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Psychê
versão impressa ISSN 1415-1138
Psyche (Sao Paulo) v.10 n.18 São Paulo set. 2006
ARTIGOS
O acompanhamento terapêutico como uma técnica de manejo
The therapeutic accompaniment as a management technique
Suzana Magalhães Maia1
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
RESUMO
Este trabalho discute o acompanhamento terapêutico como parte integrante da técnica de manejo realizada por um analista no atendimento de um paciente que não havia alcançado o estado de unidade de si-mesmo. A criação de um ambiente de holding na análise e em todas as fases pelas quais passou o acompanhamento terapêutico foi condição fundamental para que o paciente pudesse viver experiências constitutivas. No trabalho sintonizado com as necessidades do paciente e organizado de acordo com seu ritmo, o enquadre torna-se flexível e as funções do acompanhamento terapêutico modificam-se ao longo do tempo. O processo é analisado a partir dos referenciais teóricos de D. Winnicott e G. Safra.
Palavras-chave: Manejo, Acompanhamento terapêutico, Holding, Experienciar com, Setting.
ABSTRACT
This paper discusses the therapeutic accompaniment as part of the psycho-analytical treatment management technique of a patient who had not reached the state of whole person. The establishment of holding in the analytical process and in all stages of the therapeutic accompaniment was a crucial condition for the occurrence of constitutive experiences. The whole process was set up in synchronicity with the patient’s needs as well as systematized according to his rhythm. The setting is flexible and the goals of the therapeutic accompanier are modified as needed along the process. The therapeutic process is analyzed based on the theoretical framework of D. Winnicott and G. Safra.
Keywords: Management, Therapeutic accompaniment, Holding, To experience with, Setting.
Apresento neste texto uma reflexão sobre minha experiência como analista de pacientes que, como assinalou Winnicott (1954-5), exigem a criação de uma técnica particular. Penso então que o acompanhamento terapêutico possa ser parte integrante de posturas dessa natureza.
Há duas categorias de pacientes que podem ser favorecidos por esse tipo de atendimento. Na primeira delas estão aqueles que ainda não alcançaram o estado de unidade de si-mesmo e em cuja análise lidamos com os estágios mais primitivos de seus desenvolvimentos emocionais. Nessa perspectiva, o setting oferecido pelo analista tem importância fundamental, e é a postura de holding que permitirá a constituição de um ambiente humano favorável, proporcionando condições para que o self possa emergir, e o processo de amadurecimento da pessoa ser colocado em marcha.
Na segunda encontramos pacientes nos quais a totalidade da personalidade não está ainda constituída, com suas questões fundamentais situadas na constituição da fase depressiva, que para Winnicott é uma conquista alcançada a partir de uma provisão ambiental favorável. São pessoas que apresentam dificuldades na junção de sentimentos como o amor e o ódio; e o sentir-se dependente de um outro provoca desconforto e ansiedade. Demandam um tipo de técnica em que as relações interpessoais podem ser abordadas, mas necessitam também, em muitos momentos, que o analista maneje a situação de tal forma que experiências possam ser vivenciadas, e abram campo para que novo material clínico possa surgir e favorecer a marcha de seu devir. Nessas situações, acompanhamentos terapêuticos pontuais têm se mostrado importantes.
O texto aborda os desdobramentos clínicos, técnicos e teóricos do trabalho conjunto desenvolvido por analista e acompanhantes terapêuticos em uma determinada situação clínica, sendo que o paciente em foco trazia questões próprias da primeira categoria acima descrita.
Parto aqui de referenciais teóricos de dois autores, Winnicott e Safra, salientando a constituição do humano e as particularidades do mundo contemporâneo. Considero fundamental explicitar as referências por meio das quais venho constituindo meu estilo de ser analista, pois são elas que favoreceram uma postura de abertura diante das necessidades de meus pacientes e a criação de técnicas e constituição de situações nas quais os sinais do self, de fato, pudessem emergir. Daí a valorização da experiência, a compreensão do analista como aquele que experiencia com, como quer Safra, e um raciocínio clínico que passou a incluir naturalmente a presença dos acompanhantes terapêuticos.
A constituição dessa postura de abertura frente ao outro demanda que o analista busque dentro da Psicanálise autores e perspectivas que combinem com sua maneira de ser. Deste modo, encontrei em Winnicott uma visão de clínica que favorecia a constituição da subjetividade de modo muito assemelhado ao que ocorria na situação natural, e talvez por isso mesmo demandava do analista muito rigor técnico na constituição de um setting construído a partir das necessidades do paciente, presentes em seu processo de análise. Com Safra pude descobrir ainda mais a profundidade das colocações de Winnicott, e buscar a criação de técnicas que efetivamente fossem capazes de favorecer a vivência de experiências constitutivas, compreendendo ainda o direito ético que todas as pessoas têm de serem reconhecidas como únicas em um mundo que costuma negar essa condição. Procurei, e procuro sempre, acompanhá-lo em seu caminho de compreender Winnicott para além da relação mãe/bebê, instaurando uma maneira de abordar o ser humano que se diferencia do que é tradicionalmente utilizado em Psicanálise.
A narrativa que aqui apresento pretende descrever como a analista chegou à compreensão das necessidades do paciente, e como disto configurou-se o enquadre que foi estabelecido, as situações organizadas em tempo e espaço, para que os prenúncios de sua subjetividade pudessem emergir, sendo o manejo feito pela analista condição importante para que, gradativamente, o paciente pudesse ser apresentado a novos objetos sem sentir-se invadido. O acompanhamento terapêutico fez parte integrante desse manejo, e o analiso aqui destacando sua mudança de função ao longo do desenvolvimento do paciente.
D. chegou até mim de maneira hesitante, pois já fazia análise há muitos anos e tinha receio de abandonar a analista anterior, sem saber o que iria encontrar em seu caminho. Impressionou-me profundamente a tristeza de seu olhar, que me pareceu acompanhada de uma enorme ansiedade, levando o a apresentar maneirismos no rosto e em todo corpo. Ali se encontrava um corpo transfigurado por muita tensão, rigidez muscular, um movimento incessante nas pernas. Era um corpo sem alma, desencarnado, que ainda não assentava em seu dono.
Meses antes desse nosso encontro, havia conversado com sua mãe, e ela então manifestara preocupação por entender que a análise que vinha sendo realizada até aquele momento, em função da abordagem utilizada, não parecia atingir questões que considerava fundamentais em seu filho, como o fato de ele estar com a vida bastante desorganizada.
Vi-me recebendo D. com muito cuidado, pois logo percebi que tomar a decisão de mudar ou não de analista naquele momento era uma tarefa além de suas possibilidades. Então, convidei-o a vir encontrar-se comigo, sem compromisso, de modo espaçado e nos dias que quisesse, enquanto permanecesse em sua outra análise.
Desde nosso primeiro encontro, resolvi tomá-lo como paciente. Essa decisão, porém, não lhe foi comunicada verbalmente, e sim pelos cuidados que passei a lhe dedicar. De início, compreendi que precisaria sustentar sua hesitação em relação aos destinos do tratamento, pelo tempo que ele necessitasse. Assim, o enquadre inicial foi traçado com bastante mobilidade, tanto no que se refere à freqüência das sessões quanto a duração delas, pois tudo se pautava no tempo em que D. necessitava ficar comigo. Penso que essa postura de holding, que estava em mim e também na situação que construía para acolhê-lo, ajudou-o a iniciar sua análise comigo, deixando de freqüentar a analista anterior sem despedidas.
Aqui encontramos vários elementos da teoria da técnica winnicottiana, que foram acionados nos primeiros encontros com o paciente e lhe possibilitaram permanecer no trabalho proposto. A maneira como D. se apresentou e o estado de precariedade que logo pressenti levaram-me a desenhar um enquadre, uma moldura para abrigar nossos encontros de modo flexível e aberto. A primeira faceta do manejo apresentava-se desse modo: o paciente necessitava sentir que a analista encontrava-se em estado de disponibilidade absoluta; e mais do que apreciar minha pessoa, pareceu-me que era o cuidado recebido que significaria um passo fundamental para que a relação transferencial fosse ganhando forma. Assim, situações foram estabelecidas para que D. vivesse esse cuidado por meio de experiências concretas: sessões mais curtas e entremeadas por intervalos, nos quais atendia outras pacientes; sessões longas, quando a angústia estava muito intensa e ele não conseguia separar-se de mim.
Ficou logo evidenciado que todo o setting constituído precisava ter função de holding, de sustentação física, para permitir que esboços da subjetividade de D. pudessem emergir. A necessidade de sustentação, insisto, ultrapassava em muito eventuais horários da sessão, que nunca eram suficientes diante da força da necessidade sentida pelo paciente. Ele me ligava com freqüência, inclusive durante a madrugada, parecia ter necessidade de re-assegurar constantemente que eu estava lá em todos os momentos que necessitasse, e esses movimentos que eu permitia, e mesmo provocava, foram importantes para que D. fosse adquirindo confiança na técnica psicanalítica que estava sendo utilizada, bem como no cenário que construíamos em nossos encontros para que as experiências pudessem ser vividas e ele, enfim, constituísse uma relação de confiança comigo.
A vida para o paciente fluía sem sentido, e a fragilidade de sua rotina era constantemente ameaçada por qualquer prenúncio de mudança, pois mesmo não se sentindo bem, as modificações jogavam-no em agonias que não tinham uma medida humana. Tratava-se de uma vivência de pânico, de horror, que o colocava em estado de solidão absoluta, sem possibilidades de comunicação com qualquer pessoa. É claro que isso demandou da analista uma constância de presença física e psíquica rigorosa para que D. vivesse experiências sustentadas e assim, gradativamente, conquistasse um senso de continuidade de si, naquele momento muito abalado. A relação transferencial florescia nesse contexto, enquanto como analista encontrava-me no lugar de objeto subjetivo, organizando situações para que meu paciente encontrasse o que necessitava. D. reagia a esse cuidado vivendo momentos de alguma tranqüilidade, mas ainda não se podia pensar em gesto, e eu tinha a sensação de que ele necessitaria de “toneladas” de experiências sustentadas para que essa condição pudesse ser alcançada.
O acompanhamento terapêutico foi pensado pela primeira vez como uma maneira de estender os efeitos da análise para além dos momentos em que o paciente permanecia comigo. Tinha, pois, uma função definida; contê-lo na sensação de despedaçamento que constantemente vivia e trabalhar na criação de condições favoráveis para que um cotidiano fosse delineado para e por D. Essas condições precisariam estar diretamente ligadas à análise a ao analista, sendo extensões deste. Optei por introduzir cada um dos acompanhantes, que na ocasião eram três, outorgando a eles a mesma função transferencial que vivia com D.; o lugar permanecia de objeto subjetivo, que sustentaria e organizaria as situações vividas pelo paciente, compreendendo-as sem interpretá-las, o que só poderia acontecer quando a relação transferencial se modificasse e D. suportasse colocar o objeto (analista e acompanhantes terapêuticos) fora de seu controle onipotente. Interpretações, no momento em que se encontrava o paciente, poderiam invadi-lo, colocá-lo em situação confusional maior do que já se encontrava. Na verdade, todo o trabalho voltava-se à criação de condições para que D. pudesse viver uma experiência completa (Winnicott, 1941), em que analista e acompanhantes, trabalhando em equipe, lá estavam para assinalar os acontecimentos que ocorriam, e não para falar sobre eles.
O dia de meu paciente era estruturado em torno do momento da sessão, pois ele estava afastado do trabalho, separado da mulher, sem conseguir ficar em sua casa. Relacionava-se com a medicação de modo singular, pois era sempre nela que buscava alívio para suas agonias. Compreendi essa dependência como uma espécie de defesa que D. encontrara para tentar livrar-se da dor, pois ele não acreditava que outro ser humano pudesse ajudá-lo, reconhecendo-o da maneira como podia apresentar-se naquele momento. Compreendi também a delicadeza da missão que me propunha, fazê-lo acreditar em suas possibilidades pela descoberta da fertilidade do encontro humano. Apesar de tudo, à medida que nos conhecíamos, pude perceber que D. portava a esperança de um dia poder ser mais feliz, o que para ele significava não sentir tanta ansiedade, poder descansar, dormir, acordar e não temer entrar em contato com o dia que se iniciava, uma sensação de tempo sem fim. A esperança aparecia na assiduidade com que comparecia às sessões, na atitude de começar a me procurar, experimentando-me como alternativa às medicações, que às vezes eram consumidas em excesso. Era o primeiro efeito que colhia de meu cuidado com D., permitindo-me então introduzir acompanhantes terapêuticos para que uma estruturação do cotidiano pudesse ser manejada.
Assim que acordava, D. começava a procurar papéis ou objetos que supunha terem desaparecido, oscilando entre ficar submerso em ansiedades paranóides ou entrar nas agonias terríveis que sentia, e que alteravam respiração, batimento cardíaco, sua possibilidade de sentir-se vivo. A medicação, de fato, ainda não estava perfeitamente ajustada às suas necessidades, e mesmo que aguardasse o momento do encontro diário comigo, chegando com horas de antecedência ao consultório e saindo muito tempo depois, não era suficiente. Percebi, assim, que era também necessário o manejo do cotidiano, e para isso contei com o trabalho de acompanhantes terapêuticos, que o ajudaram a conter a sensação de despedaçamento que o invadia freqüentemente, pois eventuais momentos de tranqüilidade não conseguiam manter-se internalizados. D. não conseguia criar qualquer defesa que o protegesse dessas agonias, e sua saída era manter-se ocupado com alguma coisa para livrar-se do perigo de queda constante em que vivia. Percebia com isso que mais do que buscar o estabelecimento de relação com objetos humanos, D. buscava encontrar em si alguma capacidade que o singularizasse, e para isso necessitava de ajuda. A compreensão dessa situação foi importante para definir a maneira como os acompanhamentos entraram nesse momento.
Aqui pude sentir as dificuldades do trabalho de acompanhamento terapêutico e também toda a sua potencialidade. O contato direto e por muitas horas com um paciente no estado de desorganização em que se encontrava D. não é nada simples. Demanda que o psicólogo possua características pessoais que lhe permitam vivenciar essas situações, sem confundir-se com elas, tendo clareza de que o acompanhamento tem sempre determinadas funções, identificadas pelas necessidades do paciente no momento e na fase em que se encontra. Exige também que modulações do enquadre sejam feitas constantemente, pois o paciente procura desorganizar as situações estabelecidas como se fosse um prolongamento de sua desorganização interna.
Quando faz parte de uma equipe, é importante que o acompanhante terapêutico possa compreender sua ação como uma extensão do trabalho analítico em uma outra modalidade, totalmente pautada pela experiência, em que a relação transferencial e as intervenções precisam ser observadas com rigor e caminhar na mesma direção da análise, já que sincronizadas pela percepção das necessidades do paciente constantemente reconhecidas pelo analista, que vai ajustando seu manejo em função desse reconhecimento.
O acompanhamento começou diariamente e iniciou com breves visitas à casa de D., de onde a mulher havia saído e levado as coisas que lhe pertenciam. Para voltar a ser habitável, a casa necessitava de objetos, mas principalmente de alguma pessoalidade que pudesse levar o paciente a querer permanecer ali. Ele passava muito tempo procurando por objetos que a mulher levara, e sentiase roubado, como se as coisas tivessem sido tiradas de dentro dele. Na verdade, a sensação era de que não sobreviveria sem ela, cuja presença havia contribuído para a solidificação de um falso self, laboriosamente construído durante os anos em que estudou, trabalhou e casou, à custa de um esforço enorme para demonstrar uma capacidade que sabia não possuir, e que estava no outro, sua extensão.
Os acompanhantes se revezavam na tarefa de seguir com ele, ajudando o a viver situações que eram organizadas pela analista, para que as experiências pudessem ter alguma temporalização que começasse a emoldurar suas ansiedades. Acordar sempre fora difícil para ele, e era um alívio ter o acompanhante já esperando para auxiliá-lo a situar-se em sua casa, comprar objetos que faltavam, cuidar da burocracia de seu afastamento do trabalho, almoçar junto, ir à academia fazer exercícios, acompanhá-lo ao cinema, caminhadas etc. D. e o acompanhante habitualmente ficavam exauridos com tudo isso, pois as situações vividas eram entremeadas por vários momentos de desorganização do paciente, que parecia sempre necessitar levar para o abismo quem estivesse com ele naquele momento.
Podemos compreender desse relato como é difícil o trabalho do acompanhamento terapêutico na fase em que D. se encontrava. Demanda aquilo que Winnicott (1965) descreve como estado devotado da mãe com seu bebê, um estado de disponibilidade em que ela se organiza de acordo com seu ritmo e possibilidades. No caso de acompanharmos um paciente que não pôde viver essa devoção em suas relações iniciais, o manejo do cotidiano é feito no sentido de favorecer as condições para que o self verdadeiro tenha campo para emergir. Lidamos, no entanto, com toda uma organização desenvolvida pelo paciente para sobreviver; ao mesmo tempo em que anseia por um encontro humano que possa lhe ofertar o que mais necessita, ataca essa possibilidade sempre que a pressente, pois ela provoca pânico, horror, na medida em que abre portas para o desconhecido e, que por se basear nas experiências anteriores que viveu, é aterrorizante.
Foi a continuidade do cuidado e a busca incessante de sincronia entre o trabalho da analista e dos acompanhantes terapêuticos, todos empenhados em fazer com que D. registrasse a atenção e as minúcias que seguíamos organizando as situações de acordo com suas possibilidades e seu ritmo, que permitiram a D. perceber que sobrevivíamos às variações de seu humor, e aos ataques e seus desdobramentos que por vezes fazia à analista. Pudemos, então, entrar em nova fase do trabalho analítico, e a função do acompanhamento terapêutico também modificou-se.
Dois anos depois, encontramos D. já instalado em sua casa, experimentando um cotidiano que ainda continuava a se estruturar em torno do encontro diário comigo, mas que possuía tempo e espaço definidos. O enquadre podia agora ser pré-determinado & sessões cinco vezes por semana, durando cerca de cinqüenta minutos, mantendo-se aberta a possibilidade de o paciente telefonar sempre que precisasse. Tínhamos um trato que eu manteria o celular ligado durante a noite, e ele me telefonaria caso se sentisse tomado por ansiedades difíceis de suportar. É importante observar que nessa ocasião D. não fez esses telefonemas, como ocorrera em tempos anteriores, quando a situação foi manejada para que ele recorresse a mim, ao invés de a uma medicação, para lidar com suas agonias. A simples possibilidade de poder telefonar-me de madrugada, caso necessitasse, o acalmava, indicando-me que uma relação de confiança fora constituída, e que meu lugar na transferência se modificava. Agora eu começava a ganhar vida própria, sem ser ainda um objeto totalmente distinto dele; através de mim, D. passava a se olhar e a se apresentar como se sentia: inadequado, estranho, incapaz de dar conta das expectativas do ambiente, familiar ou profissional; enfim, uma pessoa profundamente só, mas desejosa de modificar essa situação, embora não soubesse como.
Nesse período, D. voltou algumas vezes ao trabalho, mas logo precisou afastar-se, pois as pessoas não compreendiam o que se passava com aquele rapaz, tão calado e com muita dificuldade de colocar-se e relacionar-se com os outros. A atividade que desenvolvia pressupunha a possibilidade de ensinar e disciplinar crianças e pré-adolescentes, com quem muitas vezes se confundia, provocando paralisações e mesmo atuações, que não lhe faziam bem. Logo percebi que aquela situação reforçava sua ansiedade, e assim outra licença médica foi solicitada. O manejo ganhou uma nova dimensão, com novas funções para os acompanhantes terapêuticos que faziam parte da equipe.
Durante todo o tempo de meu trabalho com D., o acompanhamento terapêutico se manteve, embora sua intensidade e função fossem se modificando de acordo com o manejo que fazia. Se no momento inicial a relação transferencial que o paciente mantinha comigo era subjetiva, estendo-se também para os acompanhantes terapêuticos, agora a situação havia mudado: a constância dos encontros comigo e a confiança que D. começava a demonstrar face ao meu cuidado permitiram que eu começasse a adquirir características próprias como objeto. Ele já podia perceber nuanças de expressão em meu rosto, que indicavam meus sentimentos diante do que vivíamos juntos & alegria, ternura, raiva, ódio, passaram a poder fazer parte de nossos encontros. Às vezes expressava por ele os sentimentos que ainda não conseguia elaborar nas situações que vivia; em outros momentos assinalava o que suas ações provocavam em mim. Começava a existir algum espaço para o esboço de sonhos, de pensamentos, mas a necessidade de manejo dentro e fora das sessões permanecia.
A equipe de acompanhantes modificou-se algumas vezes ao longo dos anos de tratamento de D., mas um dos psicólogos permaneceu desde o início, e com ele o paciente pôde estabelecer uma relação particular, mais leve, com algum humor, e até momentos de alegria. Quer por suas características pessoais, quer por suas possibilidades de integração com o trabalho da analista, esse acompanhante conquistou um lugar especial frente a D. Sua função deixou de ser acompanhá-lo em situações definidas, e passou a ser encontrá-lo para conversar, atestar seus progressos e tolerar suas incapacidades, sinalizando sempre pelo afeto que acreditava no paciente. Acompanhava-o nas situações mais delicadas, intermediando suas relações com a família, cuidando da medicação. Com isso, D. sentia-se claramente mais seguro.
Encontramos aqui uma dimensão técnica e teórica importante. O paciente começava a ter possibilidades de se relacionar com objetos de maneira diferenciada, e a relação transferencial que vivia com esse acompanhante terapêutico modificava-se. Alguns princípios precisaram ser respeitados para isso; era necessário que D. sentisse o cuidado da analista por meio da presença do acompanhante terapêutico, que se integrou completamente ao sentido do trabalho realizado. As características pessoais e o modo de ser desse profissional puderam ser apreciadas por D. e facilitaram a constituição da relação desenhada ao longo dos anos, de modo constante e regular. Essa constância e regularidade eram expressas de modo próprio, pois o acompanhante apresentava-se como uma pessoa real, com dúvidas, anseios, enganos, o que permitia que D. também ficasse mais à vontade com todas as suas precariedades. Puderam então começar a brincar um com o jeito do outro de modo suave, e D. pôde experimentar, em situações cotidianas, que alguém sentia prazer em sua companhia.
Em outros termos, isso significa que o acompanhamento teve uma função de holding constante, como aborda Safra (2006), constituído mais sobre o que não era dito, do que o contrário. Nesse acompanhamento reconhecíamos então o amor devotado descrito por Winnicott, e também por Safra, pois D. pôde aproveitar uma pequena possibilidade de identificação, experimentou começar a ter um lugar na subjetividade do outro, pela empatia que sentia provocar no acompanhante.
Nesse momento, o enquadre analítico estava assim configurado: encontros diários com a analista, ainda um eixo organizador na vida de D.; encontros semanais com o acompanhante terapêutico, com quem o paciente relaxava e também enfrentava situações delicadas, como o encontro com a família e a organização da medicação. Sem o trabalho, situação que diariamente comprovava sua incapacidade, D. precisou viver experiências sustentadas que o auxiliassem a reconhecer algum valor em si mesmo, e fosse aos poucos conferindo um pouco de sentido a sua vida. Novamente recorri ao acompanhamento terapêutico para ajudá-lo nessa tarefa, e três novos psicólogos vieram compor a equipe.
D. passou a visitar um asilo de idosos junto com um dos novos acompanhantes terapêuticos, sendo que a idéia era colocá-lo em contato com pessoas muito necessitadas de atenção e cuidado, e que poderiam reconhecer os pequenos movimentos que ele fizesse em direção a isso. De início foi um processo sofrido, pois o encontro com pessoas desconhecidas é de fato fonte de muita angústia. Tivemos o cuidado de enviar o acompanhante primeiro, para conversar com o diretor da instituição, conhecer o espaço e as pessoas. Assim, foi possível assinalar a D. o que o esperava. Porém, quando ele começou a ir junto com o acompanhante, sua respiração modificava-se, ficava mais calado ainda, mexia as pernas. A situação era desafiadora, e para enfrentá-la gastava toda sua energia, restando pouco espaço para aproveitar a ajuda do acompanhante. De início, este conversava com os idosos e D., apavorado, apenas permanecia a seu lado. O manejo da situação foi importante, pois o acompanhante, percebendo as dificuldades do paciente, ajudou-o a se acostumar com a situação, depois começou a abrir pequenos espaços para que ele conversasse com dois dos idosos, com quem o vínculo fora melhor possibilitado; depois passou a afastar-se por alguns momentos, deixando D. sozinho com eles, até que finalmente passou a pensar com ele sobre o que havia vivido e como poderiam organizar momentos interessantes junto com os idosos. Durante todo esse período, combinei com meu paciente que fizesse uma espécie de diário, em que registraria suas idas à instituição, para que lêssemos juntos durante a sessão.
Foi bonito perceber o empenho com que D. cumpria a tarefa, no começo quase mais importante do que o encontro com os idosos. Certamente, queria mais me agradar do que fazer algo por si. Porém, à medida que entrava mais em contato com as pessoas da instituição, percebia que elas sentiam sua falta e gostavam dele, tudo mediado pela presença fundamental do acompanhante, e a situação foi se modificando; D. passou a escrever registros diferentes, em que lampejos do outro começaram a surgir e a interessá-lo.
Apesar do pânico inicial junto aos idosos, D. viveu situações que foram organizadas de acordo com seu ritmo e suas possibilidades. Mais uma vez percebemos como o holding foi fundamental para que ele pudesse experimentar situações novas, exigindo do acompanhante uma sintonia fina com as condições do paciente, e também a possibilidade de viver uma relação em que não era percebido como pessoa, pois muitas vezes a ansiedade tomava D. e direcionava sua atenção para a atividade que estava acontecendo, e não para as circunstâncias das quais se originavam. Percebemos também que a relação de confiança criada com a analista permitiu que D. experimentasse novas possibilidades para si e pudesse aproveitar o acompanhamento terapêutico de modo efetivo.
Em suma, quando estamos diante de pacientes que ainda não puderam alcançar o estado de unidade de si-mesmos, o acompanhamento terapêutico, sintonizado com as necessidades deles e estruturado em experiências, pode contribuir imensamente com o trabalho analítico. Esse tipo de complementação, porém, demanda da equipe uma mesma compreensão de homem e das condições fundamentais para o seu acontecer, apontando uma determinada maneira de estar na clínica, criando técnicas que favoreçam a possibilidade de os pacientes terem uma existência em que percebam que a vida vale a pena ser vivida.
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Endereço para correspondência
Suzana Magalhães Maia
Rua Califórnia, 64 & 04566-060 & Brooklin Novo & São Paulo/SP
Tel.: (11) 5542-3308
E-mail: suzana-maia@uol.com.br
Recebido em 19/04/06
Aprovado em 31/05/06
1Psicanalista; Doutora em Lingüística pela USP; Professora-Titular (PUC-SP); Membro do LET (Laboratório de Estudos sobre Transicionalidade).