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versão impressa ISSN 1415-1138
Psyche (Sao Paulo) v.12 n.22 São Paulo jun. 2008
ARTIGOS
Teoria dos quatro discursos, pesquisa psicanalítica e laço social entre psicanalistas
Lacan’s theory of the four discourses, psychoanalytical research and social relations among psychoanalysts
Ubirajara Cardoso de Cardoso*
Universidade Regional de Ijuí
RESUMO
O texto trata da teoria lacaniana dos quatro discursos fundamentais que Lacan, em 1969, propôs com os nomes de “Amo”, “Universitário”, “Histeria” e “Analista”. Nesta redação de trabalho também será proposta uma escritura de discurso, quiçá ainda não formulada. Chamaremos de discurso do pesquisador psicanalítico ou da pesquisa psicanalítica. Partindo primeiramente de um desenvolvimento introdutório sobre o lugar do silêncio na escritura dos quatro discursos fundamentais, o texto interrogará depois o problema da especificidade do laço social de psicanalistas, debatendo com proposições do psicanalista Philippe Julien. A apresentação do discurso do pesquisador será feita em discrepância com o autor francês, já que prevê outra resolução do problema.
Palavras-chave: Psicanálise; Teoria dos quatro discursos; Silêncio; Pesquisa psicanalítica; Laço social entre psicanalistas.
ABSTRACT
The text is about the theory of the four fundamental discourses that Lacan, in 1969, proposed with the following names: “Master”, “University”, “Hysteric” and “Analyst”. In our paper, we propose a writing discourse, perhaps not yet formulated, called psychoanalytical researcher or psychoanalytical research discourse. Starting, firstly, from an introductory development about the place of silence in the writing of the four fundamental discourses, the text questions the problem of specificity of the social relation of psychoanalysts, debating with propositions from the psychoanalyst Philippe Julien. The presentation of the researcher discourse is done in discrepancy with the French author, since it predicts another solution for the problem.
Keywords: Psychoanalysis; Theory of the four discourses; Silence; Psychoanalytical research; Social relation among psychoanalysts.
Para José Luiz Caon
Este texto tem dois objetivos. O primeiro é apresentar e pôr à prova um desenvolvimento teórico1. O segundo é ser um desenvolvimento que trata da questão da pesquisa psicanalítica e sua relação com o laço social entre analistas. Os quatro discursos que Lacan (1992) escreveu a partir de 1969 em seu seminário sobre o avesso da psicanálise são o tema desse trabalho. Por isso, eles serão desenvolvidos aqui sob a perspectiva que supõe a existência de um silêncio em cada discurso, para que seja introduzida depois a formulação que será chamada de “discurso do pesquisador psicanalítico”. Com este sugerir-se-á um entendimento da questão do laço social entre analistas.
As referências de ponto de partida são três textos: primeiro, Formação analítica e análise didática, de Michael Balint (1953); segundo, é o capítulo 4 do livro Psicose, perversão, neurose, de Philippe Julien (2002); e terceiro, uma breve passagem do trabalho Teoria e subjetividade, de Marco Antônio Coutinho Jorge (s/d).
No texto de Balint são discutidos cinco tempos que seriam próprios da formação do psicanalista2: o tempo da instrução, o tempo da demonstração, o tempo da análise propriamente dita, o tempo da superterapia e o tempo da pesquisa. O tempo da instrução é nomeado pela circunstância dos primórdios da divulgação da teoria psicanalítica: o interessado dispunha apenas dos textos de Freud e prosseguia praticamente sozinho e sem ajuda. Em seguida foi reconhecida a necessidade de alguma coisa mais que a pura instrução, sendo isso um breve período de análise, que “habilitava o candidato a experienciar em sua própria mente a validade e a força dos principais achados da psicanálise” (Balint, 1953, p. 25), esse foi chamado de tempo da demonstração. A suficiência dessa breve experiência de análise pessoal foi contestada por Ferenczi, que advogava que a análise do analista deve ser tão completa e profunda quanto toda análise terapêutica, que a análise didática deveria ser uma análise propriamente dita. No meio analítico que se formava, tal idéia encontrava resistência que “argumentava que o caráter de um indivíduo é uma de suas posses mais preciosas, o núcleo e a essência de uma personalidade, e não deve ser tratado levianamente” (Balint, 1953, p. 25), e a controvérsia, que gerou debates calorosos, não foi esclarecida, sendo o problema esquecido. Será Ferenczi que voltará à carga em 1928, dessa vez considerando que a análise didática deve superar uma análise com finalidades apenas terapêuticas, que ela deve ser “inteiramente terminada” (Ferenczi apud Balint, 1953, p. 26). A essa análise formadora Balint deu o nome de superterapia, cuja discussão comporá o essencial da continuidade de seu artigo sobre a formação do psicanalista. A leitura desse artigo é muito recomendada, já que aqui indicaremos apenas que o autor aproxima o questionamento do que seria uma superterapia de uma situação de pesquisa:
Somente nos últimos anos, algumas pessoas vêm, cautelosa e timidamente, questionando a possibilidade de uma “superterapia”: elas dizem que o objetivo de uma análise didática não é “completitude” ou “superterapia”, mas sim “pesquisa”. Com isso eu chego à última, a presente fase do nosso sistema de formação, à qual eu proponho chamar “período de pesquisa” (Balint, 1953, p. 26 grifos do autor).
Mas o autor se depara com a falta de esclarecimento sobre esse aspecto do desenvolvimento da teoria: “eu sei de alguns analistas didatas, pelo menos em Londres, que advogam verbalmente ser a ‘pesquisa’ o verdadeiro propósito de suas análises didáticas. Mas eu ainda não vi esta idéia por escrito” (Balint, 1953, p. 26 grifos do autor). A última parte de nosso texto tratará de um aspecto da questão da pesquisa psicanalítica, em uma contribuição de como pode propor fazer laço social.
No texto de Julien são apresentadas precisamente diferentes proposições para a questão do problema do laço social entre analistas. Desenvolvendo a partir dos discursos do Amo, do Universitário3 e da Histeria, o autor defende que este último apresenta a melhor definição do problema com a solução por meio de um passe diagonal. Veremos essa solução, porém faremos outra leitura, que discrepa dessa na medida em que propõe outra resolução.
O texto de Jorge sugere uma pista interessante, que será explorada mais detidamente a seguir.
É tirada a conclusão, que me parece já evidente e acertada quanto à lógica que rege as “revoluções de quarto de volta”, de que produzem respectivamente um dito e um dizer, um enunciado e uma enunciação. A pista que se evidenciou para mim, supondo acerto nessa formulação, sugeriu uma pergunta: nos quatro discursos há sempre um silêncio que se escreve estruturalmente na posição do objeto α , do objeto perdido das teorias de Lacan e Freud? Dito assim, desde o início me pareceu uma afirmativa verdadeira e consistente. Escreverei sucintamente sobre a saliência ou visibilidade disso da maneira como pode ser desenvolvido para cada um dos quatro discursos, de maneira que permita retomar na última parte do texto.
Para um psicanalista que trata do ensino da psicanálise como professor universitário, o silêncio de seus alunos é quase um sintoma. De fato, há algo no discurso universitário que dispõe que quando a palavra seja dada aos ditos “alunos”, uma reação de silêncio se imponha como se não houvesse nada para dizer. Mas não basta pensar que seja esse silêncio de realidade, de alunos mais ou menos interessados, para com rigor entender o silêncio que está em causa. Verifica-se que há um silêncio que é causado pela distância que a experiência do conceito psicanalítico tem de quem carece ainda da experiência da análise pessoal. O aluno, nesse discurso, fica situado como objeto da incidência de um saber teórico que só pode manejar repetindo-o sem uma apropriação verdadeira de experiência. O discurso universitário se agencia com o saber dirigindo a dominação da causa do desejo. O efeito de produção dessa tentativa de dominância (tentativa porque ela se esclarece em sua impotência de um domínio total) é o de um sujeito dividido pela experiência de um saber que, ao informá-lo, não o altera, pois que não coloca em jogo o significante-amo de sua divisão subjetiva nem a posição de verdade do significante do amo que sustenta o saber, haja vista que o significante do amo permanece no lugar da verdade, sustentando a repetição do mesmo saber sempre, para quem quer que seja. Isso é inevitável se não retomamos esse discurso interpretando sua impotência ao avesso, ou seja, que ao seu ideal de totalização do saber corresponde uma impossibilidade, falha sempre aberta por onde o sujeito pode se re-inserir com sua singularidade de interrogação. Esse ato é de extrema dificuldade e implica recolocar em causa o próprio desejo de saber em uma prática de ensino e aprendizagem, que embora inevitavelmente doutrinária em sua exortação à teoria, resista à tendência que o discurso universitário tem de produzir o dogmatismo e a institucionalização burocrática de seus procedimentos.
Escolhi não começar pelo discurso do amo. É como normalmente é feito, o que destaca sua anterioridade fundamental, porque é o discurso da divisão do sujeito na linguagem pelos efeitos da representação significante e queda do objeto de gozo a repetir. É condição do inconsciente, em que o sujeito é representado por seus significantes. Seu silêncio estrutural é o da alienação e separação, que fundam a fantasia; ou seja, a determinação inconscientizada como é regida a relação do sujeito ao objeto. Observe-se que esse discurso salienta como a angústia se presentifica na relação da verdade com a produção . Verifica-se assim que a angústia aparece quando o silêncio ameaça se fazer ruído, quando não haveria mais separação entre o sujeito e o objeto de gozo, mas isso é uma impossibilidade estrutural mesmo na formação do objeto α, em seus retornos sem mediação significante4. Quando Lacan homologa esse objeto de gozo com a mais-valia marxista5, fica salientado que esse objeto (como a mais-valia no processo de produção capitalista) se perde de vista em função do discurso, que ele não é um objeto especularizável, embora possa ser calculado e evidenciado. Pode-se dizer de Lacan e Marx que tornaram operável (como letra) aquilo de que, antes, não se tinha notícia.
O objeto não tem visibilidade também, ou de novo, no discurso da histeria. Por isso mesmo, para a histeria não basta o exame médico do sinal, da clínica do olhar, ela se faz sintoma. Ela quer saber, ela quer que o significante do amo domine, mas é ela que pretende comandar o amor, mantendo a pergunta sobre o que vem a ser a relação sexual. Da causa do desejo ela não sabe, pois faz sintoma de impotência de seu silêncio estrutural; tudo o que ela mostra desse objeto que ela é na sua verdade não a faz ficar satisfeita. Esse objeto habita-a, e essa é uma vivência que é sentida como angústia a cada vez que o saber produzido pelo significante é impotente para reconhecer o que funciona, ou melhor, o que não funciona, ou seja, a relação sexual que um, ao-menosum, fizesse acontecer, efetivando o saber sobre um desejo verdadeiro. Evidentemente, “ela” é todo falante fundado na divisão significante tal como escrito no discurso do amo. Pelo seu sintoma de agenciamento da produção do saber que diga respeito à verdade do desejo, a estrutura desse discurso é reativa ao dogmatismo do saber que agencia a dominação do desejo no discurso universitário: o sintoma no discurso da histeria “representa o retorno da verdade como tal na falha de um saber” (Lacan, 1966, p. 234).
O analista se faz de seu silêncio, ou mais bem dito, do silêncio do objeto que ele se faz semblante e que anima a transferência. Entenda-se: o analista pode falar, o que não pode é fazer falar o objeto que é causa do trabalho de produção significante do sujeito alienado na transferência inconsciente. Isso quer dizer que ele não sugestiona e não responde à demanda, como se diz com experiência clínica psicanalítica. A produção desse discurso deve ser de significantes, aqueles que representam o sujeito para outros significantes, e que determinaram estruturalmente o objeto perdido. O silêncio do objeto aqui é o que causa o que pode ser falado, e que poderá ser interpretado. É virar ao avesso, desfazer pela palavra o que pela palavra foi feito. A posição estrutural do objeto á no discurso do analista esclarece sua posição nos outros discursos. Isso deve permitir que o silêncio advenha condição da enunciação e que dê visibilidade ao que acontece com o silêncio nos outros discursos, permitindo operar sobre eles6.
O problema do laço social entre os analistas
Para Julien, “o drama da psicanálise desde o seu nascimento terá sido o do laço social entre aqueles que praticam a psicanálise” (2002, p. 192). A questão interroga quanto ao que se esperar do advento da psicanálise, de seu discurso, da invenção de uma novidade no laço social. Como Julien desenvolve?
Strictu sensu, o laço social do discurso do analista reúne analista e analisante em situação de tratamento. Bem se poderia interrogar se essa reunião, de fato, caracteriza um laço social, mas concedendo que sim, é essa disposição que Lacan chama de “psicanálise em intensão”. Ele define esse laço como privado, enquanto seria público o da “psicanálise em extensão”. Minha convicção é de que se equivoca, pois me parece que o reservado da sessão analítica não é a mesma coisa que a privatividade, porque o espaço da construção transferencial do fantasma, espaço da outra cena, inconsciente, não é nem pública nem privada, é justamente outra cena, ainda que para constituí-la seja preciso se retirar do “mundo comum” da realidade para o espaço da fantasia. Feita essa ressalva, seguimos Julien: “se a psicanálise em intensão se situa evidentemente no discurso do analista, o que acontece então com a psicanálise em extensão? Em qual dos outros três discursos essa prática pode criar laço social?”, pergunta o autor, definindo a psicanálise em extensão como a dimensão pública da psicanálise (p. 192).
Julien tentará esclarecer na formulação de cada um dos três discursos. Vejamos como ele procede.
Sobre discurso do amo, é afirmado ser a característica da maioria das instituições psicanalíticas com a direção dos analistas didatas. Estes dão as “palavras de ordem”, os significantes mestres “para pôr em marcha os antigos analisantes de suas redes”. Julien afirma, considerando evidente, portanto sem esclarecer com eloqüência, que “assim, as duas dimensões da psicanálise, a intensional e a extensional, se justapõem, sem relação entre elas: há uma e outra” (p. 193).
O discurso universitário cria a Schola. Com essa proposição é fundado um tipo de trabalho de doutrinação, e é com a teoria que se cria o laço: “seminários, congressos, artigos, publicações; o ensino doutrinal funda a prática” (p. 193). A prática é a teoria aplicada a cada novo caso, sempre se comprovando.
Com o discurso da histeria, Julien pensa resolver melhor o problema. Não se trata da neurose, mas do sujeito em posição de agente. O autor reafirma que é o sujeito do cogito cartesiano, como Lacan afirmou ser o sujeito da ciência moderna sobre o qual se funda a práxis da psicanálise (1966, p. 878). Para Julien: “ora, o que acontece em fim de análise? O sujeito volta ao discurso da histeria em posição de agente, mas dessa vez como analisante na psicanálise em extensão” (2002, p. 194 grifo do autor).
Julien escreve essa passagem com uma seta diagonal do $ na intensão para o $ na extensão:
e chama essa diagonal de “um passe”, provavelmente evocando o dispositivo criado por Lacan para pesquisar o que acontece na passagem do analisante à analista.
Julien cita Lacan no texto Alocução sobre o ensino, de 1970: “o que devo acentuar bem é que, ao se oferecer ao ensino, o discurso analítico leva o psicanalista à posição de psicanalisante” (Lacan apud Julien, 2002, p.194). A seguir, cita outra passagem: “como sou eu quem falo [trata-se de Lacan], sou eu quem estou aqui na posição do analisante” (p. 194), e comenta: “contanto que acrescente: não como um psicanalista, mas no público, ali onde a psicanálise toma lugar na história humana como ciência nova” (p. 194).
Para Julien, a extensão é fundada a partir da intensão:
Ao contrário do poder do amo ou do saber do universitário que fundaria a práxis, com a psicanálise só a prática vem fundar instituição psicanalítica e teoria. Só o discurso do analista é fundador de uma e de outra por intermédio do discurso da histeria, ali onde tomam lugar os sujeitos já analisados. Assim, eles criam laço entre si em posição de analisante na psicanálise em extensão (2002, p. 194 grifo meu).
O autor afirma então que são retomados os significantes-amo das publicações da psicanálise “para produzir incessantemente um saber novo sobre a verdade do gozo, numa exterritorialidade histérica para com todo poder constituído” (p. 195). É assim que Julien crê resolvida a questão do laço social dos psicanalistas.
Um discurso do pesquisador psicanalítico?
Mencionei no início como que um tempo da pesquisa foi postulado na formação do psicanalista e como ele é suposto depois da análise propriamente dita. Vou apresentar aqui uma escritura7 que sugere esclarecer isso como um discurso.
O discurso do pesquisador psicanalítico se escreve a partir de uma torção (o que não é uma inversão) na parte debaixo do discurso do analista.
O objeto α na posição de agente se esclarece no que a análise tem de infinita ou permanente e que faz trabalhar o sujeito na produção do saber8. Aqui o silêncio estrutural incide sobre o que é inanalisável, aquilo que faz parte da análise infinita. Freud deu vários nomes para isso: umbigo do sonho, rochedo da castração, inveja do pênis etc. Lacan falou em identificação ao sintoma. Aliás, a invenção do dispositivo do passe, por Lacan, não foi para fazer falar esse silêncio, ou a partir desse silêncio?
Lacan afirma que no discurso do analista “pela relação do saber com a verdade adquire verdade aquilo que se produz de significantes-amo no discurso analítico” (Lacan, 1970, p. 308), portanto os significantes-amo na posição da verdade são somente depois de sua produção na análise. Isso significa que os efeitos da produção de uma análise sustentam aqui a verdade do discurso na produção do pesquisador9. Como se trata de uma torção a partir do discurso analítico, mantém-se o corte que há entre produção e verdade, ou seja, a produção do saber nesse discurso não altera o significante-amo do sujeito, que é produzido na análise propriamente dita.
É postulado aqui que essa formulação captura o método da pesquisa freudiana e também do ensino lacaniano. A interpretação que Freud faz de seu sonho sobre a injeção de Irma me parece a ilustração inaugural do que aqui é apresentado. Sustentado na verdade de seus significantes-amo, ele produz um saber teórico sobre a interpretação dos sonhos10. Da mesma forma, quando Lacan diz que fala nos seus seminários como analisante, creio que ele o faz mais como pesquisador, produzindo um saber a partir da posição da verdade em que situa seus significantes. Dessa forma, ambos produziram a torção da causa material da psicanálise em intensão para a causa formal da psicanálise em extensão11.
Que o objeto causa do desejo ocupe a posição do agenciamento faz perguntar se esse discurso predisporia à transferência. A resposta me parece afirmativa, mas com a ressalva de que é uma transferência diferente da situação analítica de tratamento. A contingência do significante próprio que a interpretação analítica produziu sustenta aqui, como verdade, a causa do desejo. Assim, a causa do desejo é a causa que sustenta o Logos da pesquisa psicanalítica, que exige, em termos transferenciais, algum tipo de associação12 em que isso possa ser testemunhado e compartilhado. É uma das funções da associação psicanalítica. Creio que só nesse sentido isso possa ser um discurso e fazer laço social. A transferência é então com a psicanálise da forma como cada experiência singular de análise pôde produzir. Que essa relação se faça junto com outros, criando “laço entre si em posição de analisante na psicanálise em extensão”, assim como afirmou Julien, conforme grifado antes, é uma contingência da produção da análise propriamente dita, ou seja, conseqüência da interpretação e finalização da transferência a “Um” analista (ou a “Uma” instituição da psicanálise). Que isso se faça “numa exterritorialidade histérica para com todo poder constituído” (2002. p. 195), é realmente acertado, desde que o desejo já seja advertido (e precisaria manter o atributo “histérica” para “exterritorialidade”?).
A conclusão sucinta seria que a prática do discurso do pesquisador psicanalítico é uma das formações da prática do psicanalista e da transmissão da psicanálise. Vê-se como essa conclusão, ou solução do problema do laço social entre analistas, é diferente da apresentada antes por Julien. De fato, se a psicanálise é uma ciência nova, como ele afirma, resolver-se-ia sua escritura em um retorno sobre o discurso da histeria, ou exigiria uma outra formulação discursiva? Quando se produz um “saber novo sobre a verdade do gozo”, isso é obtido pelo agenciamento de $ sobre os “significantes-amo das publicações da psicanálise” ou pelo seu trabalho a partir da causa do desejo Aqui estamos preferindo a segunda formulação: a causa do desejo faz $ trabalhar produzindo algo de saber, o que também constitui uma prática do “bem-dizer” e da produção de novos significantes para a teoria psicanalítica.
Quando afirmo que essas duas soluções são diferentes, não significa que se invalidem, mas que têm conseqüências diferentes, cabendo calcular qual seria mais consistente na produção do laço social que a psicanálise em extensão pode inventar e pretender novidade.
Referências Bibliográficas
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NASIO, J.D., J. D. Os olhos de Laura. Porto Alegre: Artes Médicas, 1991. [ Links ]
Endereço para correspondência
Ubirajara Cardoso de Cardoso
R. Aristeu Pereira, 1217 - Bairro Burtet
98700-000 - Ijuí/RS - Brasil
Tel.:+55 55 3331-2921
E-mail: biracardoso@uol.com.br
Recebido em: 01.08.2006
Versão revisada recebida em: 12.09.2007
Aprovado em: 19.09.2007
*Psicanalista; Especialista em Atendimento Clínico (Ênfase em Psicanálise/Clínica de Atendimento Psicológico/UFRGS); Professor do Departamento de Filosofia e Psicologia (UNIJUI); Mestrando em Ciências da Educação (UNIJUI); Membro da Associação Espaço Psicanalítico (Ijuí).
1 Este desenvolvimento teórico se realizou no âmbito de um seminário escrito nas atividades de ensino da Associação Espaço Psicanalítico, durante o ano de 2005.
2 Esses tempos são pensados em relação à história da psicanálise. Mas não são tempos lógicos da formação de cada psicanalista?
3 Lacan chamou de Universitário o discurso em que o Saber é agente. Tinha suas razões de contexto para fazer isso, os acontecimentos universitários franceses de maio de 1968. Manteremos aqui essa nominação, pois já é convencionada, não sem indicar nossa convicção de que o nome mais apropriado para esse discurso é “discurso da doutrina”, talvez da “ideologia”, haja vista que a instituição universitária é formada pelas produções não só desse discurso, pois se assim fosse estaria condenada a só produzir efeitos de formação totalitária, o que não é verdade.
4 Assim não se esclarece a dificuldade que Freud encontra para distinguir o medo real da angústia neurótica? A impossibilidade desse objeto para o sujeito demonstraria a razão da angústia neurótica: a angústia do aparecimento desse objeto do seu silêncio estrutural é um fantasma neurótico, mesmo que a angústia seja real. Para “formações do objeto a”, ver Nasio (1991).
5 Cf. Lacan, Seminário “De um Outro ao outro”, inédito. Aula de 20 de novembro de 1968.
6 Acredito, portanto, que se funda a possibilidade da inter e transdisciplinaridade.
7 Agradeço à Profª Drª Marta D’Agord a ajuda para encontrar essa escritura mais precisa.
8 Cf. Lacan, “é nisso que a maneira como a verdade se formaliza na ciência, ou seja, a lógica formal, é para nós um ponto visado, por termos que estendê-la à estrutura da linguagem” (1970, p. 308).
9 Cf. Lacan “convido-os a confiarem que é onde está o $ que se encontra o professor (ensinante), encontra-se quando existe o professor, o que não implica que ele sempre exista no $ barrado” (Lacan, 1970, p. 305). O desenvolvimento que fazemos aqui postula que também aí está o pesquisador, quando há pesquisador.
10 Em outro lugar (Cardoso, 2003) desenvolvi sobre a relação de Freud com Schreber, salientando como os significantes do texto de Freud determinaram uma causa formal que está ausente no texto de Schreber. Faltaria dizer naquele texto que, para Freud, no discurso analítico, no lugar de S2 (verdade inconsciente de Freud) estaria Fliess, e que no discurso do pesquisador, no lugar de S2 (produção psicanalítica de Freud) estaria o ensaio sobre Schreber. Isso quereria dizer que Freud conseguiu passar da causa material de sua análise pessoal para a causa formal da psicanálise e pôde afirmar que obteve êxito onde o paranóico fracassa. Se minha tese estiver correta, esse seria apenas mais um dos tantos exemplos em Freud onde a produção da análise de seu inconsciente lhe permitiu asseverar a verdade de sua pesquisa, promovendo a torção da causa material em causa formal.
11 Para a consideração da causa material e causa formal, confira o texto de Lacan, Ciência e verdade (Lacan, 1966, p. 869-892).
12 O que não significa a mesma coisa que Instituição.