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Psychê

versão impressa ISSN 1415-1138

Psyche (Sao Paulo) v.9 n.16 São Paulo dez. 2005

 

ARTIGOS

 

A servidão ao “outro” nos estados limites1

 

The bondage to the “other” in the borderline states

 

Marta Rezende CardosoI

Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto de Psicologia

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Neste artigo o tema dos estados limites é explorado, dentre outros aspectos, à luz de um contraponto entre narcisismo e auto-erotismo. Busca-se, assim, desdobrar, e de certa forma ultrapassar, a clássica idéia de “falha narcísica”, supostamente determinante nessas patologias. Noções como a de apoio e desamparo são ferramentas importantes nessa reflexão, cujo ponto de partida é a própria questão de limite em psicanálise. Supõe-se uma marcante servidão ao outro interno nos estados limites, o que estaria além de uma indiscriminação com o objeto.

Palavras-chave: Estados limites, Narcisismo, Auto-erotismo, Desamparo, Alteridade.


ABSTRACT

In this paper the borderline states are studied, among other features, in the light of a counterpoint between narcissism and auto-erotism. Thus the author tries to develop and in a way to overtake the classic idea of a “narcissistic fault”, assumedly prevalent in these pathologies. Notions like support and helplessness are important tools in this reflection whose starting point is the issue of borders in psychoanalysis in itself. A remarkable bondage to the inner other is supposed in the borderline states, and this would be beyond the indiscrimination to the object.

Keywords: Borderline states, Narcissism, Auto-erotism, Helplessness, Otherness.


 

 

Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro
(Fernando Pessoa, Tabacaria, 1928).

O interesse pelos estados limites no meio psicanalítico deve-se em grande parte às características singulares da clínica contemporânea. Temos acompanhado uma significativa incidência de casos de adicção (em suas diferentes modalidades), de patologias implicando uma convocação do registro do corpo, como as múltiplas situações de passagens ao ato, além das doenças psicossomáticas. Todo esse quadro, marcado por uma dimensão de “violência psíquica”, vem interrogando a teoria e desafiando o método de tratamento analítico. Estamos diante de patologias nas quais elementos “irrepresentáveis” têm forte dominância, aspectos da vida subjetiva diante dos quais os mecanismos psíquicos mais elaborados tendem a falhar, e em seu lugar são acionadas defesas de caráter mais elementar.

Baseando-me fundamentalmente em Freud e em alguns representantes da Escola Francesa, venho concentrando o estudo dessa temática na própria noção de limite2. De acordo com André Green (1999), penso que esta noção tem grande relevo na dinâmica desses casos cujo eixo principal – ou melhor, cujas angústias peculiares têm uma base que – parece girar justamente em torno da questão das fronteiras na vida psíquica. Refiro-me aqui, em particular, aos limites entre o eu e o outro, ou seja, à importância que o problema da alteridade, tanto externa quanto interna, possui nesses casos.

Porém, apesar do notório papel dessa dimensão na determinação e no modo de funcionamento psíquico dos estados limites, em razão da especial dificuldade que expressam no âmbito da relação com o objeto, é preciso também invocar outros registros fronteiriços aí relevantes, como o limite entre o corpo e o psíquico, os limites da representação e, ainda, a clássica fronteira – nessas situações, justamente, esmaecida e oscilante – entre distintas patologias: entre neurose e psicose, e – vale acrescentar, e talvez mesmo sublinhar – entre neurose e perversão. Voltarei posteriormente ao último ponto.

Para explorar essa vertente da questão – a dimensão de fronteira na vida psíquica –, a obra de Freud oferece um riquíssimo material, ainda que de forma relativamente implícita. Podemos, entretanto, dirigir-nos aos textos freudianos com o olhar não daquele que espera uma revelação sobre uma patologia específica, mas daquele que busca desvendar aquilo que estaria no cerne dessas problemáticas. Se tratarmos a idéia de limite, de fronteira, com o estatuto de uma efetiva noção teórica, poderemos certamente encontrar em Freud elementos fundamentais para essa discussão.

Um breve panorama: desde o início de seu percurso Freud coloca-nos diante da questão dos limites; inicialmente pela via da histeria, a cena de sedução traumática configura uma situação de passividade do sujeito em relação ao outro: os limites do externo/interno permeiam a constituição, no psiquismo, de um “corpo estranho”. Pela ultrapassagem dos limites “realísticos” da teoria da sedução descortina-se a amplidão do universo da fantasia, o que vem novamente convocar o complexo problema do limite, incontornável nesse caso, entre realidade externa e realidade psíquica. Com o conceito de pulsão Freud remete-nos aos limites entre corpo e psiquismo, a própria noção de “apoio” situando-se nas fronteiras de seu reverso, uma vez que se trata, de fato, de um radical “desvio”, uma perversão do caminho do instinto. Com a emergência do conceito de narcisismo, assentada, dentre muitas outras determinações, na interrogação sobre os limites entre neurose e psicose – trazendo ainda à tona e vindo amadurecer a reflexão sobre os limites entre realidade e fantasia – Freud apresenta novas vertentes desse fértil campo dos limites, por meio da complexificação da noção de ego. Em seguida, com a proposição do novo dualismo pulsional, conduz-nos a um novo espaço, fora dos limites da representação.

A análise de cada um desses elementos pode iluminar o estudo dos estados limites. Procurando contemplar de maneira articulada essas múltiplas aberturas da teoria freudiana rumo ao desenvolvimento da noção de fronteira, dirijo-me primeiramente para o conceito de narcisismo.

 

O apelo ao narcisismo

Considerar os estados limites à luz do narcisismo tornou-se quase um lugar-comum. Mas o que significa exatamente isso? De que forma podemos desdobrar essa idéia, tendo como linha mestra a noção de limite, de fronteira? A minha proposta aqui é apenas destacar alguns pontos, colocá-los em discussão, na expectativa de aprofundá-los futuramente.

O insistente, e muitas vezes prematuro, apelo feito à questão do narcisismo, ao mesmo tempo que vem auxiliando o entendimento dessa questão, também tem de alguma forma, promovido seu obscurecimento. Se a estruturação narcísica revela-se efetivamente falha nos estados limites, não será preciso procurar o “x” da questão em outro lugar? De outro modo, teremos que nos satisfazer em conhecer apenas aquilo que falta, que é falho.

Ora, a “nova ação psíquica”, que é o narcisismo, vem agenciar a consolidação dos limites do espaço egóico, processo complexo que supõe a exigência não somente de uma delimitação, mas também de uma harmoniosa flexibilização nessas fronteiras, tanto internas quanto externas. Quando essa “nova ação psíquica” faz-se precariamente, quando as fronteiras narcísicas, egóicas, não se delineiam de maneira suficientemente clara ou plástica, o espaço fronteiriço entre o eu e o outro (externo-interno) – espécie de espaço de trânsito entre os dois campos – tende a permanecer demasiadamente estreito3.

Assim, o funcionamento psíquico se deixará reger de forma mais dominante por uma outra lógica. Não estaria esta lógica situada, portanto, aquém dessa nova ação psíquica, promotora de unificação e inscrição de impressões antes fragmentadas, presentificadas inicialmente no território psíquico na qualidade de marcas? Estas estão ainda fora do campo da representação, ou seja, das inscrições que supõem uma inserção em uma cadeia de significação, regime de ligação das impressões– o que pressupõe a consolidação de uma tópica– resultante por sua vez, dessa unificação promovida pelo narcisismo.

O que vislumbro a partir destas observações é justamente a importância de se incluir no debate, dentre muitos outros elementos, o registro do auto­erotismo – registro pouco invocado na literatura sobre o tema até agora. Faz-se constantemente menção, por um lado, às relações primárias, à vida inicial, à relação mãe-bebê, com realce na questão da indiferenciação, da invasão e do engolfamento por parte do objeto; por outro, de forma complementar, insiste-se na falência da função paterna; enfim, elementos recorrentes nos trabalhos dedicados às adicções, às patologias alimentares e psicossomáticas etc.

Quanto à noção do auto-erotismo, tendo em vista a tentativa de estabelecer um contraponto com o narcisismo, fazem-se necessárias algumas breves considerações:

A introdução da noção de narcisismo vem clarificar a posteriori a do auto-erotismo: no narcisismo é o ego, como imagem unificada do corpo, que é objeto da libido narcísica, e o auto-erotismo, por oposição, define-se como o estado anárquico que precede essa convergência das pulsões parciais sobre um objeto comum (Laplanche e Pontalis, 1967, p. 43 – tradução nossa).

Laplanche e Pontalis definem o auto-erotismo como “o estado primário de fragmentação da pulsão sexual. Uma tal fragmentação implica, quanto à relação com o objeto, a ausência de objeto total (ego ou pessoa estranha), mas de modo algum a ausência de um objeto parcial fantasístico” (p. 44). As pulsões funcionam a princípio de maneira anárquica, e é este aspecto que se mostra mais importante para se compreender o auto-erotismo: o aspecto parcial da pulsão. No primeiro tempo da constituição do psiquismo é preciso imaginarmos um corpo, que estando desviado de suas funções de autoconservação, constitui-se como um eu-corpo, ainda sem fronteiras, aberto ao outro.

Como sustenta a quase totalidade dos autores – independentemente de suas filiações teóricas –, nos estados limites a relação que o sujeito tende a estabelecer com o objeto externo é fonte de intensa angústia, angústia de invasão e simultaneamente de separação. Mas qual seria a natureza desse objeto – objeto de satisfação de tipo imediato – fonte de excesso pulsional, incrustado e ao mesmo tempo “exteriorizado” nas fronteiras do espaço interno?

 

A natureza singular do objeto

O estatuto absoluto, e portanto sinistro e persecutório que o objeto (interno/externo) parece ter nessas patologias, envolve na dinâmica pulsional uma inquietante flutuação entre a ordem da “necessidade” e a do desejo, como o ilustram tão bem a relação que o toxicômano estabelece com o objeto­droga, a que o bulímico trava com a comida, a que o adicto, em sua servidão ego-corporal – e ao mesmo tempo estritamente corporal – trava com o objeto (parcial) de sua adicção. Nesses casos, a contingência que marcaria a natureza pulsional do objeto vê-se, de certo modo, desviada. O caráter fixo que assume o objeto nas adicções indica essa espécie de rebatimento do desejo sobre a necessidade. Aulagnier, abordando a questão da toxicomania – que nesse contexto ela relaciona à compulsão do jogo e à paixão amorosa – afirma quese trata de “uma relação na qual um objeto tornou-se para o Eu de um outro fonte exclusiva de todo prazer, e foi por ele deslocada para o registro da necessidade” (1979, p. 174).

Este é um aspecto bastante explorado nos trabalhos de Joyce McDougall. Sobre os objetos adictivos, em um artigo mais recente, a autora acrescenta que diferentemente dos objetos transicionais – ainda que inconscientemente neles se busque essa função –, esses objetos são “tentativas de ordem somática, mais do que psicológica, para se dar conta da ausência ou da dor mental, e não fornecem senão um alívio temporário para o sofrimento psíquico” (2002, p. 22). Isto lhe permite explicar a opção que tem feito de nomear os objetos adictivos como “objetos transitórios”, e não como “transicionais”, consistindo a problemática da adicção, em seu entender, uma “neo-necessidade”.

Esses sujeitos encontram-se passivos, em um estado que pode ser considerado como uma paixão mortífera, escravizados ao domínio do outro, ainda que passando ao ato – ato de dominação, que pressupõe paradoxalmente a cristalização do ego em uma situação de radical passividade pulsional. Como sugere Maria Helena de Barros e Silva (2002), em seu livro dedicado ao tema da paixão, a exacerbação extrema da idealização do objeto, própria à relação passional, remete-nos a uma situação de fascinação, no sentido de uma servidão. A autora fundamenta-se nesse ponto em Freud, que em seu trabalho dedicado ao ego e à psicologia de grupos, afirma a respeito da paixão amorosa, em sua modalidade extrema “o ego se torna cada vez mais despretensioso e modesto e o objeto cada vez mais sublime e precioso, até obter finalmente a posse de todo auto-amor do ego, cujo auto-sacrifício decorre, assim, como conseqüência natural. O objeto, por assim dizer, consumiu o ego” (1921, p. 143).

 

O movimento de “des-apoio”

Tentando avançar na compreensão dos estados limites – nessa retomada que proponho do auto-erotismo, tendo em vista a sua própria constituição – passo a abordar um outro ponto central da teoria freudiana, igualmente precursor da noção de limite. Trata-se da idéia de “apoio”, que diz respeito ao mesmo tempo à fronteira entre corpo e psiquismo e à fronteira eu-outro. A idéia de “apoio” concerne ao movimento de constituição do próprio objeto fonte da pulsão – objeto justamente do auto-erotismo. O termo auto mais uma vez absolutamente não descarta a presença do objeto, se levamos em conta a dimensão da fantasia e a suposição de um objeto externo interiorizado, porém ainda não integrado: objeto parcial, insubstituível, “objeto único” (nos termos de Jacques André4), fonte do pulsional,em primeiro lugar, do excesso pulsional.

Diante dessa alteridade radical, uma “nova ação psíquica” deverá ser colocada em marcha, movimento identificatório primário (cuja fonte está também no outro), movimento de caráter especular, ou seja, o advento do narcisismo primário. Esta nova ação psíquica é vital para que esse objeto possa vir a ser assimilado, e conseqüentemente, para que as fronteiras, tanto externas quanto internas, do espaço do eu se consolidem; em outras palavras, para que a “sombra do objeto”, esse “corpo estranho”, venha a ser assimilada na tópica psíquica, ou então, recalcada.

Ora, nos estados limites – se voltamos à clássica e consagrada idéia de falha narcísica – essa operação de assimilação do objeto e de totalização do eu é precária. Como já apontamos anteriormente, nesses indivíduos a relação objetal, ao menos parcialmente, traz a marca de um funcionamento de tipo absoluto – poderíamos acrescentar estado de “paixão mortífera”. No meu entender, este estado não nos orienta exatamente para a idéia de uma indiscriminação entre o eu e o outro, porém mais precisamente para a de servidão ao outro. Isto possui, penso eu, um caráter bem diverso daquilo que caracterizaria uma identificação de tipo especular, uma paixão, digamos assim, “narcísica”.

Se nos voltamos, por exemplo, para a patologia das adicções, o objeto mostra-se insubstituível, absolutamente necessário, o que contraria profundamente, vale insistir, a necessária contingência própria ao objeto da pulsão. Como sugerem alguns autores – e tenho em mente neste ponto um primoroso trabalho de François Gantheret (1999) sobre o tema da paixão, o que parece estar em jogo é um estranho movimento de “des-apoio”, no sentido de uma tendência regressiva, do objeto do desejo ao objeto da necessidade. Ao menos podemos supor que algo insiste nessa direção. Creio, porém, que o termo necessidade tem que ser aqui cuidadosamente relativizado, pois não se trata de um retorno ao corpo-organismo mas a um corpo erógeno, já que estamos dentro do espaço psíquico, do espaço da subjetividade.

Atento igualmente a esses importantes matizes, Gantheret sublinha que o apelo a essa idéia de um “des-apoio” abre uma possibilidade de compreensão para certas tentativas de “solução” (em termos de resposta patológica), como ele diz, que tendem a promover um desvio de um regime objetal descontínuo, necessariamente insatisfatório (regime da pulsão), rumo a um regime substancial, contínuo. Mas ele insiste na necessidade de reconhecermos que evidentemente a insatisfação não é passível de desaparecimento: um sujeito não poderia deixar de estar submetido à reivindicação pulsional. Assim, a mudança ou desvio que aí parece ter lugar incide mais precisamente na via de busca da satisfação. No lugar de uma via que caminharia de objeto-substituto em objeto-substituto, cuja “palavra de ordem”, como pontua o autor, é outra­coisa (no sentido da própria experiência da busca, da procura do objeto, que envolve de maneira dialética, esperança e decepção), passa-se ao regime da substância, cujo imperativo é ainda-mais.

“Ele é quantitativo, a única resposta à insatisfação recorrente só pode ser: mais substância. Assim pode-se compreender como a paixão se exacerba sobre seu ‘objeto’, procura consumi-lo, dele esgotar a substância” (1999, p. 92 – tradução nossa). O objeto – tornado único e funcionando como último recurso – torna-se a única fonte de satisfação, objeto que não é reconhecido como um outro separado de si; ou seja, ele permanece enredado no circuito da fascinação/ servidão, desqualificado, portanto, no que concerne a seus limites, suas fronteiras. Levando-se em consideração esse aspecto do objeto, de alguma maneira, “coisificado” tornado “substância”, propriedade da insaciável repetição na situação de paixão, de fascinação/servidão, encontramo-nos em uma outra confluência: aquela situada nas fronteiras entre neurose e perversão.

Alguns dos aspectos levantados até então são ilustrados na vinheta clínica que se segue.

Ana, jovem de 22 anos (paciente de uma supervisionanda) busca atendimento com a queixa de intensa angústia, depressão – está “no limite de suas forças” (sic). Faz uso abusivo de drogas. Relata episódios de automutilação, momentos vividos “com forte sensação de êxtase”. Diz que assim como as drogas, “isto serve para esquecer, para suportar” sua profunda tristeza e desespero. Tentou a vida inteira, sem sucesso, despertar o olhar da mãe, o reconhecimento de sua existência, de seu valor. Os pais são separados e o pai, com quem diz ter uma relação mais terna, ainda que distante, bebe demasiadamente, já tendo sido viciado em outras drogas. Mas foi quem, vendo as marcas da automutilação, exigiu que ela procurasse ajuda. Uma situação em que foi abandonada de forma abrupta pelonamorado contribuiu para intensificar sua angústia, o que resultou no apelo mesmo que indireto ao pai, e posteriormente à terapeuta.

Ana é uma bela jovem, mas acha-se medonha, fisicamente vergonhosa. Percebe-se alguém incapaz de realizar suas tarefas básicas, apesar do ótimo percurso que diz ter feito na vida escolar até um determinado momento. Ingressou há algum tempo em uma faculdade, depois de muitas oscilações e dificuldades, pois desde os 15-16 anos quebrou o ritmo de estudo em função do uso de drogas. Novos elementos vêm surgindo no material clínico: atos de caráter obsessivo, como a compulsão a lavar as mãos e realização de rituais a serviço da imperativa evitação de se ver em espelhos e de ser vista pelas pessoas em geral. Fica igualmente siderada ante a visualização do próprio corpo, tendo, por exemplo, que tomar banho no escuro, acendendo apenas uma vela. Chama a atenção o fato de ter justamenteescolhido a faculdade de Cinema. Tentativa de construção de uma imagem de si?

Neste sintético relato clínico, marcado pela problemática do limite – em vários níveis –, a questão narcísica, seu caráter falho, parece inegável. Mas vale ressaltar, a insistência do especular convoca aqui um processo bem aquém da indiferenciação com o outro; algo da ordem de um objeto externo-interno inassimilável, que se apresenta de forma “coisificada”, denegrida dentro de si mesma. Alguns aspectos merecem destaque: a convocação do corpo, através da mutilação de membros, do ato de se drogar, dessa estranha prevalência do olhar – um olhar concreto que não parece ter acedido completamente à ordem do desejo. No olhar que dirige a si mesma, ou naquele que o outro lhe dirige, ela só enxerga a “sombra do outro”: esse objeto-coisa que entrava a consolidação de sua constituição narcísica.

O desamparo entrecruza-se aqui com a “indiferença” do outro. Concordo plenamente com Jacques André quando ele sugere que na situação de desamparo, diferentemente da de angústia, a vida psíquica continua “a ser vivida fora de si, na desesperada abertura sobre o outro, para o outro. Um outro que não responde (ou que responde mal)” (2001, p. 105).

 

Ego-corporal x objeto-coisa

Em vários dos estados limites o ego mais do que nunca é, e literalmente, um ego-corporal, travando um embate compulsivo com um “objeto único”, objeto-coisa – tendo o eu a denominá-lo –, que pela sua concretude como marca que se impõe, como exigência imperativa, ameaça adentrar e se assenhorear do espaço da tópica. Nessa linha, podemos compreender o pânico do sujeito, tanto de ser invadido pelo objeto quanto de perdê-lo. Mas aqui, como alguns autores acertadamente sublinham, a angústia de separação, mais do que uma ameaça de perda, é ameaça de uma impossibilidade de perder.

Esta abordagem parte também das idéias de André Green, particularmente no que diz respeito ao “trabalho do negativo”, tema que foi objeto de um estudo magistral realizado por Luis Claudio Figueiredo e Elisa Cintra no artigo Lendo André Green: o trabalho do negativo e o paciente limite5.

A temporalidade do auto-erotismo articula-se com a condição do desamparo psíquico, situada aquém da angústia –, situação de passividade pulsional que resulta, em última instância, de uma anterior “ação psíquica” advinda do outro. Essa ação inaugural, originária, comporta uma dupla face: traumática mas simultaneamente constitutiva do espaço egóico; provocadora de um movimento de apoio/desvio, fundador da própria vida pulsional, considerando seu caráter dual, movimento de perversão do instinto, que permite a transição da necessidade ao desejo, seja na sua vertente passional, disruptiva, seja na amorosa, narcísica.

Como escreve Jacques André, o desamparo “significa ao mesmo tempo uma abertura máxima do psiquismo, profunda, sem fundo como um abismo, e a desqualificação do outro, como outro, em sua tentativa de responder ao desespero, de tornar-se objeto disso” (2001, p. 105). Tentando traçar as fronteiras entre os estados limites e a psicose, e deixando-se inspirar, ele também, pela noção de limite, o autor acrescenta: “a figura de alienação psíquica da psicose nasce da circunstância de que um outro é eu. Na configuração ‘limite’ (...) o único eu é um outro, um outro fora-de-si” (p. 106).

Nas patologias que estamos investigando parece impor-se, regressivamente, um descaminho nessa operação, no sentido de uma “perversão” da própria via pulsional, e que atrela o sujeito a uma servidão – em última análise, de caráter masoquista – ao objeto fonte da pulsão. Estaríamos, então, nos limites da perversão? Esse objeto-coisa insubstituível e imperativo não estaria, como tentamos sugerir no decorrer deste artigo, nos limites do objeto contingente da pulsão?

 

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Endereço para correspondência
Marta Rezende Cardoso
Rua Gustavo Sampaio, 710 / 1805 – 22010-010 – Rio de Janeiro/RJ
tel: (21) 2543-8630
e-mail: rezendecardoso@ig.com.br

recebido em 16/05/04
aprovado em 27/09/04

 

 

Notas

IPsicanalista; Doutora em Psicanálise e Psicopatologia Fundamental (Universidade Paris VII); Professora Adjunta do Instituto de Psicologia (UFRJ); Pesquisadora do CNPq.
1Agradeço a Pedro Henrique Rondon por suas generosas sugestões e correções.
2Este estudo faz parte de um processo de pesquisa mais amplo, dedicado à questão da violência psíquica, que conta com o apoio do CNPq.
3Esta idéia de um “espaço fronteiriço”, espaço de trânsito necessário entre o eu e o outro, foi explorada em dissertação de Mestrado, sob minha orientação (Villa, 2004).
4Conforme os desenvolvimentos do autor no artigo “O objeto único” (1999).
5Este artigo faz parte da coletânea Limites, organizada pela presente autora (Cardoso, 2004).