Serviços Personalizados
Journal
artigo
Indicadores
Compartilhar
Psychê
versão impressa ISSN 1415-1138
Psyche (Sao Paulo) v.10 n.18 São Paulo set. 2006
ARTIGOS
Placement: modelo clínico para o acompanhamento terapêutico
Placement: Clinical Model for the Therapeutic Accompaniment
Gilberto SafraI
Universidade de São Paulo . Instituto de Psicologia
RESUMO
Este trabalho apresenta o conceito de placement como um modelo para a teorização do acompanhamento terapêutico. O conceito de placement foi formulado por Winnicott como uma modalidade de atendimento clínico. Essa é uma perspectiva de trabalho clínico pouco conhecida entre nós. É uma modalidade de intervenção em que a noção de lugar é fundamental, pois nela o ser humano precisa encontrar um lugar que tenha sido oferta de um outro para que se inicie o processo de constituição do self. O acompanhante terapêutico fornece ao paciente, fundamentalmente, um lugar no mundo, a partir do qual possa se inserir na comunidade humana para destinar-se em direção a um horizonte existencial possível.
Palavras-chave: Acompanhamento terapêutico, Placement, Winnicott, Lugar, Ética.
ABSTRACT
This paper presents the concept of placement as a model for the conceptualization of the therapeutic accompaniment. The concept of placement was formulated by Winnicott, as a modality of clinical work. This is a perspective of clinical work not very well known among us. It is a modality of intervention where the notion of place is very important, because it is necessary for human beings to find a place offered by another human being so the process of constitution of the self could begin. The therapeutic accompanier provides the patient a place in the world, from where he can feel himself belonging to the human community and from where he could destine himself towards a possible existential horizon.
Keywords: Therapeutic accompaniment, Placement, Winnicott, Place, Ethics.
Considero o acompanhamento terapêutico uma modalidade de atendimento clínico fundamental no mundo contemporâneo. Na história do acompanhamento terapêutico observa-se que esta modalidade de intervenção clínica foi freqüentemente tratada como uma abordagem meramente auxiliar, muitas vezes até mesmo desvalorizada. No entanto, em uma época em que as novas formas de subjetivação surgem pela ausência de um lugar ético significativo que possibilite a constituição de si mesmo, ou pela solidão absoluta decorrente da ausência do rosto do Outro, o acompanhamento terapêutico mostra-se como a modalidade de atendimento clínico necessária para contemplar o sofrimento na atualidade. Nessa perspectiva há a demanda de modelos que auxiliem a fundamentação ética e teórica do acompanhamento terapêutico, para que possa ser uma prática realizada com rigor. Neste texto pretendo enfocar o modelo de trabalho clínico proposto por Winnicott (1984) denominado placement , por considerar que ele constitui um excelente paradigma para o acompanhamento terapêutico, pois em meu modo de ver, o acompanhante oferece fundamentalmente a seu paciente um lugar.
Placement é uma modalidade de intervenção clínica bastante importante na obra de Winnicott. No entanto, é pouco conhecida entre nós pelo fato de que nos textos em que ela é apresentada, sua especificidade e suas características desapareceram em decorrência do modo como a tradução d7o texto foi realizada. Placement foi traduzido às vezes como alojamento, outras como colocação, o que levou à perda do conceito que Winnicott pretendia apresentar ao leitor. A tradução da palavra placement é problemática. Ela é derivada da palavra place , cujo significado é lugar, dimensão fundamental na constituição do self e no processo de trabalho clínico. Winnicott foi um psicanalista intensamente implicado com a clínica, e desenvolveu diferentes modalidades de atendimento: a análise clássica, as consultas terapêuticas, a psicanálise segundo a demanda, o placement.
A primeira vez que me dei conta da importância do conceito de placement foi por meio da análise de um garoto, que eu conduzia no final da década de 70. Era um menino que na época tinha por volta de onze anos de idade, e uma das coisas que mais me impressionou desde o princípio da análise foi a criatividade genial que esse menino apresentava, que se revelava por sua capacidade de comunicar sua vida interior e por sua grande inventividade. Havia questões fundamentais nesse menino do ponto de vista da constituição de si mesmo, que foi necessário abordar ao longo de sua análise. Uma delas era a questão do amor primitivo, que se mostrou importantíssima no trabalho, pois ele se inibia temendo destruir o outro com sua capacidade de amor, o que levou a certa detenção em seu desenvolvimento. Mas ao lado dessa questão havia uma situação na qual ele se encontrava e que igualmente interferia em seu desenvolvimento. Esse garoto freqüentava uma escola que não era compatível com sua inventividade e originalidade. Nessa escola ele estava deslocado, sentia-se estigmatizado, pois professores e alunos o tratavam como alguém estranho e desinteressado, desatento às aulas. Na verdade, ele tinha um desenvolvimento intelectual e uma capacidade de apreensão da realidade muito acima do que a escola lhe fornecia em seu projeto pedagógico.
Nessa época, ao lado da análise, fui procurar junto com os pais uma escola que pudesse contemplar as características do menino. Naquele momento, o encontro de uma escola que estivesse aberta às necessidades do analisando possibilitou que ele rapidamente resolvesse seus problemas de aprendizagem. A capacidade que esse rapaz tinha de criar encontrou um lugar naquela escola, o que lhe possibilitou uma expansão em diversas áreas de sua vida.
Este foi um episódio bastante significativo no percurso desse paciente. A análise prosseguiu e trabalhamos intensamente a questão do amor primitivo. Na etapa final de sua análise, ele passou meses e meses pedindo-me pedaços de madeira. Eu levava os objetos solicitados, e com eles construía um objeto que não era possível discernir o que seria. Eu observava o que estava se passando e certa vez lhe perguntei: “ o que você está fazendo? ”; e ele respondeu:“ eu ainda não sei. Aguarde... ”. Por fim, a construção começou a adquirir uma configuração. Parecia uma grande caixa. Em uma sessão, ele pegou um copo de plástico, escreveu o nome da mãe e o colou sobre uma das torres dessa construção. Então, olhou para mim satisfeito e disse:“ pronto! ” . Eu perguntei:“ acabou? ” . Ele respondeu: “ acabou. Isso é um lugar ! ”. Fiquei surpreso com sua comunicação. Ele falava de um lugar! Não era uma coisa, um objeto, era um lugar! Desse modo, evidenciou-se o modo pelo qual ele havia vivido o processo analítico. Para ele, o trabalho lhe havia ofertado um lugar.
Tenho observado em diferentes atendimentos realizados com acompanhamentos terapêuticos que ao lado da possibilidade de auxiliar os pacientes no estabelecimento de funções psíquicas e em seu trânsito em meio à realidade compartilhada, o profissional lhe oferta um lugar ético constitutivo (Safra, 2004).
Em outro momento, atendi um outro menino. Era uma criança enlouquecida, com uma mãe esquizofrênica; sua situação de vida era caótica. Era um garoto com dez anos de idade, que vivia com sua mãe, seu pai já havia falecido. A mãe freqüentemente tinha crises no meio da noite e acordava o filho gritando e delirando. Muitas vezes o garoto fazia parte do conteúdo de seus delírios, o que era uma situação terrorífica para ele.
Em sua análise, o enlouquecimento era atualizado na situação transferencial. No trabalho com ele foi necessário realizar dois placement s . No primeiro, transferimos o menino para casa de suas tias, o que deu ao menino um lugar para que pudesse viver e fosse pelo menos um pouco mais saudável do que ele tinha com sua mãe. A partir do momento que as tias passaram a cuidar dele, sentiuse mais confiante, o que levou à intensificação do comportamento enlouquecido do menino. Em um ambiente de maior segurança, esse tipo de paciente atua, frente à nova situação, o caos ao qual esteve submetido. Depois de alguns meses tornou-se necessário mais um placement , o que felizmente foi possível.
Ele foi internado em uma comunidade terapêutica por alguns meses, que lhe podia fornecer a experiência de um ambiente indestrutível & ambiente que sobrevivesse à externalização de seu caos interno. As sessões de análise prosseguiam nesse período e eram realizadas no ambiente da comunidade terapêutica. O caso não poderia ter tido a boa resolução que teve sem essas duas intervenções, que possibilitaram que a trajetória do garoto também se modificasse.
Winnicott faz distinção entre hospitalização e placement . A hospitalização é um tipo de intervenção que é feita tendo muito mais a função de afastar o indivíduo, em decorrência de comportamentos disruptivos. No placement o que se busca é a possibilidade de o indivíduo ser colocado em uma situação que responda às suas necessidades para que possa ser acompanhado em seu tratamento.
É interessante observarmos na obra de Winnicott, como o conceito de placement vai pouco a pouco sendo constituído. Inicialmente ele aparece como uma intervenção associada ao manejo, para mais à frente alcançar o estatuto de uma modalidade de atendimento clínico específica. O desenvolvimento do placement está profundamente associado ao trabalho que Winnicott realizou por volta da segunda guerra mundial, no qual acompanhou o processo da retirada de muitas crianças de Londres para o interior da Inglaterra, como maneira de protegê-las dos bombardeios que ocorriam naquela época. Ele tinha a preocupação de que o remanejamento das crianças para um outro ambiente pudesse significar uma interferência ruim no processo maturacional dessas crianças.
Winnicott observou a importância que os novos ambientes haviam tido para algumas das crianças, pois eles lhes forneciam a experiência de estabilidade e continuidade, qualidades inexistentes em seus ambientes de origem. Desse modo, ficou evidente para ele que o placement poderia vir a ser um modo significativo de intervenção clínica.
Inicialmente, Winnicott falou principalmente da importância do placement na prevenção da delinqüência, quando a criança anti-social poderia vir a encontrar um ambiente indestrutível, no qual ela pudesse eventualmente recuperar a memória da situação que havia sido perdida. Pouco a pouco, ele foi ampliando o uso do placement nas situações clínicas. No artigo de 1948, Alojamentos para crianças em tempo de guerra e de paz , ele afirma que o valor dessa modalidade clínica de intervenção reside em prover um lugar no qual se possa cuidar dos pacientes, que sem essa provisão ficariam degenerando em hospitais ou em suas casas. Já no texto de 1956, A tendência anti-social , ele é categórico quando diz que para um delinqüente o tratamento é o placement , e não a psicanálise.
No artigo de 1947, intitulado Tratamento em regime residencial para crianças difíceis , Winnicott desenvolve extensamente sua contribuição para o estudo do placement . Logo no início desse artigo ele comenta sua experiência com as crianças que foram evacuadas de Londres, explicando que precisou lidar com crianças difíceis, que vinham de lares insatisfatórios, ou de experiências de desintegração familiar. Essas crianças, segundo ele, precisavam mais de experiências de um lar primário, que pudesse auxiliá-los em sua constituição psíquica, do que simples substitutos para seus próprios lares. Ele denomina lar primário o ambiente adaptado às necessidades especiais da criança, sem as quais não se estabelecem os fundamentos da saúde mental. Na continuidade desse artigo, Winnicott assinala quais seriam as necessidades fundamentais da criança, que poderíamos estender para os pacientes de diferentes idades:
1- a importância de que, na experiência de lar primário, o paciente encontre alguém que lhe possibilite satisfações instintivas, para lhe dar a possibilidade da descoberta do corpo. Faceta fundamental para o processo de alojamento da psique no corpo, o que foi denominado de personalização;
2- ressalta-se a necessidade de que, no lar primário, o indivíduo possa encontrar alguém para amar e odiar. Amar e odiar a mesma pessoa. Essa é uma experiência fundamental para que a pessoa possa alcançar a possibilidade de viver a culpa e a restituição, para atingir a experiência de concern (preocupação);
3- no ambiente de placement é necessário, como já mencionei acima, que o paciente possa encontrar um ambiente indestrutível no mundo físico, pois essa experiência lhe dará a descoberta do quanto pode destruir, o que lhe ofertará a possibilidade de discriminar entre fantasia e fato;
4- será importante, no lar primário, um casal nas funções de pai e mãe se responsabilizando juntos pelo paciente, para que ele possa encontrar campo para a expressão de seu desejo de separar os pais e encontrar o alívio por não conseguir.
Para Winnicott, a realização do diagnóstico sobre a situação e as necessidades do paciente será fundamental para qualquer intervenção clínica. O placement terá também importância no diagnóstico da situação, pois possibilita observar o paciente em um novo lugar durante um período de tempo mais longo, o que será interessante para intervenções futuras.
Para alguns pacientes, seu lar original pode ter sido razoavelmente estável. No placement , a estabilidade do lar originário pode ser usada de tal maneira que o placement possibilita que a experiência de estabilidade do lar originário possa se ampliar, possibilitando ao individuo o estabelecimento da idéia de lar de maneira mais consistente.
Há situações em que houve anormalidades de diferentes tipos no lar originário; por exemplo, em casos psiquiátricos. Nesses casos, o placement pode ser útil especialmente para duas funções: por possibilitar uma experiência que re-significa a que foi vivida originariamente, como no caso que mencionei acima, e por permitir que o paciente encare objetivamente seu lar. Não se trata só de auxiliá-lo a constituir aquilo que não foi possível dentro de um lar perturbado, mas também para que possa olhar objetivamente o lar originário e ver as características e a problemática que esse lar possuiu & o que só é possível quando ocorre a experiência de um outro lugar que oferte uma outra referência. Perspectiva importante na clínica winnicottiana, que é a possibilidade de o indivíduo vir a colocar a experiência disruptiva sob o domínio do ego.
Winnicott alerta que devemos nos perguntar, ao fazer o placement , se houve uma boa relação mãe-bebê na vida do analisando, pois está além das possibilidades do placement a possibilidade da recuperação do que houve. Se a relação mãe-bebê não foi suficientemente boa, estaríamos frente não a uma superação daquilo que houve, mas na possibilidade de o paciente vir a se relacionar objetivamente com aquilo que houve. Não se trata de fornecer por meio do placement uma experiência emocional corretiva, mas da possibilidade de vir a se posicionar de forma diferente frente àquilo que houve.
Para esse autor é bastante importante avaliarmos qual seria a capacidade que um paciente tem de se beneficiar do tipo de placement que se está propondo. Claro que a capacidade de jogar, de perseverar e de fazer amigos amplia muito a possibilidade de o indivíduo utilizar-se dessa modalidade de intervenção. De modo semelhante, as pessoas que recebem o paciente para experiência de placement precisam ter a possibilidade de encontrar algum tipo de realização pessoal para que consigam estabelecer uma situação que forneça a experiência de continuidade necessitada pelo indivíduo. Se a privação de alguma realização possível e necessitada pela equipe for muito grande, isso poderá afetar a possibilidade de que possam oferecer um placement adequado.
Esse ponto é fundamental, principalmente naquelas situações nas quais o paciente já esteja mais enlouquecido, pois como vimos no exemplo acima, ele necessitará de uma situação em que possa tentar enlouquecer o ambiente.
Por todas essas razões, o placement é uma modalidade de atendimento clínico importante, mas que exige um diagnóstico fino e rigoroso, tanto da situação do paciente, quanto do meio ambiente que se pretende utilizar na intervenção.
Masud Khan (1983) publicou alguns artigos em que seu trabalho clínico foi realizado por meio do placement . Ressalto entre eles o artigo intitulado None can speak his or her foul , que faz parte do livro Hidden Selves . Nesse artigo há o relato de uma adolescente cujo nome era Jude, em que apresenta um atendimento realizado segundo a noção do placement . Jude havia tentado suicídio pouco antes da consulta com Khan. A tentativa de suicídio havia sido algo escandalosa, tendo sido noticiada nos jornais. Ele ficou sem saber ao certo como teria sido aquele episódio, e decidiu não se informar sobre o ocorrido antes do contato com a menina. Ele observou que a garota colocava-se de maneira bastante artificial em sua relação com ele. Ela solicitou que ele a ajudasse a sair da escola. Khan tirou-a da escola e decidiu enviá-la à casa de um parente da menina na América do Sul, para que ela cuidasse de cavalos, com o objetivo de realizar um placement . A menina demonstrou grande habilidade para lidar com cavalos, e esse lugar se mostrou fundamental para que ela pudesse sair da situação. O bom resultado do trabalho foi decorrente da perspicácia clínica de Khan, que percebem que aquele tipo de ambiente teria as características necessitadas por ela. No final de seu artigo, Khan comenta que além de todas as necessidades da menina que precisaram ser contempladas para que o placement realizado pudesse ter tido sucesso, havia sido fundamental a compreensão do idioma dela, pois, segundo ele, precisava encontrar um local, um lugar em que seu idioma pudesse ser realizado.
O diagnóstico das necessidades fundamentais do paciente, assim como o reconhecimento de seu idioma pessoal, possibilita que se contemple sua singularidade. Por meio dessa primeira tarefa torna-se possível a criação de um lugar sustentado pelo profissional que irá realizar o acompanhamento. Na maior parte das vezes, o modo de ser do paciente, reapresentado pela composição realizada no acompanhamento, permite que ele sinta-se reconhecido e possa se beneficiar da transferência subjetiva como um lugar a partir do qual poderá vir a reencontrar seu gesto frente a um outro ser humano, e desse modo projetar um horizonte possível para si mesmo.
Referências Bibliográficas
KHAN M. None can speak his or her foul .Hidden Selves . New York: International Universities Press Inc, 1983. [ Links ]
SAFRA, G. A pó-ética na clínica contemporânea . Aparecida: Idéias e Letras, 2004. [ Links ]
WINNICOTT, D. (1947). Tratamento em regime residencial para crianças difíceis. In: WINNICOTT, D. Privação e deliqüência . São Paulo: Martins Fontes, 1995. [ Links ]
WINNICOTT, D. (1948). Alojamentos para crianças em tempo de guerra e de paz. In: WINNICOTT,
D. Privação e deliqüência . São Paulo: Martins Fontes, 1995.
WINNICOTT, D.(1956). A tendência anti-social. In: WINNICOTT, D. Privação e deliqüência . São Paulo : Martins Fontes, 1995. [ Links ]
WINNICOTT. D. Deprivation and Deliquency . London: Penguin, 1984. [ Links ]
Endereço para correspondência
Gilberto Safra
Rua Guimarães Passos, 622 & Vila Mariana
04107-031 & São Paulo/SP
Tel.: (11) 5575-8275
E-mail: iamsafra@sobornost.com.br
Recebido em 11/04/06
Aprovado em 30/05/06
Notas
I Professor Titular do Instituto de Psicologia (USP); Coordenador do LET-Laboratório de Estudos da Transicionalidade e do Instituto Sobornost.