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Construção psicopedagógica
versão impressa ISSN 1415-6954versão On-line ISSN 2175-3474
Constr. psicopedag. v.13 n.10 São Paulo 2005
ARTIGO
Uma ação interventiva na instituição: Saúde e psicopedagogia de mão dadas na escola
Adriana Gotardi da Silva RamosI1; Eduardo Alcober2; Jaqueline Mendonça Quinta3
IHospital São Paulo/Universidade Federal de São Paulo
RESUMO
Este artigo visa relatar uma experiência de intervenção psicopedagógica institucional a partir da realização de atividade de estágio para o curso de pós-graduação em Psicopedagogia. A relevância deste trabalho está na origem da demanda de sujeitos com dificuldades de aprendizagem encaminhados para uma unidade de saúde pública que atende portadores de distúrbios mentais graves. Desse contexto, os agentes de saúde iniciam um projeto junto às unidades escolares da rede pública, atendendo a diretores, coordenadores e educadores com o objetivo de compreender a questão das dificuldades de aprendizagem não como uma patologia. Ainda busca a abertura de um espaço para estagiários em Psicopedagogia para ação nas unidades escolares da rede pública com professores e coordenadores, bem como de um trabalho para o atendimento de alunos. Em suma, um trabalho psicopedagógico para a construção de uma escuta e um olhar para as relações estabelecidas entre a unidade de saúde, a escola e o aluno, num movimento dialético.
Palavras-chave: Psicopedagogia, instituição, saúde, intervenção.
ABSTRACT
This essay aims to report an experience in Institutional psychopedagogical mediation through a work as trainees as required by University to get a post-graduation certificate in Psychopedagogy. The importance of this essay is in the origin of the number of individuals showing learning disabilities sent to a public health system unit which works with severe mentally disordered adolescents, making the health agents develop a project to meet the needs of public schools by promoting meetings with principals, coordinators and teachers in order to understand the disability issue not as a pathology. In addition, there is an opening of a psychopedagogical work for trainees at the schools for an action towards teachers, coordinators and pupils. In short, it is a psychopedagogical work for the development of listening and view for the health unit, the school and pupil on a dialectic motion.
Key words: Psychopedagogy, institution, health, mediation.
INTRODUÇÃO
Este trabalho visa compreender a práxis da Psicopedagogia institucional que considera as dificuldades e queixas apresentadas como possíveis resultantes de uma dinâmica de funcionamento interna – escolar – e externa – familiar, cultural e social- --, evidenciando as relações estabelecidas entre os sujeitos envolvidos no ato pedagógico. Propõe, ainda, relatar uma experiência psicopedagógica que tem seu início em uma unidade pública de saúde mental que, em virtude da demanda de pacientes com dificuldades de aprendizagem, passa a desenvolver um trabalho junto a coordenadores e professores de unidades de ensino público. Deste trabalho, surge a necessidade de uma intervenção institucional dentro da unidade escolar e, posteriormente, um atendimento clínico com grupo de alunos.
Este artigo é resultado de um trabalho de oito meses realizado por Adriana Gotardi da Silva Ramos e Eduardo Alcober como pós-graduandos em Psicopedagogia em nível Lato Sensu na Universidade São Marcos, São Paulo, num primeiro momento na condição de estagiários e observadores para o trabalho de campo da disciplina “Avaliações de Demandas em Psicopedagogia Clínica e Institucional”, e, posteriormente, cumprindo estágio supervisionado. Adriana e Eduardo acompanharam o trabalho da co-autora deste artigo, Jaqueline Mendonça Quinta, então responsável pela unidade de saúde e organizadora do projeto.
Nossa atuação, na qualidade de estagiários em Psicopedagogia institucional, teve como objetivo proporcionar condições favoráveis ao desenvolvimento de relações interpessoais e o estabelecimento de vínculos, procurando inserir os sujeitos envolvidos no processo de ensino-aprendizagem, bem como contar com a colaboração da equipe de professores, auxiliando-os a ampliar o olhar em torno dos alunos e das circunstâncias de produção do conhecimento. Para tanto, recorremos aos pressupostos teóricos dos seguintes autores: Enrique Pichon-Riviére, Pierre Weil e Alicia Fernández.
CARACTERIZAÇÃO DA INSTITUIÇÃO
a) Histórico
O Hospital-Dia em Saúde Mental para Crianças e Adolescentes de Vila Prudente foi criado em 1991. De sua criação até o ano de 1996, a equipe do hospital promoveu atendimento intensivo para as crianças e adolescentes (até 18 anos) que apresentavam “sofrimento psíquico grave” por meio de uma rotina diária. Essa rotina contemplava atividades e atendimentos terapêuticos, conforme projeto terapêutico individual, de acordo com a demanda do caso.
Durante esse período, os trabalhos desenvolvidos foram se afastando gradativamente da proposta de internação intensiva, o que proporcionou a criação de rotinas específicas para cada grupo de usuários. Nessa nova configuração, os usuários participavam de oficinas terapêuticas, tais como grupo de alimentação, grupo de histórias, além de grupos terapêuticos de acordo com a indicação para cada caso e com a faixa etária do público. Nesse sentido, o usuário freqüentava a unidade conforme sua necessidade.
Com as mudanças na política de gestão da Secretaria de Saúde do Município de São Paulo, em 1993, o modelo de atendimento em construção foi interrompido pela instituição do Programa de Atenção à Saúde (PAS), o qual propunha um novo tipo de gerenciamento, criando cooperativas de médicos e funcionários licenciados do serviço público. A justificativa apresentada para essa nova proposta foi a demanda excessiva, que merecia mais agilidade no atendimento, conforme reportagem publicada no jornal Folha de S. Paulo de 14 de abril de 1996 (p. 9).
Em 1996, em virtude dessas mudanças, o programa sofreu outras alterações e fragmentações, atingindo diretamente os projetos em andamento até então.
Em 2001, a Secretaria de Saúde reformou seu sistema de gestão com uma proposta de serviço que obedecesse ao princípio da integridade, eqüidade e universalidade: o Sistema Único de Saúde (SUS), e iniciou a reconstrução da rede de saúde pública. Nesse momento, os responsáveis pelo Distrito de Vila Prudente consideraram, no critério de escolha, que o público-alvo de seu trabalho seria o adolescente somente, sendo o atendimento às crianças realizado em outra unidade de saúde.
No ano de 2002, a Secretaria de Saúde transformou os Hospitais-Dia em Centros de Atenção Psicossocial (CAPS’s), seguindo a nova diretriz do Ministério da Saúde, o que transformou o Hospital-Dia em Saúde Mental para Crianças e Adolescentes de Vila Prudente em Centro de Atenção Psicossocial para Adolescentes de Vila Prudente.
b) Descrição do serviço
A Coordenadoria de Saúde de Vila Prudente é o órgão responsável pelo Centro de Atenção Psicossocial para Adolescentes de Vila Prudente (CAPS Vila Prudente). Possui como responsável pela unidade e pelas atividades de estágio nela realizadas Jaqueline Mendonça Quinta – fonoaudióloga e pedagoga.
Trata-se de uma instituição pública municipal para atendimento de adolescentes portadores de distúrbios psicológicos e mentais dos tipos severos e persistentes.
Em virtude da grande procura por parte de escolas de Ensino Fundamental da rede pública ao CAPS para atendimento e orientação em relação a sujeitos com dificuldades de aprendizagem, associando essa dificuldade a um distúrbio psicológico, surge o projeto idealizado e organizado por Jaqueline e pelo Dr. José Antônio Quinta, médico psiquiatra.
Em seus atendimentos, foi verificado que muitos casos não estavam associados a um distúrbio mental ou psicológico e, sim, a fatores pedagógicos, familiares, sociais, entre outros, que comprometiam o desempenho escolar dos sujeitos em questão. A partir dessa constatação, foi proposto um trabalho junto às equipes pedagógicas – direção, coordenação, professores – e instituições de ensino, buscando uma melhor análise do trabalho pedagógico desenvolvido e da relação entre a prática docente e os alunos.
Essa atividade é desenvolvida em dois segmentos: dentro do CAPS e junto às instituições de ensino. O trabalho no CAPS é de atendimento a diretores, coordenadores e professores no tangente à escuta da queixa escolar. A partir da necessidade apresentada, é desenvolvido um trabalho de discussão de casos e orientação e/ou encaminhamento cabível. As atividades desenvolvidas nas escolas visam reunir a equipe técnico-pedagógica para uma melhor compreensão e conhecimento do trabalho desenvolvido por cada um, levando-se em consideração as queixas e atitudes tomadas para amenizá-las ou solucioná-las.
O intuito deste projeto é desmistificar o rótulo da “patologização” referente a toda e qualquer dificuldade de aprendizagem manifestada na sala de aula ou, ainda, no ambiente escolar. Busca, por meio do trabalho institucional, dirimir o foco do problema, ampliando a visão deste para outras hipóteses, olhando para o sujeito de forma não isolada, mas como parte de um sistema.
O âmbito institucional, com seus inúmeros déficits e com suas carências, que são motivos de nossas lutas e que, esperamos, possam ser revertidos, apresenta características específicas diferentes das do âmbito privado de atendimento individual, as quais podem tornar-se vantajosas (Fernández, 2001:48).
O OLHAR PSICOPEDAGÓGICO NO CAPS
Os relatos dos integrantes do grupo – coordenadores e professores da rede pública de ensino – revelam o não comprometimento da equipe no ato pedagógico. Os fracassos ficam, muitas vezes, relegados a um único indivíduo (professor ou aluno), não sendo compreendidos como resultado de um sistema. As queixas traduzem a falta de orientação e de condução de um trabalho pedagógico eficaz e eficiente, evidenciando a fragmentação dos papéis desenvolvidos por cada membro da instituição, descaracterizando a idéia de união e de equipe. O trabalho de Jaqueline e do Dr. Quinta visa integração e melhoria da comunicação do grupo, buscando o desenvolvimento pedagógico de qualidade em cada unidade escolar atendida.
Nessa abordagem multidisciplinar, observamos que a presença do Dr. Quinta traz credibilidade e veracidade do trabalho aos participantes. Sua figura representa a ciência e a autoridade do saber para o grupo. As reuniões são iniciadas pelo Dr. Quinta, sendo discutidas questões relacionadas às queixas do grupo, propiciando o espaço não fornecido pelas instituições. Nesse sentido, destacamos que existe quebra de paradigma, pois é o médico quem se aproxima desses educadores, e não o contrário, o que promove uma relação de confiança por parte dos integrantes. Sua condução leva à diminuição de ansiedade do grupo, preparando-o para o desenrolar da segunda etapa das reuniões, a discussão sobre as questões pedagógicas abordadas por Jaqueline.
Ambos desempenham o papel de mediadores e orientadores sobre as hipóteses levantadas, não impondo verdades ou receitas para a solução dos problemas, como define Pichon-Riviére (1998:170,171):
O coordenador cumpre, no grupo, um papel prescrito: o de ajudar os membros a pensar, abordando o obstáculo epistemológico configurado pelas ansiedades básicas. Opera no campo das dificuldades da tarefa e da rede de comunicações. Seu instrumento é assinalação das situações manifestas e a interpretação da causalidade subjacente. (...). O sexto vetor remete-nos a um fenômeno básico – o da aprendizagem. É obtido pela somatória de informação dos integrantes do grupo, cumprindo-se em dado momento à lei da dialética de transformação de quantidade em qualidade. Produz-se uma mudança qualitativa no grupo, que se traduz em termos de resolução de ansiedades, adaptação ativa à realidade, criatividade, projetos, etc., Nas reuniões no CAPS e na unidade escolar foi constatado que o trabalho orientado por Jaqueline e pelo Dr. Quinta propiciou aos participantes compartilharem suas queixas e angústias frente ao problema da dificuldade de aprendizagem apresentado pelos alunos.
(...) existe uma série de fenômenos psicológicos que se passam dentro das pessoas durante as reuniões e que não escapam às observações de um dirigente treinado. Um deles é o que os psicanalistas chamam de catarse, que não é nada mais do que o que o senso comum chama de desabafo (...). A catarse provoca um alívio geral, pois descarrega o problema nas mãos dos dirigentes. O alívio das tensões, porém será provisório se não se tirar à causa que a gera ... (Weil, 1997:116).
Em nossas observações, ficou evidente que as queixas eram atenuadas à medida que eram exteriorizadas, contudo sem garantias de encontrar respostas e soluções para as dificuldades apresentadas.
Os sentimentos de insegurança e incerteza ligados às ansiedades básicas, particularmente às situações de perda, constituem elementos da vida grupal. Em todo grupo emergem ideologias que determinam o surgimento de confrontos entre subgrupos. De acordo com Schilder, chamamos de ideologias os sistemas de idéias e conotações que os homens dispõem para orientar sua ação. São pensamentos mais ou menos conscientes, com grande carga emocional, que não obstante são considerados por seus portadores como resultado do raciocínio. Sua análise constitui um dos passos da tarefa grupal (Pichón-Riviére, 1998:173).
A necessidade de um espaço e de tempo para que o professor seja escutado nas unidades escolares ficou evidente no relato dos integrantes do grupo. Essa escuta não se restringe às queixas, mas também um espaço para compartilhar com os outros sujeitos envolvidos no processo de ensino o que discutem no projeto e até outros cursos, outras experiências.
Em relação à Psicopedagogia institucional, o trabalho desenvolvido por Jaqueline, muitas vezes, finda no próprio integrante do grupo, pois este não tem a possibilidade de compartilhar suas vivências com seus colegas na escola, fugindo ao ideal deste Projeto – capacitação, mediação e ação, conforme proposto por Pichon-Riviére (1998:174): “(...) o grupo deve configurar um esquema conceitual, referencial e operativo de caráter dialético, no qual as contradições que se referem ao campo de trabalho devem ser resolvidas na própria tarefa grupal”.
Foi observada alta rotatividade, bem como a evasão de participantes do grupo como um reflexo do que já ocorre no sistema educacional da rede pública. Foi relatado que o grupo iniciou com vinte escolas, chegando a oito representantes e à ocorrência de uma participação ínfima de três integrantes, comprometendo o desenvolvimento do projeto.
Nessa perspectiva, os orientadores do projeto demonstraram uma preocupação com o seu andamento, levando o grupo a uma reflexão sobre quais fatores poderiam ter levado a tal manifestação. Essa preocupação foi levantada e discutida em reunião, sendo efetivada por meio do preenchimento de um relatório no último encontro. O interessante desse questionamento foi a posição dos orientadores frente a essa questão, não focando a responsabilidade nos integrantes do grupo e, sim, incluindo-se nela em um auto-questionamento.
A INTERVENÇÃO PSICOPEDAGÓGICA NA ESCOLA
A partir do CAPS, começamos a visitar uma unidade escolar da rede pública na periferia do município de São Paulo com a coordenadora do projeto, Jaqueline. Durante os encontros, as questões levantadas estavam atreladas à indisciplina generalizada, evidenciando a necessidade de escuta por parte dos professores e caracterizando certa instabilidade no grupo como equipe. Ficou claro, no discurso da equipe pedagógica, que o insucesso do trabalho junto aos alunos estava relacionado a questões disciplinares e da própria realidade de cada sujeito, o que inscrevia nestes o rótulo de incapazes e culpados pelo fato do não aprender.
O trabalho de Jaqueline buscou levá-los a uma reflexão e compreensão da realidade imposta a esses sujeitos, analisando aspectos sociais, emocionais, orgânicos e cognitivos e como esses fatores afetavam a aprendizagem – foco do projeto. Ao término do ano letivo de 2004, a equipe de professores parecia mais fortalecida, mas ainda centrada no aspecto disciplinar.
Ao retomarmos o trabalho no início do ano letivo de 2005, nos deparamos com uma nova realidade – os professores começavam a discutir aspectos pedagógicos. Porém, um novo contexto se apresentava: a equipe inicial de professores de trabalho não era a mesma, sendo que alguns tiveram atribuições de aulas em outras unidades de ensino e outros se desligaram da escola. Nesse momento, retomamos as dificuldades encontradas no trabalho dentro do CAPS – a constituição de uma equipe de trabalho.
Com o desenrolar dos encontros, nos deparamos mais uma vez com as questões disciplinares como elemento de bloqueio para o desenvolvimento de um trabalho pedagógico significativo em sala de aula, por conseguinte, destacando que a nova equipe contribuiu para o fortalecimento da queixa inicial.
Surge a necessidade de uma ação psicopedagógica junto ao corpo discente. O objetivo desse atendimento foi compreender a pertinência das queixas apresentadas pela equipe pedagógica. Em princípio, conforme a escolha do grupo de professores, nosso objeto de estudo foi formado por seis alunos regularmente matriculados na sexta série do Ensino Fundamental II, sendo cinco meninos e uma menina, numa faixa etária compreendida entre doze e quinze anos.
Para o levantamento de dados, foram propostas atividades que promovessem a formação de vínculo e integração do grupo e, ainda, o olhar para como esses sujeitos estabeleciam contato com o conhecimento. Em seguida, foram apresentadas tarefas de construção para que fossem analisados os potenciais criativo e simbólico das produções no transcorrer das sessões.
Não nos dirigimos aos conteúdos não aprendidos, nem aos aprendidos; não nos baseamos em operações cognitivas logradas. Não consideramos os condicionantes orgânicos ou inconscientes, mas as articulações entre essas diferentes instâncias, conforme proposto por Alicia Fernández em seu livro Os Idiomas do Aprendente.
Nesse primeiro conjunto de avaliações, foi verificado que o grupo revelou-se heterogêneo no tocante ao grau de desenvolvimento individual em leitura e escrita. Dois deles não estavam alfabetizados, um encontrava-se na fase silábica e, apesar de os demais estarem aparentemente alfabetizados, apresentavam uma produção mais voltada para o concreto, o que sinalizava dificuldade de simbolização, de estabelecer relações, de interpretação e de elaboração de idéias.
Assim, decidimos, em consenso com a supervisora de estágio, que o direcionamento do trabalho era o de promover situações e atividades que levassem esse grupo a ampliar seu repertório e seu universo de conhecimento.
Vale mencionar que esses indivíduos são oriundos de camada socioeconômica desfavorecida, sendo seus lares localizados em periferia e, em alguns casos, na favela da comunidade. A escola, por sua vez, apresenta precariedade de recursos nos diversos aspectos: material, social e, enfim, humano. O próprio espaço escolar nos remete a uma idéia de carceragem, não no que se refere a penalidades e ao cumprimento de regras, mas sim, no tocante a sua edificação e estruturação – grades nas áreas interna e externa; escassez de espaço aberto, em decorrência das ações de violência que, ao longo dos anos, circundam essa unidade escolar – assaltos, invasões, tiros perdidos, entre outras.
Em relação aos professores, foi possível perceber que a escolha dos sujeitos a ingressarem no trabalho psicopedagógico estava totalmente atrelada a questões disciplinares e à dificuldade de estabelecimento de vínculos e relações com alguns dos integrantes.
Acompanhando as reuniões de professores junto à agente do CAPS, constatamos a distância entre o discurso proferido por alguns professores e a atuação deles frente aos sujeitos envolvidos no grupo. Se, por um lado, havia a preocupação de desenvolver um trabalho com esses sujeitos, por outro, a realidade se mostrava completamente diferente na relação direta com eles, imperando o descaso e o tratamento hostil por meio da oralidade. As revelações que surgiam a cada atendimento nos traziam dados que iam além do objeto do conhecimento – o grupo em questão não sabia dizer os nomes dos professores, que componente curricular lecionavam e não estabeleciam relações de quaisquer conteúdos com os quais haviam tido contato durante as aulas. Vale ressaltar que se tratava do mês de maio do ano letivo.
Nesse contexto, a relação com a escola pareceu-nos possuir um único vínculo: a alimentação. Era ali que faziam uma de suas refeições do dia e, talvez, a única, além do fato de a escola prover leite para cada aluno, conforme programa do governo municipal.
A alimentação é uma questão que surge como um determinante para a limitação desses sujeitos. Em conversa informal durante a produção de algumas atividades, o grupo relatou sobre o cardápio diário caracterizado por não sortimento de alimentos ou por número de refeições insuficiente. No aspecto moradia, notamos que o espaço habitado por alguns desses sujeitos, muitas vezes, é reduzido a um cômodo, o que também restringe a capacidade de externar e construir hipóteses sobre o universo que os rodeia.
Nessa gama de limitações, nossa intervenção junto a esses sujeitos estabeleceu-se no caráter de despertar-lhes o olhar para um universo que cruza todas as fronteiras que lhes foram impostas, buscando devolver-lhes um pouco de brilho no olhar e auto-estima – o desejo –, fazendo com que acreditassem na possibilidade de desenvolvimento ou, até mesmo, na construção de um potencial que lhes fora negado.
Segundo Fernández (2001:93), “o corpo, transversalizado pela inteligência e pelo desejo, alimenta-se e aprende, passando a representar o cenário onde será mostrada a história do alimentar-se, o aprender e o ensinar do sujeito”.
Parafraseando Fernández, esses sujeitos precisavam de “alimento”, em seu sentido conotativo e denotativo, para que edificassem forças para mudar sua realidade e atravessar seus próprios limites. O nosso trabalho de intervenção com esses sujeitos, em virtude das barreiras apresentadas, nos remeteu a uma ação inicial de “amamentação”, buscando levá-los a desenvolver o ato de “sucção”, ou seja, apesar de serem providos do alimento, houve a necessidade de um esforço individual, um movimento para absorção e metabolismo desse alimento, no caso, o conhecimento.
Foram realizadas, alternadamente, atividades em caráter lúdico e formal, visando a construção e elaboração de idéias sobre o que lhes fora apresentado em cada sessão. Utilizamos jogos, histórias, desenhos, gravuras como “alimento”, buscando aumentar o repertório apresentado por eles. A realidade dura e concreta de suas vidas não os possibilitava ir além do apresentado, a qual fazia com que, nas sessões, demonstrassem cansaço e certa inibição para a produção de desenhos e escrita. Com o desenrolar dos atendimentos, até os não alfabetizados começaram a desenvolver o movimento de hipótese de leitura e escrita, reconhecendo parte de palavras e grafando letras, sílabas e palavras inteiras. O fato de a intervenção se dar em grupo propiciou a integração mútua, sendo que, inicialmente, revelaram-se os tímidos, os líderes, os colaboradores, os copistas, os transgressores de regras, etc.
Por questões não reveladas, um dos participantes não compareceu mais à unidade escolar, sendo caracterizado o abandono aos estudos. A menina apresentou muita dificuldade em resignar-se, em aceitar regras, acarretando sua desistência na participação do grupo. Tentamos trazê-la novamente para o grupo por três sessões seguidas, mas não obtivemos sucesso. Vale mencionar que, apesar de estar alfabetizada, a aluna produzia textos limitados e extremamente concretos, não fazendo uso de todo seu potencial.
Nosso trabalho prosseguiu com os outros quatro integrantes, sempre com o foco na linguagem, fosse ela escrita ou oral. Para a realização deste trabalho, pudemos notar que a mediação se fez necessária a cada sessão, caracterizando a não autonomia dos sujeitos para a realização das atividades propostas. A mediação, inicialmente, foi constante e exigiu bastante de nosso empenho, pois os alunos apresentavam-se bloqueados, com medo de levantar hipóteses e de errar. Ao final deste trabalho de intervenção, pudemos verificar que cada um dos integrantes apresentou mudanças no sentido de estar mais confiante, desenvolver um pouco mais de autonomia propiciada pela interação e pela sintonia grupal, o que permitiu um avanço nas relações das diferenças existentes entre eles.
Acreditamos que este trabalho não tenha aberto todas as portas para o universo existente e que eles desconhecem; nem ousaremos dizer o mesmo sobre janelas; contudo apontamos para a presença de frestas que aguçam a curiosidade para um olhar, para o novo. Esperamos que eles tenham a curiosidade e o movimento de abrir a janela, analisar o que se apresenta e ousem abrir a porta e dar um passo à frente, rompendo as barreiras, ultrapassando seus limites.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O momento em que são realizadas tais observações reflete um aquecimento sobre as questões que envolvem o papel do psicopedagogo em nosso contexto educacional numa instituição escolar.
É de modo tímido que apresentamos, neste relato, uma discussão com base na densa proposta de alguns teóricos sobre grupos de trabalho. São ainda raras, porém muito valiosas, as contribuições que algumas teorias têm a nos oferecer. Porém, é um tanto pretensioso pensar em dar conta de diversos apontamentos encontrados nessas teorias e esgotarmos todas as discussões possíveis a partir das observações realizadas.
Pode-se considerar este um ensaio de arranjo dos dados obtidos e de discussões que emergem a partir das informações nesse momento de final de curso. Espera-se que este trabalho sirva como subsídio para, futuramente, solidificar nosso papel de psicopedagogos, assumindo uma postura mais bem definida e com reflexão de maior consistência, com forma e estilo próprios.
Desse modo, torna-se possível instrumentalizar os meios de intervenção e de acompanhamento do corpo docente para superar sua dificuldade de ensino.
Ao adquirir o conhecimento mais profundo sobre sua práxis e o que ela pode desencadear, o profissional deixa de reagir somente àquilo que se coloca em seu campo perceptivo, ou seja, em seu tempo presente e em sua experiência imediata.
Ressaltamos que nosso contato com o grupo aconteceu ao término de um ano letivo e início de outro. Foram três encontros no CAPS e dezenove na instituição–escola, sendo que dois deles foram caracterizados por encontros de encerramento, não promovendo discussões e situações cotidianas e passíveis de observações relevantes.
Acreditamos que, na hipótese de continuidade do projeto, teremos condições de aprofundar nosso contato com o grupo, expandir nosso campo de ação e, dessa forma, delinear um parecer pertinente e, talvez, mais fidedigno à realidade apresentada.
Referências bibliográficas
ASSUMPÇÃO, Cecília N.; QUINTA Jaqueline M. Necessidades em saúde mental com sofrimento psíquico. São Paulo: Trabalho de Conclusão de Curso, Universidade de São Paulo: 2003. 36f. [ Links ]
FERNÁNDEZ Alicia. Idiomas do aprendente: análise de modalidades ensinantes em famílias, escolas e meios de comunicação. Porto Alegre: Artmed, 2001. [ Links ]
PICHON-RIVIÉRE, Enrique. O processo grupal. 6 ed., São Paulo: Martins Fontes, 1998. [ Links ]
WEIL, Pierre. Relações humanas na família e no trabalho. 47 ed., Petrópolis: Vozes, 1997. [ Links ]
NOTAS
1Psicóloga pela Universidade São Marcos, SP; pós-graduanda em Psicopedagogia pela Universidade São Marcos, SP: psicoterapeuta em clínica e como analista na área de desenvolvimento organizacional em recursos humanos na SPDM – Hospital São Paulo/Universidade Federal de São Paulo. e-mail: adrigsramos10@yahoo.com.br
2Tradutor e intérprete (Português e Inglês); licenciado em Letras pela Universidade Ibero-Americana; especialista em Ensino Superior de Língua Inglesa e pós-graduando em Psicopedagogia pela Universidade São Marcos, SP; docente em escola da rede particular de ensino no Ensino Fundamental II e Médio e-mail: alcober@uol.com.br
3Fonoaudióloga pela Universidade Federal de São Paulo, com especialização em Saúde Mental pela Universidade de São Paulo; pós-graduanda em Psicopedagogia pela Universidade São Marcos, SP; gerente de unidade de saúde mental no município de São Paulo. e-mail: jacquinta@ig.com.br