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Construção psicopedagógica
versão impressa ISSN 1415-6954versão On-line ISSN 2175-3474
Constr. psicopedag. v.14 n.1 São Paulo dez. 2006
ARTIGOS ORIGINAIS
Acerca do estudo da história de nossas ocupações, psicologia, nutrição e psicopedagogia*
Cleber Gibbon Ratto1; Siliane Regina Orlandin Troggian2; Fabiani Ortiz Portella3
RESUMO
Este trabalho apresenta um estudo realizado com profissionais da Psicologia, Nutrição e Psicopedagogia, abordando as representações sociais no estudo da História de tais ocupações em percursos específicos de formação. Buscamos os regimes de atribuição de sentido presentes nas narrativas das experiências de formação dos profissionais entrevistados. A análise do material pretende além da proposta inicial - esboço de tais conjuntos de representações - vislumbrar como determinadas representações sociais do que seja estudar História interferem na constituição e apropriação destas identidades ocupacionais. Ademais, nossas análises apontam na direção de um necessário desdobramento das problematizações do lugar do ensino de História em cada uma das áreas envolvidas.
Palavras-chave: História, Representações, Formação.
ABSTRACT
This work presents a study carried through with professionals of Psychology, Nutrition and Psico-pedagogy, approaching the involved social representations in the study of the History of such occupations in specific passages of formation. We search regimes of direction attribution gifts in the narratives of the experiences of formation of the interviewed professionals. The analysis of the material intends beyond the proposal initial - sketch of such sets of representations - glimpsing as definitive social representations of that it is to study History intervene with the constitution and appropriation of these occupational identities. Wherever, our analyses point in the direction of a necessary unfolding of the problematizações of the place of the education of History in each one of the involved areas.
Keywords: History, Representations, Formation.
INTRODUÇÃO
O tempo presente é bastante fértil para as ponderações em torno da construção/reconstrução das identidades nos mais diferentes campos da ação humana. Vemos por todas as partes, e em especial no cenário acadêmico, uma preocupação reiterada com a reflexão a respeito das práticas, tomada como condição de assenhoramento do próprio fazer e dos efeitos dele na trama social. Cada um a seu modo e em diferentes posicionamentos da cena contemporânea se vê, em certa medida, convidado a colocar-se em questão, seja pelos efeitos de uma cultura predominantemente individualista ou pelas tentativas de resistência às investidas do capitalismo movente destes dias, nesse caso, pelo investimento na construção de identidades sociais coletivas com propósitos afirmativos. De todo modo, estamos colocados em questão naquilo que somos, que fazemos, que acreditamos e, esta vem sendo talvez nestes dias, a condição primeira de continuarmos a “ser alguém” ante o torvelinho de um mundo cada vez mais veloz e impermanente.
No campo profissional uma redefinição de performances, premida pela assustadora transformação das demandas de trabalho na contemporaneidade, faz com que todos nos coloquemos ante o desafio de questionarmos os sentidos de nossas práticas, confrontando-as com a emergência de problemáticas renovadas diariamente. Novas demandas que surgem na encruzilhada de pelo menos dois grandes vetores. Um deles: a intensificação das tecnologias da informação, que dão outra velocidade e sentido à relação com o conhecimento e com aquilo que se convencionou chamar como processo de formação profissional. Um outro: o conjunto variadíssimo de novas demandas sociais, emergentes das conseqüências desastrosas da internacionalização mercantilista do capital, resultando no aumento vertiginoso da distância que separa ricos e pobres, em qualquer nível, na cena planetária. Ser um profissional minimamente lúcido nesses dias deverá passar, necessariamente, pelo questionamento da significação social de nosso próprio fazer, ante o mundo e ante o mundo-em-nós, naquilo que singularizamos como nossa história de vida-formação-trabalho.
É a partir dessa ambientação que pretendemos colocar a questão que nos assola. Não como uma mera especulação resultante de uma ingênua curiosidade acadêmica, mas como a materialização daquilo que nos toca a todos: a angustiante condição de trabalhadores no mundo contemporâneo. O desafio de fazer-se profissional num mundo cada vez mais complexo que, ao mesmo tempo em que requer de nós a construção de identidade, nos bombardeia cotidianamente com suas estonteantes demandas de transformação e mudança. É da angústia desse (in)certo lugar da formação dos profissionais no e para o mundo do trabalho contemporâneo que passamos a delinear nossa problemática de pesquisa envolvendo as representações sociais do estudo da História no percurso específico de três áreas profissionais, a saber: Psicologia, Nutrição e Psicopedagogia, nossos respectivos campos de atuação.
O interesse por alguns dos sentidos atribuídos ao estudo da história de uma determinada ocupação profissional nasce atrelado à indissociabilidade entre passado-presente-futuro no processo de construção identitária. Construir uma identidade profissional passa invariavelmente pela articulação de variadas dimensões. Atrela-se nesse processo, no mínimo, elementos que advém da história de vida de cada sujeito, das contingências sócio-político-econômicas e culturais da realidade presente e elementos da formação acadêmica experimentada. Em cada uma dessas dimensões há contingências específicas que falam tanto do passado (do sujeito, da sociedade e da própria profissão), quanto das condições de atualidade em constante processo de vir-a-ser como construção futura. Entendemos que é a apropriação reflexiva destas condições de emergência de nós mesmos no mundo, como profissionais, que pode garantir uma prática efetivamente comprometida e transformadora. Por isso nossa preocupação com as representações sociais relativas ao estudo da história das profissões já referidas. Por entendermos que o modo como tratamos a história de nossa própria ocupação é parte importante do processo de construção de nossa identidade profissional. É, ao mesmo tempo, a expressão de uma ou várias modalidades de tratamento da História tanto quanto aclara o processo pelo qual vimos nos tornando os profissionais que temos sido.
Que significados são atribuídos por profissionais de três diferentes áreas ao estudo da história de suas ocupações?! Pretendemos com isso não só analisar indícios do lugar ocupado pela História no percurso de formação destes profissionais, mas tentaremos, ainda, abrir brechas para vislumbrar como determinadas representações sociais do que seja estudar História interferem na constituição e apropriação de nossas identidades ocupacionais.
ELEMENTOS TEÓRICOS
Acerca das concepções de História
Colocar em questão as representações sociais acerca do estudo da História e as implicações disso na constituição profissional de determinados sujeitos exige, necessariamente, uma breve revisão de alguns elementos em torno da História, do ensino da História e das transformações que este campo vem sofrendo na atualidade.
Para tanto, tratamos de esboçar um mapa teórico que nos serviu de referência para a análise das entrevistas. Trata-se de um delineamento a partir de produções inscritas em pelo menos três campos distintos. Primeiro, o campo da História e da Teoria da História em articulação com a emergência da História Social e da História da Cultura. Segundo, o campo da História Social e Cultural com suas aproximações e conseqüentes contributos para as demais áreas do conhecimento. Terceiro, o campo mais específico do ensino da História e suas implicações na constituição das identidades e competências profissionais.
Passemos, de imediato, ao primeiro ponto:
Podemos situar no século V a.C., o esboço de uma ciência histórica desvinculando-se progressivamente de seu caráter lendário. O grego Heródoto, nascido em 484 a.C., tem sido considerado o “pai da História”. Como ativo intelectual da Jonia, Heródoto foi um exilado e viajou muito, tendo passado significativo tempo no Oriente Médio e na Itália Meridional, região onde se expandiam as colônias gregas. Estima-se que tenha produzido sua obra em nove livros, onde buscava apresentar os resultados de sua “investigação” como estratégia de não relegar ao esquecimento as ações humanas. Estes primeiros escritos, a despeito de serem apresentados em primeira pessoa, tinham o claro propósito de distanciar-se do caráter lendário. Os primeiros quatro livros versaram sobre culturas não-gregas em que estão presentes, fundamentalmente, a descrição dos países e a submissão destes povos ao poderio persa.
A partir destas bases foi sendo fundada uma tradição histórica que perpassada por historiadores de Roma como Políbio e Tito Lívio, além de cronistas medievais e renascentistas, rendeu-se ao historicismo moderno de Leopoldo Von Ranke, que liderou na Alemanha um amplo movimento acabando por resultar na escola metódica francesa. Nomes como Ernest Lavisse, Charles Seignobos e Charles-Victor Langlois integram a referida escola, assumindo o princípio historicista de que só é possível fazer história a partir de documentos escritos, papéis ditos oficiais, submetidos ao trabalho e ao rigor de um intento comprobatório. A partir daí passa-se a falar de uma suposta história científica, em contraposição crítica às filosofias especulativas da história, que acaba por apresentar “fórmulas científicas, objetivas ou positivas, que influenciaram duas ou três gerações de historiadores, primeiro na Alemanha, mais tarde na França” (Martin, 1992, p. 144).
Deve-se especialmente a Ranke a entrada da História nos círculos acadêmicos. Conforme Gay (1990), a conquista de uma casa própria para a História deu-se no momento em que, depois de muitos séculos ter habitado casas alheias – teatro grego, tribunais romanos, mosteiros medievais e salões iluministas – o trabalho historiográfico passa a viver na universidade. Com forte influência idealista, Ranke concebe a História como obra de individualidades únicas e irredutíveis, como nações, civilizações, Estados. Uma concepção historiográfica que não se limita sequer na obra de “grandes homens”, concebendo a História como a decorrência de entidades tão abstratas quanto divinizadas.
Pesavento (2004) descrevendo o panorama sobre o qual incidiu a crítica do marxismo e da escola dos Annales, no século XX, fala-nos de duas grandes tendências pertinentes ao que vimos apresentando:
É certo que havia ainda, no panorama da historiografia mundial, uma ponderável vertente interpretativa da história que vinha desde o século XIX, como o historicismo de Ranke, a chamar a atenção para as descontinuidades dos tempos históricos e a necessidade de buscar os sentidos de cada momento do passado, postura esta que foi transmudada em inúmeras variantes das histórias nacionais. Da mesma forma, o positivismo de Comte, com seus pressupostos normativos científicos, estabelecendo os critérios da verdade absoluta, contida na fonte documental, que falava por si mesma, encontrava um vasto campo de ação, tanto pela seriedade da pesquisa de fontes que proporcionava, quanto pela defesa do caráter da história como ciência (p.10).
É sobre o duplo caráter da abordagem histórica deste tempo que incidirão as críticas do marxismo e da escola dos Annales nas primeiras décadas do século XX, cada uma a seu modo – sobre o historicismo de Ranke – considerando-o demasiadamente abstrato e genérico para o trato das questões históricas.
Pode-se considerar que as contribuições da crítica marxista vieram acompanhadas do desenvolvimento da noção de ideologia, calcadas fundamentalmente numa descrição estruturalista da realidade, que vê o processo histórico como uma sucessão de lutas de classes. Noções como as de dominação e resistência serviram como categorias hegemônicas para a interpretação histórica, atrelando os princípios do materialismo histórico a uma espécie de modelo explicativo fechado em si mesmo. No entanto, seria demasiado simplista descrever a crítica e a contribuição marxistas de modo tão homogêneo. Mesmo no campo do marxismo histórico estão presentes questionamentos que o foram fazendo diferir de si mesmo e caminhar na direção de novos referenciais de análise. Um exemplo disso pode-se encontrar no rompimento de Edward P. Thompson com o partido comunista. Ele, intelectual marxista que, na Inglaterra, após a ocupação soviética da Hungria em 1956, elabora uma crítica que no plano teórico centra-se sobre as simplificações de um esquema explicativo considerado demasiadamente duro nas suas aplicações reais.
A escola dos Annales, por sua vez, nasce em meados de 1920, como um movimento que buscava desenvolver uma nova modalidade de História. Tal movimento tem em Marc Bloch e Lucien Febvre, professores da Universidade de Estrasburgo, seus mais significativos líderes. Calcada numa crítica à historiografia tradicional e à história dos acontecimentos políticos, pretendia a instauração de uma história mais abrangente, incluídas todas as atividades humanas e envolvendo outras áreas do conhecimento.
Constantino (2004) aponta que:
Mais que uma renovação temática ou de objetos de investigação, depois dos Annales aconteceu uma mudança radical na definição da relação do historiador com o passado. O objeto da ciência histórica deixou de ser simplesmente alcançado pelas fontes para ser construído pelo historiador, a partir das demandas do seu presente. A importância do seu trabalho passou a ser entendida como resultado das perguntas que faz ao passado, resultado de uma elaboração científica, mais do que às fontes de que dispõe. O documento continuou sendo a matéria-prima imprescindível, seja ou não um documento escrito, mas, para que funcionasse como tal, dependeria da qualidade das indagações formuladas pelo historiador ao passado (p. 49).
No entanto, uma perspectiva excessivamente globalizante passou a ser denunciada na formulação dos Annales. Com sua recusa aos referenciais marxistas, os formuladores dos Annales rejeitavam uma análise classista e lançavam-se na busca de arquivos para a coleta sistemática de dados, que lhes pudessem dar uma visão mais ampla para a interpretação do real. Muitas das críticas lançadas sobre esta postura residiam no argumento de que se acabava por produzir uma narrativa sem poder explicativo dos fenômenos. Conforme Pesavento (2004) a situação crítica a que se via exposta a escola dos Annales revelava um paradoxo, já que “na sua criação, (...) se propusera tanto como alternativa ao marxismo, quanto como reação à história do acontecimento, ou ainda ao que se chamava de uma história-narrativa”. A despeito da inovação dada por suas categorias de estrutura e conjuntura, que funcionaram durante muito tempo para explicar uma outra concepção dos marcos temporais na análise histórica, a história dos Annales, “após décadas de percurso, era acusada justamente de um vazio teórico e um reduzido poder explicativo” (p. 13).
Com isso, instala-se uma nova crise no campo da História. A ciência que, no século XIX havia sido promovida à condição de rainha passa, agora por um abalo que põe em questão seu poder explicativo e sua efetividade no trato das questões sociais. Nos anos 60 e 70 do século XX, especialmente, a História já não ocupa mais o lugar privilegiado entre as ciências da sociedade, sendo alvejada pela Ciência Política, pela Sociologia e pela Economia. Estas últimas, que antes lhe serviam como ciências auxiliares, agora assumem o lugar de interlocutoras, que lhe dão o embasamento teórico para posicionar-se como ciência.
É neste cenário que podemos situar a emergência daquilo que se convencionou chamar de História Social, História Cultural ou ainda Nova História Cultural, como preferem alguns. Um campo híbrido, composto por diferentes movimentos que já vinham sendo de algum modo gestados em momentos anteriores da historiografia.
Passemos, então, ao segundo ponto:
Segundo Pesavento (2004), cerca de 80% da produção historiográfica brasileira encontra-se no campo da história cultural. Contabilizam-se neste índice não apenas as produções especializadas, livros e artigos acadêmicos, como o conjunto das comunicações em eventos, teses e dissertações em andamento nas universidades do país. Chega-se a falar em uma virada no domínio da História, que estaria sendo gestada desde meados da década de 60 do século passado, no bojo de uma intensa modificação nos modos de organização social e política da atualidade. Trata-se de um conjunto de transformações em todos os campos, por força de movimentos que vêm dando materialidade àquilo que modernamente chamamos de crise dos paradigmas explicativos da realidade. Podemos falar de certa falência dos grandes modelos explicativos, sustentados por um regime de verdades totalizantes e universalizadoras. Trata-se de um fim das
(...) certezas normativas de análise da história, até então assentes. Sistemas globais explicativos passaram a ser denunciados, pois a realidade parecia mesmo escapar a enquadramentos redutores, tal a complexidade instaurada no mundo pós-Segunda Guerra (Pesavento, 2004, p. 9).
Uma variedade de grupos e movimentos sociais marca o cenário desta época, colocando em questão, por sua própria existência, os marcos racionais e lógicos que até então vigoraram hegemonicamente no trato da história. A emergência de novas questões e interesses, fomentados pelo conjunto das transformações na política e economia mundial, fez urgir no presente novas demandas, para as quais outros modos de pensar a história foram requeridos. Frente a isto, se estabelece um choque com a suposta consolidação de determinados paradigmas históricos, calcados em princípios de predição condenados à rigidez dos modelos. Tais transformações não assolam somente a tradição histórica, senão que se espalham pelos intrincados meandros da trama social, alcançando os mais diferentes campos, desde a cultura acadêmica aos modos de organização da vida cotidiana em suas variadas expressões.
Conforme Ratto (2004), a “história cultural ou uma nova história cultural, como propõe Hunt (1992), certamente não se constitui como um campo homogêneo e consensual de produção. (...) Um universo que tem comportado a inclusão de autores como Bakhtin, Barthes, Paul Veyne, Paul Ricoeur, Certeau, Roger Chartier, Peter Burke, Michel Foucault, entre outros, certamente não é passível de uma precisa localização espaço-temporal, senão que se constitui como um campo múltiplo, no qual alguns pontos de conexão criam condições de pertinência” (p. 23).
Segundo Reis (2001), foi na década de 80 que não só a História Social se firmou no campo da Historiografia, como também apareceu na cena universitária brasileira um número cada vez maior de trabalhos na direção da História da Cultura, tratando-se de variações tanto da abordagem marxista, quanto dos Annales. Segundo ele, estes paradigmas foram progressivamente se diferenciando, em função de suas diferentes ênfases e interesses. É o que acontece, por exemplo, a partir do trabalho de historiadores designados por Roger Chartier como “terceira geração” do grupo dos Annales, ao incluir nas fronteiras da história “temáticas como a infância, o sonho, o corpo, o odor, o estudo das mulheres” (p. 14) e outras tantas questões que dizem respeito diretamente à constituição dos modos de existir dos homens comuns.
O que se registra a partir das décadas de 60 e 70, no bojo daquilo que se considera um dos maiores feitos da História Social, é a ampliação do mapa do conhecimento histórico associado à legitimação de novas áreas de investigação.
Apesar da acusação de ser vaga e generalizante, a História Social “possibilitou o interesse por outras formas de expressão, que permaneceram relegadas como apêndice de uma história política ou econômica ainda presa a concepções estruturais” (Reis, 2001, p. 19). Nesta perspectiva, pensar a História passa por destituí-la de seu lugar universal sustentada em grandes períodos, grandes homens e grandes feitos, para colocá-la “fora dos esquemas adotando uma concepção que leva em conta a experiência humana, é pensar a História como experiência de classe e luta, é considerar que a História Real é construída de homens reais, vivendo relações de dominação, subordinação em todas as dimensões” (Vieira, 1991, p. 18).
Além disso, a Teoria da História é, assim como qualquer outra teoria, como apontou Michel Foucault (1979), um exercício, uma prática, um discurso. Acompanhemos:
Ora, o que os intelectuais descobriram recentemente é que as massas não necessitam deles para saber; elas sabem perfeitamente, claramente, muito melhor do que eles; e elas o dizem muito bem. Mas existe um sistema de poder que barra, proíbe, invalida esse discurso e esse saber. (...) Os próprios intelectuais fazem parte desse sistema de poder (...) O papel do intelectual não é mais o de se colocar ‘um pouco na frente ou um pouco de lado’ para dizer a muda verdade de todos; é antes o de lutar contra as formas de poder exatamente onde ele é, ao mesmo tempo, o objeto e o instrumento: na ordem do saber, da ‘verdade’, da ‘consciência’, do discurso (p. 71).
A História Social abre uma importante brecha no estudo da constituição das identidades históricas, na medida em que rejeita a hipótese mecânica de uma determinação estrutural e econômica, valorizando o fazer histórico como experiência de luta e produção social nas mais ínfimas e particulares experiências humanas. Com isso, a História não apenas deixa de representar uma narrativa estática de períodos, idéias, vultos, mas assume-se como uma prática social, com a qual vamo-nos construindo como sociedade, naquilo que somos capazes de dizer a respeito de nós próprios.
Tais elaborações no campo da assim chamada História Social, concebida aqui como o conjunto das variações geradas no campo da História da Cultura, não se restringem exclusivamente ao universo do ensino ou da pesquisa historiográficos. Os anos 90 do século XX testemunharam em diferentes campos uma ampla infiltração destas novas elaborações da teoria da História. Haja vista, por exemplo, no campo educacional, o prestígio e a intensificação das modalidades formadoras que se servem das “histórias das práticas” como seu campo de trabalho. Passou-se a conceber que o ensino de História está para além de uma bem organizada formulação de fatos numa cronologia inteligível. Ensinar História atrela-se ao intento de historiar-se a si próprio através das práticas e dos discursos que nos constituem.
Com isso, passamos ao terceiro ponto desta seção, onde encontramos alguns elementos para a reflexão acerca do ensino da História e suas implicações na constituição e apropriação de nossas competências e identidades profissionais.
Concebida a História na perspectiva da História Social, o intento de ensinar a história de uma determinada ocupação no curso de certa formação profissional constitui-se como um instigante desafio. Se ensinar História não se restringe a contar de modo ordenado aquilo que seria nosso passado, ensinar a história de determinada ocupação tampouco seria exclusivamente a narrativa de suas origens ou o inventário das práticas que lhe foram correspondentes em diferentes períodos.
Concebe-se contemporaneamente que o ensino da história de determinada ocupação deverá estar intimamente imbricado com a história de formação do próprio aprendente, de modo que saber a história do que se faz é saber-se naquilo que se vem fazendo, como agente narrativo, tendo no próprio percurso de formação um exemplar vivo da constituição de seu ofício. Esta seria uma das condições indispensáveis para que a vivência da formação e a prática profissional pudessem dar-se num efetivo exercício de apropriação reflexiva daquilo que vimos sendo/fazendo no mundo. Trata-se de conceber a História como aquilo que se nos faz na trama do que vamos fazendo com ela própria. Uma História formadora, para além de sua função instrutiva ou informadora de fatos.
No trato da história dos próprios percursos de formação, como elemento importante na constituição do ofício, encontramos Catani (1998) apontando que:
Pensa-se que as próprias práticas profissionais dos indivíduos (...) devem muito aos processos formadores que eles próprios experimentaram ao longo de seu desenvolvimento. Quais as conexões existentes entre essas histórias de formação e as práticas que escolhem para dar respostas ao ‘como fazer’ de seu trabalho? Questões dessa natureza podem e devem se multiplicar caso se queira compreender as especificidades do ofício. A transformação produtiva dos saberes e práticas de formação, no meu entender, deve necessariamente incluir processos de reflexão e auto-conhecimento que reconstituem os itinerários individuais de desenvolvimento (p. 29).
Maurice Tardif (2002) desenvolve uma importante análise acerca dos saberes docente e da formação profissional, apontando a relevância da indissociabilidade dos saberes disciplinar e experienciais. Segundo ele, a presença de saberes pré-profissionais está fortemente relacionada à constituição da identidade profissional, funcionando muitas vezes como elementos que se atualizam no exercício da profissão, mesmo sem o concurso da consciência. Estes saberes “não são inatos, mas produzidos pela socialização, isto é, através do processo de imersão dos indivíduos nos diversos mundos socializados (famílias, grupos, amigos, escolas, etc.), nos quais eles constroem, em interação com os outros, sua identidade pessoal e social”. (p. 71) Nesta perspectiva, os saberes experienciais – os que se vão construindo nas margens do processo instrucional – para além daqueles que se constituem no exercício da profissão, decorrem em grande parte de pré-concepções oriundas da própria história pessoal e de formação. Na medida em que estes saberes pré-profissionais são produzidos na trama das instituições, pelas quais o sujeito transita em seu processo de socialização, por decorrência, sustenta-se a idéia de que são eles um campo fértil para a problematização do próprio fazer profissional e suas implicações históricas.
Apesar de referir-se de modo específico ao campo da profissionalização docente, Tardif abre uma relevante brecha para a discussão do que representa na atualidade a articulação dos saberes disciplinar e experienciais na formação dos profissionais de qualquer campo ocupacional. No que se refere ao ensino da História, e mais particularmente da história de determinada ocupação, tal articulação parece indispensável como condição de uma ação reflexiva a respeito da própria prática, dando ao profissional a perspectiva de uma construção mais autônoma de sua identidade ocupacional. Julgamos que não apenas o ensino da história de determinada profissão é um campo bastante fértil para tal procedimento, quanto o próprio procedimento reflexivo autoformador é um forte contributo à re-significação do que seja aprender História.
Conforme Reis (2001) o ensino de História “continua sendo ministrado segundo sua tradição livresca, é a informação que está nos manuais consagrados, o mito da palavra escrita e a confusão entre historiografia e o processo histórico acontecido”. (p.113) Apesar desta evidência, resta-nos a indagação acerca dos modos como essa continuidade vem repercutindo sobre as representações que carregamos da História, e do significado de seu estudo em nossa trajetória profissional.
É neste sentido que buscamos elementos teóricos para sustentar nossa análise sobre das representações sociais acerca do estudo de História do/no percurso de determinada formação profissional. De tais representações julgamos depender, em certa medida, o uso que podemos fazer da História como instrumento (trans)formador de nós próprios em nossos fazeres profissionais, e quiçá em outros tantos.
Acerca das representações sociais
A teoria das representações sociais é considerada por Farr (1994) como sendo “uma forma sociológica de Psicologia Social, originada na Europa com a publicação, feita por Moscovici (1961) de seu estudo La Psychanalyse: Son image et son public. (p. 31) Essa teoria difere marcadamente das formas psicológicas de Psicologia Social, atualmente predominante nos Estados Unidos da América. A era moderna, na Psicologia Social, tem início com o fim da Segunda Guerra Mundial. O contraste se dá entre uma tradição de pesquisa européia e uma americana na Psicologia Social Moderna.
Moscovici não desenvolveu sua teoria num vazio cultural. Ele teve a capacidade de se apoiar nos fundadores das Ciências Sociais na França, especialmente em Durkheim. Sendo que Durkheim foi um dos fundadores da Sociologia moderna, a teoria de Moscovici é freqüentemente classificada, com muita propriedade, como uma forma sociológica de Psicologia Social.
Moscovici afirma que a noção de representação coletiva de Durkheim descreve, ou identifica, uma categoria coletiva que deve ser explicada a um nível inferior, isto é, em nível da Psicologia Social. É aqui que surge a noção de representação social de Moscovici. A ciência é uma fonte fecunda de novas representações, ele estava modernizando a ciência social, ao substituir representações coletivas por representações sociais, a fim de tornar a ciência social mais adequada ao mundo moderno.
Mais de três décadas depois de seu aparecimento, a teoria das representações sociais se constitui como uma referência central para psicólogos sociais no mundo todo. A teoria das representações sociais questiona ao invés de adaptar-se, busca o novo, mas não sem enfrentar nossa própria história.
Esta teoria busca, tanto dentro da Psicologia como fora dela, as possibilidades de reconstrução teórica, epistemológica e metodológica a que se propõe. É o caráter dessa busca que lhe faz ser tanto uma teoria especifica da Psicologia Social, como um empreendimento interdisciplinar.
A teoria das representações sociais centra seu olhar sobre a relação entre uma epistemologia do sujeito “puro” e do objeto “puro”. São consideradas aqui a relação indivíduo e sociedade, ou seja, a relação fundamental entre o todo e suas partes, entre o universal e o particular, entre a unidade e a totalidade.
Ao fazer isso, ela recupera um sujeito que, através de sua atitude e relação com o objeto-mundo, constrói tanto o mundo como a si próprio. A atividade do sujeito como as realidades do mundo social são, aqui, consideradas como central para a teoria.
A teoria das representações sociais estabelece, também, uma síntese teórica entre fenômenos que, em nível da realidade, estão profundamente ligados. As dimensões cognitiva, afetiva e social estão presentes na própria noção de representações sociais. O fenômeno das representações sociais, e a teoria que se ergue para explicá-lo, diz respeito à construção de saberes social e, nessa medida, ele envolve a cognição. O caráter simbólico e imaginativo desses saberes trás à tona a dimensão dos afetos, porque quando sujeitos sociais empenham-se em entender e dar sentido ao mundo, eles também o fazem com emoção, com sentido e com paixão. A construção da significação simbólica é, simultaneamente, um ato de conhecimento e um ato afetivo. Tanto a cognição como os afetos que estão presentes nas representações sociais encontram sua base na realidade social. O modo mesmo da sua produção se encontra nas instituições, nas ruas, nos meios de comunicação de massa, nos canais informais de comunicação social, nos movimentos sociais, nos atos de resistência e em uma série infindável de lugares sociais. É quando as pessoas se encontram para falar, argumentar, discutir o cotidiano, ou quando elas estão expostas às instituições, aos meios de comunicação, aos mitos e herança histórico-cultural de suas sociedades, que as representações sociais são formadas.
As representações estão presentes tanto no “mundo”, como na “mente”, e elas devem ser pesquisadas em ambos os contextos. Somente vale a pena estudar uma representação social se ela estiver relativamente espalhada dentro da cultura em que o estudo é feito.
O desenvolvimento das idéias de Moscovici teve grande penetração em diferentes contextos e áreas do conhecimento. No Brasil, especialmente a partir da década de 80, os estudos envolvendo as representações sociais ganharam maior expressão não apenas no campo da Psicologia Social moderna, mas, também, no campo da educação e suas adjacências. Destaca-se nesse contexto, desde meados de 1990, o grupo da professora Mary Jane Spink da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, que vem se dedicando ao estudo e ampliação de tais referências, tanto do ponto de vista teórico conceitual quanto metodológico.
O método de análise das representações sociais para embasamento epistemológico e teórico, assim como os aspectos técnicos do procedimento dos dados, inserem-se na forma interpretativa de pesquisa, desenvolvendo íntima associação com os objetivos teóricos do estudo, sendo norteado por pressupostos epistemológicos construtivistas.
Conforme Spink (1994), “teoria, epistemologia e metodologia formam aqui um circulo contínuo e influenciam-se mutuamente, gerando um processo permanente de reflexão”, assim a perspectiva teórica e metodológica delineada de modo a poder situar a proposta técnica de associação de idéias tem como substrato a inversão da posição do sujeito na questão do conhecimento: “de observador neutro e passivo, este passa a ter um papel central, enquanto formulador de teorias-científicas ou de senso comum – na criação de uma realidade consensual” (p.140).
DESCRIÇÃO DOS PROCEDIMENTOS
Coleta
A coleta do material de análise aconteceu com a utilização de entrevistas, envolvendo um grupo de profissionais de três áreas distintas, a saber: Psicologia, Psicopedagogia e Nutrição. A escolha dos sujeitos entrevistados deu-se pela proximidade profissional em relação aos autores deste estudo, não requerendo qualquer caráter de representatividade. Tratou-se de uma escolha deliberada por profissionais que concordaram em participar da pesquisa, tendo como único critério para escolha o fato de estarem trabalhando ativamente em sua área de atuação. Ficou assim constituído o grupo de entrevistados: 2 (duas) nutricionistas, 5 (cinco) psicopedagogas, 3 (três) psicólogas e 1 (um) psicólogo.
Foi utilizada a modalidade de entrevista aberta, não-diretiva, com a utilização de um gravador para posterior transcrição das falas dos entrevistados, centrado num tema circunscrito, através de uma única pergunta:
Qual o significado que tem para ti conhecer a história da tua profissão?
As entrevistas foram rigorosamente transcritas, mantendo-se as particularidades das falas, incluídas expressões idiomáticas e construções gramaticais específicas, sem qualquer reparo lingüístico. Tal procedimento, tanto quanto a escuta reiterada das gravações, para fins de impregnação, objetiva manter a maior proximidade possível com os elementos trazidos pelas expressões dos entrevistados.
Análise
A análise desenvolvida a partir do corpo do material construído com as transcrições obedeceu a cinco procedimentos sucessivos, descritos por Spink (1994), como roteiro para a elaboração de uma possível análise das representações sociais emergentes dos discursos analisados. Como já abordado anteriormente, uma interpretação, quando estamos no trato do paradigma construtivista, é um mapa possível não necessariamente único acerca de um determinado fenômeno. Sendo assim, as inferências feitas na direção do aclaramento das representações sociais funcionam como uma análise particular, circunscrita e contingencial, que não tem pretensões explicativas universalizantes. Diferente disto, a análise deverá servir como um mapa de leitura do fenômeno em questão, abrindo espaço para novas elaborações e desdobramentos.
Passamos, então, à descrição dos procedimentos, incluída a transcrição das entrevistas, que consideramos como parte integrante da análise, na medida em que o processo de audição e escrita das falas serve como momento primeiro de constituição das impressões dos pesquisadores.
1. Transcrição das entrevistas.
2. Leitura flutuante do material, intercalando com a escuta das fitas, com o propósito de aflorar os temas, observando primariamente a retórica e favorecendo os investimentos afetivos.
Na leitura/escuta é importante considerar as características singulares dos discursos, de acordo com Potter & Whetherel apud Spink (1994): “a variação, ou seja, as versões contraditórias que emergem no discurso e que são indicadores valiosos sobre a forma como o discurso se orienta para a ação; os detalhes sutis – como os silêncios, hesitações, lapsos – pistas importantes quanto ao investimento afetivo presente; a retórica, ou a organização do discurso de modo a argumentar contra ou a favor da versão dos fatos.” (p.130)
3. Retorno ao objetivo da pesquisa definindo claramente a relação entre as falas e o objeto da representação, neste caso, a relação que o sujeito estabelece com o estudo da história de sua profissão. Nesta etapa foram construídos mapas que transcrevem toda a entrevista, respeitando a ordem do discurso.
4. Após a definição dos mapas, os quais possibilitam ver a associação de idéias, pode-se então, analisar a variedade de idéias e imagens presentes em uma única associação.
5. Na fase final transportamos as associações para um gráfico, pontuando as relações entre os elementos cognitivos, as práticas e os investimentos afetivos.
Através destes procedimentos construímos um texto conclusivo que atrela as análises a respeito das associações de idéias em suas diferentes dimensões (cognitivas, práticas e afetivas) com o objetivo deste estudo.
SÍNTESE DOS PRINCIPAIS ELEMENTOS DE ANÁLISE
A análise das entrevistas realizadas, cujos procedimentos foram descritos na seção anterior, possibilitou a constituição daquilo que aqui denominaremos linhas e delineamentos. As linhas emergiram das falas dos sujeitos entrevistados, como a evidência de relações estabelecidas entre a temática mais geral – História – e elementos secundários – temas associados pelo próprio discurso dos sujeitos. Com a emergência das linhas, nomeadas deliberadamente por nós, tornou-se possível enxergar as primeiras relações e associações de idéias presentes nos discursos, a partir dos quais fomo-nos aproximando progressivamente das representações sociais implicadas.
Foram propostas, então, dezoito diferentes linhas, cada uma delas constituída da associação entre o tema central e idéias a ele associadas. Trata-se de um interessante conjunto de elementos, cuja diversidade pode ser observada na listagem a seguir:
1. História & formação regular
2. História & antecedentes
3. História & prática profissional
4. História & acesso ao mercado de trabalho
5. História & história e cultura geral
6. História & origem e finalidade
7. História & identidade
8. História & juízos de valor
9. História & livros e manuais
10. História & histórias de vida
11. História & atualidade
12. História & vultos e personalidades
13. História & idéias e concepções
14. História & ciência e teoria
15. História & implicação pessoal
16. História & cultura, produção política e social
17. História & crítica à historiografia clássica
18. História & narrativa (práticas discursivas)
A partir destas linhas, que esboçaram uma variedade de temas aos quais a idéia central de estudo de História foi associada, compusemos três grandes delineamentos, a saber: História e formação, História e trabalho, História e Sociedade.
Cada delineamento constitui-se como um emaranhado de diferentes linhas, que se agrupam por proximidade temática e permitem visualizar os traços de uma determinada representação social, desenhada por elementos heterogêneos. Um delineamento é entendido aqui, portanto, como um arranjo de linhas que se aproximam por similitude e acabam por tornar possíveis determinadas figuras que vão sendo compostas na análise das falas, entremeadas pelo olhar e discurso dos pesquisadores. É exatamente essa tessitura dependente do olhar e da performance enunciativa dos pesquisadores que faz do desenho de uma determinada representação social uma figura perspectivada. Não se trata da “Verdade” de determinada representação social, senão, de um campo de aproximações no qual o próprio pesquisador se vê implicado como sujeito co-criador desta representação.
Assim, passamos à apresentação dos principais elementos que resultaram da análise, advertindo acerca da relatividade de nossa própria leitura, sempre aberta a outras e possíveis elaborações. A análise não encerra as falas dos sujeitos. Ao contrário, busca abrir caminhos para o que existe de fértil nestes posicionamentos, como brechas para transformações nos nossos modos de ver e nomear o mundo, neste caso especificamente, nossos modos de ver e nomear nossas relações com o estudo da história de nossas ocupações.
Como anexo, ainda, apresentamos os quadros que foram construídos para agrupamento das falas.
História e formação
Uma percepção relativa à carência do ensino de história da profissão como uma disciplina regular no curso de graduação foi um elemento bastante significativo nas falas dos sujeitos. Surgem, então, duas diferentes direções para este posicionamento. Uma delas associa a ausência de uma disciplina regular, como no caso da Nutrição, com uma forte tendência ao desinteresse dos profissionais pela história de sua ocupação. Outra, mais fortemente sustentada pelos profissionais entrevistados, assenta-se sobre o fato de serem as disciplinas regulares de história da ocupação insuficientes para aquilo que consideram seja um “sólido” conhecimento destes temas. A despeito de não haver uma referência mais específica ao que seria a dita “solidez” da formação em tais assuntos, os posicionamentos sustentam de modo consensual que a existência, a extensão do tempo dedicado a tal estudo e a quantidade de informações a serem repassadas durante o curso de graduação seriam condições para a reparação desta falha, cuja responsabilidade está colocada preponderantemente sobre a organização curricular dos cursos. Em ambos os casos, portanto, uma atribuição que designa o ensino da História como uma responsabilidade da formação formal e regular, ausente ou insuficiente, razão pela qual é justificada, com certo constrangimento, a tenuidade da influência destes temas sobre a constituição de suas trajetórias profissionais. Três movimentos que inauguram um gesto freqüentemente reiterado na fala destes sujeitos: julgar “importantíssimo” o estudo da História de sua profissão constranger-se com a dificuldade de argumentação a respeito de tal importância e, por fim, aquietar o constrangimento por meio de uma crítica pouco precisa sobre a insuficiência dos cursos em seus modos de organização curricular.
Um elemento associado a este primeiro gesto, descrito no parágrafo anterior, surge com a defesa veemente não só da necessidade de uma revisão dos modos de funcionamento dos cursos formais e regulares que incluísse a história das profissões, mas, ademais, a necessidade de contemplar algo que vem sendo designado como “história e cultura geral”. Esta seria a parte que diz respeito à vida do próprio sujeito, no intento de responsabilização pela precariedade do conhecimento histórico de cada um. Com isso, a percepção da carência a que nos reportamos anteriormente, é representada não apenas como uma falha dos cursos de formação – primeira atribuição – mas também como a resultante de uma insuficiência da dita “formação geral” do sujeito em termos de história e cultura. Acompanhemos um exemplo: “Uma questão de... de... cultura geral sabe?! De cultura mesmo. Eu acho que falta muita cultura de um modo assim... geral, sabe?!” (NUTRIC1) Ou ainda: “(...) não é só a história da Psicologia, é estudar a história geral mesmo.” (PSICOL. 4) Aqui, história e cultura, “geral” como são designadas, referem-se a um conjunto de conhecimentos supostamente universais que seriam as condições primeiras para a inclusão no campo da erudição acadêmica. Tal posição, sustentáculo de uma noção de cultura e de história, tão “geral” quanto vaga e supostamente universal, acaba por fortalecer um uso reacionário de tais conceitos, uma vez que produz a crença na primazia de um certo tipo de produção cultural e de narrativa histórica, tornados universais (Guattari, 1992). Como toda ordem discursiva, esta também produz sua face de exclusão. Neste caso, toda uma parcela da sociedade, que não tendo acesso a estes códigos supostamente universais, está colocada à margem do “nobre” conhecimento da História e da Cultura, das quais, curiosamente, eles próprios não fazem parte.
Ao mesmo tempo, chamam nossa atenção, posicionamentos que tentam associar – com o tom de uma vontade “moderna e inovadora” no trato da história – o estudo da história da profissão ao conhecimento dos antecedentes pessoais dos sujeitos. Afirmam que a constituição da identidade pessoal se dá pela história, concebendo esta última como um plano de referências a partir do qual nos reconhecemos e mantemos a unidade de nossa própria trajetória de vida. Sendo assim, afirmam alguns, por exemplo, “eu acho que tu te constitui como sujeito pela tua história, eu acho que tu te constitui como psicopedagoga pela história da psicopedagogia...” (PSICOP.3) São associações imprecisas, que mantém uma forte clivagem entre o que é a “história pessoal” e a “história da profissão”, embora lhes seja comum o princípio de que é a história a chave para decifração de uma certa inevitabilidade identitária. “É a história da gente que diz aquilo que a gente é e até... como é que a gente ficou do jeito que é.” (NUTRIC.1) Trata-se de um bom intento de implicar a própria vida naquilo que em outros momentos, de forma ambígua, é concebido como “geral” ou “universal”. No entanto, persiste uma enorme dificuldade de tornar mais claro como se dá esta implicação. Como esses fios se tramam? Como essas histórias se cruzam? Que pontos de conexão fazem com que uma suposta história da minha profissão seja feita também por minha própria história, naquilo que ela carrega de mais aparentemente particular e pessoal?! Uma descontinuidade no discurso generalizante que faz da história e da cultura, “universais” a serem ensinados pela academia.
Talvez seja nas associações estabelecidas entre a história e concepção de tempo que encontraremos os elementos mais ricos para pensar esse impasse que se põe quando alguns dos entrevistados tentam enxergar relações entre suas próprias histórias de vida e a história de suas ocupações. São predominantes e relativamente consensuais as associações diretas entre a idéia de história e tempo passado (origem dos fatos). A história é colocada a serviço da contação das origens. A remessa direta é evidente, embora haja variações quanto aos juízos de valor acerca da importância ou utilidade do procedimento histórico apresentado nesse sentido. Alguns posicionamentos dão materialidade a esta inferência. Acompanhemos este primeiro: “Eu acho que a coisa da história da profissão... assim... tem que ter uma noção mínima que seja, pra tu pelo menos saber dizer pra alguém como é que aquilo surgiu, pra que que serve.” (NUTRIC.1) Saber da origem como um capital explicativo é saber para saber explicar a verdade e a finalidade originais daquilo a que nos referimos. Num outro exemplo, o conhecimento das origens é julgado com certa parcimônia, em favor de uma atitude supostamente progressista, atenta ao atual e à inovação, aqui vistas como contrapontos do trabalho histórico. Eis a fala: “(...) mas é importante a pessoa não ficar só presa na história, presa ao passado e ver que as teorias também evoluem, que tem sempre coisas novas surgindo e que a gente tem que se atualizar, sempre, sempre mesmo...” (PSICOL.3) Seja para justificar o presente de forma “verdadeira” ou para libertar-se do passado em direção ao presente, tempo que não faz parte do conhecimento histórico, a idéia de conhecimento da origem e finalidade parece ser a tônica dessas representações.
História e trabalho
Nesse alinhamento destaca-se uma associação predominante: a idéia de que o conhecimento da história da profissão interfere sobre o exercício profissional numa proporção direta, fazendo de mais e melhor conhecimento da história da ocupação subsídios para uma prática mais, ou melhor, qualificada.
Apesar da ênfase na existência de tal relação, não são apresentados maiores detalhes acerca do funcionamento desta interferência, restringindo-se quase exclusivamente a juízos de valor, na maior parte dos casos como um intento de aliança com o pesquisador, pressuposta uma simpatia comum à importância de estudar história. Apenas dois dos entrevistados aproximam-se um pouco de questões mais concretas, dando a ver alguma relação mais específica com temas ou práticas pertinentes a sua ocupação profissional. Um deles: “(...) sabendo de onde veio a preocupação com a alimentação, com a saúde, com o bem-estar a gente acaba entendendo melhor o que a gente faz.” (NUTRIC.1 – Grifos nossos) Outro: “saber da história da gente, do país, da família, seja do que for... e até mesmo da Psicologia é um jeito de tu não te tornar um alienado como a maioria dos psicólogos...” (PSICOL.4 – Grifos nossos)
História e sociedade
São presentes nesse alinhamento posições que apresentam a história no cenário mais amplo da vida em sociedade, como um lugar privilegiado para as figuras dos vultos e destaques. A história, nesse sentido, parece operar como uma narrativa dos destacamentos. Trata-se do discurso que teria a propriedade de dar a conhecer “quem foi” importante na construção de determinada ocupação profissional ou ainda “quem está sendo” relevante na construção presente. Tanto num como noutro caso, a história aparece como uma narrativa possível dos feitos de determinados “sujeitos”, pessoas nas quais se encarna a relevância de certas realizações que as inclui na história. “(...) história de como apareceu a Psicopedagogia, quem fez parte, quem está fazendo parte quem ta batalhando pela profissão, quem está se empenhando e poder valorizar essas pessoas que contribuíram e aquelas continuam contribuindo até hoje.” (PSICOP.4)
Coexiste nestas associações uma posição bastante particular que é, em certa medida, reveladora de uma postura ainda presente nas representações do que seja o processo histórico: a associação entre História e conhecimento das “verdades científicas” de um determinado domínio, o que faz da história uma ação eminentemente teórica, num debruçar-se sobre o passado – predominantemente documental – ainda aqui, para entender as origens, as origens científicas que equivaleriam a narrar “a verdade”. Acompanhemos indícios desta representação na fala desta psicóloga: “Entender o... a história do... da psicologia é entender ah... quais são as bases científicas que formaram esta profissão hoje...” Ou ainda: “Conhecer estes dados é muito, uma coisa muito teórico, né?!” (PSICOL.1) São falas contemporâneas a uma postura fortemente historicista que parece não estar tão distante quanto supomos de nossas paisagens atuais.
É, sobretudo, no estabelecimento de relações mais gerais entre história e sociedade, agrupadas nesse alinhamento, que encontramos associações denominadas por nós de “críticas” no tratamento do estudo da história das ocupações. Falas exemplares de uma representação que concebe a história como trabalho no e com o presente, exercício histórico no qual alguns dos entrevistados se incluem como sujeitos ativos, fazedores de história. Acompanhemos: “Por ser a psicologia uma profissão recente no Brasil, ah... eu me sinto, também, desafiada a construir essa história.” Mais adiante, no posicionamento da mesma entrevistada: “Me vendo, me vejo fazendo isso dentro da empresa, procurando aproximar essa história tão clássica, tão distante muitas vezes das pessoas, de sua realidade... ah... trazendo isso pro dia-a-dia né?! Seja na empresa, seja na clínica.” (PSICOL.2) Aqui, estudar a história deixa de ser uma atividade de instrução acerca do passado para constituir-se como uma prática no presente, uma atitude crítica em relação à “História Clássica”, buscando criar conexões mais fortes com a realidade vivida. Essa alteração parece dar-se especialmente em função de um duplo deslocamento dos modos anteriormente apresentados. O primeiro diz respeito à inclusão do tempo presente como tempo de ação e não mais como o lugar que nos distancia e exclui dos feitos históricos. O segundo, dado pelo fato desta, poderíamos chamar de atualização da história, abrir espaço para uma percepção de si como agente da própria narrativa histórica no campo de sua prática profissional concreta e cotidiana. A História não é mais, aqui, a tranqüila verdade sobre o passado, mas inscreve-se, isto sim, num campo de disputa política pela produção da própria verdade histórica. “Além do que se tu ta vivo, só por isso tu já ta fazendo história e se tu não te adonar dela, outros se adonam por ti...” (PSICOL.4)
Em direção análoga, uma representação do estudo da História como ferramenta crítica parece ser coincidente com uma concepção por assim dizer dialético-marxista da realidade. Alguns posicionamentos trazem marcas disto: “Porque isso também é a história da profissão... os erros, as sacanagens que ninguém fica sabendo. Não tem neutralidade... não acha?! A Psicologia que nem qualquer outra profissão ela nasce sempre pra atender a uma certa necessidade social e é por isso que é importante saber da história...” (PSICOL.4) Um outro, ainda:“(...) isso fica muito claro olhando pra trás, pra história, pensando no contexto brasileiro, pensando na cultura brasileira, né, e o quanto a gente pode trazer da cultura pra... pra dentro da psicologia, também construindo, né, a partir deste saber popular, a partir de... de tantas coisas que hoje ah... ah... acontecem no contexto brasileiro.” (PSICOL.2) No plano da luta de classes a História é defendida como instrumento de conscientização no e para o presente, além de importante estratégia para denúncia das disparidades no campo social e para a inclusão de outras versões da história e da cultura no cenário da historiografia. É isso que parece exemplar o segundo posicionamento recém apresentado.
Finalmente, vale destacar que parece ser a tônica da percepção sobre o elemento narrativo da história, o que possibilita representá-la de uma maneira, para nosso juízo, mais potente em sua crítica e transformadora em sua ação. Dois posicionamentos de um mesmo entrevistado, tomados como detalhes no campo consensual majoritário dentre as falas dos entrevistados, são capazes de dar visibilidade a esta brecha aberta no discurso engendrado pela representação hegemônica. O primeiro deles, ainda com forte vocação para a crítica e para a denúncia, toca a questão da “montagem” histórica através da narrativa. “(...) importante saber da história, mas não só da história bonitinha, bem montadinha... tem que saber do que aconteceu nos bastidores... porque tem muita coisa que os livros de história, e nem é só da Psicologia, é de qualquer história... tem muita coisa que os livros não contam...” (PSICOL.4) O segundo, traz consigo a idéia de “versão”, um certo modo de contar, de organizar a narrativa, dado na disputa pela produção da verdade histórica. “(...) outros se adonam por ti e contam a versão deles...” (PSICOL.4)
Apesar deste flanco aberto pela assunção do caráter essencialmente narrativo do trabalho histórico, resta uma infiltração bastante intensa de um princípio crítico, de matriz aparentemente dialético-marxista, que assume a narração como modo de produção das verdades históricas, para logo em seguida denunciar a hegemonia de uma certa narrativa e reivindicar a legitimidade de uma outra, esta sim, “a verdade”. A verdade oculta que a História nos estaria negando por estar a serviço de artimanhas ideológicas próprias da luta de classes. A produção de um “oculto”, sempre mais verdadeiro, sob o véu da ideologia dominante. “Mas tem que ver que estudar a história também não pode ser acreditar em tudo que te contam, também tem coisa que a história não conta.”(PSICOL.4)
Breves Considerações Finais
A análise das falas dos entrevistados, das quais aqui apresentamos alguns elementos, permite-nos traçar duas breves considerações conclusivas com alguns desdobramentos imediatos. Conclusivas por aqui operarmos um corte circunstancial e arbitrário, que em nada encerra as muitas possibilidades de interlocução e aprofundamentos posteriores.
1. Parece haver um predomínio de versões historicistas regendo a constituição das representações acerca do estudo da História. Disso decorrem, no mínimo, dois desdobramentos que acabam por produzir efeitos bastante importantes: a) a História é concebida quase que exclusivamente como narrativa do tempo passado e como verdade unitária a ser apropriada por um exercício instrucional; b) é produzida uma forte dissociação entre historiografia e experiência vivida no presente, entregando-se por outorga de suposta competência ao ensino regular, exclusivamente, a responsabilidade pela formação histórica do profissional.
2. Versões críticas ao historicismo, visivelmente menos freqüentes nas falas, são engendradas no registro de uma análise de cunho mais dialético, de aparente inspiração marxista, funcionando com forte caráter de denúncia por meio de um suposto desvendamento do oculto, capaz de redimir a história de sua dívida com “a verdade”.
Abre-se para nós, como problemática, o curioso fato de que toda uma intensificação das metodologias narrativas e da valorização das fontes primárias, fomentadas especialmente nas ciências ditas humanas e sociais por contribuições da História Social, parece não vir dando conta – pelo menos não com a velocidade que supomos – de transformar efetivamente nossa relação com o estudo da História. Talvez esse movimento dependa de um certo desvio de nossa própria mirada, quiçá um deslocamento em direção à filosofia, naquilo que ela pode vir a nos dizer sobre as políticas de linguagem que fabricam nosso, tão caro e antigo, fascínio pela “Verdade”.
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Notas
* Artigo apresentado como parte da avaliação na disciplina “Abordagens Epistemológicas e Metodologia da Pesquisa”, cursada durante o primeiro semestre de 2005, no Programa de Pós-Graduação em Educação da PUCRS, sob orientação da Profª. Drª. Maria Emília Amaral Engers.
1 Psicólogo, psicoterapeuta, mestrando em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre,RS; e-mail: rocco.mts@sti.com.br
2 Nutricionista, professora e coordenadora pedagógica da Escola de Educação Profissional do Hospital Moinhos de Vento, Porto Alegre,RS, e-mail: siliane.troggian@hmv.org
3 Psicopedagoga, mestranda em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre,RS; Bolsista CNPq, professora da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul e presidente da Associação Brasileira de Psicopedagogia – seção RS. e-mail: fabianiop@brturbo.com.br