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Psychê

versão impressa ISSN 1415-1138

Psychê v.9 n.15 São Paulo jun. 2005

 

RESENHAS

 

 

Érica de Sá Earp Siqueira1

Universidade Estadual do Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 

PERES, Urania Tourinho. Depressão e melancolia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. 64p. ISBN 8571107262.

Em seu livro Depressão e melancolia, Urania Tourinho Peres situa a depressão como o “mal do século” (p. 8), sendo considerada a quarta causa mundial de deficiência, ligada a um “vazio da existência” (p. 57), a uma perda de sentido da vida diante de uma homogeneização da cultura, em que a singularidade do sujeito encontra pouco espaço de sobrevivência. Nesse sentido, a autora vincula a depressão com a cultura atual e com os fatores que a determinam historicamente, e esboça um breve percurso histórico, a fim de demonstrar como as diferentes formas de subjetividade interferem diretamente no olhar sobre a depressão e a melancolia.

A autora aborda essa temática a partir de duas leituras: a psicanálise e a psiquiatria biológica. Na primeira a questão gira em torno da relação do sujeito com a perda, a falta, o vazio estrutural do ser humano, em que só se pode compreender a depressão por meio da história de vida contada por aquele determinado sujeito que a vivencia; já na segunda surge uma explicação biológica, ligada a um déficit neuro-hormonal, e portanto deve ser tratada com medicamentos.

É importante destacar que para a psicanálise a depressão não está diretamente vinculada a uma estrutura específica, apresentando-se como um fenômeno que pode se manifestar tanto em sujeitos neuróticos como psicóticos diante de uma perda. A depressão aparece em diversos textos freudianos com diferentes qualificações, como depressão melancólica, depressão narcísica, depressão neurótica, depressão psicótica, psicose melancólica, dentre outras.

Vale ressaltar que no decorrer da obra freudiana, apesar de haver uma tentativa de distinguir tais nomenclaturas, os termos depressão e melancolia ainda parecem ser empregados como sinônimos. Porém, muitos autores situam a melancolia como um quadro mais grave de inibição motora e afetiva, vinculado a uma estrutura psicótica, enquanto a depressão indica formas menos graves, vinculada a uma estrutura neurótica.

Peres recorre a Hipócrates a fim de demonstrar como a melancolia era vista antigamente. Na Idade Média, a melancolia decorreria de um excesso de um elemento frio e seco no organismo, a bílis negra. A teoria dos humores predominava nessa época, que dividia a humanidade em quatro humores: o melancólico (bílis negra), o colérico (bílis amarela), o sangüíneo (sangue) e o fleumático (água). A melancolia seria, portanto, decorrente de uma predisposição natural do organismo, deixando de ser vista como uma doença, e se inserindo na própria natureza do sujeito.

A autora remete-nos ainda a Aristóteles – Problemata 30 –, a quem fora atribuído o primeiro tratado sobre a melancolia, que prevaleceu por toda a Antigüidade. Esse tratado de Aristóteles fala-nos da relação entre a genialidade e a loucura, em que a melancolia passa a ser vista como a condição da genialidade, concepção que muitos defendem até os dias atuais. A melancolia aqui não é vista como doença, mas como natureza dos filósofos e poetas (ethos), sendo que muitos poetas e homens ilustres a possuíam, como Sócrates e Platão – uma visão romântica da melancolia, atrelada à idéia que “o homem triste é também o homem profundo” (p. 15).

Segundo a autora, nos dias atuais a melancolia de outrora cede lugar à depressão, sendo vista mais como uma doença que implica em diminuição, déficit e inibição. A inibição aqui aparece vinculada a uma paralisia, seja motora, afetiva ou intelectual – “a certeza do nada poder fazer” (p. 11). A perda do sentido da vida, que pode surgir por meio da perda de um amor, decepção no trabalho, dentre outras situações que remetem o sujeito ao desamparo e à sensação de abandono. A depressão também pode ser descrita como uma doença do tempo, um tempo que não sofre variações, no qual a luz adquire a cor marrom-escura, onde o desejo de morrer pode estar presente.

Posteriormente a autora recorre ao texto freudiano O mal-estar na civilização (1930), a fim de demonstrar a plasticidade do sintoma, vinculado a um momento histórico preciso, e principalmente, o lugar inexorável do sofrimento para o sujeito; essa irredutibilidade do mal-estar, ou seja, o preço pago para que se possa viver em uma cultura é uma perda de felicidade e um ganho de culpa, tão presente nos melancólicos.

As inúmeras mudanças na cultura atual, as crises econômicas e o desemprego somente acentuam o sentimento de desamparo, que segundo a autora, seria responsável pela verdadeira epidemia no que se refere às depressões, um momento definido como fortemente depressor. O sujeito conquista a liberdade para tornar-se artífice de seu próprio destino, o que gera insegurança e desamparo. Assim, acaba culpando-se pelo não-sucesso, advindo um discurso de auto-recriminações – o que se constitui, segundo a autora, o ponto nuclear de um estado depressivo.

Peres questiona como pode ser transmissível esse “mal-estar psíquico” (p. 27), e conclui que o crescente mal-estar que a civilização provoca, a excessiva medicalização da vida e o papel da força publicitária dos grandes laboratórios e do mercado dos psicofármacos atuam como fortes elementos propiciadores de transmissão. Ela destaca uma curiosa “coincidência”: com o surgimento da medicação antidepressiva (Prozac) há um aumento de casos diagnosticados de depressão.

Concluindo, neste livro a autora percorre os principais textos freudianos a fim de delimitar possíveis distinções entre a depressão e a melancolia, e traçar um paralelo com a cultura atual, levando em consideração as diferentes formas de subjetividade delimitadas historicamente.

Segundo a autora, atualmente a melancolia dirige-se preferencialmente às formas mais graves de padecimento, uma forma extrema de paralisia, adjetivando uma modalidade de psicose, enquanto a depressão designa uma maneira do ser humano situar-se na vida, marcada pela insuficiência e pela perda de sentido na existência. Marie-Claude Lambotte assinala que enquanto o deprimido é capaz de delimitar a origem de seu mal-estar e esboçar tentativas de superação, o melancólico sente-se preso à fatalidade de um destino frente ao qual nada pode ser feito.

De acordo com Peres, a clínica psicanalítica com pacientes deprimidos é rica e desafiadora. A depressão, considerada o “mal do século” (p. 57), oferece pontos importantes de reflexão para questões que a atualidade apresenta. A psicanálise trabalharia, portanto, com o sujeito que se interroga sobre o sentido particular de sua existência diante de uma cultura homogeneizadora, que não deixa espaço para a singularidade de cada indivíduo. Neste sentido, é diante do “vazio da existência” e da “falta de sentido” (p. 57) que surge essa “epidemia” de deprimidos na atualidade.

 

 

Endereço para correspondência
e-mail: ericasesiqueira@hotmail.com

 

 

1 Psicóloga (PUC-RJ); Especialista em Psicologia Clínico-Institucional (HUPE/UERJ); Mestranda em Psicanálise (UERJ).