e a identidade constituem elementos importantes para a expressão da condição humana. Gaulejac (2001) refere-se ao homem como um complexo de histórias simultâneas construídas a partir da existência singular e social. Questionar o lugar desse sujeito, o limite de sua autonomia e liberdade, é desafio permanente, e constitui uma das questões fundamentais no campo da saúde mental.

Saraceno (1998) enfatiza a relevância da abordagem psicossocial voltada para os usuários da saúde mental, pois fortalecê-los implica criar instrumentos que potencializem o sujeito para a produção de projetos de vida, no sentido da ressocialização. Nessa direção, as atividades que envolvem os usuários têm eficácia quando inseridas em um campo repleto de sentidos produzidos por ele (usuário) em relação à cultura e ao meio ambiente.

A perspectiva psicossocial – no campo da saúde mental – reafirma a subjetividade como construção a partir de um campo de forças, assim como a aproximação com ações horizontais na relação entre técnicos e instituições. Tal prática indica pontos relevantes que norteiam a interdisciplinaridade, a relação com o usuário e suas implicações subjetivas e socioculturais; além disso, indica a necessidade de estimular a família e de criar meios a fim de que a sociedade compreenda o sujeito com transtorno mental e se responsabilize pela atenção e apoio a ele. Nessa abordagem, os profissionais assumem a assistência comprometida e envolvida com ações dirigidas para a atenção ao sofrimento integral, o que requer o questionamento de posições excludentes voltadas exclusivamente para a atenção biológica e direcionadas para as perspectivas fisiopatológicas do ser. O cuidado deve fundamentar-se em uma visão que supere a dicotomia corpo/mente e outras tantas cisões perpetuadas ao longo de muitos anos, configurando-se como uma prática apoiada em perspectivas em que a interdisciplinaridade seja um desafio constante.

As experiências, os conceitos, vão sendo significados e compreendidos no mundo das relações psíquicas, sociais, culturais, econômicas e outras, gerando peculiaridades quanto às formas de atendimento às demandas, de modo a se reconhecerem as diversas manifestações das experiências. A esse respeito, Naubern (2004) traz importante reflexão:

O momento é também o de uma mudança de olhar... ligado ao incerto, do olhar ligado àquele que procura e não encontra mais do que respostas parciais e inacabadas, que não encontra objetos sólidos, mas corre o sério risco de se perder por uma teia de articulações que não terminam. (p. 20)

Tal enunciado encontra eco nas propostas relacionadas ao paradigma da complexidade, defendidas por Morin (1996). Elas revelam a concepção de homem como um conjunto de incertezas que busca elementos para auto-atualização, mas que logo se percebe em meio a ambigüidades próprias da natureza humana. A propósito, entendese complexidade como “um todo mais ou menos coerente, cujos componentes funcionam entre si em numerosas relações de interdependência ou de subordinação, de apreensão muitas vezes difícil para o intelecto” Houaiss (2001, p. 776). E, segundo Morin (1996, pp. 274-287), o termo complexidade reafirma uma relação de indissociabilidade, o homem implicado nesse “todo mais ou menos coerente”, vinculado a inúmeras teias que estabelecem elos quase imperceptíveis, mas integrantes do humano, constituindo-o como sujeito em relação ao outro e a si mesmo. Nesse contexto, ele se posiciona, se reorganiza constantemente, questiona a própria postura. De acordo com Levy (2001, p.72),

a psicossociologia se define recusando o corte que institui uma divisão entre os fenômenos psicológicos e sociais. Ela afirma, como já o escrevia Bérgson (1932), que o “social é no indivíduo” como “o indivíduo é no social”, que o indivíduo como tal não existe independentemente da sociedade e de suas relações.

Em consonância com os mentores da Associação de Pesquisa e Intervenção Psicossociais – Araújo e Carretero –, Gaulejac (2001) refere-se ao campo da Sociologia clínica ou psicossociologia como elemento que se constrói no espaço social a partir de projetos psicossociológicos. Conforme o mesmo autor, a psicossociologia nasceu de práticas multidisciplinares que se comprometiam com questões marginalizadas pelo campo psi e pelo campo sociológico. As aludidas práticas demonstravam interesse pelas múltiplas facetas do sujeito, sem cindi-lo, escutando-lhe a individualidade e a coletividade, a afetividade e o que se apresentava institucionalizado em seu inconsciente e no mundo social. Nesse sentido, a psicossociologia fundou seus pilares, analisando o aspecto social e articulando-o ao psíquico, assim como tem questionado o sujeito das ciências humanas e sociais.

Conceber o sujeito como protagonista de sua história – aqui tomada como o que constitui o lado humano na dimensão cultural, influenciado pelos símbolos, pela língua e, em conseqüência, pela sociedade – é mais uma das tarefas a que se propõe a abordagem psicossociológica. Acredita-se que o homem, ao assumir a própria historicidade, cria e recria mudanças no mundo interno e externo, gerando relações de sentido e de responsabilidades compartilhadas.

 

A intervenção psicossocial nos atendimentos de saúde

Torna-se um desafio permanente, no campo da saúde pública, fortalecer e contextualizar as intervenções psicossociais, tendo em vista as mudanças que vêm sendo realizadas no atendimento em saúde e até mesmo no conceito de saúde, transformações que, na área de políticas públicas, trazem implicações significativas para a ação de uma clínica ampliada.

Essas intervenções, ainda que incipientes, trazem em seu bojo problematizações que, em suas raízes, se dirigem a uma questão fundamental: como tornar o atendimento psicológico mais acessível e útil ao serviço público da saúde? Na medida em que a perspectiva psicossocial se sustenta em um campo de conhecimentos que envolve a família, a abordagem transdisciplinar, o trabalho com grupos e a consideração da realidade social, a clínica ampliada parece caminhar na direção desse objetivo, sobretudo se considerarmos a estreita vinculação que mantém com o conceito de rede.

Esse conceito é, aqui, compreendido como uma necessidade de se estabelecer vínculos entre as diversas esferas governamentais e não governamentais, a sociedade civil e os recursos da comunidade, com vistas a fortalecer as organizações sociais como um todo na promoção da (re)inserção social e na construção da cidadania. Nesse sentido, a constituição desse dispositivo se dá a partir das relações interpessoais que marcam seus protagonistas.

A partir da perspectiva de uma clínica ampliada, os serviços de saúde consideram os atores sociais como agentes do fazer cotidiano, incorporando a premissa de assumir como referência o usuário, a família e a comunidade em suas potencialidades, além de fortalecer, no âmbito multidisciplinar e multiprofissional, as relações dos grupos em um território de vida onde os fazeres se constroem.

Mas acreditamos que o nosso maior desafio seja o modo de operar esse dispositivo. Os eixos que constituem as políticas públicas de saúde se efetivam quando criamos modos de fazer, saindo do âmbito das reflexões para o das ações. Interessa-nos, portanto, o como fazer. Nesse caminho, a experiência e as pesquisas nesse âmbito nos revelam a necessidade de permanente diálogo entre os diversos campos do saber e os atores que compõem as redes de saúde, o que pressupõe a formulação, a regulação e o controle de políticas em proximidade e o reconhecimento do território em que são realizadas.

Na área da saúde mental, a abordagem psicossocial possibilita articular ciência, práticas clínicas e sociopolíticas, compreendendo os atores em seu cotidiano, o que envolve as dimensões psíquicas, sociais e culturais através das quais os protagonistas, individual e coletivamente, se posicionam.

Atualmente, a saúde pública, especificamente a saúde mental, propõe-se a um olhar que procura romper o modelo hospitalocêntrico dominante de tratamento, o que implica a desconstrução do lugar do “doente” e a potencialização de sua saúde e dos recursos de que dispõe.

Assim, o sentido da intervenção psicossocial, no espaço da saúde mental, busca superar a dualidade sujeito/objeto, saúde/doença, individual/social, questionando a verticalidade do tratamento e o poder biomédico. Nessa dinâmica, a clínica ampliada na saúde mental realiza intervenções com vistas à promoção de espaços de invenção e criação, objetivando trabalhar a desinstitucionalização dos usuários de serviços de saúde mental. Compreendese a desinstitucionalização não só como mecanismo de redução de leitos em hospitais psiquiátricos mas também como um conjunto de ações que consideram os atores sociais em suas experiências cotidianas, voltadas para a superação da condição de exclusão que, historicamente, estigmatiza esses atores. A partir dessa perspectiva, não basta refletir sobre a desinstitucionalização a partir das relações de poder e da produção. Como afirma Rosa (2003), “é necessário que essa ruptura se estenda ao campo epistemológico, cultural e sociopolítico” (p. 329).

Ainda que as ações na esfera burocrática sejam necessárias, tais como o cumprimento da legislação na busca da territorialização dos serviços e da descentralização dos atendimentos em saúde mental, essas estratégias não se mostram suficientes. Quando mantidas apenas nessa esfera, tais ações parecem não contemplar as relações entre os fenômenos coletivos e sociais que constituem os protagonistas na perspectiva psicossocial. Os questionamentos sobre a divisão de poder, por exemplo, não se esgotam na perspectiva política de um grupo, mas revelam sentimentos e interações entre seus agentes. Observamos, nos espaços coletivos da saúde mental, usuários dos serviços solicitando atenção: da família, da instituição, dos técnicos, da sociedade. Intervir junto a esses usuários implica promover transformações em práticas e reconhecer que há vínculos entre instâncias que até então pareciam distantes e isoladas, sem perder de vista que o objetivo da ação clínica é cuidar.

 

O fazer clínico na saúde mental

A prática da Psicologia dirigida para a saúde mental e os princípios norteadores do Sistema Único de Saúde (SUS) se constituem a partir da relação de intercessão com outros saberes. Como menciona Ribeiro (1996), o exercício profissional em saúde mental tende a dialogar, de forma a criar espaços para aproximações. É no entre que a criação acontece, é no limiar do poder que os saberes podem revelar contribuições e reconstruir caminhos.

A contribuição da Psicologia – em razão das diretrizes do SUS e da integralidade das ações por meio de um conjunto articulado e contínuo de reflexões e atitudes – se efetiva, verdadeiramente, quando consegue reinventar o fazer das experiências para a construção de uma rede de relações entre aqueles que sofrem e suas reais condições sociais. O SUS – vale ressaltar – foi constituído sob a influência de movimentos que deram origem à reforma sanitária, atrelada a outros atos políticos e sociais contrários à imposição militar na ditadura e, em conseqüência, a favor da legitimação dos processos democráticos e dos direitos humanos.

Na atualidade, o desafio é construir uma política humanizada, voltada para a população, pensada e avaliada continuamente de acordo com seus próprios princípios. No campo específico da atenção à saúde mental, as diversas instituições comprometidas com as políticas de atendimento a essa demanda apontam a necessidade de abordagem psicossocial nas redes ampliadas, pautadas na intersetorialidade e na co-responsabilidade, a fim de superar os modelos tradicionais, sobretudo o hospitalocêntrico.

Um dos princípios propostos pelo SUS e que leva em consideração a singularidade, buscando atender às demandas específicas do sujeito em seu contexto, é e eqüidade. Segundo tal princípio, as condições sociais, econômicas e familiares, por serem diferentes, requerem abordagem específica, caso a caso. Assim sendo, esse conceito se aproxima da diretriz de humanização das políticas de saúde mental, o que possibilita a criação de práticas e serviços de saúde com o olhar voltado para o cuidado integral dos usuários e familiares, buscando, de forma sensível, competente e coerente, compreender o contexto em sua totalidade. Então, a construção de espaços em que a necessidade de criação, de reinvenção de modos de fazer e agir, é permanente, exige do profissional habilidade, sensibilidade e comprometimento para legitimar o seu poder de contratualidade com os diversos atores envolvidos. Segundo Lévy (2001, p. 9), “organizar-se, cooperar e criar coletivamente é, antes de tudo, recusar que um ‘senhor do sentido’ dite sua lei”.

Torna-se possível discutir os conflitos gerados da intercessão entre saberes e disciplinas quando se está junto ao outro, partilhando e problematizando as situações que emergem no cotidiano das experiências. O jogo de interesses e conflitos, portanto, transformase em elemento positivo e pode auxiliar o desenvolvimento de instrumentos conceituais e atuações integradas entre diversos saberes. De acordo com Campos (2000), as ações psicológicas não articuladas nem voltadas para a realidade socioeconômica e para as condições de vida dos sujeitos não reconhecem a condição de autonomia dos atores sociais como protagonistas de sua história.

Francisco e Barbosa (2008), ao realizarem breve reflexão sobre a evolução da Psicologia como ciência e profissão, chamam a atenção para o fato de que é relativamente recente o questionamento acerca da pertinência do modelo das ciências naturais sobre as ciências humanas. Segundo os mesmos autores,

É historicamente reconhecida a influência da ciência positivista, sobretudo na Sociologia e na Psicologia, influência que produziu um saber em que sujeito e objeto, observador e fenômeno observado deveriam se manter o mais distantes possível, distanciamento validado em nome de um maior controle, uma melhor medição e maior certeza em suas possibilidades de previsão. (Francisco & Barbosa, 2008, p. 12)

Nesse sentido, as ações freqüentes no campo da clínica eram pautadas em concepções que, claramente, distanciavam o indivíduo de seu entorno. Como lembra Ferreira Neto (2004, p. 167), “a ética preconizada era da neutralidade asséptica e da atenção à realidade subjetiva em detrimento da realidade material”. Tais ações, que não contemplavam os projetos sociopolíticos, afastavam-se das experiências daqueles que solicitavam escuta como partícipes do social.

Nos anos 80, cresceu a necessidade de se construir e se fortalecer outras possibilidades de relação com o ser-cidadão proveniente de demandas que exigiam abertura para diálogos e novas formas de organização na busca de alianças entre o Estado e a sociedade civil. A democratização incitou a ampliação de movimentos dirigidos para as transformações, inclusive no campo da saúde mental. Os aspectos políticos, sociais, culturais e econômicos passaram a ser cuidadosamente considerados na construção das subjetividades, o que não implicava negar o aspecto psíquico, ao contrário, permitia contextualizá-lo, possibilitando a compreensão das múltiplas dimensões do sujeito.

Na atualidade, o psicólogo que trabalha no campo da saúde mental vem sendo convidado a participar de inúmeras ações que reivindicam posições éticas e de compromissos mútuos entre profissionais, instituições, usuários e familiares. Com certeza, trata-se de postura que exige criatividade e disponibilidade para lidar com situações de compreensão e de reconhecimento de um sujeito multifacetado. Segundo Freitas (1998), as influências de homem e de mundo que recebe o profissional intervêm em sua postura e direcionam-lhe a prática na ação clínica do âmbito social. Assim, o seu fazer/saber pode tanto contribuir para manter a “ordem” da realidade social cotidiana quanto para provocar transformações com reflexos no grupo.

A idéia de uma clínica cujo saber/fazer transgride a ordem vai além da concepção de saúde/doença como dualidades opostas; ao contrário, rompe essa lógica, pois compreende tal relação como necessariamente dialógica, o que possibilita a construção de um sujeito capaz de reinventar-se e reinventar o seu modo de estar junto à família, nas instituições e no corpo social e político que o atravessam.

Gaulejac (2001, p. 37), ao refletir sobre a constituição do indivíduo, afirma:

Ele é o produto de uma história complexa que diz respeito, ao mesmo tempo, à sua existência singular, portanto, ao seu desenvolvimento psíquico inscrito numa dinâmica familiar e à sua existência social, vista como a encarnação das relações sociais de uma época, de uma cultura, de uma classe social. Todas essas determinações não são equivalentes, embora sejam dificilmente dissociadas.

Nessa concepção, o cuidado com a saúde mental apóia-se em uma rede de relações, no sentido de ativar, na comunidade, intercâmbios e recursos disponíveis para manter um canal cooperativo com os usuários que formam a rede. A noção de rede é compreendida como unidades sociais que se fortalecem à medida que entrecruzam recursos disponíveis, sejam formais ou informais. Assim, o fortalecimento das redes de assistência em saúde mental – acreditase – possibilita a abertura de espaços para movimentos de transformações. Mas isso não basta. É preciso também a disponibilidade dos profissionais para enfrentar o desconhecido e arriscar-se, responsavelmente, por caminhos inusitados, capazes de gerar reflexões e, concretamente, mudanças de atitudes.

 

Clínica psicossocial

Nos espaços de inter-relações, seria incoerente aprisionar o indivíduo em dimensões psicológicas ou sociológicas e negar os efeitos destes e de outros campos na historicidade do sujeito. “O psiquismo (o mental) e sua dinâmica”, para Levy (1994, p. 116), “são, por excelência, o lugar da mudança, da possibilidade de desligamentos e de novas combinações. As condições materiais, objetivas, só têm valor de mudança quando elas são apropriadas mentalmente ao nível de suas significações”.

Com efeito, o individual e o coletivo são imprescindíveis na abordagem da psicossociologia francesa, assim como as relações que permeiam os processos constitutivos do inconsciente e do social. Tal abordagem se volta para situações que emergem de grupos, de organizações e do cotidiano das comunidades, além dos possíveis vínculos entre os sujeitos. Nesse contexto, a função do profissional deve primar pela relação contratual terapêutica na qual os envolvidos tecem diálogos em direção a direitos e deveres, visando a coresponsabilidades entre todos (profissionais, usuários dos serviços e familiares).

Em situações assim, compreender os processos empáticos por meio das habilidades que envolvem o cognitivo e o afetivo, aproximando-se do outro, disponibilizandose ao sujeito que sofre, indica a possibilidade de um caminho para uma prática em saúde mental humanizadora. Segundo Falcone (1999, p. 23),

A empatia tem sido considerada como um atributo necessário aos psicoterapeutas e profissionais de ajuda. Ao adotarem uma atitude empática, esses profissionais contribuem para aumentar a auto-estima de seus pacientes, favorecendo a autorevelação, o vínculo terapêutico e a adesão ao tratamento.

Portanto, no espaço de construção, a interação parece minimizar o sofrimento e possibilitar abertura para reflexão e ação sobre a angústia sentida. O profissional se torna figura facilitadora para a qual os afetos se direcionam de forma confiável e acolhedora. A habilidade de estabelecer vínculos, considerando a clínica e as demandas familiares, constitui importante ferramenta na abordagem psicossocial.

O campo das intervenções psicossociais direciona-se para a potencialização das capacidades existentes no sujeito, visando à sua autonomia, à superação das dificuldades vividas e à reinvenção e ao fortalecimento de caminhos possíveis.

Intervir implica contextualizar-se em determinada realidade, questionar ações e tomar posições de transformação com conscientização. A intervenção psicossocial – convém ressaltar – precisa ser constituída com respaldo na atitude dialógica, ou seja, deve criar diálogos e, daí, definir sentidos, isso porque o princípio dialógico indica a possibilidade de expressão dos atores envolvidos, rejeita formas de opressão e de “coisificação” do ser em detrimento do ter. Além do mais, considera o sujeito ativo e potente em sua condição de reinventar o instituído, e, dessa forma, articular um olhar consciente para mudanças nos processos da área social.

Compreende-se, então, porque, nas relações terapêuticas pautadas pelo olhar psicossocial, a dialogicidade parece ser condição sine qua non. O cuidado envolve o processo de relação sujeito-sociedade-consciência, transformando as ações institucionalizadas. Nesse sentido, o não-estabelecimento de regras contratuais terapêuticas e o nãocompartilhamento de afetos talvez não contribuam para se construir a dialogicidade no cuidar. Torna-se importante, também, avaliar cotidianamente as relações entre o poder e o fazer, tensão constante na relação terapêutica. No entendimento de Barus- Michel (2004), o sujeito social assume a postura de protagonista quando se reconhece como ator dos processos sociais e se apropria do sentido de sua existência. Assim, a relação de encontro e de legitimidade na construção de uma vida social perpassa por questões que envolvem compromisso e construção de uma ética (ethos-morada) fortalecida no contrato terapêutico.

A tentativa de se estabelecer uma relação dialógica no processo terapêutico expressa certo esforço para minimizar o jogo de poderes nos quais os dispositivos estão inscritos. Como nos faz refletir Foucault (2007, p. 246), “o dispositivo... trata-se... de certa manipulação das relações de força, seja para desenvolvê-las em determinada direção, seja para bloqueá-las...”. Nesse percurso, necessitamos de reavaliações contínuas em nosso saber/fazer.

As reflexões de Basaglia (1985) acerca dos pacientes institucionalizados ratificam o pensamento de Foucault, na medida em que trazem à tona a necessidade de se reconhecerem ações do social sobre o sujeito institucionalizado e, por conseqüência, do instituído sobre o sujeito, além da exclusão como ferramenta de poder nas diversas esferas da formação humana. Ressalta que a relação terapêutica impõe a necessidade de se transpor as barreiras dos aspectos fisiológicos ou unicamente emocionais e de se visualizar um campo mais ampliado onde se encontra o homem. No dia a dia das instituições, percebe-se que o sujeito não só apresenta demandas geradas pelo seu sofrimento psíquico mas também traz consigo sofrimentos advindos de construtos sociais. Assim, estar atento às diversas possibilidades do discurso e de seus significantes em contextos amplos e complexos implica comprometimento e responsabilidade com aqueles que se apresentam frágeis e necessitam de olhar cuidadoso e responsável.

As problematizações aqui compartilhadas sugerem uma proposta de desconstrução de movimentos que defendem a unilateralidade de ações no campo da saúde mental e abrem a possibilidade de se compreender o sujeito nas suas relações pessoais ou sociais, objetivando a (re) invenção de estratégias, o que parece um caminho possível.

Refletir sobre o papel do psicólogo e o atravessamento ideológico em suas ações exige a reavaliação de conceitos e pré-conceitosem busca de postura comprometida. Assim, assumir o olhar psicossocial, orientando a população na busca de reconhecimento, ou melhor, de conhecimento de seus deveres e direitos implica fortalecer agentes de saúde mental na construção de seus próprios projetos e na conquista de espaços sociais, visando à convivência comunitária saudável em que o respeito, a singularidade, as diferenças sejam condições fundamentais para relações socialmente éticas e justas.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Edvânia dos Santos Alves
Rua Teles Júnior, 65/1802 - Aflitos
CEP: 52050-040, Recife – PE - Brasil
E-mail: edvaniaalves@uol.com.br

Recebido 26/09/2008
Reformulado 19/03/2009
Aprovado 18/04/2009

 

 

* Mestre em Psicologia Clínica pela Universidade Católica de Pernambuco, psicóloga da Saúde Mental e da Unidade Interinstitucional de Apoio Psicopedagógico do Estado de Pernambuco, Recife, PE - Brasil.
** Doutora em Psicologia Clínica – PUC-SP, professora e pesquisadora da Universidade Católica de Pernambuco, Recife, PE - Brasil. E-mail: ana.francisco@terra.com.br